Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1628/15.0T8STR-A.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: CASO JULGADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
REQUISITOS DE IDENTIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA "PER SALTUM"
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / REVISTA "PER SALTUM".
Doutrina:
- Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil” Anotado, vol. II, 2.ª ed., 354.
- Teixeira de Sousa, O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, in B.M.J. 325.º, 49 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 2075.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 498.º, 591.º, 678.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 13-12-2007, DE 6-3-08 E DE 23-11-11, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 12-7-2011, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. A sentença proferida numa acção interposta contra um determinado indivíduo não exerce autoridade de caso julgado numa outra acção proposta contra outro indivíduo.

II. A excepção de caso julgado pressupõe a tríplice identidade de elementos (causa de pedir, pedido e sujeitos).

III. Esta excepção não procede quando se verifica que, para além da diversidade da causa de pedir e do pedido, a primeira acção foi instaurada por um indivíduo agindo na qualidade de cabeça de casal de uma Herança, pretendendo obter condenação da R. na realização de uma prestação a favor da Herança, ao passo que na segunda acção esse indivíduo surge, juntamente com outros, na sua qualidade de herdeiros, sendo pedida a condenação da R. na realização de uma prestação a favor de todos os autores litisconsorciados.

Decisão Texto Integral:
I - AA, BB e CC na qualidade de herdeiros de DD demandaram EE e FF em acção declarativa pedindo a sua condenação solidária no pagamento da quantia de € 249,368,52.

Tal valor envolve metade do que caberia à estirpe mãe dos AA., GG, irmã de DD, do valor total de € 287.299,91 (€ 143.649,95), de que as RR. se locupletaram, quantitativo que já foi reconhecido no âmbito de uma acção que foi instaurada contra a 2ª R. na qual foi proferida sentença de condenação na entrega à Herança de DD. Envolve ainda metade do quantitativo de € 17.457,93 de que as RR. também se apropriaram, assim como os juros de mora e uma quantia de € 5.000,00 para cada um dos AA. a título de danos morais.

As RR. contestaram.

No despacho saneador foi julgada procedente a excepção de caso julgado quanto à R. FF relativamente ao quantitativo de € 244.368,52, pelo facto de já ter sido obtida a sua condenação noutra acção onde foi proferida sentença que neste momento está em fase de execução.

No mesmo despacho foi declarada verificada a autoridade de caso julgado quanto à 1ª R. FF resultante da mesma sentença, considerando a 1ª instância que tal obstaria à apreciação dos termos da apropriação realizada pela 2ª R. FF e que apenas se poderia indagar se a conduta desta se inseriu num acordo de vontade com o marido da R. EE, HH.

De tal despacho foi interposto recurso per saltum por parte dos AA. que questionam tanto a excepção de caso julgado, como a excepção de autoridade de caso julgado.

II – Elementos a ponderar:

- No proc. n° 665/03.1TBABT do 3° Juízo do Trib. Judicial de Abrantes, AA, na qualidade de cabeça de casal da Herança de DD, intentou contra FF e outros acção declarativa sob a forma de processo ordinário, pedindo, além do mais, que se condenasse aquela R. a pagar à Herança a quantia de € 324.210,95, com juros até integral pagamento.

- Para tanto alegou que o produto de venda de bens da Herança de DD foi depositado em conta titulada pela 2ª R. e em conta titulada por esta e pela falecida e que a 2ª R. se apropriou das quantias de Esc. 32.500.000$ (€ 162.109,32). 25.000.000$00 (€ 124.699.47), 98,460$00 (€ 491,11) e 7.400.000$00 (€ 39.931,04), com o intuito de prejudicar os herdeiros da falecida.

- Foi proferida sentença, transitada em julgado, que condenou a 2ª R. a pagar à Herança de DD as seguintes quantias: € 162.109,32. acrescida de juros de mora vencidos desde 16-10-01, até integral pagamento; € 124.699,47 acrescida de juros de mora vencidos desde 25-10-2001, até integral pagamento; e € 491,11, acrescida de juros de mora vencidos desde 29-10-2001, até integral pagamento.

- Já na presente acção é pedida a condenação de ambas as RR. a pagarem em regime de solidariedade a quantia de € 249.368,52, com fundamento em que o produto de venda de bens da herança de DD foi depositado em conta titulada pela 2ª R. e em conta titulada por esta e pela falecida e que os RR. concertadamente se apropriaram das quantias de PTE 32.500.000$00 (€ 162.109.32), PTE 25.000.000$00 (€ 124.699,47), PTE 98.460$00 (€ 491,11) e PTE 7.400.000$00 (€ 39.911,04), abusando da debilidade física e mental e da situação de dependência em que se encontrava sob vigilância da 2ª R.

