Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2822/18.7T8VNF.G1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
RECURSO DE REVISTA
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
PLURALIDADE DE ACÓRDÃOS FUNDAMENTO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Data do Acordão: 04/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO SE CONHECE DO OBJECTO DO RECURSO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018, 5.ª ed., p. 56, 59 a 61, 386, 471 a 477, 484 e 679;
- José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 72 e 77 ; Comentário ao Código de Processo Civil, volume 1.º, Coimbra, Coimbra Editora, 1960, p. 40 e ss.;
- Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, volume I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 110 e 111.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 629.º, N.º 2, ALÍNEA D), 637.º, N.º 2, 639.º, N.º 3 E 652.º, N.º 1, ALÍNEA A).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 13-03-2014, PROCESSO N.º 16/13.7TBMRA-H.EL.S1-A;
- DE 15-03-2018, PROCESSO N.º 1503/16.0YRLSB.S1, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

- DE 06-06-2013, PROCESSO N.º 2145/10.0YXLSB.L2-6, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I. Estando em causa uma providência cautelar e sendo o fundamento normativo do recurso de revista é a al. d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC a revista qualifica-se como “revista normal” ou “por via normal” e não como “revista excepcional” ou “por via excepcional”.

II. Quando o fundamento específico do recurso é a existência de um conflito jurisprudencial, o recorrente deve juntar um único acórdão fundamento, nos termos do artigo 637.º, n.º 2, do CPC, não sendo esta uma situação em que quod abundat non nocet.

III. Apesar de inexistir uma disposição legal específica regulando a situação em que é apresentado mais do que um acórdão fundamento, é razoável, num primeiro momento, convidar o recorrente a escolher o acórdão em relação ao qual pretende que seja apurada a existência da oposição – uma espécie de “despacho de aperfeiçoamento” –, aplicando-se por analogia, designadamente para efeitos de prazo, o disposto no artigo 639.º, n.º 3, do CPC e ainda do artigo 652.º, n.º 1, al. a), ex vi do artigo 679.º do CPC.

IV. O facto de a legitimidade processual ser apreciada por referência ao concreto objecto processual não constitui uma “invasão” do domínio das condições procedência da acção, sendo tal “contextualização” absolutamente necessária, sob pena de aquele requisito deixar de existir enquanto requisito e de se eliminar em definitivo a sua função “regulatória ou ordenadora”.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrente: AA, S.A.

Recorridos: BB, S.A. et alii

AA, SA., veio deduzir providência cautelar não especificada contra: BB, SA., CC, DD, EE e FF, pedindo que:
- se ordene aos requeridos que se abstenham de convocar Assembleia Geral da 1.ª requerida para deliberar a aprovação de um projecto de cisão da 1.ª requerida sem antes observarem o disposto no artigo 5.º dos Estatutos da HH e informar os restantes accionistas da HH para efeitos de exercício do direito de preferência, da sua intenção de cindir a 1.ª requerida, de quem passará a deter as acções da HH em resultado dessa operação, com identificação do preço ou valor aí atribuído às mesmas;
- se ordene aos requeridos que se abstenham de convocar assembleia geral da 1.ª requerida para deliberar a aprovação de um projecto de cisão da 1.ª requerida e que se abstenham de deliberar a aprovação de um projecto de cisão da 1.ª requerida sem antes observarem o disposto no artigo 6.º dos Estatutos da II, i.e., obter o consentimento da sociedade e dos demais sócios quanto à sua intenção de cindir a 1.ª requerida, e informar, para efeitos do exercício de direito de preferência, quem passará a deter as acções da II em resultado daquela operação, com identificação do preço ou valor aí atribuído às mesmas e
- se ordene aos requeridos que se abstenham de convocar assembleia geral da 1.ª requerida para deliberar a cisão desta e que se abstenham de deliberar a cisão desta sem antes observarem o disposto no artigo 5.º dos Estatutos da HH, i.e., informar os restantes accionistas da HH , para efeitos do exercício do direito de preferência, da sua intenção de cindir a 1.ª requerida, de quem passará a deter as acções da HH em resultado dessa operação, com identificação do preço ou valor aí atribuído às mesmas;
- se ordene aos requeridos que se abstenham de convocar assembleia geral da 1.ª requerida para deliberar a cisão desta e que se abstenham de deliberar a cisão desta sem antes observarem o disposto no artigo 6.º dos Estatutos da II, i.e., obter o consentimento da sociedade e dos demais sócios quanto à sua intenção de cindir a 1.ª requerida, e informar, para efeitos do exercício de direito de preferência, quem passará a deter as acções da II, em resultado daquela operação, com identificação do preço ou valor aí atribuído às mesmas;
- se ordene aos requeridos que se abstenham de proceder, por qualquer forma, à alteração dos beneficiários últimos efectivos das participações que a 1.ª requerida detém na HH, sem antes observarem o disposto no artigo 5.º dos estatutos dessa sociedade, i.e., informarem os restantes accionistas da operação projectada para proceder a essa alteração, de quem serão os beneficiários efectivos que, por via da operação projectada, passarão a deter as acções da HH, com identificação do preço ou valor atribuído às mesmas nessa operação;
- se ordene aos requeridos que se abstenham de proceder, por qualquer forma, à alteração dos beneficiários últimos efectivos das participações que a 1.ª requerida detém na II sem antes observarem o disposto no artigo 6.º dos Estatutos dessa sociedade, i.e., da operação projectada para proceder a essa alteração, de quem serão os beneficiários efectivos que, por via da operação projectada, passarão a deter as quotas da II, com identificação do preço ou valor atribuído às mesmas no projecto de cisão;
- e que, em consequência, seja averbado no registo comercial das sociedades HH e II, que a B… está impedida de proceder à transmissão, ainda que por via de cisão ou de outra operação, das participações que detém naquelas sociedades sem dar cumprimento ao disposto nos artigos 5.º e 6.º dos Estatutos de uma e outra, respectivamente.

