Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B3055
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: CONFISSÃO
INTERPRETAÇÃO
TEORIA DE IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO
ACÇÃO DE APRECIAÇÃO NEGATIVA
ÓNUS DA PROVA
POSSE
Nº do Documento: SJ200511100030557
Data do Acordão: 11/10/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 8737/04
Data: 01/20/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. A confissão reveste a natureza de um acto jurídico stricto sensu, de tipo funcional, a que são aplicáveis as regras dos negócios jurídicos em tudo o que não se disponha em termos especiais, pelo que o seu conteúdo carece de ser interpretado de acordo com a doutrina da impressão do destinatário, isto é, com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do confitente, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (artigos 295º e 236º, nº 1, do Código Civil).
2. Na acção negatória de servidão, por força do disposto no artigo 343º, nº 1, do Código Civil, é ao réu que cabe provar a existência da servidão, por ser praticamente impossível provar que ela não se constituiu.

3. Todavia, porque também neste caso se aplicam as demais regras de repartição do ónus probatório, demonstrada pelo réu a existência da servidão, será, depois, ao autor que incumbe a prova dos factos impeditivos, modificativos e extintivos daquele direito (n° 2 do art.342° do diploma citado).

4. Se é certo que para qualificar uma situação como de verdadeira posse é necessário existirem não somente o corpus mas ainda o animus possidendi, verdade é também que o exercício daquele faz presumir - presunção legal tantum juris - a existência deste.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" e B intentaram, no Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira, acção ordinária de simples apreciação negativa contra C e D, pedindo que seja declarada a inexistência de qualquer servidão de passagem entre um prédio deles autores e um prédio dos réus.

Alegaram, para tanto, em resumo, que:

- o prédio onde os réus habitam confina com estrada pública;

- por isso, a construção de um pequeno acesso permitiria aos réus acederem ao seu prédio.

- durante alguns anos, e com autorização do então proprietário, o 1º réu utilizou o prédio dos autores para apascentar ovelhas, oferecendo àquele, todos os anos, um borrego;

- durante esse período, e também com a autorização do então proprietário, os réus utilizavam aquele prédio como passagem e pessoas para o acesso à sua propriedade;

- com a morte do anterior proprietário (pai dos vendedores aos ora autores do imóvel) o 1º réu passou a utilizar a propriedade para passagem de viaturas para o seu prédio;

- os autores opuseram-se a tal servidão e comunicaram aos réus que ignoraram a sua oposição.

Os réus contestaram, sustentando, no essencial, que:

- a habitação dos réus situa-se não no prédio identificado pelos autores mas sim num outro localizado a poente do prédio rústico do 1º réu e com acesso a este por uma escada íngreme com cerca de trinta degraus por onde só podem passar pessoas;

- há mais de 60 anos que por si e antepossuidores têm acesso à via pública através de um caminho particular, com a largura de dois metros, que atravessa o prédio dos autores e que faz a ligação com a estrada:

- o leito de tal servidão encontra-se bem marcado e com uma cobertura de alcatrão.

Prosseguindo os autos, foi realizado o julgamento e foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os réus do pedido.

Em recurso de apelação o Tribunal da Relação de Lisboa mandou ampliar a matéria de facto.

Realizado novo julgamento, nova sentença foi proferida, julgando a acção improcedente, por não provada.

Inconformados, apelaram novamente os réus, sem êxito, porquanto o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 20 de Janeiro de 2005, negou provimento à apelação e confirmou a decisão impugnada.

Interpuseram, então, os réus, recurso de revista, pugnando pela revogação do acórdão recorrido e a prolação de decisão que determine a procedência da acção.

Não houve contra-alegações.
Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.

Nas alegações do recurso os recorrentes formularam as seguintes conclusões (sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):

1. O Tribunal recorrido, na actividade de reapreciação da matéria de facto tida como provada, fez uma incorrecta interpretação e valoração do conteúdo e significado processual das confissões (qualidade de arrendatário/data de início da passagem) constantes dos articulados onde foram proferidas, violando o disposto nos arts. 515°, 567° e 659º, n° 3, do C.Proc.Civil, bem como no art. 352° do C.Civil.

