Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05P2122
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: HOMICÍDIO
DOLO EVENTUAL
CRIME DE RESULTADO
Nº do Documento: SJ200507130021223
Data do Acordão: 07/13/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: REENVIO.
Sumário : 1. No dolo eventual (artigo 14º, nº 3 do Código Penal) há uma decisão contra valores tipicamente protegidos, mas como a produção de resultado depende de eventualidades ou condições incertas, o dolo eventual é construído sobre a base de factos de cuja insegurança o agente é consciente.
2. A conformação com um facto que preenche um tipo legal de crime (nos crimes de resultado, conformação como o resultado, que só é resultado se ocorrer, quando ocorrer e como ocorre) constitui o núcleo da construção dogmática do dolo eventual.
3. O resultado só tem, porém, consistência como realidade pela sua efectiva ocorrência, e, por isso, se o agente representou como possível um resultado a que ia associada a conformação com esse mesmo resultado, a mera actuação não tem relevância nos quadros do dolo eventual para levar à punibilidade fora da efectiva ocorrência do resultado, ou de um dos resultados possíveis, e com os quais o agente se conformou segundo as regras da experiência.
4. Se em consequência do disparo aleatório de uma arma de fogo, num local onde se encontravam cerca de 300 pessoas, e em que o agente representou a possibilidade de atingir alguma das pessoas presentes, o ofendido apenas sofreu lesões determinantes de oito dias de doença sem afectação de qualquer órgão vital, a conformação do agente não pode ir além do resultado efectivo, devendo apenas ser considerado autor do crime p. e p. no artigo 143º do Código Penal.
5. A norma do artigo 4º do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, configura um fundamento autónomo de atenuação especial da pena directamente fundado na idade do agente e no juízo de prognose favorável quanto ao desempenho da personalidade, não remetendo para os pressupostos da atenuação especial do artigo 72º do Código Penal.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Na 1ª Vara Criminal de Lisboa, foi julgado o arguido A, identificado no processo, e condenado pela prática de um crime de homicídio, na forma consumada, p. e p. no artigo 131º do Código Penal, na pena de 11 (onze) anos de prisão; pela prática de um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. nos artigos 131º, 22º e 23º do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão; e pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 275º, nº 1 do Código Penal, na redacção da Lei nº 98/2001, de 25 de Agosto, com referência ao artigo 3º, alínea h), do Decreto-Lei nº 207-A/75, de 17 de Abril, na pena de 3 (três) anos de prisão; em cúmulo jurídico, o arguido foi condenado na pena única de 15 (quinze) anos de prisão.
Foi também condenado a pagar ao Hospital de S. Francisco Xavier a quantia de 73,26 €, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a notificação ao arguido do pedido cível.

2. Não se conformando com o decidido, interpôs recurso para o tribunal da Relação, o qual, concedendo-lhe parcial provimento, condenou o recorrente pela prática de um crime de homicídio na forma consumada p. e p. pelo artigo 131º do Código Penal na pena de 11 (onze) anos de prisão; pela prática de um crime de homicídio na forma tentada previsto e punido pelos artigos 137°, 22°, 23° e 73º, n° 1, alíneas a) e b), todos do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão; e pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 275°, n° l do Código Penal, na redacção da Lei 98/2001, de 25 de Agosto, com referência ao artigo 3°, alínea b), do Decreto-Lei nº 207-A/75, de 17 de Abril, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão; em cúmulo jurídico face ao artigo 77° do Código Penal condenou o recorrente na pena única de 13 (treze) anos de prisão.

3. De novo inconformado, recorre para o Supremo Tribunal, com os fundamentos da motivação apresentada, e que termina com a formulação das seguintes conclusões:
1ª. O arguido recorrente encontrava-se acusado da prática dos factos constantes do Despacho de Acusação e que faz folhas 244 a folhas 248 dos autos, com a indicação da prova documental, pericial e testemunhal ai arrolada.
2ª. Realizado o julgamento, foi proferido o acórdão condenatório, do qual se recorreu e onde veio a ser condenado na pena única de 15 anos de prisão, após a operação do cúmulo jurídico efectuado entre as seguintes penas parcelares: - 11 anos de prisão pelo crime de homicídio consumado, p. e p. pelo artigo 131° do C. P; 5 anos de prisão pelo crime de homicídio na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131°, 22° e 23° do C. P; 3 anos de prisão pelo crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 275°, n° l do C. P., na redacção da Lei n° 98/2001, de 25 de Agosto, com referência ao artigo 3°, alínea b) do Decreto-Lei n° 207-A/75, de 17 de Abril; e ainda na condenação do pedido de indemnização cível formulado.
3ª. O Tribunal da Relação, no aresto sob censura, deu como assente e provada a factualidade da matéria da acusação, do pedido cível e das condições pessoais do recorrente constantes dos pontos A. B. e C do acórdão de Primeira Instância e reduziu duas das penas parcelares,
4ª. Condenando o arguido na pena única de 13 (treze) anos de prisão.
5ª. O Tribunal agora sob censura e à semelhança daquele do tribunal de Primeira Instância, não assentou, nem deu como provados todos os factos constantes de E. do aresto em crise.
6ª. A decisão recorrida e à semelhança do tribunal de Primeira Instância, chamou para fundamentar ao decidido, e no essencial, na prova produzida e examinada em audiência, seja na testemunhal e ouvida em audiência, cujos depoimentos foram documentados em Acta: B: C: D e E, e ainda nos documentos, autos e exames.
7ª. Considerando os factos provados e não provados em sede de acórdão de Primeira Instância, e tal como anteriormente, nessa sede, o acórdão ora sob censura continua a condenar o arguido nos mesmos termos que o anterior, apenas reduzindo duas das penas parcelares e, consequentemente, a única resultante da aplicação do artigo 77° do Código Penal.