Alega a requerente, em síntese, que é uma empresa que pertence ao grupo económico AA, sendo que a 1.ª requerida pertence ao grupo económico GG, liderado pelo 3.º e 4.º requeridos, os quais, com as respectivas mulheres, a 3.ª e 5.ª requeridas, são os únicos accionistas da 1.ª requerida.

Tanto a requerente como a 1.ª requerida detêm 33,33%, cada uma, do capital social da sociedade HH-Águas e Resíduos, SGPS, S.A.

Paralelamente a requerente é titular de uma quota representativa de 1/3 do capital social da sociedade II, Lda. e a 1.ª requerida é titular de duas quotas no valor nominal de 833,33 cada, também representativas de 1/3 do capital social da II.

Os restantes 1/3 nas sociedades HH e II são detidos por JJ, SGPS, SA, que pertence ao grupo JJ.

A HH foi constituída para a aquisição de uma participação de 49% do capital social da KK, EM.

Uma vez que a participação minoritária de 49% do capital social da KK constituía o único activo da HH, as sócias fundadoras entenderam que seria conveniente proteger a “unidade” da sua participação minoritária, tendo então adoptado um conjunto de regras relativas ao exercício dos seus direitos enquanto accionistas da HH e enquanto accionistas minoritários da KK que foram vertidas nos estatutos da sociedade e no acordo celebrado em 8.04.2005.

Logo na criação da HH e da II quiseram os participantes proteger-se mutuamente de que fossem feitas transmissões de participações para fora dos grupos económicos originários, ou seja para fora dos grupos AA, JJ e GG.

Desde há algum tempo que circula a notícia de que o grupo económico GG se tenciona separar: por um lado DD e mulher e, por outro, EE e mulher.

Em 19 de Janeiro teve conhecimento de um acordo subscrito entre o 3.º e 4.º requeridos, nos termos do qual, as partes acordavam que o capital social das sociedades II e HH passaria a integrar o património exclusivo do beneficiário EE, pelo que pretendiam transmitir o terço que detinham para a sociedade LL, Lda., ou outra sociedade a constituir detida exclusivamente por EE e o respectivo agregado familiar.

Posteriormente, a sociedade GG, Lda., publicou no dia 20 de Março de 2018 um projecto de cisão, mediante destaque de parte do património da GG, Lda., para constituir a sociedade GG 2, Lda. E nesse mesmo dia foi convocada assembleia extraordinária da GG, Lda. para deliberar sobre a cisão da sociedade para o dia 24 de Abril de 2018.

A separação dos dois sócios já ocorreu na sociedade MM, Lda.

Em 5 de Abril de 2018 teve lugar uma reunião entre a requerente e 1.ª requerida, onde aquela foi informada de que os sócios da 1.ª requerida tinham chegado a acordo quanto à separação dos activos da 1.ª requerida, ficando as participações em causa a ser detidas por uma empresa do Sr. EE e família directa, mediante venda a efectuar pela 1.ª requerida. Caso a requerente não desse o seu acordo para a transmissão das participações, os sócios da 1.ª requerida procederiam à cisão da BB, mantendo numa das sociedades as participações que actualmente detém na HH e na II que passaria a ser detida pela família ..., logo no momento da cisão ou posteriormente, deste modo afastando DD da estrutura societária das duas sociedades que deixariam de ser detidas pelo grupo GG, para passarem a ser tituladas pela família ....

A requerente receia que os requeridos façam o que têm dito para “contornar” o seu direito de preferência, sendo necessária uma tutela cautelar urgente porque nenhuma acção para o exercício do direito de preferência surge e é decidida em menos de 30 dias.

Ouvidos os requeridos, nos termos do artigo 366.º, n.ºs 1 e 2 CPC, estes vieram deduzir extensa oposição, defendendo-se por impugnação e por excepção, invocando a ineptidão da petição inicial, a ilegitimidade da requerente e a ilegitimidade passiva e pedindo ainda condenação da requerente como litigante de má fé.

 A requerente veio pronunciar-se sobre o pedido de condenação como litigante de má fé.

De seguida, foi ordenada a notificação da requerente para se pronunciar sobre as excepções invocadas, em cumprimento do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, o que esta fez.

Foi proferida decisão que julgou procedente a excepção dilatória da ilegitimidade da requerente e, em consequência, absolveu os requeridos da instância.

Não se conformando, a requerente interpôs recurso de apelação, arguindo a nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão e pugnando pela sua revogação.

Por Acórdão de 4.10.2018 (fls. 455 e s. dos autos), o Tribunal da Relação de Guimarães julgou inexistente qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão e improcedente a apelação, confirmando, assim, a decisão do tribunal a quo.

De novo inconformada com este Acórdão, a requerente / ora recorrente veio interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, pugnando pela substituição da decisão recorrida por outra que reconheça a sua legitimidade processual activa para o procedimento cautelar requerido e ordene o prosseguimento dos autos.

