Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2956/07.3TDLSB.S2
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CARVALHO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
VIOLAÇÃO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
PENA
PENA ÚNICA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 12/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I - O recorrente foi condenado por um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), por um crime de violação, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 164.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a) e por outro crime de violação, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 164.º, n.º 1 e 177.º, n.º 3, todos do Código Penal Revisto em 1995, nas penas parcelares, respectivamente, de 2 anos, 5 anos e 6 meses, 6 anos e 6 meses de prisão, a que correspondeu a pena conjunta de 9 anos de prisão.

II - Pede a atenuação especial da pena conjunta, mas há lapso da sua parte, pois a lei só prevê a atenuação especial da pena individual por cada crime (art.º 72.º do CP) e não da pena conjunta, esta determinada nos termos do art.º 77.º.

III - A atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar. Para a generalidade dos casos, para os casos “normais”, “vulgares” ou “comuns”, “lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime, §454). Ora, as circunstâncias invocadas pelo recorrente estão muito longe de se poderem considerar extraordinárias ou excepcionais.

IV - A confissão sem reservas de todos os factos é, neste caso, de escassíssimo valor. Na verdade, apurou-se que o recorrente tudo fez para esconder os seus actos criminosos, desde pretender que a gravidez da filha menor, de que ele próprio era o directo responsável, deveria ser atribuída a um colega da escola daquela, até convencer o enteado a assumir falsamente, perante a falência daquele plano, a «paternidade» da criança. E só «confessou» os seus actos quando o teste de paternidade concluiu, com um grau de probabilidade de 99,999998%, que era o próprio recorrente o pai do filho da B. O «arrependimento», portanto, também se afigura como muito limitado.

V - Quanto a constituírem os crimes cometidos “episódios únicos na sua vida”, não há que esquecer que o arguido foi condenado por outro crime cometido na altura dos factos, embora de natureza muito diversa.

VI - Assim, não há motivo para uma atenuação especial das penas parcelares e o facto de ter nascido numa família disfuncional - circunstância que, de certo modo, estará na origem profunda do seu comportamento desviante - já serviu para a graduação das penas parcelares dentro da respectiva moldura abstracta, .

VII - No caso, portanto, os limites abstractos da pena conjunta variam entre o mínimo de 6 anos e 6 meses de prisão (pena parcelar mais grave) e o máximo de 14 anos de prisão (soma de todas as penas em concurso).

VIII - Vem o STJ entendendo, numa corrente cada vez mais alargada, que na escolha da pena conjunta não podem ser atendidos os factores que já foram considerados na determinação da pena parcelar, pois, se tal fosse feito, haveria uma violação do princípio da proibição de «dupla valoração».

IX - “Se as penas singulares esgotaram (ou deviam ter esgotado) todos os factores legalmente atendíveis, sobrará para a pena conjunta, simplesmente, a reordenação cronológica dos factos (julgados, nos processos singulares, fora da sua sequência histórica) e a actualização da história pessoal do agente dos crimes - Conselheiro Carmona da Mota, no colóquio realizado no STJ em 3/6/2009, de acordo com apontamentos publicados no site do STJ.

X - Ora, os abusos sexuais referidos nos factos prolongaram-se por cerca de 2 anos, entre os 12 e os 13 anos da ofendida, num crescendo de violência física e psíquica, tanto mais que se provou que a menor sofria com as investidas do Pai. Há, portanto, uma especial gravidade na apreciação conjunta dos factos e na sua duração temporal, para já não falar das consequências, que irão perdurar na memória e na vida actual e futura da ofendida. Por isso, mostrando-se a pena única encontrada na 1ª instância conforme com os critérios que se vêm estabelecendo na jurisprudência do STJ, nada há a alterar ao decidido.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. A foi julgado na 4ª Vara Criminal de Lisboa, no âmbito do processo n.º 2956/07.3TDLSB e, por acórdão de 16 de Março de 2009, posteriormente reformulado por acórdão de 14 de Setembro de 2009, em obediência à decisão do STJ de anular a primeira decisão por falta de fundamentação da pena única (1), foi condenado:
1) Pela prática, na pessoa de sua filha B, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), do Código Penal Revisto em 1995, na pena 2 (dois) anos de prisão;