Porém,
8ª. Tal condenação é injusta, dada a inocência do recorrente; considerando-se, ainda, que o aresto recorrido enferma dos vícios a que se referem as alíneas a) e c) do n° 2 do artigo 410° C.P.P. e por padecer de vício a que se refere o n° 3 da mesma disposição legal. Além de que as medidas das penas parcelares e a pena única de 15 [quis-se dizer 13] anos de prisão são excessivas no seu quantum, isto, atendendo aos factos provados e não provados no acórdão e, consequentemente, também o foi a condenação do arguido no pedido cível.
Assim:
9ª. Relativamente ao crime de homicídio na forma tentada e para os factos consignados no acórdão, não poderia o Tribunal neles assentar, desde logo porque em sede de factos não provados, e do próprio acórdão decorre que "não obstante os esforços do tribunal em fazer comparecer as testemunhas arroladas nos Autos, cfr. folhas 6 e 7 da decisão, mormente porque não foram ouvidas em audiência as testemunhas: F; do ofendido G; H, I, J; K, L e M.
10ª. Assim, e porque a prova das factos referidos em 1, 2, 4, 5, 6, 7, 17, 18, 19 e 20 do acórdão, e em sede de factos provados (folhas 2, 3 e 4 e 5 do acórdão) só poderia ser feita pelos depoimentos pessoais e directos das testemunhas faltosas e não o foi;
11ª. Não poderia o Tribunal de recurso acolher a forma como o Tribunal de Julgamento fundamentou a sua convicção, para tanto e com base nos depoimentos indirectos das Testemunha B, na medida em que o mesmo é omisso e irrelevante para a prova desses factos assentes como provados e não provados, não tendo revelado a testemunha B conhecimento pessoal e directo sobre os mesmos.
12ª. Outro tanto em relação aos depoimentos das testemunhas C; de D, e E;
13ª. Donde seria forçoso o aresto sob apreciação, concluir no sentido que não foram examinadas e produzidas em sede de Audiência de Julgamento, prova testemunhal suficiente, para a decisão da matéria de facto provada, em relação ao crime de tentativa de homicídio na pessoa de G e pelo qual veio o arguido a que ser condenado, isto a par de um erro notório, na apreciação da prova produzida em julgamento, vícios que se traduzem naqueles a que se referem as alíneas a) e c), do n° 2 do artigo 410° do C.P.P., e que, por resultarem do texto da decisão recorrida podem e devem ser conhecidos, ainda, por este V. STJ.
14ª. Violando ainda por esta via o aresto em crise, o preceituado pelos artigos 355°, n° l, 124°, 125º, 127º, 128°, n° l, 129°, n° l e 130° nº 2, alíneas a) e c), todos do C.P.P., na medida em que considerou válidas, para a prolação da Decisão que lhe foi submetida a apreciação, provas não examinadas nem produzidas em Audiência de Julgamento e depoimentos testemunhais que não revelaram conhecimento directo e pessoal dos factos, mas que apenas manifestaram as suas convicções pessoais o que deu azo a que se considerassem provados os factos assentes e referidos em l a 7 e 14 a 18 do acórdão, o que importa, também, por parte da decisão recorrida a violação ao preceituado pelo artigo 379°, n° 1, alínea c) do mesmo diploma legal, que também, constitui causa de nulidade deste acórdão.
15ª. O que a não se verificar determinaria a absolvição do arguido da prática do crime de homicídio na forma tentada, p. e p., pelos artigo 131°, 22° e 23°, do C.P, na pessoa da Testemunha faltosa G, donde e por mais esta razão se mostram violados tais preceitos e, repita-se, a manifesta insuficiência da prova colhida em Julgamento e erro na apreciação da mesma - artigo 410°, n° 2 alíneas a) e c) do C.P.P.
16ª. No que tange ao crime de homicídio consumado, decorre do aresto, e em sede de factos provados e transcritos, a materialidade assente, e que determinou a convicção para o Tribunal condenar o recorrente por tal crime, sendo que, quanto aos mesmos não foram provados com interesse quaisquer outros factos, nem assentes como não provados outros, assentando o Acórdão do T. Relação de Lisboa, à semelhança do proferido em sede de Primeira Instância, nos depoimentos das testemunhas, ouvidas em julgamento: B, C, D e E;
17ª. Mas é unânime dos respectivos depoimentos que nenhuma viu quem efectuou os disparos; nem reconheceram o arguido como o seu autor, e ainda que a testemunha D tivesse visto uma arma apontada na sua direcção, a qual não obstante ser amiga do falecido, não identifica o arguido como autor dos disparos.
18ª. E, assim, tendo o Tribunal decidido manter inalterados, como assentes e provados os pontos 3., 4., 8. a 16., e 18 a 20 do acórdão, incorreu nesta parte da decisão, e também, nesta medida nos vícios a que se referem as alíneas c) e a) do nº 2 do artigo 410° do C.P.P; mais violando a decisão impugnada o disposto pelos artigos 124°, n° l, 125°, 127°, 129° n° l e 130°, n° l e 2 alíneas a) e b), todos do C.P.P;
19ª. E, isto na medida em que admitiu e considerou o depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência e, essencialmente, no da testemunha B, que se limitaram a manifestar acerca dos factos, dados como provados pelo Tribunal de Primeira Instância, presunções e convicções pessoais, e segundo as respectivas interpretações.
20ª. Donde e, também, se mostra violado no acórdão proferido pelo Tribunal de Segunda Instância, o princípio da livre apreciação da prova, a que se refere o artigo 127° do C.P.P., por este não poder livre e totalmente operar, porque a livre apreciação e convicção do Tribunal haverá de ter um mínimo de correspondência às provas que hão-se ter sido produzidas e examinadas em audiência de julgamento.
21ª. E, não o tendo sido, razão pela qual se incorre, igualmente na violação ao imposto nos artigos 355°, n° l e artigos 379°, n° l alínea c), ambos do C.P.P., bem como ao artigo 132° do C.P.
22ª. Acerca da condenação do arguido pelo crime de detenção de arma proibia, p. e p. pelo artigo 275° do C.P., na redacção da Lei 98/2001, de 25 de Agosto, com referência ao artigo 3° alínea b) do Decreto-Lei n° 207-A/75, de 17 de Abril, o acórdão, qualifica a arma utilizada como revólver de calibre 9mm. E nos factos provados sob os pontos 3., 4., 1ª parte, 15, 16, 18, 19 e 20 e folhas 3 a 5 do mesmo, quanto ao mesmo nada mais se provando conforme decorre de folhas 6 e 7 do acórdão de Segunda Instância que reproduz, nesta parte o Primeiro.