Do requerimento de interposição da revista (fls. 673 dos autos) consta que o recurso é interposto nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 671.º, n.º 1, ex vi do artigo 629.º, n.º 2, al. d), por remissão do artigo 370.º, n.º 2, todos do CPC, e por o Acórdão recorrido estar em contradição com outros acórdãos, já transitados em julgado no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

Juntou a recorrente cópias de tais (dois) Acórdãos, a saber: o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6 de Junho de 2013, proferido no Proc. 2145/10.0YXLSB.L2-6, e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Outubro de 2004, proferido no Proc. 04B2212, apresentados ambos como acórdãos fundamento.

São as seguintes as conclusões das alegações da recorrente:

A. O presente recurso de revista deve ser admitido porque a decisão recorrida proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 4 de Outubro de 2018, encontra-se em contradição com outras já transitadas em julgado, entre as quais, as proferidas pelo Tribunal da Relação de Lisboa em Acórdão de 6 de Junho de 2013, e pelo Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 14 de Outubro de 2004, sobre a mesma questão fundamental de direito e no domínio da mesma legislação.

Com efeito, e começando pela admissibilidade do Recurso:

B. Entendeu (erradamente) o Tribunal a quo que a Recorrente não tem legitimidade processual activa para o procedimento cautelar por ela requerido, apesar de a relação material controvertida tal como a Requerente a configurou, assentar num direito de preferência de que esta se arrogou (e demonstrou ser) titular,

C. Confirmando, assim, a sentença de l.a Instância que absolveu as Requeridas da instância cautelar por verificação da excepção dilatória de ilegitimidade activa da Requerente.

D. Pelo contrário, e aplicando correctamente o disposto no artigo 30.° do CPC, ambos os acórdãos-fundamento, separaram o juízo relativo à legitimidade processual do juízo referente à legitimidade substantiva, isto é, relativo à susceptibilidade de procedência ou improcedência do pedido apresentado.

E. Além da apontada contradição que fundamenta o recurso, estão também cumpridas as demais condições de que depende a admissão do recurso de revista especial previsto no artigo 629.°, n.° 2, alínea d), do CPC, a saber:

a. os pressupostos relativos ao valor da causa e da sucumbência, em cumprimento do disposto no artigo 629.°, n.° 1 do CPC estão verificados;

b. o recurso de revista ordinário apenas não é admissível em face do proibição expressa vertida no artigo 370.°, n.° 2 do CPC;

F. Donde, a decisão impugnada é recorrível nos termos do artigo 629.°, n.° 2, alínea d) do CPC e, por isso, o Recurso deve ser admitido e conhecido.

Quanto ao mérito do recurso, o acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que reconheça a legitimidade activa de Requerente, ora Recorrente, e ordene o prosseguimento dos autos da acção cautelar com vista à apreciação do pedido, pelos motivos que se seguem:

G. O Tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação do direito ao presente caso porque o juízo de legitimidade feito pelo Tribunal a quo assenta numa confusão entre os conceitos de legitimidade processual e de legitimidade substantiva, contrariando o que determina e a lei e o que resulta dos acórdãos-fundamento.

H. Porque o julgamento sobre se a Recorrente é efectivamente titular do direito que se arroga e se, a existir tal direito, ele lhe permite formular o(s) pedido(s) que formulou (que, em bom rigor, é o que o Tribunal Recorrido diz não se verificar), só interessa à procedência ou improcedência do pedido formulado; já não à legitimidade processual.

I. Dito de outro modo: não interessa, para se concluir pela legitimidade da parte, aferir da adequação existente entre a causa de pedir e o pedido. Este é já um juízo de mérito (ou de ineptidão) sobre o objecto do processo.

J. A legitimidade processual diz respeito tão-só à específica posição do autor e do réu (in casu, do requerente e do requerido) em relação ao objecto do processo justificando e legitimando a presença dessas partes nos autos.

K. Aliás, este pressuposto processual tem por função garantir que se encontram no processo os sujeitos de Direito que efectivamente têm interesse na causa, i.e., que podem retirar utilidade da decisão proferida em juízo.

L. Sendo essa a sua função, ela cumpre-se quando se conclua que estão na acção aqueles que tenham interesse directo em demandar ou contradizer - i.e. que retiram utilidade (ou a quem é imposto um prejuízo) da procedência da acção.

M. E, conforme o n.° 3 do artigo 30.° do CPC, são considerados titulares do interesse relevante (em demandar ou contradizer) os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

N. Portanto, a legitimidade activa é avaliada por relação do Autor com o objecto da acção como ele próprio o configurou26: é ou não ele, Autor, que recolhe a utilidade ou benefício dos efeitos materiais da sentença?

O. A resposta a esta questão - que é a resposta à questão de saber se o Autor é parte legítima -apura-se num juízo de prognose sobre o pedido, supondo-se que este seja procedente (...)- supondo-se que o pedido é procedente a Recorrente retiraria utilidade dessa procedência para salvaguarda do direito de preferência que se arroga?

P. Neste caso, a resposta é, obviamente, afirmativa: se os Recorridos fossem ordenados a não deliberar a aprovação da cisão sem antes notificarem a Recorrente para exercer os seus direitos de preferência esta (e só esta) evidentemente retiraria utilidade da procedência,

Q. E a utilidade seria, justamente, a de ver acautelados os seus direitos de preferência: a providência assim ordenada garantia assegurar-lhe-ia que os Recorridos não operariam a transmissão das participações sobre cuja transmissão a Recorrente tem preferência por via de uma operação de cisão sem antes a notificarem para preferir.