III – Decidindo:

1. Quanto à excepção de autoridade de caso julgado declarada quanto à R. EE:

1.1. No despacho saneador declarou-se a existência da excepção de autoridade de caso julgado tomando por base a sentença que foi proferida na anterior acção que o A. AA, na qualidade de cabeça de casal da Herança de DD, intentou contra a R. FF.

Não estão aqui em apreciação os motivos que levaram os AA. a instaurar nova acção, depois de numa outra a R. FF ter sido condenada a entregar à referida Herança a parte mais substancial da quantia e considerando que se encontra pendente acção executiva para pagamento de quantia certa sustentada na referida sentença de condenação.

O que parece óbvio é que tal excepção se não verifica, nada obstando, pois, a que a presente acção prossiga quanto à R. EE para apreciação de todo o pedido e de todos os fundamentos invocados pelos AA.

1.2. Tanto a jurisprudência como doutrina admitem que o instituto do caso julgado exerce duas funções. E se a função positiva é exercida através da excepção dilatória do caso julgado, a função positiva é desempenhada pela autoridade do caso julgado, visando evitar que o Tribunal seja confrontado com a necessidade de reproduzir ou de contradizer uma anterior decisão que apreciou determinada questão ou resolveu determinado litígio.

Quanto à excepção de caso julgado é de exigir a identidade dos três elementos que integram a instância e que são enunciados e delimitados no art. 591º do CPC. Já para que possa ser invocada a autoridade de caso julgado é fundamental apreciar se a questão se encontra ou não coberta por alguma decisão anterior, de tal modo que se torne desnecessário ou inconveniente uma pronúncia posterior. Não se tornando necessária uma total identidade daqueles elementos, não poderá deixar de se verificar alguma sobreposição nos elementos, com especial destaque para o elemento subjectivo.

É o decorre do defendido por Lebre de Freitas quando refere que “a autoridade do caso julgado tem o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida” (CPC anot., vol. II, 2ª ed., pág. 354).

Teixeira de Sousa igualmente discorre que o caso julgado “manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior” (O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, BMJ 325º, pág. 49 e segs.).

Enfim, a autoridade de caso julgado pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o art. 498º do CPC, mas pressupõe a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida (cfr. os Acs do STJ, de 13-12-07, de 6-3-08 e de 23-11-11 (www.dgsi.pt), o que ocorre designadamente em relação às questões que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado (Ac. do STJ de 12-7-11, em www.dgsi.pt).

1.3. O facto de não se exigir a tríplice identidade de elementos integrantes não significa que possa invocar-se numa acção uma qualquer sentença anteriormente proferida para a declarar impedida a apreciação do mérito de um litígio.

Tratando-se, no caso, de uma sentença que foi proferida no âmbito de uma acção que foi instaurada unicamente contra a 2ª R. FF, com invocação de factos que apenas à mesma respeitavam e com dedução de um pedido de condenação que veio a ser julgado parcialmente procedente, não se antolha de que modo tal sentença poderá impedir o prosseguimento desta acção contra outra Ré, EE, ainda que para a obtenção de uma condenação semelhante.

Dificuldades que ainda mais se acentuam quando afinal se verifica que a primeira acção foi intentada por AA, agindo na qualidade de cabeça de casal da Herança, e em que a R. EE foi chamada a intervir como sujeito activo nessa acção (na qualidade de mulher do co-herdeiro HH, para assegurar a legitimidade litisconsorcial), quando afinal na presente acção AA intervém com os outros dois herdeiros de sua mãe para obter para todos eles, além do mais, metade daquela quantia, sendo a acção dirigida contra EE.

Para além das diferenças que se verificam quanto à causa de pedir numa e noutra das acções, ressalta o facto de a R. EE não ter tido qualquer intervenção como sujeito passivo naquela acção, de modo que a sentença condenatória da R. FF não pode exercer efeitos na sua esfera jurídica. Também releva o facto de naquela acção o pedido de condenação ser formulado a favor da Herança Indivisa, ao passo que na presente acção tem como directos beneficiários os AA., na sua qualidade de herdeiros.

Por tais motivos não se encontram obstáculos a que a acção prossiga contra a R. EE.