2. Atenta a natureza das provas omitidas, porque se entende verificada a previsão da parte final do art. 722° do C.P.C., deverá ser corrigida, em sede do presente recurso, a omissão/erro na fixação e apreciação da prova nos aspectos referidos, com as naturais implicações da relevância dessa prova no enquadramento do direito substantivo aplicável, nomeadamente na classificação dos réus como meros detentores ou possuidores precários.

3. Com efeito, o art. 659°, n° 3, do C.Proc.Civil determina que os tribunais tomem em consideração, na fundamentação das sentenças e, consequentemente, no correcto enquadramento jurídico das questões submetidas a litígio, os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito.

4. Os réus confessam, na contestação, que sempre utilizaram o prédio dos ora recorrentes na qualidade de arrendatários, sendo que tal confissão foi dada em resposta à afirmação destes de que sempre o haviam utilizado com mera autorização do então proprietário.

5. Quer a mera autorização ou condescendência, quer o facto de se ser arrendatário, como acontece com os réus, têm como efeito a impossibilidade de aquisição por usucapião, por ausência de verificação da posse.

6. Mas os réus confessam, igualmente, em "Requerimento para Embargo de Obra Nova", que tal utilização ocorreu desde Outubro de 1964, data em que adquiriram a propriedade do mesmo, dando-se por reproduzidos, quanto à questão da preterição da confissão, os fundamentos aduzidos na conclusão 1.

7. O Tribunal recorrido omitiu na decisão a circunstância de o 1º réu ter utilizado o prédio dos ora autores, durante cerca de 40 anos, na qualidade de arrendatário, o que não determina, só por si, o uso e fruição integral do mesmo, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, e não configura mais que a verificação do corpus da posse.

8. Aliás, os réus não alegaram e nem lograram provar - como lhes competia, atenta a repartição do ónus da prova - que a utilização do prédio dos autores decorresse de outra qualquer circunstância que não o arrendamento de que eram titulares, e muito menos que a mesma tivesse ocorrido por prazo passível de poder constituir o direito que invocam.

9. A aquisição de direitos reais através do instituto da usucapião pressupõe, desde logo, a existência de uma situação plena de posse integrada do chamado corpus ou detenção material da coisa ou direito (no caso concreto dos autos a passagem pelo prédio serviente) e do animus ou convicção de estar a exercer um direito próprio, não bastando uma situação de mera detenção ou posse em nome alheio.

10. Sendo mero detentor ou possuidor precário, o 1° réu não podia adquirir quaisquer direitos reais, por usucapião, nomeadamente a pretendida servidão de passagem pelo prédio dos ora recorrentes, pois tal lhe está vedado pelo art. 1290° do C.Civil, sendo certo que não foi alegado nem provado qualquer inversão do título da posse, facto que seria constitutivo do direito dos réus e constituiria ónus da prova dos mesmos, atenta a natureza da acção, conforme dispõe o art. 343, n° 1, também do mesmo diploma.

11. Por outro lado, a questão da aquisição da servidão de passagem, por parte dos réus, não tem qualquer relação com eventual encrave do prédio destes, sendo destituída de fundamento legal qualquer tentativa de estabelecer relação entre estas duas realidades jurídicas.

12. Decidindo como o fez, o Tribunal a quo violou, no que toca à questão substantiva em apreço, os princípios e normas que regulam a constituição de direitos reais por usucapião, nomeadamente os arts. 1290º e 1253°, ambos do C.Civil.