R. Este raciocínio, i.e. este juízo de prognose sobre o pedido formulado - que o Tribunal Recorrido não fez - bastaria para que se concluísse pela legitimidade da Recorrente, ao contrário do que ficou decidido.

S. De resto, era tão-só este o juízo necessário; sem ter de cuidar de saber - por não ser esse o critério relevante do artigo 30.°, n.° 3, do CPC -, se a Recorrente tem (ou não) legitimidade substantiva.

T. Porque o juízo de legitimidade processual diz exclusivamente respeito à titularidade da relação material litigada, tal como configurada pelo autor, e, portanto, desligado de qualquer juízo, necessariamente posterior, de apuramento da pretensão, quanto à verificação dos seus pressupostos de facto e de direito.

U. Assim, para aferir da legitimidade processual da Recorrente no presente caso caberia apenas avaliar se, perante a relação material controvertida, configurada pela Recorrente, é esta que retira utilidade da procedência do pedido.

V. A conclusão é inevitavelmente afirmativa: tal como configurada a acção, a Recorrente pretende com o pedido acautelar a violação dos seus direitos de preferência perante um negócio transmissivo (dos direitos sobre cuja transmissão a Recorrente tem preferência) que se projecta fazer por via de uma cisão.

W. Por conseguinte, para a conclusão de que é a Requerida que tira utilidade da procedência do pedido que formulou, importa apenas que: a) esta se arrogue a qualidade de sócia e accionista das sociedades HH e II; b) se arrogue titular de direitos de preferência na transmissão das participações de um consócio naquelas sociedades; c) que esteja projectada [no caso, por via de uma cisão] a transmissão daquelas participações e receie que não lhe venha a ser dada preferência.

X. Tudo isto foi alegado pela Recorrente.

Y. Por tudo o que vem exposto, andou mal o Tribunal a quo ao considerar que a Recorrente não tem legitimidade activa para os presentes autos, violando o disposto no artigo 30.° do CPC.

Z. Pelo que deve a decisão recorrida, por enfermar de vicio na interpretação e aplicação do direito, ser revogada e substituída por outra que, aplicando correctamente aquele normativo à situação em apreço, conclua pela legitimidade da Recorrente para o presente procedimento cautelar e ordene o prosseguimento dos autos.

Os recorridos apresentaram, por sua vez, contra-alegações (fls. 571 e s. dos autos), pugnando, essencialmente, pela inadmissibilidade do recurso e, caso assim não se entenda, pela sua improcedência.

O recurso foi admitido por despacho em 27.12.2018 (fls. 683 dos autos), tendo sido qualificado pelo Exmo. Senhor Desembargador Relator como de revista excepcional.

Distribuído à presente Relatora, proferido esta, em 19.03.2019 (fls. 687 e s. dos autos), um despacho em que se convidava a recorrente a esclarecer qual dos Acórdãos referidos pretendia ele que fosse efectivamente o acórdão fundamento.

Em resposta, o recorrente veio requerer que apenas se considerasse o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6.06.2013, proferido no Proc. 2145/10.0YXLSB.L2-6.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão sujeita a apreciação, no caso de o recurso ser admissível, é a de saber se requerente AA-…, S.A. tem legitimidade processual activa.


II. APRECIAÇÃO DO RECURSO

A) Questão prévia da qualificação do recurso

Tratando-se aqui como se trata de uma providência cautelar, cabe recordar que o regime do recurso de revista está fortemente condicionado, determinando o artigo 370.º, n.º 2, do CPC que “[d]as decisões proferidas nos procedimentos cautelares, incluindo a que determine a inversão do contencioso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível”.

Remete, assim, de forma implícita, o artigo 370.º, n.º 2, para o artigo 629.º, n.º 2, do CPC, que enuncia, justamente, os casos em que o recurso é sempre admissível.

Entre estes casos encontra-se, na al. d), o caso em que o recurso é admissível pelo facto de se verificar contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão da mesma ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

É justamente este o fundamento que invoca a recorrente para a admissibilidade da presente revista, conforme se pode ler no requerimento de interposição de recurso.

Não pode acompanhar-se, por conseguinte, a opinião de que o presente recurso se qualifica como revista excepcional (ou por via excepcional).

Como alerta Abrantes Geraldes, o disposto no artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC “não se confunde com o art. 672.º, n.º 2, al. c), que regula as situações de dupla conformidade decisória. Em primeiro lugar, porque os casos a que se reporta a revista excecional pressupõem precisamente que seja admitido, em abstrato, recurso de revista, quer em função do valor ou da sucumbência, quer em função da ausência de outro impedimento legal, sofrendo a revista apenas uma limitação – que não uma exclusão absoluta – por via da dupla conforme. Em segundo lugar, porque a al. d) tem aplicação mesmo quando o acórdão da Relação de que se pretenda recorrer tenha confirmado a decisão da 1.ª instância, do modo que, tratando-se de acórdão que esteja em contradição com outro acórdão (da Relação ou do Supremo), é admitida a revista sempre que esteja vedada por razões diversas das que emergem do n.º 1 do art. 629.º”[1].

Em conformidade com o disposto no artigo 641.º, n.º 5, do CPC, pode e deve, assim, o recurso ser (re)qualificado e, de harmonia com o indicado pela recorrente, ser (re)qualificado como revista normal ou por via normal.

            B) Questão prévia da admissibilidade do recurso

Como é sabido, antes de se conhecer o objecto do recurso deve apreciar-se a sua admissibilidade, uma vez que a resposta a esta questão pode precludir aquele conhecimento.

