Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1550/21.0T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: ACEITAÇÃO DA DOAÇÃO
TRADIÇÃO DA COISA
DONATÁRIO
CONTA BANCÁRIA
CARTÃO DE CRÉDITO
TITULARIDADE
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
A tradição de quantias depositadas para efeitos dos artigos 945.º e 947.º do Código Civil não pode fazer-se através da entrega do cartão de débito ao donatário.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


Recorrentes: AA e BB

Recorrido: CC

I. — RELATÓRIO

1. CC propôs a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, contra AA e BB, pedindo:

a) Que seja reconhecida judicialmente a qualidade de único e universal herdeiro do aqui Autor, cabeça de casal da herança aberta por óbito da filha – DD;

b) Que as Rés sejam condenadas solidariamente a restituir à herança a quantia de € 94.055,89 (noventa e quatro mil e cinquenta e cinco euros e oitante e nove cêntimos); acrescido dos juros legais desde a interpelação até efetivo e integral pagamento.

c) Que seja reconhecido que a falecida – DD - era a única e exclusiva beneficiária das quantias depositadas/aplicadas na conta bancária do Banco BPI, S.A., devendo a herança ressarcida da totalidade dos valores ali depositados, tudo com as demais consequências legais;

d) Que as Rés sejam condenadas a restituir à herança o veículo automóvel BMW, modelo Z4, com a matrícula ..-JT-.., que já se encontra registado a favor do aqui Autor, por sucessão hereditária e que por cada dia de atraso na entrega do veículo sejam condenadas ao pagamento da quantia de €75,00 (setenta e cinco euros), a título de sanção pecuniária compulsória;

e) Que as Rés sejam condenadas em custas, custas de parte e procuradoria condigna.

2. As Rés AA e BB contestaram, defendendo-se por impugnação, e deduziram reconvenção.

3. Pediram que lhes fosse reconhecida a titularidade do direito de propriedade sobre o veículo automóvel BMW, modelo Z4, com a matrícula ..-JT-...

4. O Autor CC replicou, pugnando pela improcedência da reconvenção.

5. O Tribunal de 1.ª instância julgou parcialmente procedente a acção e totalmente procedente a reconvenção.

6. O dispositivo da sentença proferida pelo Tribunal de 1.º instância é do seguinte teor:

Por todo o exposto, decide-se:

- Reconhecer o Autor como único e universal herdeiro de sua filha DD;

- Absolver as Rés dos demais pedidos formulados pelo Autor;

- Julgar procedente, por provado o pedido reconvencional, reconhecendo o direito de propriedade da Ré/reconvinte AA sobre o veículo de marca BMW, modelo Z4, com a matrícula ..-JT-..;

- Mais se decide ordenar o cancelamento do registo de propriedade do mencionado veículo a favor do aqui Autor;

Custas pelo Autor.

7. Inconformado, o Autor CC interpôs recurso de apelação.

8. As Rés AA e BB contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.

9. O Tribunal da Relação julgou o recurso parcialmente procedente.

10. O dispositivo do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação é do seguinte teor:

Por tudo o exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente a apelação de CC e, em consequência,

1) revogar parcialmente a sentença recorrida e, na parcial procedência da acção, condenar as rés a restituir à herança aberta por óbito de DD a quantia de € 73 434,16 (setenta e três mil, quatrocentos e trinta e quatro euros e dezasseis cêntimos), correspondente ao saldo credor existente, à data do seu óbito, na conta à ordem n.º ...........00 da Caixa Geral de Depósitos, a que acrescem juros de mora a contar da citação.

2) no mais, confirmar a sentença recorrida.

As custas da acção e do recurso serão suportadas pelo autor/recorrente e pelas rés/recorridas em partes iguais.

11. Inconformadas, as Rés AA e BB interpuseram recurso de revista.

12. Finalizaram a sua alegação com as seguintes conclusões:

1 – A doação dos bens móveis é válida desde que haja a transmissão por entrega de coisa doada ou sempre que a realidade a doar fique na disponibilidade do donatário.

2 – Tendo a doadora afirmado que doava a suas sobrinhas o montante existe na Caixa Geral de Depósitos nº ...........00 e simultaneamente entregue às donatárias o cartão de crédito e respectivos códigos que lhes permitia apossarem-se do saldo lá existente, verifica-se a perfeição da doação.