No acórdão recorrido foram tidos como assentes os factos seguintes:

i) - os autores adquiriram em comum, por escritura de 24/11/97, o prédio rústico denominado "Quinta da Verdelha", situado em Vialonga, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira sob o n° 734;

ii) - o réu C é proprietário do prédio rústico com a área de 6.040 m2, situado na Quinta da Verdelha do Ruivo, prédio este que está descrito na respectiva Conservatória sob o nº 17.929, e inscrito a seu favor e de sua mulher Balbina sob o n° 23560, existindo neste prédio um prédio urbano que é a habitação do réu;

iii) - em 16/12/97, a autora A notificou judicialmente o réu C no sentido de que ia proceder à vedação do seu prédio e estava disposta a colaborar na feitura de um acesso entre a estrada pública e o prédio dele réu;

iv) - em 13/01/98, a autora A enviou uma carta ao réu Horta, informando-o da sua disponibilidade para feitura de um acesso entre a estrada pública e o prédio dele réu;

v) - os autores fecharam o portão que dá acesso ao seu prédio e que os réus utilizavam e utilizam para passar com as suas viaturas;

vi) - a aquisição do referido prédio pelos autores destinava-se à construção de uma moradia, construção que já se iniciou e que ainda decorre;

vii) - desde pelo menos o ano de 1954 que o réu C utiliza o prédio adquirido pelos autores como passagem para acesso ao seu prédio, nomeadamente com a viatura;

viii) - em 20/02/98, quando se procedeu à betonagem de uma das lajes da moradia, e porque o caminho estava vedado com uma viatura da "Betojal", o réu D exigiu que se retirasse aquela viatura com a operação a decorrer para passar com a sua;

ix) - o prédio rústico referido como descrito sob o n° 17.929 é actualmente constituído por diversas árvores de fruto e horta, e ainda por barracões para alfaias agrícolas, garagem, onde o réu guarda o seu veiculo de trabalho, e currais onde guarda gado bovino;

x) - no lado norte do prédio do réu C existe um tanque, no centro do qual existe uma capela;

xi) - o réu C é agricultor, utilizando o terreno hortícola para dele extrair os produtos necessários à sua actividade, os quais transporta para o mercado municipal, numa camioneta;

xii) - possui ainda um pequeno rebanho que, diariamente, apascenta e guarda nos currais existentes no prédio;

xiii) - o réu C e a sua mulher vivem da sua actividade de agricultor e de uma pensão de reforma;

xiv) - o réu C habita o prédio urbano referido, situado a poente do prédio rústico, e com acesso a este por uma estrada por onde só podem passar pessoas;

xv) - o prédio rústico do réu C confina do sul com o prédio adquirido pelos autores, e o acesso à via pública com veículos é efectuado através de um caminho particular, com cerca de 2 metros de largura, que atravessa o prédio dos autores e que faz ligação com a estrada, encontrando-se marcado no solo com uma cobertura de alcatrão;

xvi) - pelo menos desde o ano de 1954 que esse caminho foi utilizado pelo réu C para passar com os produtos hortícolas, transportados em veículo, com o gado ovino a caminho do pasto, e com as alfaias agrícolas necessárias à sua actividade;

xvii) - tudo isto vem sendo exercido, desde pelo menos o ano de 1954, de forma conhecida por toda a gente e sem oposição de ninguém;

xviii) - o prédio do réu C, actualmente, confronta a sul com os autores, a poente com o rio, a nascente com E e a norte existe uma ribanceira com uma altura, na parte mais alta, de 15 metros, e de 7 metros na parte mais baixa;

xix) - a utilização do prédio dos autores pelos réus, quer como acesso ao prédio destes, quer como pasto de rebanho, foi realizada pelo menos desde o ano de 1954, com expressa autorização e conhecimento dos anteriores donos, num clima de boas relações e vizinhança;

xx) - desde pelo menos o ano de 1951, antes do réu C, o pai deste, como dono do prédio referido, passou a ter acesso a tal imóvel e à via pública pelo imóvel dos agora autores;

xxi) - e fazia-o à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, através do caminho em questão.