Ambas as partes se pronunciaram sobre esta questão: a recorrente pugnando pela admissibilidade do recurso e os recorridos pugnando pela inadmissibilidade.

 Uma vez enquadrado o presente recurso no artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, há que ver se estão preenchidos os requisitos impostos pela norma, entre os quais avultam a impossibilidade de recorrer por via ordinária por motivos estranhos ao valor da alçada da Relação (o que significa que devem estar preenchidos os requisitos da alçada e da sucumbência) e a existência de uma contradição jurisprudencial. entre dois Acórdãos[2]. Sendo os outros requisitos fáceis de confirmar, há que ver com atenção este último.

Sucede, porém, que a recorrente invocou, inicialmente, não um, mas dois acórdãos fundamento, sendo um da Relação e outro do Supremo Tribunal de Justiça.

O facto de a norma se referir literalmente apenas a uma contradição com Acórdão da Relação não impede – antes autoriza, por maioria de razão – que seja admitida a invocação de uma contradição com um Acórdão do Supremo[3], pelo que não se resolve por aí o problema.

No caso como o presente em que o fundamento específico do recurso é a invocação de um conflito jurisprudencial, o artigo 637.º, n.º 2, do CPC refere-se à necessidade de o recorrente juntar um – um único – acórdão fundamento.

Esta não é uma situação em que quod abundat non nocet.

Confirma esta ideia, novamente, Abrantes Geraldes, dizendo, a propósito da revista excepcional, que “[p]or razões que facilmente se compreendem, a sustentação da admissibilidade da revista excecional deve fazer-se a partir da apresentação e apreciação de um único acórdão (relativamente a cada questão de direito cuja resposta motive a interposição de recurso), não sendo de tolerar a apresentação de diversos arestos, deixando para o STJ o ónus de proceder à sua destrinça [4] e, a propósito da revista para uniformização de jurisprudência, que “[p]or razões pragmáticas, relativamente à questão de direito objeto de controvérsia jurisprudencial, juntar-se-á apenas um único acórdão, ainda que existam outros no mesmo sentido, salvo se houver multiplicidade de questões sujeitas a semelhante divergência, qualquer delas fundamental para a decisão do caso concreto [5].

Ora, esta regra vale não só para o recurso de revista excepcional e para o recurso para uniformização de jurisprudência mas para todos os recursos de revista em que tenha de ser apurada uma contradição jurisprudencial, nomeadamente para os recursos interpostos nos termos do artigo 629.º, n.º 2, als. c) e d), e do artigo 671.º, n.º 2, al. b), do CPC, que, pela identidade de fundamento, devem ficar todos sujeitos a um regime comum[6].

Não obstante a inexistência de uma disposição legal específica e a existência de decisões em sentido diferente[7], a solução que se apresenta como mais razoável é a de, num primeiro momento (i.e., antes de uma imediata rejeição) convidar o recorrente a escolher entre os acórdãos indicados aquele em relação ao qual se pretende que seja apurada a existência da oposição invocada[8] – uma espécie de “despacho de aperfeiçoamento” –, aplicando-se analogicamente para o efeito, designadamente de prazo, o disposto no artigo 639.º, n.º 3, do CPC e ainda do artigo 652.º, n.º 1, al. a), ex vi do artigo 679.º do CPC.

Em face do exposto, convidou-se, como se relatou, a recorrente a esclarecer qual dos Acórdãos referidos pretendia ela que fosse efectivamente o acórdão fundamento, ao que a recorrente respondeu indicando o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6 de Junho de 2013, proferido no Proc. 2145/10.0YXLSB.L2-6[9].

Quanto à (contra-)alegação dos recorridos de que a recorrente juntou cópia simples dos acórdãos fundamento e lhe faltou juntar certidão nota do respectivo trânsito em julgado, pelo que o recurso deve ser rejeitado, recorde-se apenas o disposto no artigo 688.º, n.º 2, in fine do CPC, extensível ao presente caso[10].

Pode, então, passar-se à fase seguinte, ou seja, a de apreciar a existência da contradição jurisprudencial / oposição de julgados nos termos exigidos pelo artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC.

A oposição de julgados para efeitos desta norma deve ser apreciada segundo critérios idênticos aos adoptados nos restantes recursos de revista que dependem de oposição de julgados, ou seja, nos recursos interpostos ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, als. c), e do artigo 671.º, n.º 2, al. b), do CPC, nos recursos de revista excepcional interpostos ao abrigo do artigo 672.º, n.º 1, al. c), do CPC e nos recursos para uniformização de jurisprudência, interpostos ao abrigo do artigo 688.º, n.º 1, do CPC[11].

Discorrendo a propósito dos recursos do último tipo, enuncia Abrantes Geraldes os requisitos fundamentais da contradição de julgados[12]. Destacar-se-ia, de entre eles, com especial interesse para o caso em apreço, os seguintes estar em causa uma ou mais questões de direito, existir uma relação identidade da questão de direito, a questão de direito em causa ser essencial para o resultado das decisões e existir uma oposição ou contradição frontal entre as decisões.

Concluir-se-á, em suma, que existe oposição de julgados ou contradição jurisprudencial quando – e apenas quando – o Acórdão recorrido estiver em oposição frontal com outro proferido no domínio da mesma legislação que respeite à mesma questão de direito de carácter essencial.

Passe-se, pois, a esta análise.

1. Veja-se a questão de direito apreciada em cada um dos acórdãos.

1.1. A questão em apreciação pelo Tribunal a quo, tal como enunciada no Acórdão recorrido, era a de saber se a requerente é parte legítima no procedimento cautelar.