3 – Na verdade a tradição para o donatário em qualquer momento da coisa móvel doada, ou do seu título representativo, é havida com aceitação – artigo 945º nº 2 do C.C.

4 – No entanto a tradição não tem necessariamente que ser material (entrega da própria coisa ou do titulo que a representa) já que pode haver lugar à chamada tradição ficta, a qual consiste na entrega de documentos ou na prática de actos que passem a pôr a coisa na disponibilidade da donatária.

5 – O facto de se dizer que se doa o saldo bancário existente numa determinada conta e simultaneamente se entregar o respectivo cartão de débito e o seu código só significa necessariamente que a doação se efectuou pois existiu o “animus donandi”, a tradição e a aceitação porque esses objectos foram recebidos.

6 – Decidindo de modo diverso, houve, violação dos artigos 945º e 947º do Código Civil, entre outros.

PELO QUE DEVE O DOUTO ACÓRDÃO DE SE APRESENTA A PRESENTE REVISTA SER SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE CONSIDERE A DOAÇÃO DO SALDO EXISTENTE NA CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS NA CONTA N.º...........00 VÁLIDA E EFICAZ,

COM O QUE SE FARÁ SENHORES JUÍZES CONSELHEIROS, JUSTIÇA

13. O Autor CC contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

14. Finalizou a sua contra-alegação com as seguintes conclusões:

1 – As Rés/Recorrentes apresentaram Recurso de Revista do Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, entendendo as Recorrentes que existiu uma doação verbal dos valores depositados na conta da Caixa Geral de Depósitos e que a mesma é válida – no entanto, e salvo devido respeito, não assiste razão às Recorrentes, não merecendo o Douto Acórdão qualquer censura.

2 – Isto porque, relativamente à doação dos valores depositados nas contas bancárias (duas no BPI e uma na CGD), a atuação de DD foi distinta: ao passo que nas contas existentes no Banco BPI, a par da entrega dos cartões e respetivos códigos, ocorreu a transmutação das contas de singulares para solidárias, passando a Ré BB e a sua prima EE a figurar como contitulares das mesmas,

3 – Já na conta existente na Caixa Geral de Depósitos, a DD não autorizou nem impulsionou a mudança da respetiva titularidade, mantendo-se a conta inalterada desde a sua constituição e mesmo após a doação (isto é, como conta singular, somente em nome de DD), motivo pelo qual, salvo melhor entendimento, não operou a tradição e assim não se perfectibilizou a doação.

4 – Daqui podemos depreender o seguinte: se nas contas existentes no BPI a DD pretendeu, ainda em sua vida, tornar as suas sobrinhas contitulares dos valores aí depositados, o mesmo já não se pode dizer quanto à conta existente na Caixa Geral de Depósitos, relativamente à qual a doação só se tornaria eficaz post mortem (em sua vida, ela continuaria a ser a única titular da conta e a única proprietária do dinheiro nela depositado).

5 – Nas palavras do Douto Acórdão objeto de recurso, na doação em apreço “[não] se verifica uma iniludível correspondência entre o animus donandi da DD e a materialidade consistente na alteração da titularidade das referidas contas bancárias (…)”

6 – Tal como entendeu o Douto Acórdão ora objeto de recurso, a doação verbal dos valores depositados na Caixa Geral de Depósitos não se perfectibilizou, uma vez que não ocorreu a tradição da coisa (pese embora possa existir animus donandi por parte da doadora e aceitação por parte das donatárias, inexistiu a tradição necessária para que a doação verbal fosse eficaz), sendo, por isso, nula – a este propósito, vejamos o Ac. STJ, de 12/06/2012; o Ac. STJ, de 16/06/2016, a contrario; Ac. STJ, de 03/03/2005; Ac. TRP, de 06/10/2005 e de 19/09/2011; entre outros.

7 – Em suma, considerando que se trata de um bem móvel, não ocorrendo tradição da coisa, a doação só poderia ter sido feita por escrito (artigo 947º, nº 2, 2ª parte do Código Civil) – o que não é o caso.

8 – Desta forma, a doação terá de se considerar ineficaz em vida da doadora, produzindo os seus efeitos apenas após a morte da mesma e neste caso teria de cumprir com o formalismo previsto no artigo 946º, nº 2 do Código Civil – o que também não é o caso.

