Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
122/11.2T2ALB-D.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
INTERDIÇÃO
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
CRITÉRIOS DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VIOLAÇÃO DE LEI
LEI PROCESSUAL
REMOÇÃO
TUTOR
Data do Acordão: 11/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I) A remissão do art. 891º, 1, do CPC (norma do processo especial de “acompanhamento de maiores”) para o «disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes» não afasta a irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça das resoluções(-acórdãos) tomadas segundo critérios de conveniência ou oportunidade, nos termos do art. 988º, 2, do CPC, ainda que essa referência à restrição de recorribilidade para o STJ não conste expressamente do art. 891º do CPC. O art. 988º, 2, do CPC relaciona-se e é consequência do antecedente art. 987º do CPC, que diz respeito ao critério de julgamento, expressamente constante como aplicável no âmbito da remissão do art. 891º; uma vez aplicável, se se verificar que, nesse critério de decisão, a base consistir no recurso a critérios de conveniência ou oportunidade (2.ª parte do art. 987º do CPC), em vez de critérios de legalidade estrita, aplica-se a inadmissibilidade em regra da revista imposta pelo art. 988º, 2. Não é o caso quando se discute a resolução judicial superveniente – art. 988º, 1, ex vi art. 891º, CPC; art. 1948º, a), CCiv.) – de remoção do acompanhante de maior, antes tutor, no sentido de substituir essa remoção pela manutenção do primitivamente nomeado (então) tutor (escrutínio dos critérios legais dos arts. 146º, 1, e 1948º, 1, CCiv.).

II) Nesse mesmo processo especial, com aplicação remissiva do art. 988º, 2, do CPC, porém, se é invocada a eventual violação de normas de direito processual como fundamento recursivo, relacionadas com a aplicação do art. 662º do CPC e baseado no art. 674º, 1, b), sempre do CPC, tal circunstância retira, por si só e desde logo, o objecto recursivo da inadmissibilidade da revista imposta pelo art. 988º, 2, do CPC.

III) Não subsiste violação do art. 662º, 2, d), do CPC, no que respeita ao dever de fundamentação imposto pelo art. 607º, 4, do CPC, quando o acórdão recorrido se estriba na insuficiência da fundamentação usada (e, portanto, cumprida) para, analisando-a, revogar a remoção antes decretada.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 122/11.2T2ALB-D.P1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação do Porto, 3.ª Secção

Recorrente: AA

Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

1. No competente processo especial, foi determinada a interdição definitiva, por anomalia psíquica, de BB, com nomeação como tutora de CC, … do «Lar ... – ...», por sentença proferida pelo Juiz 2 da Instância Local, Competência Genérica de ... (Tribunal Judicial da Comarca de ...) em 12/6/2015 (fls. 4 e ss, 11-12, dos autos).

Por despacho proferido em 9/11/2016, foi deferida a escusa da tutora nomeada e nomeado para o cargo o filho da interdita, DD (fls. 37). Posteriormente viria a ser nomeada protutora da interdita a filha AA e, para o competente conselho de família, a aludida protutora e DD.

2. AA, em requerimento de 25/06/2018, veio promover a remoção do referido DD do cargo de tutor, considerando as faltas grosseiras no exercício dos deveres do cargo, nomeadamente a actuação no âmbito do processo executivo n.º 4494/17.7T8ENT. O referido DD respondeu a este requerimento, refutando as imputações feitas e pugnando pelo indeferimento do requerido. Seguiu-se promoção do Ministério Público, indicando o merecimento do sustentado pela protutora em sustentação do pedido de remoção do tutor do seu cargo, por incumprimento dos deveres próprios do seu cargo (artigo 1948º, a), CCiv.), o que faz fls. 80 dos autos.

Em requerimento de 15/4/2019, o tutor DD veio requerer a manutenção como Acompanhante da “interdita”/maior acompanhada sua mãe e a adequação formal dos autos de interdição à Lei 49/2018, de 14 de Agosto, em especial art. 26º, 4 e 7 (fls. 88 e ss).

