Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1331/03.3TBVCT.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABILIO VASCONCELOS
Descritores: SEGURO OBRIGATÓRIO AUTOMÓVEL
DIREITO COMUNITÁRIO
Data do Acordão: 01/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO I/2010, P. 27
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - As normas nacionais sobre o seguro obrigatório automóvel devem ser interpretadas à luz das Directivas Comunitárias que o regulam, quando transpostas para a ordem jurídica interna.
II - Assim interpretado o direito nacional, o contrato de seguro obrigatório automóvel abrange os danos decorrentes de lesões corporais sofridos pelo tomador do seguro e proprietário do veículo em que é transportado como passageiro, sendo outrém o condutor.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


AA intentou a presente acção, com processo ordinário contra a Companhia de Seguros T..., S.A. pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 102.189,13, acrescida de juros, à taxa legal, desde 01/07/2000 até efectivo pagamento, como indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência de um embate ocorrido entre o veículo ligeiro de passageiros AF-...-..., conduzido por BB, por conta e no interesse do seu proprietário, CC, e o velocípede com motor de matrícula 2-...-69-22, propriedade da autora, que nele era transportada como passageira, e conduzido por seu pai, DD, por culpa exclusiva de quem o acidente teve lugar, encontrando-se a responsabilidade civil por danos causados pelo velocípede transferida para a ré por contrato de seguro titulado pela apólice nº 1330282.
A ré, citada, contestou arguindo a nulidade do seguro pelo facto de a sua tomadora, a A., ter ocultado que a lotação do velocípede não era para uma pessoa, como ficou a constar do contrato, mas para duas, e que a mesma A. não tem direito a ser indemnizada pelos danos materiais relativos a perdas salariais e incapacidade permanente temporária de que tenha padecido visto já estar a ser indemnizada a esse título pela Seguradora M..., S.A., no âmbito de um processo de acidente de trabalho.
E, para além de impugnar alguns dos factos alegados na petição inicial, imputa ao condutor do veículo ligeiro de passageiros, de matrícula AF-...-..., a culpa exclusiva na eclosão do acidente.
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Houve resposta da autora.
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Na 1ª instância foi a acção julgada improcedente com o fundamento de que sendo “a autora a tomadora do seguro, que lhe cobre a responsabilidade perante terceiros pelos danos provocados pelo veículo 2-VCT, e ao mesmo tempo a dona e legítima detentora deste veículo, está-lhe legalmente vedado accionar esse mesmo seguro na qualidade de “terceiro” transportado no momento do acidente, porquanto os danos por ela sofridos, e cujo ressarcimento aqui reclama, não estão abrangidos, estão excluídos, da garantia desse mesmo seguro”. (art.ºs 7º als. A) e b) do D.L. nº 522/85, de 20/12, com as alterações introduzidas pelo D.l. 130/94, DE 19/05).
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Na sequência de recurso interposto pela A., o Tribunal da Relação de Guimarães, pelo acórdão de fls.468 a 475, considerou que relativamente aos danos decorrentes de lesões corporais, a autora deve considerar-se abrangida pela garantia do seguro, na qualidade de passageira, e concedeu parcial provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e condenando a ré a pagar à autora, como indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais por ela sofridos a quantia global de €77.819,77 com juros de mora a contar da data da prolação do acórdão relativamente aos danos não patrimoniais (€40.000) e desde a citação quanto ao restante montante.
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Inconformada, recorreu a ré para este Supremo Tribunal formulando nas suas alegações as seguintes conclusões:
1 – A sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância operou uma correcta aplicação do direito aos factos provados.
2 – Nos termos do regime jurídico do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, na redacção vigente à data do acidente, quer o condutor do veículo interveniente no acidente, quer o titular da apólice de seguro respectiva, estão excluídos do âmbito de cobertura do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
3 – Actualmente, a referida regra consta do art.º 14º do D.L. 291/07, de 21.08, diploma que regula o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e que mantém, liminarmente, a exclusão do direito do tomador do seguro a qualquer indemnização por danos sofridos.
4 – O seguro de responsabilidade civil automóvel é obrigatório e destina-se a indemnizar terceiros lesados em consequência de danos causados pelo veículo seguro.
5 – Atendendo a que a recorrida é a tomadora do seguro, celebrado com a ora recorrente, que cobre a responsabilidade por danos causados a terceiros pelo veículo seguro, e, simultaneamente, a dona e legítima detentora desse veículo, não pode aquela ser indemnizada por quaisquer danos sofridos, porquanto os mesmos se encontram excluídos da garantia do seguro.
