Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A3486
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SILVA SALAZAR
Descritores: JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ÓNUS DA PROVA
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
PODERES DO JUIZ
PODER VINCULADO
PODER DISCRICIONÁRIO
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
Nº do Documento: SJ200611140034861
Data do Acordão: 11/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
I - A acção que visa a impugnação de uma escritura de justificação notarial é uma acção de simples apreciação negativa (art. 4.º, n.º 2, a. a), do CPC), por visar apenas a declaração da inexistência do direito, no caso de propriedade, arrogado na escritura.
II - Daí que os réus tenham o ónus de alegação dos factos constitutivos suficientes para integrarem a aquisição do direito de propriedade que na escritura se arrogaram, bem como o ónus da respectiva prova (art. 343.º, n.º 1, do CC).
III - O direito de propriedade declarado na escritura de justificação e, com base nela, levado ao registo, passou a ser incerto com a impugnação deduzida, não podendo os réus beneficiar da presunção contida no art. 7.º do CRgP.
IV - Tanto mais que a escritura de justificação notarial, com as declarações nela contidas, apenas vale para efeitos de descrição na Conservatória do Registo Predial se não vier a ser impugnada, face ao disposto no art. 109.º-A (hoje art. 101.º do Código do Notariado).
V - O poder que é atribuído ao juiz pelo disposto no art. 508.º, n.º 3, do CPC, ao contrário do atribuído pelo n.º 2 do mesmo artigo, não constitui um poder vinculado, mas simples faculdade, não se encontrando por isso o juiz obrigado a determinar se proceda ao convite referido nesse dispositivo.
VI - Logo, o juiz não tinha que convidar os réus a indicar outros factos em complemento dos indicados na contestação para suprir a insuficiente alegação fáctica relativa à aquisição, por via de usucapião, do direito de propriedade sobre o prédio em causa.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Em 16/11/93, AA instaurou contra BB, CC, DD, e EE, acção, então com processo sumário mas que por via de alteração do valor passou a ordinário, pedindo que seja declarada nula, ou, se assim não se entender, anulada, a escritura de justificação e doação lavrada no dia 16 de Junho de 1992 no Cartório Notarial de Vila Real de Santo António, pela qual os três primeiros réus, declarando-se falsamente donos e legítimos possuidores, em comum, com exclusão de outrem, havia mais de vinte anos, de determinado prédio urbano, o doaram ao quarto réu, que aceitou essa doação, a fim de impedirem a autora, casada com o quarto réu mas em vias de dele se divorciar, de usufruir da metade que lhe cabia no aludido prédio.
Contestaram os réus invocando a caducidade do direito de arguir a nulidade do acto, com base no disposto no art.º 254º do Cód. Civil, bem como do direito de impugnar a escritura de justificação, com base no disposto no art.º 109º do Cód. do Notariado, e impugnaram, sustentando nomeadamente a inexistência de falsidade.
Efectuada uma audiência preliminar em que não se obteve conciliação, foi proferido despacho saneador que decidiu não haver excepções dilatórias nem nulidades secundárias e que conheceu desde logo do mérito da causa, julgando improcedentes as excepções de caducidade e a acção procedente, pelo que declarou que os três primeiros réus não eram, com referência à data da escritura, donos do aludido prédio, assim se considerando impugnado o facto justificado nessa escritura, e declarou nula e de nenhum efeito a doação na mesma escritura efectuada a favor do quarto réu.