2. Quanto à excepção de caso julgado declarada relativamente à R. FF:

2.1. Foi declarada essa excepção na parte correspondente à quantia que já foi objecto de apreciação na primeira acção.

Ao contrário do que se refere no despacho recorrido, a primeira acção que foi instaurada por AA, na qualidade de cabeça de casal da Herança, contra R. FF não foi uma acção de petição da herança; tratou-se de uma acção de declaração de nulidade de um contrato de compra e venda de imóvel com fundamento em simulação, no âmbito da qual foi declarada a referida nulidade e operada a conversão para o negócio dissimulado, sendo a referida R. condenada a pagar à Herança as quantias que foram recebidas e das quais se teria apropriado.

A acção de petição da herança pode ser instaurada por qualquer dos herdeiros, nos termos do art. 2075º do CC, mas no caso concreto, para além de não se tratar de uma acção de petição de herança, o referido AA não interveio na qualidade de herdeiro, antes como cabeça de casal a quem recaía o direito e o dever de administrar a Herança.

Por esse facto, depois de ter sido deduzida a excepção de ilegitimidade activa, foi requerida a intervenção de HH (irmão da falecida) e sua mulher, a 1ª R. EE.

Apesar de não terem intervindo na acção os demais irmãos do A. AA que nesta acção surgem como co-AA., tal foi considerado suficiente para satisfazer o pressuposto da legitimidade, assim se compreendendo que a acção tenha prosseguido e que tenha sido proferida sentença.

Ainda assim a condenação da R. FF na entrega do numerário foi declarada a favor da Herança (cujo cabeça de casal é o A. AA) e não a favor deste ou de qualquer dos demais herdeiros nessa qualidade e a título de direito próprio de génese hereditária.

2.2. A excepção de caso julgado exige a verificação da tríplice identidade: identidade dos sujeitos activo e passivo, causa de pedir e pedido.

Quanto ao pedido, verifica-se a sobreposição de uma parcela importante, na medida em que a maior parte da quantia cujo pagamento é pedido à R. FF corresponde a metade da quantia que já foi objecto de apreciação na primeira acção e cuja condenação no pagamento foi declarada por sentença transitada em julgado, podendo concluir-se que, nessa parte, existe uma duplicação do pedido.

Todavia, na primeira acção o pedido de condenação na totalidade das quantias que teriam sido apropriadas pela R. FF é formulado a favor da Herança de DD para que, uma vez concretizada a sua integração na massa hereditária, seja objecto de partilha por todos os herdeiros, ao passo que na presente acção a condenação é solicitada directamente a favor de cada um dos herdeiros da estirpe da irmã da falecida.

Quanto à causa de pedir igualmente se verifica que a maior parte dos factos que são invocados quanto à R. FF já sustentaram a pretensão que foi apreciada na primeira acção.

Porém, na presente acção tais factos surgem associados não a um mero contrato de compra e venda viciado por simulação, antes a uma alegada manobra efectuada conjuntamente pela R. FF e pelo irmão da falecida HH (com conhecimento da sua mulher, a R. EE).

A distinção de acções revela-se ainda mais nítida quando se analisa o elemento subjectivo na perspectiva dos AA.

Como se disse, a primeira acção foi intentada por AA, na qualidade de cabeça de casal da Herança de DD, a que depois vieram associar-se, por via de incidente de intervenção principal provocada, o irmão da falecida e a sua mulher, a ora 1ª R. EE.

Já nesta acção, aquele intervém não em representação daquela Herança, mas na qualidade de herdeiro directamente interessado na procedência da acção, associado aos demais herdeiros da irmã da falecida, pretendendo-se que a condenação reverta directamente a favor de todos os referidos herdeiros sem a prévia integração na massa hereditária sujeita a partilha.

Pode questionar-se a pertinência desta segunda acção dirigida contra a mesma R. para obter, na maior parte, o mesmo efeito patrimonial que porventura poderá ser alcançado com a execução da sentença condenatória que foi proferida na primeira acção.

Todavia, tal não permite afirmar a verificação da excepção dilatória de caso julgado.

IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente a revista per saltum, revogando-se o despacho recorrido que julgou procedentes as excepções peremptórias de caso julgado parcial e de autoridade de caso julgado parcial, prosseguindo os autos a sua normal tramitação.

Custas da revista a cargo dos recorridos.

Notifique.

Lisboa, 3-11-16

Abrantes Geraldes (Relator)



Tomé Gomes


Maria da Graça Trigo