Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04A1213
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AFONSO DE MELO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
REIVINDICAÇÃO
INSTITUTO PÚBLICO
Nº do Documento: SJ200405130012136
Data do Acordão: 05/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 4927/03
Data: 10/30/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.

Sumário : 1) A competência do tribunal determina-se pelas afirmações do autor quanto ao objecto da acção com os pedidos que formulou.
2) Os tribunais judiciais são os competentes para a acção de reivindicação.
3) São também os competentes para conhecer do pedido de indemnização.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Na acção intentada em 16/09/2002 no Tribunal Judicial de Lousada, por A e mulher B contra o Instituto C - posteriormente com o DL nº 227/02, de 30/10, Instituto de Estradas de Portugal (IEP), aqueles pediram:
A declaração de que são os legítimos proprietários do prédio rústico que identificam; a condenação do R. a reconhecer esse direito e a restituir--lhes a parcela de 300m2 do mesmo prédio que, sem acto expropriativo, ilicitamente ocupou no decurso de construção de uma via rodoviária; a condenação do R. a indemnizá-los por danos patrimoniais e morais que lhes causou.
Contestou já o IEP por excepção e impugnação.
A excepção consistiu na incompetência absoluta do tribunal, por serem competentes os tribunais administrativos, julgada procedente, sendo o R. absolvido da instância.
A Relação revogou a decisão, decidindo ser o tribunal a quo competente em razão da matéria para conhecer da acção.
Neste agravo o IEP concluiu que, sendo o C pessoa colectiva de direito público e tratando-se in casu de acto de gestão pública, foi violado o disposto nos art.ºs 212º, nº3, da CRP, 51º, nº1 h) do ETAF (de 1984), 66º do C.P.C., e art.º 6º, nº1, do D.L. nº 237/99, de 25/06.
Os recorridos não contra-alegaram.
O M.º P.º pronunciou-se no sentido de que deve ser confirmado o acórdão recorrido.
1 - A competência do tribunal determina-se pelas afirmações dos Autores quanto ao objecto da acção com os pedidos que formularam.
Intentaram eles contra o R., em defesa do direito de propriedade que arrogam, a acção de reivindicação prevista no art.º 1311º do C. Civil, juntando aos dois pedidos que a integram o pedido de indemnização, como habitualmente sucede nestes casos.
Cabe aos tribunais comuns a tutela judicial dos direitos reais privados.
Constitui de resto uma longa tradição do nosso excluir do contencioso administrativo o julgamento sobre títulos de propriedade ou posse - art.º 326º do C. Administrativo de 1896, art.º 816º do C. Administrativo de 1936 e, depois, art.º 816º do mesmo Código de 1940.
Discutindo-se questão sobre propriedade privada, a acção está excluída da jurisdição administrativa - art.º 4º, nº1 f), do ETAF - e aplicam-se os art.ºs 66º do C.P.C. e 18º da LOFTJ (preceito idêntico) que estabelecem a competência residual dos tribunais judiciais face às outras categorias de tribunais referidas no art.º 209º, nº1, da C.R.P.
2 - O art.º 212º, nº3, da C.R.P., atribui aos tribunais administrativos a competência para o julgamento de acções e recursos contenciosos que tenham por objecto derimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas. (1)
O art.º 51º nº1 h) do ETAF, inclui na competência dos tribunais administrativos, as acções sobre a responsabilidade civil ao Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes, por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública.
Foi o DL nº 48051, de 21/11/1967, que veio regular a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas no domínio dos actos de gestão pública - art.º 1º.
Este é um conceito de matriz francesa que no país de origem tem suscitado dificuldades e divergências (2).
Entre nós, ou se sustenta o critério que atende à natureza material da actividade exercida, ou se opta pelo critério dos poderes de autoridade de quem a exerce, ou se defende o critério institucional, que nos parece ser o mais correcto.
Considera este o interesse público prosseguido pela função administrativa e a especial aptidão dos tribunais administrativos para a resolução das questões que a envolvem. São assim actos de gestão pública os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de uma função pública, sob o domínio de normas de direito público, ainda que não envolvem meios coercitivos (3).
O D.L nº 237/99, de 25/09, dispôs quanto ao C:
É um instituto público, dotado de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira e património próprio - art.º 1º (o mesmo se diz no art.º 1º dos respectivos estatutos anexos).
Detém poderes, prerrogativas e obrigações conferidos ao Estado pelas disposições legais e regulamentares aplicáveis, designadamente quanto à responsabilidade civil extracontratual nos domínios dos actos de gestão pública - art.º 5º e alínea h).
É da competência dos tribunais administrativos o conhecimento das acções tendentes à efectivação da responsabilidade do instituto ou dos seus órgãos, emergentes de actos de gestão pública, sem prejuízo do conhecimento pelos tribunais comuns das questões da sua competência em razão da matéria - art.º 6º, nº1 e 2.
Compete ao Instituto assegurar a construção de novas estradas, pontes e túneis planeados pelo IEP e a execução de trabalhos de grande reparação ou reformulação do traçado ou características de pontes e estradas existentes que lhe foram cometidos (art.º 4º, nº1 a), dos referidos estatutos).
Considerando agora os que os AA alegaram na petição inicial.
A ocupação da parcela de terreno do prédio daqueles, sem qualquer título que a justificasse, exorbitou a competência do R.
Não prosseguiu o interesse público, no exercício de função pública sob normas de direito público.
Constituiu uma ocupação ou expropriação de facto abusiva, que não pode ser um acto inserido numa relação jurídica administrativa.
Como tem entendido nestes casos a jurisprudência do Conseil d´Etat francês, foi uma actuação manifestamente insusceptível de ser referida ao exercício de um poder pertencente à Administração (4).
Tem a natureza da posse ilícita da parcela do prédio que fundamenta a reivindicação.
Em suma: respeita a uma questão de direito privado que o art.º 4º, nº1 f) do ETAF, em sintonia com o art.º 501º do C. Civil, excluiu da jurisdição administrativa.
Deste modo, também para o pedido de indemnização, com fundamento na responsabilidade civil excontratual da R., é competente em razão da matéria o tribunal judicial de Lousada.
Não se justifica portanto, e seria um desconcerto, a fragmentação da competência daquele tribunal quanto a questões tão conexionadas, impondo aos A. A. duas acções diferentes em tribunais diferentes.
Nestes termos negam provimento ao agravo.
Sem custas porque o recorrente estava delas isento.

Lisboa, 13 de Maio de 2004
Afonso de Melo
Fernandes Magalhães
Azevedo Ramos
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(1) Tem sido entendido que não se trata de uma reserva absoluta de jurisdição, podendo haver justificada atribuição pontual de competência aos tribunais judiciais para o julgamento de questões de direito administrativo, nomeadamente quando exista uma tradição jurídica nesse sentido - cfr. RLJ 132p. 298; ac. do T. Constitucional de 13/12/2000, Acórdãos do TC, vol. 48º, 2000, p. 551 e seg.
(2) Cfr. v.g. , Mazeaud - Traité Théorique et Pratique De La Responsabilité Civile Délictuelle et Contractuelle, Tome III (6ª ed), p. 33 e seg., quanto à responsabilidade derivada de trabalhos e obras públicas, e 53 e seg.; C. Debbasch - J. Claude Ricci, Contentieux administratif, 7ª ed., p. 35 e seg.
(3) Ver Ana Raquel G. Moniz, Responsabilidade Civil Extracontratual... O Acesso à Justiça Administrativa, p. 36-40.
(4) Alves Correia, As Garantias Do Particular na Expropriação Por Utilidade Pública, p. 172.