Apelaram os réus, sem êxito, uma vez que a Relação negou provimento ao recurso e confirmou a sentença nela recorrida, por acórdão de que vem interposta a presente revista, de novo pelos réus, que, em alegações, formularam as seguintes conclusões:
1ª - As acções declarativas de simples apreciação têm por fim obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto;
2ª - A classificação de uma acção como acção de simples apreciação depende do pedido formulado pelo autor, ou seja, da providência por ele requerida;
3ª - Nestas acções, ao autor está vedada a faculdade de exigir a prestação de uma coisa ou de um facto, pois a sentença que vier a ser proferida, caso lhe seja favorável, não constitui título executivo;
4ª - Numa acção de impugnação de justificação notarial em que o autor se arroga, também, de proprietário ou co – proprietário da coisa justificada, o seu tipo é o de uma acção declarativa de condenação e nunca de simples apreciação;
5ª - A acção de impugnação de escritura de justificação notarial deve ser intentada no prazo de um ano a contar da data do conhecimento desse facto, presumindo-se a mesma como coincidente com a sua publicação em órgão da imprensa escrita da localidade ou, na sua falta, no diário mais lido na mesma;
6ª - Decorrido este prazo e não tendo sido intentada a respectiva acção judicial, verifica-se a excepção da caducidade, de que resultará a absolvição do pedido formulado contra o réu;
7ª - Nas acções de simples apreciação negativa verifica-se a inversão do ónus da prova;
8ª - Todavia, encontrando-se registado o acto justificado, inscrito a favor do réu, o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e é pertença do titular inscrito;
9ª - Esta presunção, que beneficia o réu, é geradora de nova inversão do ónus da prova, já que o réu fica liberto ou dispensado da prova imposta pelo tipo de acção de simples apreciação negativa;
10ª - Para além de dirimir os conflitos entre as partes, o julgador também deve colaborar com as mesmas, convidando-as a reformular os articulados, aperfeiçoando-os, para que os contornos da causa, nas suas vertentes de facto e de direito, fiquem concertados e exaustivamente delineados;
11ª - É dever legal do julgador convidar as partes para, em prazo por ele a fixar, virem suprir as deficiências que, em seu prudente entender, considere necessárias para justa e boa decisão da causa;
12ª - Ao decidir como o fez, o acórdão recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos art.ºs 4º, n.º 2, al. b), 496º, al. b), 493º, n.ºs 1 e 3, e 508º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, 254º, 287º e 343º, n.º 1, do Cód. Civil, e 7º do Cód. Registo Predial.
Terminam pedindo a revogação do acórdão recorrido, a procedência das excepções de caducidade e a sua absolvição do pedido, ou, assim não se entendendo, que seja determinada a baixa do processo para prosseguimento com elaboração de especificação e questionário.
Em contra alegações, a autora pugnou pela confirmação daquele acórdão.
Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que as instâncias deram por assentes os factos seguintes:
1º - Por escritura pública de justificação notarial de 16 de Junho de 1992, lavrada de fls. 33 a fls. 34vº do livro de escrituras diversas n.º 209-A do Cartório Notarial de Vila Real de Santo António, os três primeiros réus declararam: “Que são donos e legítimos possuidores, em comum, com exclusão de outrem, de um prédio urbano, com dois pisos, com a área coberta de 294 m2, e a área descoberta de 786 m2, no sítio do Buraco, freguesia de Vila Nova de Cacela, deste concelho, a confrontar do Norte com BB e outro, do Sul e do Poente com estrada, e do Nascente com FF, não descrito na Conservatória do Registo Predial desta cidade, e omisso na matriz mas tendo sido apresentada a declaração para a sua inscrição, em 20 de Abril de 1992, e a que atribuem o valor de 200.000$00”;
2º - Mais declararam “que o dito prédio está na posse deles, primeira e segundos outorgantes, há mais de vinte anos, por lhes ter sido adjudicado, em comum e sem determinação de parte ou direito, na partilha amigável verbal a que procederam dos bens que ficaram por óbito de seu marido, pai e sogro, GG, residente que foi no sítio do …, freguesia de Vila Nova de Cacela, deste concelho, posse que sempre têm vindo a exercer, pacífica, pública e ininterruptamente, de boa fé, com conhecimento de toda a gente, e sem a menor oposição de quem quer que seja, extraindo dele todas as suas utilidades e praticando todos os actos conformes ao exercício do direito de propriedade, pelo que o adquiriram por usucapião, não tendo, porém, dada a forma de aquisição, documentos que lhes permitam proceder ao registo do mencionado prédio, em seu nome, na Conservatória do Registo Predial competente”;
3º - Pelos três primeiros réus foi ainda dito que: “pelas forças da quota disponível de seus bens, doam ao quarto outorgante, respectivamente neto da primeira outorgante e filho dos segundos outorgantes, o atrás referido prédio”;
4º - Pelo ali quarto outorgante, aqui quarto réu, foi dito: “que aceita esta doação nos termos exarados”.
Todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações da presente revista, conclusões essas que são cópia das que foram apresentadas com as alegações da apelação, foram decididas no acórdão recorrido, que para tanto, e na sequência da bem elaborada sentença da 1ª instância, fez uma pormenorizada análise dos factos dados por provados e dos factos articulados com interesse para a decisão, bem como correcta interpretação e aplicação das normas legais respeitantes àquelas questões, pelo que com ele inteiramente se concorda, quer quanto ao nele decidido, quer quanto aos respectivos fundamentos, a que se adere e para que se remete ao abrigo do disposto nos art.ºs 726º e 713º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil.
Com efeito, estamos perante uma acção que visa a impugnação de uma escritura de justificação notarial, a qual é de forma praticamente unânime qualificada como uma acção de simples apreciação negativa das previstas no art.º 4º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Civil (conforme, entre outros, o Ac. deste Supremo de 26/4/94, in Col. Jur./Acs. do S.T.J., Ano II, Tomo II – 1994, pg. 68), por visar apenas a declaração da inexistência do direito arrogado na escritura e que, na hipótese dos autos, é um direito de propriedade.
Daí que, e tanto mais que a autora não pediu que fosse reconhecido direito de propriedade na titularidade dela, sobre os réus recaia o ónus da prova dos factos constitutivos daquele direito que na escritura se arrogaram (art.º 343º, n.º 1, do Cód. Civil), coisa que não poderiam fazer, mesmo provando todos os factos que articularam na contestação, por falta de alegação de factos suficientes para integrarem a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio urbano em causa, - e é de notar que nem sequer alegaram na contestação a forma de aquisição do direito de propriedade sobre esse prédio -, nomeadamente por via de usucapião nos termos dos art.ºs 1251º, 1253º (a contrario), 1258º e segs. e 1287º e segs. do Cód. Civil. Falta de alegação essa que, aliás, os recorrentes nem sequer recusam nas conclusões das suas alegações, não suscitando a correspondente questão.
Não se verifica qualquer das excepções de caducidade invocadas: por um lado, não nos encontramos perante a situação prevista no art.º 254º do Cód. Civil, e por outro lado não é de caducidade o prazo previsto no art.º 109º (hoje,101º) do Cód. do Notariado (conforme Ac. deste Supremo de 15/6/94, in Col. Jur./Acs. do S.T.J., Ano II, Tomo II – 1994, pg.140).
Para além disso, não se vê que tenha sido oportunamente invocado o registo da aquisição do prédio em causa a favor do quarto réu, pelo que tal registo, a existir, não poderia ser atendido para a decisão.
De todo o modo, mesmo que atendível, não poderia conduzir a decisão diferente, visto que, como tem sido entendido (Ac. do S.T.J. de 3/3/98, in Col. Jur./Acs. do S.T.J., ano VI, Tomo I, pg. 114), o direito de propriedade declarado na escritura de justificação e, com base nela, levado ao registo, passou a ser incerto com a impugnação deduzida, pelo que não pode aquele réu beneficiar da presunção contida no art.º 7º do Cód. do Registo Predial, tanto mais que a escritura de justificação notarial, com as declarações nela contidas, apenas vale para efeitos de descrição na Conservatória do Registo Predial se não vier a ser impugnada, face ao disposto no art.º 109º-A, hoje art.º 101º, do Cód. do Notariado.
Assim, se o prédio em causa se encontrar efectivamente descrito no registo predial, “como o registo foi feito com base em tal escritura de justificação notarial, agora impugnada, e precisamente porque o foi, não pode ele constituir qualquer presunção de que o direito existe, já que é este mesmo direito cuja existência se pretende apurar nesta acção”.
Não tinha por outro lado o Juiz obrigação de convidar os réus a indicar outros factos em complemento dos indicados na contestação. Isto porque o poder que lhe é atribuído pelo disposto no art.º 508º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, ao contrário do atribuído pelo n.º 2 do mesmo artigo, não constitui um poder vinculado, mas simples faculdade, não se encontrando por isso obrigado a determinar se proceda ao convite referido nesse dispositivo.
Não pode, por tudo isso, ser reconhecida razão aos recorrentes.
Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 14 de Novembro de 2006

Silva Salazar (Relator)
Afonso Correia
Ribeiro de Almeida