Os recorrentes situam a impugnação do acórdão recorrido, em primeiro lugar, na violação por este dos artigos 515º, 567º e 659º, nº 3, do C.Proc.Civil, quando procedeu à reapreciação da matéria de facto tida como provada na 1ª instância, que aliás entendeu não dever alterar.

Sustentam que, em virtude de confissão expressa feita pelos recorridos na contestação (artigos 34º a 37º) e em requerimento da providência cautelar de embargo judicial de obra nova (artigo 6º) há-de ter-se como provado que "os réus sempre utilizaram o prédio dos autores e a respectiva passagem, na qualidade de arrendatários" e que "tal só aconteceu a partir de Outubro de 1964, data em que adquiriram a propriedade do mesmo".

É evidente que, não obstante não terem sido estes factos incluídos na especificação ou na base instrutória, os mesmos, a haverem-se como demonstrados através de confissão, teriam que ser tidos em consideração na fixação da matéria de facto, nos precisos termos do disposto no art. 659º, nº 3, do C.Proc.Civil. (1)

Sendo que a pretensão dos recorrentes, por se fundamentar em disposição expressa da lei que fixa a força probatória da confissão (meio de prova, em seu entender, erradamente apreciado) deve ser conhecida no âmbito deste recurso de revista, em conformidade com o preceituado no nº 2 do art. 722º do mesmo diploma.

Certo é, porém, que no acórdão recorrido, analisada a posição dos recorrentes, então suscitada em sede de apelação, entendeu-se que, "tendo em atenção a noção de confissão, à luz do art. 352º do C.Civil, não se pode vislumbrar qualquer confissão, por banda dos réus, do que quer que seja" (fls. 369 vº).

Vejamos.

Alegaram os autores na petição inicial (artigos 19º a 21º) que "a utilização da propriedade dos ora autores pelos réus, quer como acesso à sua, quer como pasto de um rebanho, foi-o sempre com expressa autorização e conhecimento dos anteriores donos, num clima de boa amizade e tolerância", os quais "permitiram que o 1º réu se servisse do mesmo como passagem e ali pastasse as suas ovelhas, gratuitamente, recebendo ocasionalmente um borrego como forma de agradecimento", mas "nunca se chegou a verificar uma verdadeira situação jurídica de posse, nem mesmo quanto ao acesso, existindo, isso sim, uma simples autorização ou condescendência que configurará uma mera detenção".

A esta alegação contrapuseram os réus na contestação (artigos 18º a 23º e 34º a 38º): a) "desde tempos imemoriais, e sempre há mais de 60 ou 70 anos, que os réus e seus antepossuidores têm acesso à via pública através de um caminho particular, com largura de 2 metros, que atravessa o prédio dos autores e que faz ligação com a estrada", cujo leito se encontra marcado no solo com uma cobertura de alcatrão e que foi sempre utilizado pelo 1º réu para passar com os produtos hortícolas que colhe da sua propriedade; "por aquele caminho o 1º réu faz passar o gado ovino a caminho do pasto", passam as alfaias agrícolas necessárias à sua actividade; e "tudo isto vem sendo exercido há mais de 60 anos, de forma conhecida de toda a gente, de boa fé, sem oposição de quem quer que seja e na plena convicção de não ofender os direitos de outrem"; b) "o 1º réu utilizou o prédio dos ora autores não com mera autorização do então proprietário, mas sim como arrendatário, cultivando-o e nele apascentando o seu rebanho, pagando uma renda anual de 4.000$00 que, em determinada altura, quando os proprietários do terreno deixaram de ter gado ovino, foi substituída por borrego de 8/10 kg.", "desde sempre utilizando a servidão legal de passagem já existente".

Doutro passo, na referida providência cautelar que os réus requereram (fls. 121 a 129) alegaram estes que "desde, pelo menos, 01/10/1964, data de aquisição pelos requeridos do prédio identificado nos artigos 1º e 4º deste requerimento, o acesso dos requerentes à via pública com veículos é efectuado através de um caminho particular, que atravessa o prédio dos requeridos e que faz ligação com a estrada, encontrando-se bem marcado no solo com cobertura de alcatrão".