Em decisão proferida em 5/7/2019, o Juiz 2 do Juízo de Competência Genérica de ..., tendo em consideração as alterações resultantes da referida Lei 49/2018 e a sua aplicação aos processos pendentes: (i) determinou a remoção do tutor DD do cargo de tutor, “nos termos do disposto no artigo 1948º, alínea a), do Código Civil” (fundamento em conclusão: “(…) atenta a prova produzida e os elementos recolhidos, nomeadamente ponderada a conduta do tutor DD no âmbito da execução supra aludida, na qual, face à inércia do mesmo[,] está em risco (por manifesto excesso de penhora, para além de outros eventuais vícios) parte substancial do património da acompanhada. E no âmbito da qual foi já, inclusivamente, proferida decisão declarando a nulidade processual decorrente da falta de citação do ministério público (dada a inércia do então tutor DD). Assim sendo, atenta a conduta do tutor DD reflectida nos elementos recolhidos nos autos, nomeadamente[,] no que respeita à sua conduta no âmbito dos autos de execução supra identificados, [e] a promoção do Ministério Público no sentido de ser dado provimento à requerida remoção, nos termos do disposto no artigo 1948.º, alínea a) do Código Civil (…)”; (ii) nomeou como acompanhante de BB a sua filha AA; (iii) atribuiu à acompanhante nomeada “poderes de representação geral da beneficiária (artigo 145º, nº 2, alínea b), do C.C.)”; (iv) nomeou para o conselho de família EE, neta da acompanhada, e FF, sobrinha (por afinidade) da acompanhada.

3. Inconformado, o referido DD interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto (TRP), pedindo que se revogasse o despacho recorrido e se determinasse a sua substituição por outro que decidisse pela manutenção do apelante como Acompanhante. A questão decidenda identificada foi: “saber se a conduta do Recorrente no processo de execução referido no despacho recorrido foi a adequada e não constitui fundamento para a remoção do recorrente das funções de tutor em que havia sido investido, agora como acompanhante à luz do disposto na Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, e da falta de condições da recorrida AA para o substituir no cargo”.

O acórdão, proferido pelo TRP em 23/1/2020 (fls. 150 e ss), decidiu julgar procedente o recurso e, em consequência, “revogar a decisão recorrida e manter o requerido e aqui recorrente (…) nas funções em que foi investido como acompanhante da maior acompanhada BB”.

4. Veio então a filha da Acompanhada, AA, interpor recurso de revista para o STJ, de acordo com o art. 671º, 1, do CPC, suscitando-se a interpretação e a aplicação do art. 662º, 2, d), do CPC quanto aos poderes da Relação, para efeitos de revogação do acórdão recorrido e a confirmação do despacho proferido em 1.ª instância.

           

Para esse efeito, finalizou as suas alegações com as seguintes Conclusões:

“1. A fundamentação apresentada pelo despacho de primeira instância ajusta-se adequadamente àquilo que decorre objectivamente dos depoimentos, das provas produzidas e da experiência comum. A sua livre convicção é objectiva e motivada, permitindo o controlo da mesma. Significa isto que, verificada tal motivação, a mesma só nos casos excepcionais legalmente previstos (erro de julgamento e vícios) ou situações de arbitrariedade ou juízos puramente subjectivos e imotiváveis, pode ser sindicada por um tribunal de recurso, pelo que nunca poderia o Tribunal da Relação ter revogado aquela decisão.

2. Dos elementos documentais dos autos e ainda da prova produzida na audiência de inquirição de testemunhas realizada no dia 12 de Dezembro de 2018, torna-se evidente a conduta absolutamente omissiva do Recorrido, mormente no que concerne à defesa do património da interdita e do seu mais valioso bem (a sua casa de habitação), ocultando, de forma ciosa, do tribunal (designadamente dos autos a estes apensos de autorização judicial) e da Recorrente (a quem tinha a obrigação de manter informada na qualidade de pro-tutora) a existência da execução e as diligências ali tomadas (em tempo manifestamente record), para a alienação daquele bem cuja venda o tribunal já tinha interdito, por ser manifestamente excessiva face às concretas necessidades de satisfação do crédito da ali Exequente (...).