2) Pela prática, na pessoa de sua filha B, em dia não apurado de Dezembro de 2005 ou Janeiro de 2006, de um crime de violação, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 164.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;

3) Pela prática, na pessoa de sua filha B, cerca de um ou dois meses depois da situação referida em b), de um crime de violação, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 164.º, n.º 1 e 177.º, n.º 3, do Cód. Penal, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses;

4) Operando o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido, considerando, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido, na pena única de 9 (nove) anos de prisão, a que se descontará o tempo da sua à medida de coação de obrigação de permanência na habitação à ordem destes autos (desde 25-07-2008).


2. Do acórdão condenatório, já reformulado, recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça e formulou as seguintes conclusões:
1. O Arguido, ora Recorrente, foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. nos artigos 172° n.º 1 e 177 n.º 1 alínea a) do Código Penal e pela prática de dois crimes de violação, p. e p. pelos artigos 164° n.º 1 e 2 e 177 nº 1 alínea a) e nº 3 do Código Penal.
2. Operado o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao Recorrente, "considerando, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido " o douto colectivo condenou o mesmo na pena única de 9 (nove) anos de prisão.
3. Porém, o douto Tribunal a quo não teve em atenção que o ora Recorrente confessou integralmente e sem reservas todos os factos ilícitos praticados, bem como que manifestou o seu profundo arrependimento.
4. Os factos descritos na douta acusação foram episódios únicos na vida do Recorrente, pois o seu arrependimento foi tal, que nunca mais os repetiu.
5. Atentos os factos supra descritos, o douto Tribunal a quo deveria ter ponderado a atenuação especial da pena de 9 (nove) anos de prisão aplicada ao Recorrente, por via do artigo 72 nº 1 alíneas c) e d) do Código Penal.
6. O que não fez, menosprezando o facto de o Recorrente ter serias vantagens na sua reinserção social, uma vez aplicadas as referidas atenuações da pena, visto que já conta com 55 anos de idade e padece de doença grave do foro cardíaco, necessitando de acompanhamento médico contínuo.
7. Assim, o Recorrente entende que o Tribunal ad quem deverá ponderar a aplicação da atenuação especial da pena de 9 (nove) anos de prisão aplicada, por via dos artigos 72° nº 1 alíneas c) e d) do Código Penal.
8. Considerando-se, portanto, violados os artigos 42° e 72° nº 1 alíneas c) e d) do Código Penal, bem como os princípios da necessidade proporcionalidade, e adequação previstos no mesmo diploma.


3. O M.º P.º no tribunal recorrido pronunciou-se pelo não provimento do recurso.
No STJ o seu parecer foi no mesmo sentido:
1. Como o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender, a atenuação especial resultante da acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção corresponde a uma válvula de segurança do sistema, que só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto resultante da actuação das atenuantes, se apresenta com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo respectivo.
2. A imagem global do facto não se mostra, no caso concreto, de modo nenhum especialmente atenuada, mas antes especialmente agravada, mostrando-se afastada, sem margem para dúvidas, a pretendida atenuação especial da pena.
3. Para além da reduzida relevância da confissão e do arrependimento, não poderão olvidar-se a extrema gravidade dos ilícitos praticados, a intensidade do dolo com que o arguido agiu, tendo apenas presente a satisfação dos seus instintos libidinosos, com brutal indiferença para a grave perturbação que as suas acções provocavam na formação e estruturação da personalidade da sua própria filha, bem como as especiais exigências de prevenção que, no caso se fazem sentir.
4. A pena única aplicada não merece o mínimo reparo, mostrando-se em conformidade com os critérios legais aplicáveis e com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.
5. Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso.

4. Não tendo sido requerida audiência, foram colhidos os vistos e realizada conferência com o formalismo legal.

Cumpre decidir.
Há duas questões em apreço:
- Saber se o arguido devia ter beneficiado de atenuação especial das penas parcelares, nos termos do art.º 72.º do CP.
- Apurar se a medida da pena única aplicada se mostra excessiva.