23ª. O Tribunal, decidiu, nesta parte, mesmo em sede do aresto que ora se impugna, no depoimento das testemunhas B; C, D e E e do Relatório de Exame Balístico efectuado pelo LPC, de folhas 239 a 242, referente aos dois projécteis enviados, o que associado à restante prova leva à conclusão de que foram disparados pela mesma arma, a referida na conclusão 22ª.
24ª. Mas, na óptica do recorrente, também nesta parte a decisão impugnada padecia e ainda padece de vício que a fulmina de nulidade, por violação do preceituado pelos artigos 410°, n° 2, alíneas a) e c), e n° 3 do C.P.P., e por violação ao disposto nos artigos 163°, n° l e 2, cotejado com o disposto no artigo 355°, n° l, e artigos 124°. 127° e 130°. n° 2, alínea b) todos do mesmo diploma.
25ª. Isto, porque nenhuma das testemunhas em causa possui quaisquer conhecimentos científicos ou técnicos que as habilitem a classificar uma arma ou o calibre da mesma; porque a arma em questão não foi aprendida, nem sujeita a qualquer Exame Pericial, nem Laboratorial, e porque o Exame Pericial de folhas 239 a 242 feito pelo L.P.C., se refere a dois projécteis, ambos de calibre.38 Special, ou .357, sem determinar em termos de Exame Pericial qual o exacto calibre do mesmo ou que tipo de arma os disparou.
26ª. E, esse juízo técnico e científico, está subtraído à livre convicção e à livre apreciação da prova - artigo 127° do C.P.P., por força do preceituado pelos artigos 163°, n° l e 355°, do mesmo diploma, não podendo pois o Tribunal tirar conclusões sobre tais factos, nem considerá-los provados, consoante a sua livre apreciação, com base em meras descrições e impressões colhidas por testemunhas, que por não serem coincidentes não são avalizadas por um juízo como aquele referido pelo artigo 130°, n° 2, alínea b) do C.P.P.
27ª. E assim sendo, nem inicialmente o Tribunal de primeira Instância, nem agora o Tribunal da Relação, no aresto em crise, poderiam decidir conforme ao decidido, sem incorrer na violação às supra citadas disposições legais, e nos vícios de nulidade suscitados em que tais violações importam, o que determina também e por esta razão a absolvição do arguido da prática deste ilícito.
28ª. Sem conceder, o arguido, atenta a matéria provada e não provada em sede de decisão recorrida, deveria e, eventualmente, a existir condenação a ser considerado incurso na prática, apenas, de um crime de homicídio, na forma tentada, mas com negligência, atento os factos considerados como não provados e assumidos neste aresto do S. Tribunal da Relação, bem assim, considerando-se os pontos 15, 16 e 17 do acórdão, e quando se diz no aresto recorrido que o arguido agiu sempre com dolo eventual.
29ª. E provado está, e do acórdão do Tribunal de Primeira Instância decorre que o arguido não quis, nem teve intenção de matar, nem retirar a vida quer quanto ao ofendido G, quer quanto ao N - factos provados e não provados do acórdão.
30ª. E, não se provando que tivesse intenção de matar a vítima ou o ofendido, ficou apenas provado que admitiu a possibilidade que tal viesse a acontecer - ponto 15 dos factos provados, constante do acórdão recorrido.
3ª. Afastado o dolo, e restando a negligência, e mesmo considerando a negligência na sua forma mais grosseira, impõe-se a condenação, quanto muito, ao recorrente, eventualmente, abstraindo da sua inocência, como autor de um crime de homicídio na forma tentada e outro na forma consumada, mas nos termos determinados pelo artigo 137° do C. P., onde e consequentemente, as medidas das penas a aplicar, são substancialmente, diferentes e inferiores às decididas.
32ª. Mesmo para aquela pena parcelar, mais reduzida em que o arguido foi agora condenado pelo Tribunal de Primeira Instância, o crime de homicídio na forma tentada.
33ª. Em qualquer caso, quer as penas parcelares, e com particular acuidade aquela que se refere ao crime de homicídio, porque não se verifica, praticado com dolo, ou pelo menos somente mediante dolo eventual, quer a pena única efectuada pela operação do cúmulo jurídico - 13 anos de prisão, ainda se mostra excessiva na sua dosimetria, pelo que e tendo em conta os critérios de aplicação das medidas das penas, e sem que os mesmos se mostrem violados há que as diminuir, quer individualmente, quer no seu total - artigos 40°, 70°, 71° e 77º todos do C.P.P., sob pena de violação de tais disposições legais, como aparenta ter tido perpetrada no aresto sob censura.
34ª. Em qualquer caso e ao arguido, ainda, pelo aresto do Tribunal de Segunda Instância, sempre deveria ter sido feita a aplicação do Regime Especial ara Jovens Delinquentes, acerca do qual determina o Decreto-Lei n° 401/82, de 23 de Setembro, e o artigo 343° do C.P.P., e não o tendo sido aplicado, também, e por mais esta razão, se mostra violado o mencionado Diploma Legal e a sobredita norma.
Ainda, acresce:
35ª Que o acórdão de que se recorre, não se pronunciou, sobre todas as questões que lhe foram submetidas pelo arguido no seu recurso (motivadas) e levadas a sede de conclusões, as quais delimitam o objecto do mesmo.
36ª. São assim as questões que o arguido e recorrente subordinou, acerca da matéria de facto, de que o Tribunal de Segunda Instância, poderia e deveria ter conhecido, visto que o arguido deu cumprimento ao disposto pelo artigo 412°, n° 3, alínea b), do Código de Processo Penal e o conhecimento de tal matéria e a sua modificabilidade, não lhe está vedada;
37ª. Não se tendo pronunciado, igualmente o aresto sob censura sobre o valor e utilizabilidade do meio de prova que constitui folhas 239 a 242, e a que se referem folhas 26 a 138, e levados às conclusões do recorrente.
38ª. O mesmo sucedendo quanto às questões a que se reportavam as suas conclusões 2ª. e 3ª; 4º., 5º. 6º. e 7ª, 11ª. 12ª e 13ª e conclusões 15ª e 17º.
39ª. Tais omissões do acórdão, por não apreciar, nem se pronunciar sobre tais questões dão lugar a nulidade a que se refere o artigo 379°, n° l, alínea c) do Código de Processo Penal, sendo pois legitimo, a este Tribunal, conhecê-las, julgá-las e decidi-las.
40ª. Assim e de todo o exposto, resultam violados os preceitos e normas legais mencionados na motivação e no discorrer das conclusões.
Termina, pedindo o provimento do recurso, com o conhecimento «dos vícios que inquinam a decisão recorrida», a anulação da decisão, «e consequentemente, substituindo-a por outra que determine conforme à razão que ao recorrente assiste».
O magistrado do Ministério público junto do tribunal a quo respondeu á motivação, pronunciando-se pela improcedência do recurso.