3. O pedido de remoção do cargo de acompanhante, a promoção do Ministério Público e o despacho de primeira instância de remoção do Recorrido daquele cargo baseiam-se todos na conduta que este assumiu quer no processo de injunção (n.º 58768/17.1YIPRT) quer no processo de execução, não tem zelado de forma eficaz nem interessada pelo património da interdita.

4. Por apenso à acção de interdição (processo n.º 122/11.2T2ALB-A), foi promovida por CC, ... técnica do ..., e que ao tempo desempenhava as funções de tutor da interdita, uma acção de autorização judicial de venda, tendo em vista a obtenção de receitas suficientes para o pagamento dos encargos assistenciais de que a interdita carecia, designadamente para o pagamento do alojamento e demais cuidados prestados pelo ....

5. No decurso daquele processo de autorização judicial para a venda, a ... Técnica do ... viria a pedir a sua escusa das funções de TUTORA da interdita, nomeando-se em sua substituição o indicado DD.

6. Naqueles autos de autorização judicial para a venda, o referido DD lutou acerrimamente pela venda do único prédio urbano da Interdita, mas o Tribunal entendeu (e bem) mandar proceder, em 3 de Maio de 2017, à avaliação dos prédios rústicos titulados pela mesma, decidindo após tal avaliação, que apenas alguns deles (dois de natureza rústica) seriam só por si suficientes para o pagamento dos encargos da mesma, inclinando-se para a sua venda.

7. Ora, é neste contexto, dias após a decisão do Tribunal em ordenar a avaliação dos imóveis, contra a vontade do tutor, e provavelmente por pressentir o resultado de tal avaliação (consumado na decisão do Tribunal de autorizar a venda de dois dos prédios rústicos da INTERDITA), que surge a injunção (apresentada em 16-06-2017), que constituiu o título da execução n.º 4494/17.7T8ENT.

8. Tal injunção não teve qualquer oposição do à data tutor DD, que dela não deu, também, conhecimento ao pró-tutor (a aqui Recorrente), ao Ministério Público ou mesmo aos autos de autorização judicial.

9. O Recorrido tinha todos os motivos para se opor já que tinha sido a ... técnica do ... – CC – a promover a acção de autorização judicial de venda, tendo em vista a obtenção de receitas suficientes para o pagamento dos encargos assistenciais de que a interdita carecia, que havia agora intentado aquela injunção para obter o mesmo fim (apesar de a instituição ser perfeita conhecedora daquela acção de autorização).

10. Lograda em 27/09/2017 a oposição da fórmula executiva (ainda que com dispensa da necessária notificação do Ministério Público) naqueles autos de injunção, logo a 17-11-2017 é intentada a execução n.º 4494/17.7T8ENT.

11. Em 29/11/2017, o agente de execução procedeu à penhora do prédio urbano sito na R. …, nº 0, ..., inscrito na matriz sob o artigo 1523 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 7367.

12. Aqui também, como nos autos de injunção, o Recorrido não deduziu qualquer oposição e, igualmente, não deu conhecimento ao pró-tutor (a aqui Recorrente), ao Ministério Público ou aos autos de autorização judicial que havia sido promovido pela ... Técnica da Exequente ....

13. Lograda e consumada, nos sobreditos termos, a venda do imóvel que o Juiz do processo de interdição e de autorização judicial recusara, o aqui Recorrido veio informar aos autos de autorização judicial, motivo pelo qual a aqui Recorrente tomou conhecimento da existência dos autos de execução.

14. Naqueles autos de Autorização/Confirmação Judicial (que constitui o apenso A) foi proferida sentença, muito transitada em julgado, autorizando o (então) tutor DD a alienar dois prédios rústicos da sua mãe de valor suficiente para pagamento da dívida (que não a casa de habitação da interdita), tendo em vista fazer face às despesas necessárias ao seu sustento e obrigando-se o tutor a, no prazo de 15 dias contados da celebração da escritura pública, vir aos autos juntar certidão das mesmas, o que nunca chegou a ocorrer.