1.2. A questão em apreciação no Acórdão fundamento), tal como aí formulada, consistia em saber se a aí recorrente dispunha de legitimidade activa para a acção de efectivação da responsabilidade.

1.3. Apesar de a questão não ser posta, em cada um dos Acórdãos, exactamente para os mesmos efeitos, porquanto no primeiro se põe a questão da legitimidade processual no contexto de uma providência cautelar e no segundo no contexto de uma acção de responsabilidade civil, é possível dizer que a questão de direito fundamental é a mesma, reconduzindo-se ela em saber como se afere a legitimidade processual.

2. Veja-se agora a resposta dada à questão em cada um dos acórdãos.

2.1. A esta questão respondeu o Tribunal recorrido o seguinte:

A legitimidade é um pressuposto processual relativo à posição da partes perante uma causa que se exprime pelo interesse do autor em demandar, fazendo valer o seu direito em contradizer tal pretensão, tendo em conta a relação material controvertida tal como é configurada pelo A. (artº 30º, nºs 1 e 2 do CPC).
A regra de aferição da legitimidade em função da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor, foi introduzida no n.º 3 do artº 26º do CPC de 1961 pela Reforma de 1995/96 e transitou para o actual Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 41/2013 (artº 30º, nº 3).
Com a nova redacção introduzida no nº 3 do artigo 26º adoptou-se uma formulação de legitimidade assente na titularidade da relação material controvertida, tal como a configura o autor, próxima da posição defendida por Barbosa de Magalhães.
A legitimidade tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou improcedência) da acção possa advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado, sendo a legitimidade aferida pela posição que as partes, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na referida relação jurídica material controvertida configurada nos termos descritos.

2.2. À mesma questão respondeu, por seu turno, o Acórdão fundamento:

A legitimidade ativa para a ação, como pressuposto processual, afere-se pelo interesse direto em demandar, exprimindo-se esse interesse pela utilidade derivada da procedência da ação, como decorre do disposto no art. 26.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil (CPC).

Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor – art. 26.º, n.º 3, do CPC.

Com este sentido normativo, ultrapassou-se, conforme declaração expressa do legislador, a velha vexata quaestio acerca do estabelecimento do critério de determinação da legitimidade das partes, adotando-se uma posição próxima da de Barbosa de Magalhães, que se opunha à de Alberto dos Reis (veja-se, a propósito, ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, págs. 128 e segs., LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, 2004, págs. 55 e segs., LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 1999, págs. 50 e segs., e FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito Processual Civil, Volume I, 2010, págs. 415 e segs.).

No atual contexto legal, o critério comum de determinação da legitimidade das partes radica na titularidade da relação material controvertida, designadamente nos termos como é desenhada pelo autor da ação. Por isso, para tal efeito, não é exigível a efetiva titularidade da relação material controvertida, num sinal claro da desvalorização da legitimidade como pressuposto processual, evidenciada pelo tratamento dado por certa doutrina (M. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 1997, págs. 151 e segs., e LEBRE DE FRETAS, Ibidem, pág. 53).”.

2.3. É visível que é o mesmo o critério enunciado em ambos os Acórdãos para aferir da legitimidade processual do sujeito: a titularidade da relação controvertida tal como a configura o autor e sendo esta independente da efectiva titularidade da relação controvertida.

3. Chegados aqui, pode concluir-se, primeiro, que estão preenchidos os requisitos respeitantes à identidade da questão de direito essencial, justificando-se apenas uma nota quanto à exigência de que ambos os Acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação: apesar de os Acórdãos se referirem a normas diferentes, não fica prejudicada a sua verificação, pois a regra contida no n.º 3 do artigo 26.º do CPC vigente à data da prolação do Acórdão fundamento, passou, na íntegra, para o n.º 3 do artigo 30.º do CPC em vigor[13].

De facto, ate à revisão operada pelo DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, e pelo DL n.º 180/96, de 25 de Setembro, ao Código de Processo Civil, a doutrina e a jurisprudência portuguesas estavam profundamente divididas sobre a relevância da relação jurídica material para definir as partes (legítimas) da relação jurídica processual.

A polémica surgiu a propósito de um caso judicial ocorrido em 1918 [“a polémica Barbosa de Magalhães — Alberto dos Reis”, como a designou um dos principais intervenientes[14]]. Discutia-se, mais especificamente, se o critério para aferir da legitimidade das partes (o interesse directo em accionar ou em contradizer) consistia em as partes serem os sujeitos da relação jurídica controvertida ou em as partes serem os sujeitos da pretensa relação jurídica controvertida, ou seja, tal como o autor a apresenta e configura na petição inicial[15].

A questão ficou definitivamente resolvida com a revisão legislativa no sentido da segunda teoria, passando o n.º 3 do artigo 26.º do CPC a determinar que “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”, regra que foi transposta na íntegra e se encontra hoje acolhida no n.º 3 do artigo 30.º do CPC.

Pode concluir-se, em segundo lugar, que, não obstante estarem preenchidos os requisitos respeitantes à identidade da questão de direito essencial não há, no plano conceptual, oposição entre as decisões.

4. Veja-se se assiste razão ao recorrente quando alega que, “[d]epois de enunciar as principais lições da doutrina e da jurisprudência relativas à legitimidade processual” e “aparentando estar a apreciar o pressuposto processual da legitimidade activa da Requerente, aquele Tribunal da Relação acaba por julgar da forma errada”, confundindo o juízo referente à legitimidade processual com um juízo de fundo relativo ao pedido formulado.