FACTOS PROVADOS

O arguido é pai de B;
(…) a qual nasceu no dia 18 de Abril de 1991;
B viveu numa instituição até aos 12 anos de idade;
A partir dessa idade passou a viver na companhia do pai e da mulher deste, C, juntamente com o filho desta, de nome D;
E ainda de uma filha do arguido e da sua actual mulher, C, de nome E;
(…) residindo na Rua F, numa casa pertença de C;
Na altura em que B foi viver com o pai, este, passado pouco tempo, quando aquela tinha ainda 12 anos de idade, passou a sentá-la no seu colo com frequência, apalpando-lhe com as mãos, os seios, as pernas e a vagina;
Quando tal sucedia, a menor sentia-se incomodada com o comportamento do pai, passando a evitar estar perto deste, para que o mesmo não a mandasse sentar ao seu colo;
Em 10.10.2008, data do despacho acusatório, o arguido estava reformado havia cerca de quatro anos;
Desde que se reformou, o arguido passa os dias inteiros em casa;
A sua mulher trabalha a dias como empregada doméstica, estando ausente de casa desde manhã até à noite;
Na tarde de um dia não apurado de Dezembro de 2005 ou Janeiro de 2006, o arguido e B ficaram sozinhos em casa;
(…) encontrando-se B no seu quarto de dormir;
Então, o arguido entrou no quarto de dormir de B e fechou a porta à chave;
(…) e aí, despiu-se e despiu também B;
Em seguida, batendo em B, deitou-a na cama e imobilizou-a;
Após o que introduziu o seu pénis erecto na vagina de B, aí o friccionando até ejacular;
Ao mesmo tempo, B debatia-se para sair debaixo do arguido;
(…) o qual, por sua vez, lhe batia para que a mesma se mantivesse quieta;
Depois de ejacular na vagina de B, o arguido vestiu-se enquanto dizia à filha que a matava se contasse a alguém o que se tinha passado;
Em seguida, saiu do quarto de dormir de B;
(…) a qual ficou muito perturbada com a descrita actuação do arguido;
(…) mas, por ter medo do pai, nada disse do referido em 2.1.14 a 2.1.20;
Cerca de um ou dois meses depois, o arguido voltou a estar sozinho em casa com B;
Então, dirigiu-se novamente ao quarto de dormir da filha, fechou a porta do mesmo à chave, e aí despiu-se e despiu a menor;
Após o que, batendo-lhe para a imobilizar e dizendo-lhe que a matava se contasse a alguém o que se estava a passar, voltou a introduzir o seu pénis erecto na vagina de B, aí o friccionando até ejacular;
Mais uma vez a menor ficou muito perturbada com a descrita actuação do arguido, mas, com medo não contou nada a ninguém;
Cerca de três meses depois do referido em 2.1.24 a 2.1.26, a menor descobriu que estava grávida;
Nessa altura ficou apavorada, tanto mais que sabia que o filho que esperava era do seu próprio pai;
No entanto, com medo do arguido, não contou o sucedido a ninguém;
Quando o arguido soube da gravidez da filha, convenceu a restante família de que o filho era de um colega desta;
A família do arguido quis falar com o referido colega, mas o arguido manifestou oposição a tal, pois sabia que era o verdadeiro pai da criança;
Então, o arguido começou a convencer o enteado e B no sentido daquele assumir a paternidade do filho desta;
(…) o que o enteado do arguido, D, acabou por fazer;
No dia 6 de Dezembro de 2006, nasceu G, filha do arguido e de B;
G foi registada como sendo filha da menor B e de D;
Ao actuar da forma descrita, o arguido quis e conseguiu, pelo menos numa ocasião, apalpar os seios, as pernas e a vagina da menor B, sua filha e que na altura tinha 12 anos de idade;