15. O Recorrido, enquanto era tutor e os adjudicatários (nos autos de execução Sr. GG e HH) negociaram entre si a compra e venda da casa morada da interdita (mas cuja venda não tinha sido autorizada pelo juiz do processo de autorização judicial), negócio em cuja concretização o ... igualmente mostrou interesse.

16. Citado para a instância executiva, o à data tutor, aqui Recorrido, não deduziu à mesma (ou à penhora) qualquer oposição, nem sequer constituiu mandatário, pelo que, nos termos do disposto no artigo 21.º do Código de Processo Civil, incumbia a defesa da incapaz ao Ministério Público, que não havia sido citado, tendo, por isso, vindo o Tribunal a declarar nulo o próprio título executivo e nulos todos os actos da execução, inclusive a venda.

17. O Ministério Público, na sua promoção de 07/01/2019, assinalou a violação dos deveres próprios do cargo de tutor que cabiam ao Recorrido.

18. O Tribunal de primeira instância deixa claro que a sua decisão foi tomada tendo em conta as declarações de parte do Tutor/Recorrido, os depoimentos das testemunhas indicadas e os elementos constantes dos autos.

19. Decorre da fundamentação do despacho alvo do recurso de apelação que foram violados pelo Recorrido os deveres próprios do cargo, nos termos do artigo 1948.º do CC.

20. O acórdão recorrido insiste na inexistência de “factos concretos” para considerar que o tutor DD incumpriu com os deveres próprios do cargo, factos, portanto, positivos. Acontece que no caso em apreço o incumprimento não se corporiza neste tipo de factos, mas sim numa conduta omissiva, também ela violadora dos deveres que cabem a um tutor, tal como referido no requerimento da ora Recorrente, e para o qual remetem a promoção e a sentença de 1.ª instância. 21. Entendendo o Tribunal “a quo” que o despacho recorrido não estava suficientemente fundamentado, e uma vez que o mesmo se baseou não em prova documental mas também testemunhal, beneficiando, assim, da imediação e da oralidade, deveria aquele Tribunal ter anulado o despacho decisório recorrido, ordenando a sua substituição por um outro no qual se mostrassem supridas, ao nível da fundamentação de facto, as (alegadas) deficiências/insuficiências apontadas.

22. Em vez disso,         e com o    exclusivo     fundamento      de «insuficiência     

de fundamentação», o Tribunal da Relação revogou a decisão recorrida e manteve o Requerido DD nas funções de acompanhante da maior acompanhada BB.

23. Não se verificando qualquer vício de nulidade, nomeadamente nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d) como o próprio Tribunal “a quo” reconhece, a dita insuficiência de fundamentação é susceptível, nos termos do estatuído no art. 662.º, n.º 2, al. d) do CPC aqui aplicado extensivamente –, de gerar, quando muito, a remessa dos autos à 1ª. instância para suprir tal falta de motivação.

Não foram apresentadas contra-alegações.

5. Foi proferido despacho pelo aqui Relator, no âmbito da previsão do art. 655º do CPC, atenta, numa primeira análise do regime legal, a eventualidade de não conhecimento do objecto do recurso em face do dispositivo previsto no art. 891º do CPC, na redacção conferida pela Lei 49/2018, de 14 de Agosto.

Em resposta, o Recorrente sustentou a inadmissibilidade do recurso pela aplicação do art. 988º, 2, do CPC; a Recorrida, ao invés, pugnou pela admissibilidade e apreciação do recurso.

Foram colhidos os vistos legais.

Cumpre apreciar e decidir.

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade do recurso

1.1. O regime jurídico do “maior acompanhado” entrou em vigor em 10/2/2019, aplicando-se de imediato aos processos de interdição pendentes (arts. 25º e 26º, 1 e 2, da Lei 49/18), implicando a conversão dos tutores de interditos em acompanhantes de maiores.