4. Neste Supremo Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se refere o artigo 416º do Código de Processo Penal (CPP), considera que nada obsta ao conhecimento do recurso.
Colhidos os vistos, teve lugar a audiência com a produção de alegações, cumprindo apreciar e decidir.

5. As instâncias consideraram provados os seguintes factos:
1. O arguido mantinha com I uma relação amorosa.
2. No dia 2 de Dezembro de 2001, por volta das 05.00 horas, o arguido, o H ("...") e o G ("K"), estes dois últimos, respectivamente, irmão e tio de I Correia, encontravam-se no interior da Discoteca, denominada "LX", sita na Rua ...., n.º...., em Lisboa, no 1º piso deste estabelecimento, onde se encontravam cerca de 200 a 300 pessoas.
3. A certa altura, o arguido retirou o revólver de calibre 9 mm, cujas restantes características não foi possível determinar, devidamente municiado, que consigo transportava.
4. E, empunhando-o, voluntariamente efectuou três disparos, tendo um deles acertado em G, atingindo-o na região púbica, sendo penetrada pelo projéctil, cuja direcção foi de diante para trás, de cima para baixo, saindo pelo escroto.
5. Sofreu o ofendido, G, uma ferida contuso-perfurante, com cerca de 8 mm de diâmetro, na face anterior esquerda da região púbica e uma ferida linear arciforme de convexidade direita, com cerca de 1 cm de comprimento, na rafe escrotal.
6. Estas lesões demandaram-lhe um período de 8 (oito) dias de doença, com igual tempo de incapacidade para o trabalho.
7. Na sequência deste disparo, o ofendido, G, caiu no chão.
8. O arguido efectua um segundo disparo, o qual não atingiu ninguém.
9. Logo após, o arguido, que ainda continuava a empunhar a supra referida arma, efectuou, voluntariamente, um terceiro disparo, vindo o projéctil disparado a atingir N, cliente, que, naquele momento, se encontrava junto ao balcão do bar, do 1º piso, daquela discoteca.
10. O projéctil atingiu N no hemotórax, seguindo o trajecto de cima para baixo, da direita para a esquerda e da frente para trás.
11. Provocando-lhe uma ferida perfuro contundente de bordos lacerados, com orifício de entrada na zona do hemotórax direito e por debaixo da axila ao nível do mamilo - 5ª costela direita.
12. Ficando o projéctil alojado na face lateral esquerda do tórax, no tecido celular subcutâneo a nível da 4ª costela.
13. A passagem da bala causou, entre outras, as lesões, melhor descritas no relatório de autópsia de fls. 224 a 234, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, nomeadamente lesões traumáticas toráxicas, as quais foram causa directa e necessária da morte de N.
14. Logo após, o arguido abandonou o local.
15. O arguido, ao empunhar a arma, que sabia que se encontrava municiada, puxando a culatra da mesma, sem cuidar de accionar a patilha de segurança, ao premir o gatilho e disparar, teve consciência que os disparos que efectuava, atendendo ao local onde se encontravam 200 a 300 pessoas, e à distância, de poucos metros, que se encontrava das pessoas que atingiu, eram susceptíveis de lhes causar a morte.
16. Prefigurou tal possibilidade, aceitando a verificação de tal resultado, caso viesse a acontecer.
17. O que não veio a acontecer quanto ao ofendido, G, porque, quanto a ele, não foram atingidos órgãos vitais.
18. Os projécteis que atingiram mortalmente N e feriram G são de calibre .38 SPECIAL ou .357 MAGUM - equivalente a 9 mm no sistema métrico - foram disparados pela mesma arma, de tipo revólver, de calibre 9 mm, cuja marca não foi possível apurar.
19. O arguido conhecia perfeitamente as características da arma que detinha, devidamente municiada, que utilizou, bem sabendo que não a podia deter.
20. O arguido agiu sempre livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
B. Relativa ao pedido de indemnização civil:
21. Face às lesões físicas sofridas, o ofendido, G, dirigiu-se aos serviços de urgência do Hospital de S. Francisco Xavier, por forma a receber tratamento médico adequado, tendo-lhe sido prestados serviços da especialidade, no valor total de Euros 73,26 (setenta e três Euros e vinte e seis cêntimos), que se encontram titulados pela factura n.º 22004855, junta a fls. 258, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.
C. Relativa às condições pessoais do arguido:
22. O arguido não quis prestar declarações durante toda a audiência de discussão e julgamento.
23. No Proc. Sumário n.º 685/99.9POLSB, do 1º Juízo, 1ª Secção do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, por decisão proferida em 17 de Maio de 1999, transitada em julgado, foi condenado por crime de condução sem habilitação legal, praticado em 15 de Maio de 1999, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de Esc. 200$00.
24. O arguido ausentou-se para parte incerta após a prática dos factos, na sequência do que foi ordenada a emissão de mandados de captura, com eficácia internacional, tendo sido extraditado de França para Portugal, ficando preso à ordem do processo de extradição desde 16 de Junho de 2003 até 19 de Maio de 2004, data da sua entrega às autoridades portuguesas.
D. Da audiência mais resultou provado que:
25. N faleceu aos 19 anos de idade, era estudante de informática e vivia em casa dos pais.
E. Nada mais resultou provado com interesse para a boa decisão da causa (apesar dos esforços [do] Tribunal em fazer comparecer as testemunhas arroladas nos autos - cf. F, arrolada pela acusação e pela defesa, não foi ouvida em audiência, por se encontrar a estudar e a trabalhar em Londres, conforme informação policial de fls. 450, 452, 498 e 499; G, arrolado pela acusação e pela defesa, relativamente a quem foi ordenada a emissão de mandados de detenção, que não foram cumpridos, por se desconhecer o seu actual paradeiro - cf. fls. 500; H, arrolado pela acusação e pela defesa, relativamente a quem foi ordenada a emissão de mandados de detenção, que não foram cumpridos, por o mesmo se encontrar, há dois anos, a residir em Inglaterra - cf. fls. 502/503; I, arrolada pela acusação e pela defesa, relativamente a quem foi ordenada a emissão de mandados de detenção, que não foram cumpridos, por a mesma se encontrar, há dois anos, a residir em Inglaterra - cf. fls. 505/506; J, arrolada pela acusação e pela defesa, relativamente a quem foi ordenada a emissão de mandados de detenção, que não foram cumpridos, por ter sido realojada, desconhecendo-se a sua actual morada - cf. fls. 513; K, arrolado pela acusação e pela defesa, relativamente a quem foi ordenada a emissão de mandados de detenção, que não foram cumpridos por se desconhecer o seu actual paradeiro - cf. fls. 518; L, arrolado pela acusação e pela defesa, relativamente a quem foi ordenada a emissão de mandados de detenção, que não foram cumpridos, por se desconhecer o seu actual paradeiro - cf. fls. 539; M, arrolado pela acusação e pela defesa, relativamente a quem foi ordenada a emissão de mandados de detenção, que não foram cumpridos, por o mesmo não ter sido encontrado - cf. fls. 520), designadamente:
- Que a relação amorosa do arguido com I não fosse do agrado de H ("...") e de G ("K");
- Que no dia 2 de Dezembro de 2001, por volta das 05.00 horas, o arguido, o G e o H tivessem iniciado uma acesa troca de palavras entre si, altura em que o G, já etilizado, desferiu um murro sobre o arguido, que recuou, evitando, assim, ser atingido;
- Que o arguido tivesse apontado o revólver de calibre 9 mm em direcção do peito de G, que se encontrava, imediatamente, à sua frente, e, voluntariamente, efectuado um disparo;
- Que, nesse preciso momento, o H tivesse agarrado o braço do arguido, cuja mão empunhava a arma, forçando-o a baixar;
- Que o arguido tivesse apontado a supra referida arma, então, em direcção de H, que, entretanto, se encontrava em frente e virado para o arguido;
- Que, apontada a arma, o arguido, voluntariamente, tivesse disparado sobre H, que, desde logo, ao ver a arma apontada sobre a sua pessoa, se desviou, acabando por escorregar, no exacto momento do disparo.

6. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da motivação, que devem conter os elementos determinados no artigo 412º, nº 2 do CPP.
As conclusões da motivação do recorrente, embora não respeitem adequadamente as imposições processuais, permitem, não obstante, identificar as questões submetidas à cognição do Supremo Tribunal, e delimitar ainda assim o objecto do recurso (que se referem por ordem de precedência metodológica, que não pela ordem com que são enunciadas nas conclusões).
São as seguintes as questões que as conclusões da motivação permitem identificar:
I- Omissão de pronúncia do acórdão da Relação sobre todas as questões que constituíam o objecto do recurso: não conhecimento do recurso em matéria de facto; inexistência de decisão sobre o «valor e utilizabilidade» do meio de prova constituído pelo relatório de fls. 239 a 242; e as questões a que se «reportavam» as conclusões 2ª, 3ª, 4ª, 5ª, 6ª, 7ª, 11ª, 12ª, 13ª, 15ª e 17ª da motivação de recurso para o tribunal da Relação (conclusões 35ª-39ª).
II- Verificação dos vícios do artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c) do CPP, dado que o acórdão recorrido considerou não provados factos por não terem sido inquiridas em audiência várias testemunhas e porque a prova só poderia ter sido feita com as declarações das testemunhas faltosas (conclusões 8ª a 10ª).
III- Não foram produzidas e examinadas em audiência provas suficientes para a decisão da matéria de facto provada em relação ao crime de homicídio tentado, o que integraria os vícios do artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c) do CPP (conclusões 13ª a 15ª).
IV- No que respeita à prova do crime de homicídio consumado, os factos provados não poderiam resultar das declarações das testemunhas, porque «nenhuma viu quem efectuou os disparos» - o que integraria os vícios do artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c), e violação dos artigos 124º, nº 1, 125º, 127º, 129º, nº 1 e 130º, nºs 1 e 2, alíneas a) e b), e 335º, nº 1 do CPP (conclusões 16ª a 21ª).
V- Não poderia ter sido considerada provada a natureza da arma sem exame pericial, porquanto as testemunhas não possuem quaisquer conhecimentos científicos ou técnicos que as habilitem a classificar nem uma arma nem o respectivo calibre - violação dos artigos 163º, nºs 1 e 2, 355º, nº 1, 124º, 127º e 130º, nº 2, alínea b) do CPP (conclusões 22ª a 27ª).
VI- Perante os factos provados, o recorrente apenas poderia ter sido condenado por crime de homicídio negligente p. no artigo 137º do Código Penal (conclusões 28ª a 32ª).
VII- Aplicação do regime especial para jovens delinquentes previsto no Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro (conclusão 34ª).
VIII- Medida das penas parcelares e da pena única, que o recorrente considera fixadas em violação dos critérios de aplicação da medida das penas (conclusão 33ª).