9 – Face ao sobredito, bem andou e se fez justiça o Tribunal da Relação do Porto em julgar ineficaz a doação verbal dos valores depositados na conta da Caixa Geral de Depósitos, nos termos do artigo 946º do Código Civil.

Termos em que e nos demais de Direito, e sobretudo com o Douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se inalterado o Douto Acórdão proferido, fazendo-se, assim, a habitual e acostumada JUSTIÇA!

15. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do Código do Processo Civil), a única questão a decidir, in casu, consiste em determinar se a entrega do cartão de débito às donatárias, com a indicação do código respectivo, deve coordenar-se ao conceito de tradição do saldo da conta bancária associada.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

16. O acórdão recorrido deu como provados os factos seguintes.

1) No dia ... de ... de 2021 faleceu DD, no estado de divorciada, sem descendentes e sem ter outorgado testamento público e ou qualquer outra disposição de última vontade;

2) Sucedeu-lhe como único e universal herdeiro o seu pai, aqui Autor;

3) À data do óbito daquela DD encontrava-se registada a seu favor, na competente conservatória do registo automóvel, um veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-JT-.., de marca BMW, de modelo, Z4;

4) A mesma DD era titular de uma conta à ordem no Banco BPI, SA com o n.º .........01, que à data do falecimento tinha o saldo de € 2.512,96 (dois mil quinhentos e doze euros e noventa e seis cêntimos);

5) A partir de 3 de Dezembro de 2020, passaram a ser contitulares solidários dessa conta a aqui Ré BB e outra sobrinha da dita DD;

6) E era titular de uma outra conta de depósitos no Banco BPI, SA com o n.º ....... . ......15 que, à data do óbito tinha o saldo de € 20.054,79 (vinte mil e cinquenta e quatro euros e setenta e nove cêntimos);

7) A partir de 20 de Dezembro de 2020, passaram a ser contitulares solidários dessa conta a aqui Ré BB e outra sobrinha da dita DD;

8) A dita DD era ainda titular exclusiva de uma conta à ordem na CAIXA GERAL DE DEPOSITOS, S.A. com o n.º ............06, cujo saldo, à data do óbito, era de € 73.434,16 (setenta e três mil quatrocentos e trinta e quatro euros e dezasseis cêntimos);

9) Todos os valores mobiliários constantes das contas bancárias acima referidos foram depositados exclusivamente pela aludida DD e eram unicamente provenientes do seu trabalho/aforro;

10) Após a morte da dita DD foi retirado o montante global de €72.055,89 (setenta e dois mil cinquenta e cinco euros e oitenta e nove cêntimos) da conta bancária na Caixa Geral de Depósitos, S.A.;

11) Após o óbito da mesma DD foram foi retirado das aludidas contas bancárias do BPI, SA a quantia global de €22.000,00 (vinte e dois mil euros), depositados à ordem nesse mesmo banco;

12) O veículo automóvel acima aludido e as respetivas chave encontra-se na posse da primeira Ré;

13) A titularidade deste veículo encontra-se registada na competente conservatória do registo automóvel a favor do aqui Autor;

14) A foi a Ré AA, quem, por conta da Ré BB [e] de EE, [procedeu] à retirada do dinheiro aludida em 10) e 11), através dos cartões de débito e dos códigos bancários que lhe permitiam movimentar tais contas;

15) Após a morte da DD, a Ré AA manteve-se na posse do supra identificado veículo da marca BMW;

16) Porque a identificada DD pretendia fazer testamento, foi marcado a deslocação de uma Senhora Notária à habitação onde a mesma se encontrava;

17) Contudo, veio a falecer dois dias antes da altura em que se encontrava marcada essa deslocação, que não ocorreu anteriormente por motivo da existência da pandemia;

18) Desde o momento e que se apercebeu do agravamento do seu estado de saúde até ao seu decesso mediou um lapso de tempo muito curto;

19) O veículo automóvel aludido em 3) foi doado pela falecida DD à aqui Ré AA a quem entregou o documento único automóvel e as chaves o que esta aceitou;

20) A falecida DD fazia questão que esse carro integrasse o património da Ré, sua irmã, pessoa de quem era muito próxima e com quem passava todos os seus tempos;

21) As quantias identificadas em 10) e 11) foram doadas pela D. DD a suas sobrinhas, a aqui 2ª Ré e a EE, em partes iguais, quando se apercebeu que a doença se agravava;

22) A falecida DD expressamente declarou [doar] essas quantias a essas sobrinhas que as aceitaram, tendo a recebido das mãos de sua tia os cartões de débito relativos a essas contas, bem como os respectivos códigos

23) Entre estas foi combinado que, em vida da Tia, não movimentariam as contas, não obstante terem aceite a doação.