O art. 891º do CPC, na redacção conferida pela Lei 49/18, prescreve que «[o] processo de acompanhamento de maior tem carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes».

Estando em causa a convocação do regime dos processos de jurisdição voluntária à pretensão recursiva junto do STJ, portanto, considerando tal prescrição do art. 891º do CPC, essa aplicação é referida aos planos de actuação dos poderes do juiz, ao critério de julgamento das decisões sindicadas e às decisões judiciais de alteração com fundamento em circunstâncias supervenientes. Desta forma, a remissão do art. 891º, 1, do CPC para o regime dos processos de jurisdição abrange sem dúvida os arts. 987º e 988º do CPC:

«Artigo 987º - Critério de julgamento

Nas providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna.»

«Artigo 988º - Valor das resoluções

1 - Nos processos de jurisdição voluntária, as resoluções podem ser alteradas, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração; dizem-se supervenientes tanto as circunstâncias ocorridas posteriormente à decisão como as anteriores, que não tenham sido alegadas por ignorância ou outro motivo ponderoso.

2 - Das resoluções proferidas segundo critérios de conveniência ou oportunidade não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.»

O significado desta remissão, nos termos precisos em que é feita – em rigor, aplicação dos arts. 986º, 2, 987º e 988º do CPC – não afasta airrecorribilidade das resoluções tomadas segundo critérios de conveniência ou oportunidade para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 988º, 2, do CPC, ainda que essa referência à restrição de recorribilidade para o STJ não conste expressamente do art. 891º do CPC. Pois, na verdade, não tem nem teria que estar: o art. 988º, 2, do CPC relaciona-se e é consequência do antecedente art. 987º do CPC, que diz respeito ao critério de julgamento, expressamente constante como aplicável no âmbito da remissão do art. 891º; uma vez aplicável, se se verificar que, nesse critério de decisão, a base consistir no recurso a critérios de conveniência ou oportunidade (2.ª parte do art. 987º do CPC), em vez de critérios de legalidade estrita, aplica-se a inadmissibilidade em regra da revista imposta pelo art. 988º, 2[1].

Daqui resulta que a remissão do art. 891º do CPC implica que não é admissível interpor recurso de revista do acórdão da Relação proferido sobre a decisão da 1.ª instância quando a resolução-acórdão recorrido se baseia em critérios de conveniência ou oportunidade, por aplicação do art. 988º, 2, em articulação com o art. 987º do CPC. Assim, pela sua própria natureza, as decisões que assentam nestes critérios – e não haveria razão sustentável para assim não ser também em processos especiais como é o dos autos – não são suscetíveis de recurso de revista, pois, nos termos dos arts. 671º e 674º do CPC, este é um recurso que, em regra, só conhece de direito. Mas se a conclusão for a oposta, então já não poderá valer a estatuição de irrecorribilidade do art. 988º, 2.

Assim considerando, quid juris?

9. No caso em apreciação, houve resolução judicial superveniente – art. 988º, 1, ex vi art. 891º, CPC; art. 1948º, a), CCiv. – de remoção do acompanhante de maior, antes tutor, por intermédio de decisão proferida pela 1.ª instância. O acórdão recorrido da Relação alterou a decisão tomada, no sentido de substituir essa remoção pela manutenção do primitivamente nomeado (então) tutor.

A decisão de segundo grau aponta para a necessidade de seguir os critérios dos arts. 146º, 1 («No exercício da sua função, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada.») – “imposição que é assim elevada a critério referencial pelo qual se deverá orientar a atuação do acompanhante no exercício das concretas funções que lhe sejam cometidas” – e 1948º, 1, por força do art. 152º, sempre do CCiv. – “A remoção do acompanhante pressupõe assim a alegação pelo requerente e a posterior comprovação de factos em que se consubstancie a violação dos deveres a que o acompanhe se encontre adstrito. E a decisão que nesse sentido for proferida terá de ter como fundamento a demonstração desses concretos factos na medida em que evidenciem a violação dos deveres a que o acompanhante se encontre adstrito nos termos anteriormente referidos”. E conclui: “(…) a decisão de remoção ou exoneração pressupondo a prova dos factos assim alegados, haverá de se reportar, na sua fundamentação, ao dever ou deveres, cuja violação justifique a remoção, na medida em que objetivada nos factos que tenha sido alegados e dados como provados”.