Quis também, e conseguiu, em duas ocasiões, introduzir o seu pénis erecto na vagina da menor B, bem sabendo que a mesma era sua filha e que tinha apenas 15 anos de idade;
O arguido quis bater em B de forma a imobilizá-la e assim poder consumar tais actos;
Assim como quis valer-se da circunstância de ser seu pai, para concretizar os seus intentos;
O arguido sabia que tais comportamentos iriam perturbar, como perturbaram, o desenvolvimento afectivo, físico e emocional de B, sua filha;
(…) e que afectavam de forma grave a evolução e a construção da sua personalidade;
O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente;
Bem sabendo que as suas supra descritas condutas era proibidas e punidas por lei;
A nasceu e cresceu num ambiente familiar instável, caracterizado por problemas de alcoolismo do seu progenitor;
(…) o que se reflectiu negativamente no percurso escolar do arguido, que apenas concluiu a 4ª classe;
Com doze anos de idade iniciou actividade laboral, como servente da construção civil, mantendo-a ao longo de todo o seu percurso profissional;
Em 1978, com 24 anos de idade, iniciou um relacionamento afectivo com uma namorada, com quem passou a viver em união de facto;
Dessa união, que durou cerca de treze anos, nasceram sete filhos;
O arguido interrompeu essa relação devido a problemas de alcoolismo da sua companheira;
A partir daí encetou um novo relacionamento com outra mulher, com a qual veio a casar e em casa de quem passou a residir;
O seu novo agregado passou a ser constituído pelo casal e por um filho da sua mulher, D;
Desse casamento nasceu uma filha;
Em 2005, B, filha do arguido e fruto do seu relacionamento referido em 2.1.48, passou a integrar o agregado familiar deste, referido em 2.1.52;
O arguido trabalhou regularmente até 2002, interrompendo a sua actividade laboral quando sofreu um enfarte do miocárdio;
Altura em que lhe foi diagnosticada uma doença cardiológica, que o levou a uma intervenção cirúrgica;
O que determinou a sua incapacitação para o trabalho e a sua posterior reforma por invalidez;
Em Dezembro de 2005 e em 2006, o arguido permanecia grande parte do tempo em casa ou em tratamentos médicos;
O seu agregado familiar era então constituído pela mulher, uma filha de ambos, enteado D e B;
Nessa altura o arguido tinha problemas de saúde, registando uma tendência para o isolamento e retracção social;
Permanecia isolado na sala da sua casa, não abria os estores das janelas e não acendia as luzes;
Passava a maior parte do seu tempo sentado no sofá, vendo televisão ou ouvindo rádio e raramente saía à rua;
O arguido toma actualmente muita medicação diária, devido aos problemas de coração, sendo acompanhado na consulta de cardiologia no Hospital de Santa Marta;
Presentemente reside apenas com a companheira, que trabalha a dias, como empregada de limpeza, e com o enteado, de dezanove anos de idade, que se encontra inactivo;
(…) numa casa arrendada pela Câmara, pela qual pagam, a título de renda, a importância mensal de € 84,00;
Aufere uma pensão de reforma no valor de € 243,00;
Tem como habilitações literárias a 4ª classe;
Mostrou arrependimento;
Consta do seu certificado de registo criminal junto aos autos que por sentença de 9 de Junho de 2008, transitada em julgado no dia 21 de Julho de 2008, proferida no Proc. nº 89/05.6PPLSB, da 3ª Secção do 5º Juízo Criminal de Lisboa, foi condenado na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, pela prática, em 22 de Maio de 2005, de um crime de ofensa à integridade física simples.