"A confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária" (art. 352º do C.Civil). "A confissão judicial espontânea pode ser feita nos articulados, segundo as prescrições da lei processual, ou em qualquer acto do processo, firmado pela parte pessoalmente ou por procurador especialmente autorizado" (art. 356º, nº 1). "Se a declaração confessória ... for acompanhada da narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia do facto contestado ou a modificar ou extinguir os seus efeitos, a parte que dela quiser aproveitar-se como prova plena tem de aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexactidão" (art. 360º).

Por último, a declaração confessória reveste a natureza de um acto jurídico stricto sensu, de tipo funcional, a que são aplicáveis as regras dos negócios jurídicos em tudo o que não se disponha em termos especiais (2), pelo que o seu conteúdo carece de ser interpretado, em princípio, de acordo com a doutrina da impressão do destinatário, isto é, com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do confitente, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (artigos 295º e 236º, nº 1, do C.Civil).

Nesta perspectiva não pode deixar de se atribuir à declaração feita pelos réus nos articulados significado diverso daquele por que os recorrentes propugnam. Na verdade, o que os réus afirmam (já referidos artigos 34º a 37º da contestação) é que o primeiro deles sempre utilizou o prédio ora dos autores, na qualidade de arrendatário, mas não que utilizou a passagem por essa razão. A passagem mencionada - dizem nos artigos 18º a 23º - sempre foi utilizada, desde tempos imemoriais, para acesso à via pública, com os produtos hortícolas e as alfaias agrícolas necessárias à sua actividade, de boa fé, sem oposição de quem quer que seja e na plena convicção de não ofenderem os direitos de outrem.

Não existe, pois, qualquer declaração confessória com o sentido que dela pretendem extrair os recorrentes de que os réus aceitaram que utilizavam a passagem por mera tolerância deles e dos anteriores proprietários.

E o mesmo se há-de dizer quanto à alegação, na providência cautelar, de que, desde, pelo menos, 01/10/1964, data de aquisição pelos requeridos do prédio identificado nos artigos 1º e 4º deste requerimento, o acesso dos requerentes à via pública com veículos é efectuado através de um caminho particular, que atravessa o prédio dos requeridos e que faz ligação com a estrada, encontrando-se bem marcado no solo com cobertura de alcatrão".

Tal declaração, inserida em processo instaurado contra os ora recorrentes, não tinha que situar a "posse" do caminho em momento anterior à aquisição por eles do prédio em que a passagem alegadamente se situava (1964). O que manifestamente não permite a conclusão de que os requerentes de tal providência tenham reconhecido - e muito menos confessado - que só a partir dessa altura iniciaram a utilização da passagem referida, convencidos da titularidade do direito.

Não ocorre, pois, qualquer confissão quanto a tais factos, como se não verifica qualquer contradição com o facto, na acção demonstrado, de que "pelo menos desde o ano de 1954 que esse caminho foi utilizado pelo réu C para passar com os produtos hortícolas, transportados em veículo, com o gado ovino a caminho do pasto e com as alfaias agrícolas necessárias à sua actividade, de forma conhecida por toda a gente e sem oposição de ninguém" (xvi) e xvii) da matéria de facto).

Improcede, deste modo, a pretensão, nesta parte, deduzida pelos recorrentes, não podendo ser, como impetram, alterada a matéria de facto, porquanto não ocorre, in casu, errada apreciação na fixação dos factos por ofensa de qualquer disposição legal determinante da força probatória da confissão judicial.

Sustentam, ainda, os recorrentes que os réus não alegaram e nem lograram provar - como lhes competia, atenta a repartição do ónus da prova - que a utilização do prédio dos autores decorresse de outra qualquer circunstância que não o arrendamento de que eram titulares, e muito menos que a mesma tivesse ocorrido por prazo passível de poder constituir o direito que invocam.