Neste quadro, a decisão não se veio a basear, no confronto dos factos provados com o regime legal de cumprimento dos deveres do acompanhante, em juízos de adequação concreta e de opção de uma solução discricionária em detrimento de outra. Antes a decisão baseia-se em critérios de interpretação e aplicação da lei respeitante à actuação legalmente exigível ao acompanhante de maior, sem recurso a juízos de oportunidade, conveniência e equidade, sem ligação com pressupostos legais definidos para julgamento.

Aponte-se em abono a conclusão da Relação: “(…) conforme vimos decorrer do regime legal aplicável – e tem sido interpretação unânime da jurisprudência – a remoção do tutor, e por aplicação remissiva desse regime, do acompanhante nomeado e investido pressupõe a demonstração de quaisquer factos que se reconduzindo a uma das situações previstas no art. 1948º do CC ponham em causa a anterior nomeação, ou a falta de cumprimento dos deveres próprios do cargo. Não constando da decisão quais sejam esses factos e menos ainda a demonstração de que os mesmos evidenciam a violação dos deveres a que o acompanhante se encontre adstrito, aquela decisão não pode manter-se.”

Por outro lado, no recurso de revista é invocada a eventual violação de normas de direito processual como fundamento recursivo, relacionadas com a aplicação do art. 662º e baseado no art. 674º, 1, b), sempre do CPC, o que, por si só e desde logo, retira o objecto recursivo da inadmissibilidade da revista imposta pelo art. 988º, 2, do CPC[2].

Em suma: cabe no âmbito dos poderes do STJ e, portanto, da revista fundada no art. 671º, 1, do CPC, a apreciação do decidido em sede de apreciação da causa de remoção do acompanhante de maior, uma vez que quanto a ela não se verifica o bloqueio recursório do art. 988º, 2, do CPC.

Portanto, é de admitir o recurso, estando verificados os requisitos gerais dos arts. 629º, 1, e 631º, 1 e 2, do CPC.

2. Objecto do recurso

Vistas as Conclusões, que delimitam o objecto do recurso (de acordo com os arts. 635º, 2 a 4, e 635º, 1 e 2, do CPC), a Recorrente invoca a violação pelo acórdão recorrido do art. 662º, 2, d), do CPC no exercício da sua fundamentação (art. 674º, 1, b), CPC).

3. O direito aplicável

A Recorrente transporta recursivamente para apreciação no STJ uma alegada violação da lei processual inscrita no art. 662º, 2, do CPC. Em especial, a al. d), que, em sede de decisão de apelação, estatui que a Relação deve «determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados».

Em função de tal dispositivo, à Relação cabe o poder-dever de, até oficiosamente, determinar a remessa dos autos ao tribunal de 1.ª instância “se a decisão proferida sobre algum facto essencial não estiver devidamente fundamentada”, tendo em vista “preencher essa falha com base nas gravações efetuadas ou através de repetição da produção da prova, para efeitos de inserção da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto”[3].

Ora, visto o acórdão recorrido, não se vislumbra que a Relação tivesse identificado vício no dever de fundamentação ex vi art. 607º, 4, do CPC; antes se estriba na insuficiência da fundamentação usada (e, portanto, cumprida) para, analisando-a, revogar a remoção antes decretada.  

Atentemos na transcrição:

“(…) não poderá deixar de salientar-se essa insuficiência tanto mais que a remoção do cargo do acompanhante a que se refere, por remissão do referido art. 152º do C. Civil, o art. 1948º do mesmo diploma, só pode ser judicialmente decretada a requerimento do Ministério Público, de qualquer parente do acompanhado – 1949º do CC – o que pressupõe desde logo que nesse requerimento sejam alegados os concretos factos que possam qualquer das situações previstas no referido art. 1948º do CC, ou seja: - a sua incapacidade para o cargo, - a falta de cumprimento dos deveres próprios do cargo, ou - a ocorrência de facto superveniente à investidura se constitua nalguma das situações que impediriam a sua nomeação.