7. O recorrente alega que o tribunal da Relação não conheceu do recurso em matéria de facto. (1ª Questão).
No caso de impugnação da decisão proferida em matéria de facto, o recorrente deve especificar nas conclusões da motivação os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, e as provas que devem ser renovadas - artigo 412°, n° 3, alíneas a), b) e c) do CPP.
O recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe, todavia, uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida, mas apenas, em plano diverso, uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas em suporte técnico, ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) - artigo 412°. n° 3 alínea b) do CPP ou determinado a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova.
A reapreciação da matéria de facto, se não impõe uma avaliação global, também se não poderá bastar com meras declarações gerais quanto à razoabilidade do decidido na decisão recorrida, requerendo sempre, nos limites traçados pelo objecto do recurso, a reponderação especificada, em juízo autónomo, da força e da compatibilidade probatória entre os factos impugnados e as provas que serviram de suporte à convicção.
Como se vê, porém, dos termos do acórdão recorrido, o tribunal da Relação pronunciou-se sobre a matéria de facto, e analisou especificamente as declarações das testemunhas que, segundo a fundamentação, serviram para formar a convicção do tribunal em matéria da facto, tendo concluído, através da ponderação autonomamente efectuada, que os elementos de prova «não permitiam decisão diversa da recorrida».
Por outro lado, na dimensão probatória em que problema vem suscitado, também o tribunal da Relação avaliou devidamente o relatório de fls. 239 a 242 (exame laboratorial aos projécteis), e considerou que tais elementos, na conjugação com a restante prova produzida, se revelavam suficientes para permitir a decisão sobre os factos - calibre da arma utilizada.
De igual modo, o acórdão recorrido pronunciou-se sobre as restantes questões que constituíram o objecto do recuso, não fazendo qualquer sentido, nem sendo processualmente prestável, a alegação genérica que o recorrente faz na conclusão 38ª da motivação do recurso para o Supremo Tribunal.
Não se verifica, pois, a invocada nulidade do artigo 379º, nº 1, alínea c), do CPP.

8. O recorrente, em síntese, refere a existência no acórdão recorrido dos vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c) do CPP - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova (2ª Questão).
Os vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP não constituem, no entanto, fundamento de recurso para o Supremo Tribunal quando o recorrente os tenha invocado obtido decisão sobre a matéria respeitante no recurso interposto para o tribunal da Relação.
Mas, de qualquer forma, «é oficioso o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410° n° 2 do CPP mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» - é o que resulta do acórdão de fixação de jurisprudência n° 7/95, de 19 de Outubro ("Diário da República", I Série-A, de 28 de Dezembro de 1995).
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº 2, alínea a) do CPP) supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permite integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixem espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena.
A insuficiência significa, por outro lado, que não seja também possível uma decisão diversa da que foi tomada; se não for o caso, os factos podem não ser bastantes para constituir a base da decisão que foi tomada, mas permitir suficientemente uma decisão alternativa, mesmo de non liquet em matéria de facto.
Por fim, a insuficiência da matéria de facto tem de ser objectivamente avaliada perante as várias soluções possíveis e plausíveis dentro do objecto do processo, e não na perspectiva subjectiva decorrente da interpretação pessoal do interessado perante os factos provados e as provas produzidas que permitiram a decisão sobre a matéria de facto.
O "erro notório na apreciação da prova", a que se referia a motivação do recorrente para o tribunal da relação, constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.
A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da "experiência comum".
Na dimensão valorativa das "regras da experiência comum" situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.
Em síntese de definição, estes são os elementos que hão-de conformar a apreciação, em cada caso, sobre a ocorrência do mencionado vício (cfr., v. g., acórdãos deste Supremo Tribunal, no BMJ nºs. 476, pág. 82; 477, pág, 338; 478, pág. 113; 479, pág. 439, 494, pág. 207 e 496, pág. 169).
O vício tem de resultar, como se referiu, do texto da decisão recorrida, «por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», isto é, sem a utilização de elementos externos à decisão (salvo se os factos forem contraditados por documento que faça prova plena), não sendo, por isso, admissível recorrer a declarações ou a quaisquer outros elementos que eventualmente constem do processo ou até da audiência.
Os vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP não podem, por outro lado, ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127º do CPP.
Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função do controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP, a convicção pessoalmente formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos.
Vistos, assim, os elementos essenciais que caracterizam as noções de «insuficiência da matéria de facto» e «erro notório na apreciação da prova», as arguições do recorrente revelam-se inconsequentes.
Desde logo (2ª questão), é do mundo das meras conjecturas hipotéticas, e inteiramente fora da invocação dos vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP, a afirmação de que a decisão considerou não provados alguns factos pela circunstância de não terem sido ouvidas testemunhas que não compareceram na audiência. A suficiência (e, por contraponto, a insuficiência) da matéria de facto afere-se em relação aos factos provados, e não por referência, hipoteticamente negativa, aos factos que no entender do recorrente deveriam ter sido provados, se tivessem sido ouvidas testemunhas que não compareceram, nem foram encontradas.
A questão releva, assim, apenas da apresentação dos meios de prova e não da prova. Mas a comparência de testemunhas na audiência está regulada no artigo 331º, nº 1 do CPP (a falta não pode permitir mais do que um adiamento), e não se vê que exista, nem foi invocada, no tempo próprio, qualquer irregularidade.
No restante, o modo de impugnação do recorrente reverte não a qualquer vício processualmente identificado, mas tão só a divergências pessoais sobre a decisão em matéria de facto, matéria subtraída à cognição do Supremo Tribunal que apenas reexamina matéria de direito (artigo 434º do CPP).