ATENUAÇÃO ESPECIAL DAS PENAS

O recorrente pede a atenuação especial da pena de 9 anos, mas há lapso da sua parte, pois a lei só prevê a atenuação especial da pena individual por cada crime (art.º 72.º do CP) e não da pena conjunta, esta determinada nos termos do art.º 77.º.
De qualquer maneira, para não prejudicar o recorrente, veremos se alguma razão existe para que as penas parcelares fossem especialmente atenuadas, atentas as circunstâncias de ter o recorrente confessado todos os factos sem reservas (conclusão n.º 3), mostrar-se profundamente arrependido (idem) e dos crimes serem episódios únicos na sua vida (conclusão n.º 4).

O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena (art.º 72.º, n.º 1, do CP). Por sua vez, o n.º 2 desta disposição diz que, para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes: a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência; b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida; c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados; d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
Sobre a atenuação especial da pena, vem este Supremo entendendo que funciona como uma válvula de segurança do sistema, no caso de se verificar uma acentuada diminuição da ilicitude, ou da culpa, ou da necessidade da pena. A diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá considerar-se relevante para tal efeito, isto é, só poderá ter-se como acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação das circunstâncias atenuantes se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo. Mas, como nota Figueiredo Dias (Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime §465), não deve esquecer-se que a solução de consagrar legislativamente a referida “cláusula geral de atenuação especial” como válvula de segurança, dificilmente se pode ter como apropriada para um Código Penal, como o nosso, moderno e impregnado pelo princípio da humanização e dotado de molduras penais suficientemente amplas, sendo, pois, uma solução antiquada e vocacionada apenas para acudir a situações extraordinárias ou excepcionais.

O que, por outras palavras, significa que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar. Para a generalidade dos casos, para os casos “normais”, “vulgares” ou “comuns”, “lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios” (Autor e ob. cit., §454).


Ora, as circunstâncias invocadas pelo recorrente estão muito longe de se poderem considerar extraordinárias ou excepcionais.
A confissão sem reservas de todos os factos é, neste caso, de escassíssimo valor.
Na verdade, apurou-se que o recorrente tudo fez para esconder os seus actos criminosos, desde pretender que a gravidez da filha menor, de que ele próprio era o directo responsável, deveria ser atribuída a um colega da escola daquela, até convencer o enteado a assumir falsamente, perante a falência daquele plano, a «paternidade» da criança. E só «confessou» os seus actos quando o teste de paternidade concluiu, com um grau de probabilidade de 99,999998%, que era o próprio recorrente o pai do filho da B.
O «arrependimento», portanto, também se afigura como muito limitado.
Quanto a constituírem os crimes cometidos “episódios únicos na sua vida”, não há que esquecer que o arguido foi condenado por outro crime cometido na altura dos factos, embora de natureza muito diversa.
Assim, não há motivo para uma atenuação especial das penas parcelares e o facto de ter nascido numa família disfuncional - circunstância que, de certo modo, estará na origem profunda do seu comportamento desviante - já serviu para a graduação das penas parcelares dentro da respectiva moldura abstracta.

MEDIDA DA PENA ÚNICA

Conforme decorre do art.º 77.º, n.ºs 1 e 2, do CP, a pena aplicável ao concurso de crimes tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos de prisão e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
No caso, portanto, os limites abstractos da pena conjunta variam entre o mínimo de 6 anos e 6 meses de prisão (pena parcelar mais grave) e o máximo de 14 anos de prisão (soma de todas as penas em concurso).

Vem o STJ entendendo, numa corrente cada vez mais alargada, que na escolha da pena conjunta não podem ser atendidos os factores que já foram considerados na determinação da pena parcelar, pois, se tal fosse feito, haveria uma violação do princípio da proibição de «dupla valoração».
“Se as penas singulares esgotaram (ou deviam ter esgotado) todos os factores legalmente atendíveis, sobrará para a pena conjunta, simplesmente, a reordenação cronológica dos factos (julgados, nos processos singulares, fora da sua sequência histórica) e a actualização da história pessoal do agente dos crimes - Conselheiro Carmona da Mota, no colóquio realizado no STJ em 3/6/2009, de acordo com apontamentos publicados em:
http://www.stj.pt/nsrepo/cont/Coloquios/Pena%20conjunta%20Contributo%20jurisprudencial.pdf.
Ora, os abusos sexuais referidos nos factos prolongaram-se por cerca de 2 anos, entre os 12 e os 13 anos da ofendida, num crescendo de violência física e psíquica, tanto mais que se provou que a menor sofria com as investidas do Pai. Há, portanto, uma especial gravidade na apreciação conjunta dos factos e na sua duração temporal, para já não falar das consequências, que irão perdurar na memória e na vida actual e futura da ofendida.
Por isso, mostrando-se a pena única encontrada na 1ª instância conforme com os critérios que se vêm estabelecendo na jurisprudência do STJ, nada há a alterar ao decidido.


5. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso.
Fixa-se em 7 UC a taxa de justiça a cargo do recorrente, com metade de procuradoria.
Notifique.

Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Dezembro de 2009

Santos Carvalho (Relator)
Rodrigues da Costa
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(1) Ac. do STJ de 01-07-2009, proc. 3802/09-3