4.1. O juízo efectuado pelo Tribunal recorrido assenta na seguinte ponderação:

A A. configura a presente acção do seguinte modo:

É titular de um terço do capital social da sociedade anónima HH e de 1/3 da sociedade por quotas II.

Relativamente à 1ª sociedade, foi feito constar nos próprios estatutos que os accionistas gozavam do direito de preferência na transmissão de quaisquer acções nominativas. Relativamente à 2ª, igualmente foi feito constar nos estatutos que a cessão de quotas a terceiros depende do prévio consentimento da sociedade e que na cessão onerosa de quotas a estranhos terão direito de preferência a sociedade e os sócios sucessivamente.

Ora, de acordo com a relação material controvertida configurada pela apelante, mediante a cisão da sociedade 1ª requerida, a 1º requerida pretende transmitir a uma terceira sociedade não detida pelo grupo económico que detém a BB - o grupo GG - a totalidade da participação social que detém na HH e na II sem primeiramente a notificar para, querendo, exercer o seu direito de preferência.

Perante isto, formula o Tribunal recorrido a seguinte conclusão:

O pedido que constitui o corolário lógico da invocação de um direito de preferência, é o pedido de proibição de transmissão das acções e quotas, sem que primeiramente seja dado cumprimento ao disposto no artº 5º e 6º dos estatutos da HH e da II respectivamente, nos quais está expressamente prevista que os accionistas gozam do direito de preferência na venda de acções e na cessão onerosa de quotas a estranhos.

Como bem se refere no despacho recorrido, a recorrente não tem legitimidade para pedir que os requeridos se abstenham de convocar assembleia geral, nem que se abstenham de aprovar um projecto de cisão, nem de posteriormente convocarem uma assembleia geral para deliberarem a cisão. Nenhum preceito legal lhes atribui tal faculdade.

De acordo com a causa de pedir a requerente apenas poderia pedir que a 1ª requerida se abstivesse de transmitir as acções e quota que detém no capital social, sem previamente a notificar para exercer, querendo, o direito de preferência, pedido que não formulou e que entendemos não estar contido dentro dos pedidos formulados nos pontos 1 a 4.

A requerente, invocando ser titular de um direito de preferência, não tem legitimidade para impedir a convocação de uma assembleia geral de accionistas da 1ª requerida, nem a elaboração de um projecto de cisão, nem de impedir que se delibere a sua cisão”.

4.2. Partindo, como se viu, o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão-fundamento, do mesmo critério de aferição da legitimidade processual, aplicou-o ao caso do modo que se expõe seguidamente:

Face ao alcance do conceito de legitimidade consagrado na lei processual vigente, que acaba de se identificar, afigura-se que, no caso vertente, assiste legitimidade ao Apelante para demandar a Apelada, com vista a efetivar a responsabilidade civil, decorrente dos danos sofridos por efeito do furto do veículo automóvel, objeto do contrato de seguro facultativo, celebrado entre as partes.

É certo que o veículo automóvel estava registado a favor de terceiro, nomeadamente do então cônjuge do Apelante, e que este celebrou o contrato de seguro na qualidade de tomador. Essa circunstância, contudo, não retira o interesse direto na ação ao Apelante, na medida em que era quem mais utilizava o veículo automóvel objeto do contrato de seguro invocado nos autos, como se encontra provado, por acordo das partes.

Sendo legítimo o uso do veículo automóvel pelo Apelante e podendo o contrato de seguro ser celebrado mesmo por quem não fosse o proprietário do veículo, desde que revele ter um interesse no seguro, como se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de outubro de 2007, ao qual se pode aceder em www.dgsi.pt (Processo n.º 07A2728), torna-se evidente a existência de um interesse pessoal e directo, para o tomador do seguro, pela reparação dos danos provocados pelo furto do veículo automóvel, objecto do contrato de seguro.

A validade ou invalidade do contrato de seguro, nomeadamente à luz do disposto no art. 428.º do Código Comercial, é uma questão substantiva, que, porém, não pode influenciar a determinação da legitimidade processual para a acção, dado que aquela, como resulta do disposto no referido n.º 3 do art. 26.º do CPC, deve ser aferida em função dos termos como o autor descreveu a relação material controvertida. E, sendo assim, não pode deixar de se reconhecer ao Apelante legitimidade para instaurar a acção de efectivação da responsabilidade civil, nomeadamente nos termos do n.º 3 do art. 26.º do CPC”.

4.3. Confrontando os raciocínios efectuados nos dois acórdãos, facilmente se conclui que tão-pouco sob este prisma procede a alegação da recorrente no sentido da existência de uma oposição de julgados.

Conforme se demonstrou, é pressuposto de ambos os Acórdãos que a legitimidade processual radica na titularidade da relação controvertida tal como a configura o autor e, portanto, não está dependente da efectiva titularidade da relação controvertida. E em ambos se retiram as devidas consequências deste pressuposto. No Acórdão recorrido atende-se à qualidade de titular de direito de preferência invocado pela requerente para aferir da legitimidade processual para a providência cautelar composta dos pedidos apresentados pela recorrente. No Acórdão fundamento atende-se à qualidade de utilizador de veículo automóvel e tomador de seguro para aferir da legitimidade processual para uma acção de responsabilidade contra a seguradora pelos danos provocados pelo furto do veículo automóvel, objecto do contrato de seguro.