9. No que respeita ao crime de homicídio tentado por que vem condenado (3ª questão), o recorrente invoca a insuficiência da matéria de facto para a decisão.
O recorrente vem condenado por homicídio tentado na pessoa do ofendido G, com base nos factos descritos nos pontos 3, 4, 5, 15, 16, 17 e 20 da decisão sobre a matéria de facto (tal como constam da decisão recorrida).
No essencial, ficou provado que o recorrente efectuou voluntariamente três disparos com uma arma de fogo que empunhava, tendo um dos disparos atingido o ofendido na região púbica, provocando-lhe lesões que determinaram oito dias de doença.
Por outro lado, não se provou (cfr. factos não provados) que o recorrente «tivesse apontado o revólver de calibre 9 mm em direcção do peito de G, que se encontrava, imediatamente, à sua frente, e, voluntariamente, efectuado um disparo», e que «nesse preciso momento, o H tivesse agarrado o braço do [recorrente], cuja mão empunhava a arma, forçando-o a baixar».
Mas, como também se refere nos pontos 15, 16 e 17 da matéria de facto, o recorrente «ao empunhar a arma, que sabia que se encontrava municiada», e «ao premir o gatilho e disparar», «teve consciência que os disparos que efectuava, atendendo ao local onde se encontravam 200 a 300 pessoas, e à distância, de poucos metros, que se encontrava das pessoas que atingiu, eram susceptíveis de lhes causar a morte», «prefigurou tal possibilidade, aceitando a verificação de tal resultado, caso viesse a acontecer», «o que não veio a acontecer quanto ao ofendido G, porque quanto a ele não foram atingidos órgãos vitais».
A matéria de facto revela, assim, que o recorrente se conformou com a possibilidade de o seu comportamento de forte temeridade e elevado risco - disparos de arma de fogo em espaço limitado onde se encontravam 200 a 300 pessoas - poder determinar consequências para a vida (e naturalmente para a integridade física) de alguma ou algumas das pessoas presentes, uma vez que é da experiência das coisas que um tiro de arma de fogo pode matar ou ferir com maior ou menor gravidade.
«Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização», dispõe o artigo 14º, nº 3 do Código Penal, que consagra a teoria da conformação na construção da noção legal do dolo eventual.
No dolo eventual, é essencial que o agente «tome a sério o risco de (possível) lesão do bem jurídico, que entre com ele em contas e que, não obstante, se decida pela realização do facto» (cfr. Jorge de Figueiredo Dias, "Direito Penal, Parte Geral", Tomo I, 2004, pág. 356); o agente está intimamente disposto a arcar com o desvalor das consequências, tomando, no rigor das coisas, uma decisão contra a norma jurídica de comportamento. O dolo eventual abrange «todas as circunstâncias e consequências com que o agente, em vista da autêntica finalidade da sua acção, se conforma ou com a verificação das quais se resigna» (cfr. op. cit., pág 356).
Há no dolo eventual uma decisão contra valores tipicamente protegidos, mas a produção do resultado depende de eventualidades ou condições incertas; o dolo eventual é construído sobre a base de factos de cuja insegurança se é consciente, em perspectiva demasiado fragmentária própria dos chamados «conceitos nervosos») cfr. Claus Roxin, "Derecho Penal, Parte General", Tomo I, "Fundamentos. La Estructura de la Teoria del Delito", Civitas, 1997, pág, 426).
A conformação com um facto que preenche um tipo legal de crime (nos tipos de crime de resultado, conformação com o resultado, que só é resultado se ocorrer, quando ocorrer e como ocorrer) constitui, pois, o núcleo da construção dogmática do dolo eventual.
O resultado é, porém, uma consequência apreensível e compreensível na expressão externa de uma certa linguagem social de comportamentos, e que, sendo apenas (ou se for apenas) possível ou previsível, não tem consistência como realidade fora da sua efectiva ocorrência.
Por isso, se o agente actuou representando como possível o (um) resultado, a que ia associada a conformação com esse mesmo resultado, a mera actuação não tem sustentabilidade dogmática nos quadros do dolo eventual para levar à punibilidade fora da ocorrência efectiva do resultado (ou de um dos resultados possíveis segundo as regras da experiência).
E as construções dogmáticas, com lugar definitório, ou não, na lei são categorias densificadas e referentes inarredáveias das soluções, não manipuláveis conforme as consequências para um certo sentido (subjectivo) de "justiça do caso" (cf. José de Faria Costa, Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de 3 de Julho de 1991, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 132º, nº 3903, pág, 180 e seg., desg. 308-310).
O resultado - se, como, quando e no modo como ocorrer - é que dá consistência relevante, objectiva e objectivável, à conformação do agente.
Na construção do dolo eventual, a aproximação dogmática, pese embora o nominalismo das designações e o lugar sistemático, não vai na direcção imediata das categorias dolo directo ou necessário, mas, nos elementos materiais determinantes, vai mais na direcção da negligência consciente. Sugere-se mesmo já a conveniência da construção de uma nova categoria dogmática (a "temeridade"), que despojada da carga semântica tomasse o lugar do dolo eventual (cf. Jorge de Figueiredo Dias, op. cit., pág. 359).
Entre uma e outra categoria (dolo eventual e negligência consciente) existe um elemento comum - a cognoscibilidade: em ambas o agente representa a realização do facto (o resultado nos crimes de resultado) como possível (cf. José de Faria Costa, loc. cit.). Mas, sendo assim, a conformação ou a não conformação sem resultado releva então já, não da materialidade, mas de uma perspectiva exclusivamente psicologista sobre o resultado.
Daí que, tal como na negligência consciente, não se possa conceber o facto típico sem a existência do resultado cuja possibilidade foi prevista pelo agente.
No dolo eventual o conteúdo da norma só se verifica e desenvolve, pois, perante o caso; a assimilação na motivação da acção ao resultado típico não é evidente, pois há, por definição, a possibilidade de não verificação do resultado (cf., Maria Fernanda Palma, "Dolo eventual e culpa em direito penal", in, Problemas Fundamentais de Direito Penal, Universidade Lusíada, 2002, pág. 53 e 58).
Deste modo, como é decorrente da previsibilidade e da possibilidade de ocorrência, e da conformação do agente com o facto (com as consequências da acção - e o resultado) como pressuposto do dolo eventual, o facto apenas se completa na conjugação entre actuação, previsão e resultado, revelando-se o resultado afinal um elemento determinante para a integração do dolo do tipo no direito penal do facto na construção complexa acção-resultado.
Tendo representado a possibilidade de atingir algumas ou algumas das pessoas presentes, e tendo-se conformado com as consequências (o resultado produzido), porque se não absteve de agir apesar da representação das consequências possíveis, o recorrente agiu, nas descritas circunstâncias, com dolo eventual.
Mas, sendo assim - e independentemente da projecção dogmática que a conjugação entre tentativa e dolo eventual possa assumir na doutrina e na jurisprudência (cf., v. g., acórdãos do Supremo Tribunal de 11/10/2001, proc. 951/01; de 31/3/2004, proc. 4º32/03; e de 12/5/2005, proc. 1439/05) - a questão que a situação específica convoca, numa tal perspectiva, apenas pode, como se salientou, situar o dolo e a conformação que pressupõe no limite do resultado, não apenas possível, mas efectivo, com o qual o agente se conforma, e que os factos, concreta e singularmente, revelem.
Mas, nesta perspectiva, pela natureza das consequências que sobrevieram para o ofendido G, que apenas sofreu lesões determinantes de oito dias de doença sem afectação de qualquer órgão vital, o resultado com que o recorrente se conformou, se não se quedar em lugar meramente psicológico, não pode ir além do resultado efectivo, não podendo, em direito penal do facto, ser outro diverso daquele cuja possibilidade também previu e que efectivamente se verificou.
Em relação ao ofendido G, e no que respeita às consequências que resultaram da actuação do recorrente, este apenas poderá, nos quadros do dolo eventual, ser considerado autor de um crime de ofensas corporais p. e p. no artigo 143º do Código Penal. A não ser assim, alargar-se-iam exponencialmente os pressupostos do dolo eventual, considerando-se, não já o facto concreto, preciso e consequencialmente determinado com que o agente se conforma, mas a indiferença do agente em relação a possíveis, mas contingentes e hipotéticos resultados em registo subjectivo contrário ao direito penal do facto.
Neste aspecto, assiste razão ao recorrente, uma vez que os factos provados são insuficientes para integrar o crime de homicídio tentado.
Mas permitem, no entanto, considerar demonstrado e provado o referido crime de ofensas corporais, cujo procedimento dependia de queixa do ofendido - artigo 143º, nº 2 do Código Penal.