6 – A responsabilidade civil que transferiu para a companhia de seguros foi a de danos em relação a terceiros. Não faz qualquer sentido, e antes surge ao arrepio de toda a dogmática jurídica da responsabilidade aquiliana, dos acidentes causados por veículos, e do seguro de responsabilidade civil, que o lesante seja simultaneamente lesado.
Ademais, o seguro em apreço destina-se a garantir os danos causados a terceiros, não se tratando de seguro de danos próprios.
7 – Neste domínio, o legislador, apesar de conhecer, e dela fazendo eco nas suas decisões, a mais recente legislação comunitária – 5ª directiva automóvel – não deixou de, reiteradamente, fixar as exclusões aqui discutidas, como resulta claramente da recente alteração legislativa – Dec.Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto – no qual se mantém, como já antes se fazia, a expressa exclusão tomador do seguro para efeito da indemnização em causa nestes autos.
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Contra-alegou a recorrida pugnando pela improcedência do recurso.
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Corridos os vistos legais, cabe decidir.
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Porque não foi impugnada, nem há lugar a qualquer alteração da matéria de facto, ao abrigo do disposto nos art.ºs 713º nº6 e 726º do C.P.Civil remete-se para os termos da decisão da Relação que sobre ela recaiu.
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A única questão que em sede da presente revista se põe é a de saber se a autora, tomadora do seguro, pode ser indemnizada na qualidade de passageira do veículo segurado, sua propriedade.
Ou seja: saber se os danos pessoais por ela sofridos estão abrangidos pelo referido seguro.
E, esta questão prende-se com o regime do seguro obrigatório automóvel em face do direito comunitário.
Tendo o acidente em causa ocorrido em 17/04/1996, segundo o estatuído no art.º 7º nº2 al. a) do D.L. nº 522/85, de 20/12, na redacção dada pelo D.L. nº 130/94, de 19/05, excluem-se da garantia do seguro os danos decorrentes de lesões corporais sofridos pelo titular da apólice.
Porém, julgou a Relação, citando a decisão proferida no acórdão do TJCE de 19/04/07, processo C-356/05 (caso Elaine Farrelle) que da 3ª Directiva nº 90/232/CEE, do Conselho, de 14 de Maio de 1990, cujas disposições foram transpostas para a ordem jurídica interna pelo Dec. Lei 130/94, supra citado, resulta o sentido de que, quanto aos danos pessoais, apenas o condutor do veículo pode ser excluído da garantia do seguro.
E, chamando à colação o ensinamento de João Mota Campos in “Direito Comunitário”, II vol., 4ª ed., F.C. Gulbenkian, pgs. 303, escreveu-se, no acórdão recorrido que”... importa ter em consideração que as normas nacionais devem e têm de ser interpretadas à luz das directivas, transpostas que sejam ou transcorrido que seja o prazo de transposição. O juiz nacional deve na aplicação do direito interno quer anterior quer posterior àquelas, e por força dos artigos 5 e 189 do T.R. (10 e 249 actualmente) ter em atenção as finalidades da directiva, interpretando o direito nacional de modo conforme às finalidades desta, de modo a que seja atingido o resultado pretendido – E é o “Princípio da Interpretação conforme”.
Este é também o nosso entendimento na esteira das decisões já prolatadas, neste Supremo Tribunal de Justiça, nos acórdãos de 16/01/07, Proc. 06ª2892, e de 22/04/08, Proc. 088742, que seguiremos de perto.
Com efeito, explana J.C. Moitinho de Almeida, na sua Obra “Contrato de Seguro-Estudos”, 2009, Coimbra Editora, a pags. 205 que “O regime jurídico do seguro obrigatório automóvel encontra-se amplamente penetrado por disposições comunitárias sobre as quais o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias se tem debruçado e que se reflectem não apenas no domínio do seguro como também nos direitos nacionais em matéria de responsabilidade civil.
Existem hoje cinco directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel que, por um lado, visam assegurar a livre circulação dos veículos com estacionamento habitual no território da comunidade bem como das pessoas neles transportadas, e, por outro, a garantia que as vítimas de acidentes causados por esses veículos beneficiem de tratamento comparável, seja qual for o local em que o acidente ocorra.