Sendo que a aquisição de direitos reais através do instituto da usucapião pressupõe, desde logo, a existência de uma situação plena de posse integrada do chamado corpus ou detenção material da coisa ou direito (no caso concreto dos autos a passagem pelo prédio serviente) e do animus ou convicção de estar a exercer um direito próprio, não bastando uma situação de mera detenção ou posse em nome alheio.

Por isso, sendo mero detentor ou possuidor precário, o 1° réu não podia adquirir quaisquer direitos reais, por usucapião, nomeadamente a pretendida servidão de passagem pelo prédio dos ora recorrentes, pois tal lhe está vedado pelo art. 1290° do C.Civil, sendo certo que não foi alegado nem provado qualquer inversão do título da posse, facto que seria constitutivo do direito dos réus e constituiria ónus da prova dos mesmos, atenta a natureza da acção, conforme dispõe o art. 343°, n° 1, também do mesmo diploma.

Também aqui, salvo o respeito devido, não têm razão.

É certo que o art. 343º, nº 1, do C.Civil, em sede de repartição do ónus da prova, estabelece que "nas acções de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga".

A título de exemplo pode, precisamente, citar-se a acção negatória de servidão, na qual "é ao réu que cabe provar a existência da servidão, por ser praticamente impossível provar que ela não se constituiu. O autor só terá de fazer a prova do seu direito de propriedade". (3)

Nesse tipo de acções, a dúvida sobre a realidade dos factos terá sempre, conforme resulta do art. 516° do C.Proc.Civil, que resolver-se em desfavor do réu, que é a parte a quem o facto aproveita.

Todavia, porque também a estes casos se aplicam as demais regras de repartição do ónus probatório, demonstrada pelo réu a existência da servidão (os respectivos factos são, relativamente a ele, por força do art. 343º, nº 1, constitutivos) será, depois, ao autor que incumbe a prova dos factos impeditivos, modificativos e extintivos daquele direito (n° 2 do art. 342° do diploma citado).

Foi, aliás, com esse desiderato - permitir aos autores a prova de que a passagem dos réus através do caminho se fazia por mera tolerância - que, após o primeiro julgamento, foi ordenada a ampliação da matéria de facto, e, em consequência, foi aditado à base instrutória o ponto 16º.

Ora, reportando-nos ao caminho aqui em causa (e não ao terreno de que o réu se afirmou arrendatário) foi considerado provado que o acesso à via pública, com veículos, do prédio rústico do réu C é efectuado através de um caminho particular, com cerca de 2 metros de largura, que atravessa o prédio dos autores e que faz ligação com a estrada, encontrando-se marcado no solo com uma cobertura de alcatrão, caminho esse que, pelo menos desde o ano de 1954 foi utilizado pelo réu C para passar com os produtos hortícolas, transportados em veículo, com o gado ovino a caminho do pasto, e com as alfaias agrícolas necessárias à sua actividade, tudo desde pelo menos o ano de 1954, de forma conhecida por toda a gente e sem oposição de ninguém.

Estes factos são naturalmente suficientes para se concluir que, durante o período necessário para a aquisição, por usucapião, da servidão de passagem, os réus detiveram o caminho, por ele passando, estando, assim, demonstrada a existência do poder de facto correspondente ao denominado corpus da posse.

Ora, sendo certo que para qualificar uma situação como de verdadeira posse é necessário não somente o corpus mas ainda o animus possidendi, verdade é também que o exercício daquele faz presumir a existência deste.(4)

Trata-se de uma presunção legal tantum juris, susceptível, por isso, de ser ilidida pela prova do contrário.

É a doutrina que, ademais, resulta do Assento do STJ de 14/05/96 (5), onde se entendeu que "podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não foi ilidida, os que exercem o poder de facto sobre a coisa".