10. Relativamente ao homicídio consumado (4ª questão), o recorrente refere matéria inteiramente estranha à dimensão em que pretende colocar o problema; discorda, com efeito, apenas da decisão sobre a matéria de facto. Todavia, o que releva, neste aspecto, não é a interpretação ou a análise pessoal do recorrente, mas o resultado da avaliação e ponderação sobre as provas produzidas perante o tribunal, avaliadas segundo o princípio da livre convicção.
A administração e valoração das provas cabe, em primeira linha, ao tribunal perante o qual foram produzidas, que apreciará e decidirá sobre a matéria de facto segundo o princípio estabelecido no artigo 127º do Código de Processo Penal: salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente.
A livre convicção não significa, no entanto, e como é óbvio, apreciação segundo as impressões, nem inexistência de pressupostos valorativos, ou a desconsideração do valor de critérios, ainda objectivos ou objectiváveis, determinados pela experiência comum das coisas e da vida, e pelas inferências lógicas do homem comum suposto pela ordem jurídica.
Não se analisando em liberdade não motivada de valoração, a livre convicção constitui antes um modo não estritamente vinculado de valoração da prova e de descoberta da verdade processualmente relevante, isto é, uma conclusão subordinada à lógica e à razão e não limitada por prescrições formais exteriores (cfr., Cavaleiro de Ferreira, "Curso de Processo Penal", II, pág. 27).
O princípio, tal como está inscrito no artigo 127º do CPP, significa, no rigor das coisas, que o valor dos meios de prova não está legalmente pré-estabelecido, devendo o tribunal apreciá-los de acordo com a experiência comum, com o distanciamento, a ponderação e a capacidade crítica, na «liberdade para a objectividade» (cfr. Teresa Beleza, "Revista do Ministério Público", Ano 19º, pág. 40; cfr. sobre a génese do princípio, quadro histórico, fundamentos e conteúdo, António Alberto Medina de Seiça, "O Conhecimento Probatório do Co-arguido", Col. Studia Iuridica, Universidade de Coimbra, nº 42, pág 162-205).
A livre apreciação da prova pressupõe, pois, a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação da convicção, que emerge da intervenção de tais critérios objectivos e racionais.
Apenas a fundamentação racional e lógica, que possa fazer compreender a intervenção e o sentido das regras da experiência, permite formar uma convicção motivada e apreensível, afastando as conclusões que sejam susceptíveis de se revelar como arbitrárias, ou em formulação semântica marcada, meramente impressionistas (cfr. Marques Ferreira, "Jornadas de Direito Processual Penal", ed. CEJ, pág. 226).
Mas, vistas assim as coisas, o recorrente não refere, nem se vê que exista, qualquer elemento ou circunstância que ponha em dúvida a fundamentação das instâncias sobre a matéria de facto, que se revela coerente, lógica e inteiramente permitida pela intervenção das regras da experiência.

11. Do mesmo modo sucede no que se refere à discordância do recorrente quanto à prova das características da arma de fogo utilizada nos disparos (5ª questão).
Com efeito, foi efectuado exame laboratorial aos projécteis disparados, cujo resultado foi tomado em consideração nos seus precisos termos pelas instâncias, no respeito integral pelo princípio estabelecido no artigo 163º, nº 1 do CPP.
As conclusões do exame, que identificam a natureza dos projécteis disparados, permitem, por si, caracterizar a natureza e as características relevantes da arma que os disparou.
A intervenção de prova testemunhal, contrariamente ao que defende o recorrente, não serviu de fundamento à prova sobre a natureza da arma, mas apenas sobre o facto - visível e imediata e sensorialmente apreensível por qualquer pessoa - de ter sido empunhada e utilizada uma arma de fogo. As características relevantes da arma deduziu-as o tribunal, segundo o que é permitido pelo juízo da sua livre convicção, racionalizável e motivável pelas regras da experiência, através dos elementos objectivos (características dos projecteis disparados, próprios de uma arma de 9mm) resultantes do exame pericial.
Não há, assim, violação de qualquer norma ou princípio probatório na fixação pelas instâncias das características relevantes da arma utilizada pelo recorrente.

12. O recorrente defende (6ª questão) que, perante os factos provados, apenas poderia ter sido condenado pelo crime de homicídio com negligência - artigo 137º do Código Penal.
A improcedência de semelhante modo de argumentação é, porém, manifesta.
Basta referir os factos provados e considerar liminarmente a diferenciação dogmática (e nas definições da lei) entre a negligência e o dolo eventual.
Saliente-se que o recorrente foi condenado pelo crime de homicídio voluntário, com dolo eventual (artigo 131º do Código Penal) na pessoa de N, com base nos factos descritos nos pontos 9, 10, 11, 12, 13, 15, 16 e 20 da matéria de facto. Especificamente, o recorrente, empunhando uma arma de fogo, «efectuou voluntariamente um terceiro disparo, vindo o projéctil disparado a atingir N, que [...] se encontrava junto ao balcão do bar, no 1º piso [da] discoteca», e «ao empunhar a arma, que sabia que se encontrava municiada, puxando a culatra da mesma, sem cuidar de accionar a patilha de segurança, ao premir o gatilho e disparar, teve consciência que os disparos que efectuava, atendendo ao local onde se encontravam 200 a 300 pessoas, e à distância, de poucos metros, que se encontrava das pessoas que atingiu, eram susceptíveis de lhes causar a morte», e «prefigurou tal possibilidade, aceitando a verificação de tal resultado, caso viesse a acontecer».
Estes factos integram, como se salientou, os elementos do dolo eventual: o recorrente representou (isto é, «teve consciência») a realização do facto a como consequência possível da conduta, e actuou conformando-se com aquela realização - artigo 14º, nº 3 do Código Penal.
Diversamente, na negligência consciente, o agente, representa como possível a realização do facto que preenche um tipo legal de crime, mas actua sem se conformar com essa realização - artigo 15, alínea a) do Código Penal.
A conformação com a realização do facto, demonstrada no ponto 16 da matéria de facto, afasta, logo neste momento essencial, a negligência como forma «tipicamente cunhada» de aparecimento do crime (cfr, Figueiredo Dias, op. cit., pág. 630 ss, desig. 631).