Por sua vez a decisão de remoção ou exoneração[,] pressupondo a prova dos factos assim alegados, haverá de se reportar, na sua fundamentação, ao dever ou deveres, cuja violação justifique a remoção, na medida em que objetivada nos factos que tenha sido alegados e dados como provados.

Ora [n]o caso dos autos a insuficiência verifica-se desde logo ao nível da alegação dos factos no requerimento de remoção. Com efeito[,] à parte afirmações abstratas e indemonstradas de que injunção e execução mais não eram do que procedimentos simulados visando, tão só, fazer reverter as decisões que haviam sido proferidas naqueles autos, fica a restar a alegação de o “tutor” – leia-se acompanhante –  não ter dado conhecimento nos autos de autorização judicial apensos a estes autos. E à afirmação, conclusiva e sem concretização, de que o referido DD teria faltado grosseiramente aos deveres do seu cargo com a conduta que assumiu no âmbito do processo executivo 4494/17.7T8ENT. Qual foi essa conduta, e em que medida ela se traduziu numa violação dos deveres que eram inerentes ao cargo de acompanhante, nada é dito ou alegado.

O Ministério Público, que igualmente tinha legitimidade para requerer a remoção, e poderia suprir aquela insuficiência alegatória, limitou-se, na sua promoção, a sustentar que houve da parte do requerido acompanhante uma conduta omissiva no âmbito dos aludidos autos de execução que traduziria falta de cumprimento dos deveres próprios do seu cargo, sem no entanto se dizer qual foi essa atitude omissiva, e em que medida violou os deveres próprios do cargo.

Por sua vez o tribunal recorrido, que só poderia basear-se no alegado pelo requerente – cfr. art. 1949º do C. Civil – limita-se, na decisão recorrida, a referir que no âmbito da execução supra aludida, face à inércia do requerido acompanhante, estaria em risco (por manifesto excesso de penhora, para além de outros eventuais vícios) parte substancial do património da acompanhada. E que, não obstante a inércia do então tutor DD, teria sido[,] inclusive, proferida decisão declarando a nulidade processual decorrente da falta de citação do ministério público.

Nenhum facto concreto é referido, e muito menos enunciado como tendo ficado provado em face da prova produzida e os elementos recolhidos, que pudesse consubstanciar a inadequação da atuação do requerido – Qual o valor que da quantia exequenda [estava] em causa? havia outros bens para nomear à penhora?

(…)

Não constando da decisão quais sejam esses factos e menos ainda a demonstração de que os mesmos evidenciam a violação dos deveres a que o acompanhante se encontre adstrito, aquela decisão não pode manter-se.”

Logo, a discórdia da Recorrente quanto ao juízo da Relação sobre a ausência de factos susceptíveis de cobrir incumprimento, activo ou omissivo, do acompanhante para efeitos da sua remoção não implica que a Relação tenha cometido vício nos poderes adjectivos da al. d) do art. 662º, 2, do CPC. O que não sucedeu, como se atesta pela transcrição pertinente, fazendo improceder as Conclusões da revista.

III. DECISÃO

Em conformidade, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

STJ/Lisboa, 10 de Novembro de 2020

Ricardo Costa (Relator)

Ana Paula Boularot

José Rainho

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

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[1] Nomeadamente note-se a possibilidade extraordinária de aceder à jurisdição em 3.º grau através da previsão do art. 629º, 2, d), do CPC.
[2] Neste sentido, v. ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS FILIPE SOUSA, Código de processo civil anotado. Vol. II, Processo de execução, processos especiais e processo de inventário judicial, Artigos 703º a 1139º, Almedina, Coimbra, 2020, sub art. 988º, pág. 439.
[3] ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 662º, pág. 310.