Na verdade, como nos casos de aquisição unilateral do direito não há causa, ou antes, não há um negócio jurídico que defina a vontade, não há uma causa concreta, o Código estabeleceu uma presunção de causa, dizendo que "em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto" (art. 1252º, nº 2, do C.Civil). Esta presunção da existência do animus só pode ser ilidida pela demonstração de que os actos praticados são por sua natureza insusceptíveis de conduzir à posse - são actos facultativos ou são actos de mera tolerância.(6)

Desta forma, presumido legalmente o animus da posse da servidão de passagem, incumbiria já aos autores, como acima vimos, por força do disposto no art. 342º, nº 2, do C.Civil, alegar e provar que o poder de facto exercido pelos réus derivava de simples tolerância, situação em que se poderia dizer que a respectiva posse era precária, por exercida em nome deles (art. 1253º, al. b), do C.Civil).

Todavia, não obstante a inclusão na base instrutória de um ponto 16º, inquirindo se "a utilização do prédio pelos réus, quer como acesso ao prédios destes, quer como pasto de rebanho, foi sempre realizada com expressa autorização e conhecimento dos anteriores donos, num clima de boas relações de vizinhança e a coberto de uma simples autorização ou condescendência", veio o tribunal a considerar que apenas se provou que "a utilização do prédio pelos réus, quer como acesso ao prédios destes, quer como pasto de rebanho, foi sempre realizada, pelo menos desde 1954, com expressa autorização e conhecimento dos anteriores donos, num clima de boas relações de vizinhança".

Resposta cujo real sentido aparece explicado na respectiva fundamentação (fls. 304) na medida em que ali se afirma que os elementos de prova permitiram "que não se considerasse provado, como referido no artigo 16º, que a utilização ali referida foi efectuada a coberto de uma simples autorização ou condescendência".

Ora, a situação que descrevemos conduz à conclusão de que, provada pelos réus a posse, a título de servidão de passagem, do caminho referido, em termos de conduzir à aquisição por usucapião do direito real correspondente, não conseguiram os autores - e a eles competia - a prova de que essa posse era simples detenção ou posse precária.

Bem decidiu, pois, o acórdão recorrido, que não merece censura, pelo que, consequentemente, o recurso improcede.

Termos em que se decide:
a) - julgar improcedente o recurso de revista interposto pelos autores A e B;
b) - confirmar inteiramente o acórdão recorrido;
c) - condenar os recorrentes nas custas da revista.

Lisboa, 10 de Novembro de 2005
Araújo Barros,
Oliveira Barros,
Salvador da Costa.
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(1) Note-se que "no domínio da vigência dos Códigos de Processo Civil de 1939 e 1961 (considerando este último antes e depois da reforma nele introduzida pelo Dec.lei nº 242/85, de 9 de Junho) a especificação, tenha ou não havido impugnação do despacho que as decidiu, pode sempre ser alterada, mesmo na ausência de causas supervenientes, até ao trânsito em julgado da decisão final do litígio" (Assento do STJ nº 14/94, in DR IS-A, de 4 de Outubro de 1994).
(2) Cfr. António Menezes Cordeiro, "Tratado de Direito Civil Português", I - Parte Geral, Tomo IV, Coimbra, 2005, pag. 490.
(3) Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, pag. 307.

(4) Cfr. Acs. STJ de 25/02/93, no Proc. 82887 da 2ª secção (relator Zeferino faria); e de 05/05/2005, no Proc. 1078/05 da 7ª secção (relator Custódio Montes).

(5) Publicado no DR II S, de 24/6/96. Tal assento continua a vigorar, agora com a natureza de acórdão uniformizador de jurisprudência (art. 17º, nº 2, do Dec.lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).

(6) Cfr. Manuel Rodrigues, "A Posse - Estudo de Direito Civil Português", 4ª edição, revista, anotada e prefaciada por Fernando Luso Soares, Coimbra, 1996, pags. 192 e 194.