13. O recorrente entende que deveria ter sido aplicado o Regime Especial para Jovens constante do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro (7ª questão).
O artigo 9º do Código Penal remete para legislação especial o regime penal dos indivíduos maiores de 16 e menores de 21 anos. A imposição de um regime penal próprio para os designados "jovens delinquentes" traduz uma das opções fundamentais de política criminal, ancorada em concepções moldadas por uma racionalidade e intencionalidade de preeminência das finalidades de integração e socialização, e que, por isso, comandam quer a interpretação, quer a aplicação e a avaliação das condições de aplicação das normas pertinentes.
A delinquência juvenil, com efeito, e em particular a delinquência de jovens adultos e de jovens na fase de transição para a idade adulta, é um fenómeno social muito próprio das sociedades modernas, urbanas, industrializadas e economicamente desenvolvidas, obrigando, desde logo o legislador, a procurar respostas exigidas por este problema de indiscutível dimensão social.
O regime pressuposto no artigo 9º do Código Penal consta (ainda hoje) do Decreto-Lei nº 401/82, de 22 de Setembro, e contém uma dupla vertente de opções no domínio sancionatório: evitar, por um lado e tanto quanto possível, a pena de prisão, impondo a atenuação especial sempre que se verifiquem condições prognosticas que prevê (artigo 4º), e por outro, pelo estabelecimento de um quadro específico de medidas ditas de correcção (artigos 5º e 6º).
O regime penal especial aplicável aos jovens entre os 16 e os 21 anos constitui, pois, uma imediata injunção de política criminal que se impõe, por si e nos respectivos fundamentos, à modelação interpretativa dos casos concretos objecto de apreciação e julgamento. Injunção que se mantém actual (e porventura mesmo actualizada), como se pode ver na mais recente manifestação externa de uma intenção legislativa de recomposição do regime vigente (a Proposta de Lei nº 45/VIII, no "Diário da Assembleia da República", II série-A, de 21 de Setembro de 2000).
Nesta intencionalidade de política criminal quanto ao tratamento pelo direito penal do fenómeno social da delinquência juvenil, uma das ideias essenciais é a de evitar, na medida do possível, a aplicação de penas de prisão aos jovens adultos. Na verdade, «comprovada a natureza criminógenea da prisão, sabe-se que os seus malefícios se exponenciam nos jovens adultos, já porque se trata de indivíduos particularmente influenciáveis, já porque a pena de prisão, ao retirar o jovem do meio em que é suposto ir inserir-se progressivamente, produz efeitos dessocializantes devastadores» (cfr. Proposta de Lei nº 45/VIII, no "Diário da Assembleia da República", II série-A, de 21 de Setembro de 2000), constituindo um sério factor de exclusão.
A aplicação do regime penal relativo a jovens entre os 16 e os 21 anos - regime-regra de sancionamento penal aplicável a esta categoria etária - não constitui, pois, uma faculdade do juiz, mas antes um poder-dever vinculado que o juiz deve (tem de) usar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos; a aplicação é, em tais circunstâncias, tanto obrigatória, como oficiosa.
A oficiosidade da aplicação e do conhecimento de todas as questões que lhe pertinem resulta da natureza dos interesses que se visam proteger, na realização de uma irrecusável (pelo julgador) opção fundamental de política criminal, e da própria letra da lei ao usar a expressão "deve" com significado literal de injunção. Para tanto, o juiz não pode deixar de averiguar se existem pressupostos de facto para a atenuação sempre que o indivíduo julgado tenha idade que se integre nos limites da lei (cfr., v. g., os acórdãos do Supremo Tribunal, na "Colectânea de Jurisprudência", STJ, ano V, tomo III, pág. 192 e ano VII, tomo III, pág. 234, referindo vária jurisprudência).
Para decidir sobre a aplicação de regime relativo o jovens, o Tribunal, independentemente do pedido ou da colaboração probatória dos interessados, tem de proceder, autonomamente, às diligências e à recolha de elementos que considere necessários (e que, numa leitura objectiva, possam ser razoavelmente considerados necessários) para avaliar da verificação dos respectivos pressupostos - ou seja, determinar se pode ser formulado um juízo de prognose benigno quanto às expectativas de reinserção de um jovem com 18 anos à data da prática dos factos.
A lei processual prevê, aliás, modos próprios à recolha pelo tribunal de elementos que o habilitem a exercer o poder-dever quanto à aplicação do regime especial para jovens que, por regra, exigirá prova especialmente dirigida à determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar. Nesta perspectiva, os artigos 370º e 371º do Código de Processo Penal contêm disciplina particularmente adequada: o tribunal pode, em qualquer altura do julgamento, solicitar a elaboração de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, ou a respectiva actualização quando já constarem do processo, bem como ordenar a produção da prova suplementar que se revelar necessária, ouvindo, sempre que possível, o perito criminológico, o técnico de reinserção social e quaisquer pessoas que possam depor com relevo sobre a personalidade e as condições de vida do arguido.
O acórdão recorrido pronunciou-se sobre a aplicação do regime penal previsto para os menores de 21 anos, decidindo que este regime não podia ser aplicado, por ser «princípio basilar que regula a atenuação especial» «a diminuição acentuada não só da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena, e consequentemente das exigências de prevenção», sendo, no caso, «desaconselhável, em absoluto, a aplicação de tal regime», atendendo às «circunstâncias» e «ao modo» como os factos foram praticados «bem como à gravidade dos crimes».
Este modo de enfrentar a questão da aplicação do Regime Penal de Jovens não é, contudo, aquele que é suposto e imposto pelas razões de política criminal que constituem o fundamento do regime.
Desde logo, e estando em causa o artigo 4º do referido diploma, a atenuação especial que prevê não reverte para os pressupostos gerais da atenuação especial (artigo 72º do Código Penal), mas apenas para os seus termos; se fosse aplicável, nos pressupostos, o regime geral da atenuação, dispensar-se-iam os termos específicos do regime penal de jovens. A norma do artigo 4º configura, antes, autonomamente, um fundamento de atenuação especial directamente fundado na idade, sendo seu pressuposto o juízo que deve ser formulado sobre a existência de «sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado».
Por outro lado, o juízo sobre a existência de «sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção» reverte, essencialmente, às condições pessoais e de carácter do jovem condenado - condições de vida, familiares, educação, inserção, de prognose sobre o desempenho da personalidade, e não, ou não primeira e directamente, à gravidade das consequências do facto.
Por isso, no caso, o regime penal de jovens poderá ser ou não ser aplicável, mas se não for será, eventualmente, por razões inteiramente diversas das que foram consideradas e consignadas no acórdão recorrido.
É que para formular o juízo sobre as vantagens da atenuação especial (juízo prognóstico positivo ou negativo) são necessários elementos relativos às condições pessoais e de personalidade do recorrente que os factos provados não contemplam, e que será dever do tribunal investigar mesmo oficiosamente.
Nesta medida, e como elemento necessário á determinação da medida da pena, há insuficiência da matéria de facto para a decisão, que integra o vício do artigo 410º, nº 2, alínea a) do CPP.

14. Nestes termos, na procedência parcial do recurso,
i)- absolve-se o recorrente do crime de homicídio tentado na pessoa de G;
ii)- mantém-se no mais a decisão recorrida no respeita à qualificação jurídica dos factos;
iii)- determina-se, nos termos do artigo 426º do CPP, o reenvio do processo no que respeita ao apuramentos dos factos necessários á decisão sobre aplicação do regime penal constante do Decreto-Lei nº 401/82, de 22 de Setembro e sobre a consequente fixação da medida das penas.

Lisboa, 13 de Julho de 2005
Henriques Gaspar,
Políbio Flor,
Soreto de Barros,
Armindo Monteiro.