Não pode, pois, acompanhar-se a recorrente quando diz / sugere que o Tribunal a quo se desviou do seu pressuposto inicial, apreciando a legitimidade material em vez de / a pretexto de apreciar a legitimidade processual.

Relendo com atenção as passagens relevantes do Acórdão recorrido, verifica-se que o que aí se diz é, exactamente, que a relação controvertida tal como configurada pela recorrente não é apta a justificar a sua legitimidade processual.

Partindo do que foi alegado pela recorrente (que é sócia das sociedades HH e II e, nessa qualidade, titular de direito de preferência na transmissão das participações sociais que os co-sócios detêm nessas sociedades e que um destes co-sócios é a BB, de quem, por sua vez, são accionistas únicos os restantes recorridos), decidiu-se que uma relação desta natureza não era apta a alicerçar as pretensões que a recorrente apresenta, designadamente, de que os recorridos sejam condenados a abster-se de convocar a assembleia geral para deliberar a aprovação de um projecto de cisão da BB e de o deliberar e de convocar a assembleia geral para deliberar a cisão da BB e de o deliberar.

O raciocínio confirma que o Tribunal recorrido não só não só desviou da sua posição inicial como lhe foi fiel, não sendo a solução encontrada a final outra coisa senão a concretização do pressuposto por ele assumido quanto à questão de legitimidade processual.

O facto de a questão ser equacionada por referência ao concreto objecto processual, analisando o pedido e a causa de pedir, não constitui, contrariamente ao que pensa a recorrente, um (indevido) juízo material sobre a procedência da acção. Aquela contextualização é absolutamente necessária, sob pena de o requisito da “titularidade da relação jurídica tal como configurada pelo autor” deixar de existir enquanto requisito ou critério (i.e., de se eliminar em definitivo a sua função “regulatória ou ordenadora”), passando, então, os sujeitos a ter legitimidade para propor, em regra, todo o tipo de acções, independentemente da qualidade jurídica que invocassem. Coisa diferente disto – da “averiguação de quem pode dispor da situação material por via processual[16] –, e que respeita, essa sim, ao mérito da causa, é a decisão sobre se a relação controvertida corresponde, de facto, á relação que o autor afirmou – o que implicaria, no caso do Acórdão recorrido, apreciar as cláusulas contratuais de onde promana o direito de preferência de que a recorrente se arroga ou, no caso do Acórdão fundamento, apreciar a validade do contrato de seguro em que o recorrente se apresenta como tomador. Mas isso não aconteceu em nenhum dos casos.

Deve esclarecer-se ainda que a circunstância de a legitimidade processual do autor ter sido decidida no Acórdão recorrido em sentido diverso do Acórdão fundamento não significa que se tenha aplicado critério diferente, bem ao contrário. Aquilo que sucedeu foi que a aplicação do mesmo critério conduziu a uma diferente decisão, devendo-se a diversidade à (manifesta) diversidade dos factos, entre os quais avulta a comprovada qualidade jurídica diversa do autor. Quer dizer: os dois Acórdãos aplicaram a mesma disposição legal, interpretando-a nos mesmos termos. O facto de as duas decisões terem sido, como foram, diferentes deve-se – repete-se – à circunstância de as situações de facto consideradas terem sido, como foram, diferentes.

Conclui-se, assim, pela inexistência da oposição de acórdãos que, nos termos do artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, é conditio sine qua non para a admissibilidade do presente recurso de revista.

                                                           *

III. DECISÃO

Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.

                                                           *


Custas pelos recorrentes.

                                                           *

                                                           LISBOA, 30 de Abril de 2019

                                                            

Catarina Serra (Relatora)

Raimundo Queirós

Ricardo Costa

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[1] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), p. 59 (sublinhados nossos).
[2] Cfr., sobre estes requisitos, Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., pp. 56 e s.
[3] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., pp. 60-61.
[4] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., p. 386 (sublinhados do autor).
[5] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., p. 484 (nota 712) (sublinhados do autor).
[6] Cfr., no sentido de sujeição a regime comum dos recursos interpostos ao abrigo da al. c) e da al. d) do n.º 2 do artigo 629.º, do artigo 672.º, n.º 2, al. c) e do artigo 688.º, n.º 1, do CPC, Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., p. 59.
[7] Destaca-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.03.2018, Proc. 1503/16.0YRLSB.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt). Note-se, contudo, que, neste caso, não só havia sido invocado mais do que um acórdão fundamento como faltava o respectivo trânsito em julgado.
[8] É esta a solução preconizada, por exemplo, no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 13.03.2014, Proc. 16/13.7TBMRA-H.EL.S1-A (disponível em http://www.dgsi.pt).
[9] Disponível em www.http://dgsi.pt.
[10] Cfr. ainda o comentário de Abrantes Geraldes [Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., p. 679 (nota 700)].
[11] Isto em razão da identidade de fundamento. Cfr., neste sentido, quanto aos recursos interpostos ao abrigo da al. c) e da al. d) do n.º 2 do artigo 629.º, do artigo 672.º, n.º 2, al. c) e do artigo 688.º, n.º 1, do CPC, Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), p. 59.
[12] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), pp. 471-477.
[13] Cfr., por todos, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, volume I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 110.
[14] Cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 77).
[15] Cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume I, cit., pp. 72 e s., ou (mais brevemente) Comentário ao Código de Processo Civil, volume 1.º, Coimbra, Coimbra Editora, 1960, pp. 40 e s.
[16] Cfr., por todos, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, volume I, cit., p. 111.