Trata-se das Directivas 72/166/CEE, de 24 de Abril (primeira directiva), 84/5/CEE, de 30 de Dezembro de 1983 (segunda directiva), 90/232/CEE, de 14 de Maio de 1990 (terceira directiva), 90(232/CEE, de 14 de Maio de 1990 (terceira directiva), 2000/26/CE, de 16 de Maio de 2000 (quarta directiva) e 2005/14/CE (quinta directiva).”
E, a regra de que as disposições das Directivas são aplicáveis na ordem interna encontra-se expressa em várias decisões do TJCE.
Na verdade, no acórdão de 30/06/05 (caso Kandolin), publicado na Col. Jur., S.T.J., XIII, 2, 7, escreveu-se o seguinte:
“Os Estados-Membros são obrigados a exercer as suas competências no respeito pelo direito comunitário, especialmente dos artigos 3º, nº1, da Primeira Directiva, 2º, nº1, da Segunda Directiva, cujo objectivo consiste em garantir que o seguro automóvel obrigatório permitirá que todos os passageiros vítimas de um acidente causado por um veículo sejam indemnizados pelos danos que sofrerem (ponto 27).
...Os artigos 2º, nº1 da Segunda Directiva e 1º da Terceira Directiva opõem-se a uma regulamentação nacional que permita excluir ou limitar de modo desproporcionado, com fundamento na contribuição de um passageiro para a produção do dano que sofreu, a indemnização coberta pelo seguro automóvel obrigatório. O facto de o passageiro em causa ser o proprietário de veículo cujo condutor provocou o acidente é irrelevante (ponto 35).
Também no Acórdão de 19/04/07 (caso Elaine Farrell, acima mencionado) se afirmou: “Dado que, por um lado, a faculdade de estabelecer derrogações à obrigação de proteger as vítimas de acidentes está definida e circunscrita pelo direito comunitário e que, por outro, a realização dos objectivos supra mencionados torna necessária uma abordagem uniforme da cobertura pelo seguro dos passageiros a nível comunitário, os Estados Membros não podem introduzir limitações adicionais ao seguro obrigatório relativamente aos passageiros” (ponto 29).
“Por conseguinte, uma legislação nacional não pode reduzir o conceito de passageiro” e privar, assim, da cobertura pelo seguro pessoal que, nos termos da Primeira, Segunda e Terceira Directivas, tenham direito à indemnização dos danos causados por veículos automóveis” ( ponto 30). E, mais adiante: “por conseguinte, uma legislação nacional, definida em funções de critérios gerais abstractos, não pode negar ou limitar de forma desproporcionada a indemnização de um passageiro com o fundamento de que este contribuiu para a produção do dano.”
Concluindo que o artigo 1º da Terceira Directiva 90/232 – que dispõe que o seguro obrigatório, ressalvados os casos que aqui não interessam, do nº1 do art.º 2º da 2ª Directiva” cobrirá a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, além do condutor, resultantes da circulação de um veículo”-“ reúne todas as condições exigidas para produzir efeito directo e, portanto, confere aos particulares direitos que estes podem invocar directamente perante os órgãos jurisdicionais nacionais”.
Como se escreveu no aludido acórdão deste Supremo Tribunal, de 22/04/08, “O alcance destes arestos... leva, assim, necessariamente, a uma interpretação actualista das normas de origem interna, com rompimento, se necessário, de alguns conceitos que se foram sedimentando ao longo do tempo.”
Portanto, no âmbito do seguro obrigatório, releva a protecção das vítimas corporais, que não sejam o próprio condutor responsável pelo acidente, protecção essa intensificada com a 5ª Directiva, a nº 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, transporta para o direito interno e materializada no D.L. nº 291/07, de 21.08.
A estrutura do contrato de seguro obrigatório automóvel foi rompida, como se salientou naquele mesmo acórdão, em benefício da protecção das últimas e deu aso a uma realidade bem diferente. O tomador do seguro aparece, agora, obnubilado e pode ser ele a vítima a indemnizar que, hoje, terceiro, em matéria de acidente de viação, é todo aquele que possa imputar a responsabilidade do evento a outrem e, não, como anteriormente, aquele que não era o tomador do seguro (cfr., também, o acórdão deste Supremo de 16/01/07).
Logo, em concordância com o decidido no acórdão recorrido, a autora, relativamente aos danos decorrentes de lesões corporais, deve considerar-se abrangida pela garantia do seguro, na qualidade de passageira.
Termos em que se nega a revista.
Custas pela recorrente.
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Lx, 14/01/2010

Abílio Vasconcelos (Relator)
Santos Bernardino
Bettencourt de Faria