24) E foi ainda acordado que, uma vez que cada conta só dispunha de um cartão de débito, que esse ficaria na posse da aqui 1ª Ré, como aconteceu.

25) Com essas doações, a mencionada DD visava recompensar as sobrinhas, a aqui 2ª Ré e a EE, pois que sempre foram elas que acompanharam a Tia, maxime na fase difícil da doença, de que veio a falecer, que era do foro oncológico.

17. Em contrapartida, o acórdão recorrido deu como não provados os factos seguintes:

a) O Autor desconhecia o património da sua filha;

b) A tomar posse dos bens imóveis da sua falecida filha o Autor deparou-se com estes totalmente desfalcados, deles tendo sido retirados os bens de maior valor, designadamente móveis, electrodomésticos, ouro e prata que pertenciam àquela, bem como os cartões bancários das contas de depósito bancário pela mesma tituladas;

c) O referido veículo automóvel encontrava-se estacionado na fracção autónoma da DD, sita em ... e, em Agosto de 202 (2021?), foi dali retirado pelas Rés uma semanas após o Autor ter tomado posse do dito imóvel;

d) O dito veículo automóvel tinha o valor comercial de €20.000,00;

e) Quando tomou posse da referida fracção autónoma o Autor presenciou que o veículo automóvel acima identificado estava estacionado na garagem da fracção autónoma da falecida DD.

O DIREITO

18. O caso sub judice relaciona-se com os arts. 945.º e 947.º do Código Civil:

Artigo 945.º — Aceitação da doação

1. — A proposta de doação caduca, se não for aceita em vida do doador.

2. — A tradição para o donatário, em qualquer momento, da coisa móvel doada, ou do seu título representativo, é havida como aceitação.

3. — Se a proposta não for aceita no próprio acto ou não se verificar a tradição nos termos do número anterior, a aceitação deve obedecer à forma prescrita no artigo 947.º e ser declarada ao doador, sob pena de não produzir os seus efeitos.

Artigo 947.º — Forma da doação

1. — Sem prejuízo do disposto em lei especial, a doação de coisas imóveis só é válida se for celebrada por escritura pública ou por documento particular autenticado.

2. — A doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada de tradição da coisa doada; não sendo acompanhada de tradição da coisa, só pode ser feita por escrito.

19. A única questão suscitada pelas Rés, agora Recorrentes, relaciona-se com a conta à ordem na caixa Geral de Depósitos, com o saldo de 73.434,16 euros 1.

20. As instâncias concordaram em atribuir ao comportamento de DD o significado de uma proposta de doação 2 e ao comportamento de BB e de EE o significado de uma aceitação da proposta de doação, no sentido do artigo 945.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil 3.

21. Excluída a questão da interpretação dos comportamentos das partes, a única questão suscitada pelas Rés, agora Recorrentes, relaciona-se com a validade ou invalidade formal do contrato de doação.

22. O Tribunal de 1.ª instância considerou que o facto de DD ter entregado a BB e de EE o cartão de débito relativo à conta á ordem na Caixa Geral de Depósitos era suficiente para que se concluísse que houve tradição da quantia doada.

23. Fundamentou a sua interpretação das disposições legais relevantes nos seguintes termos:

“… entendemos ter existido, da parte da doadora, […] a entrega (simbólica) […] do próprio dinheiro existente nas […] contas bancária, neste caso, traduzida na entrega à Ré BB e à mencionada EE dos únicos cartões de que dispunha e que permitiam às donatárias a imediata movimentação, em seu benefício, daqueles depósitos.

Existe, portanto, também quanto estes ao dinheiro depositado, uma tradição na medida em que o animus donandi é acompanhado duma entrega – o cartão que permitia movimentar tais depósitos - ou seja, um meio suscetível de tornar efetivo o apossamento, pelas donatárias, do dinheiro depositado”.

24. O Tribunal da Relação considerou que o facto de DD ter entregado o cartão de débito relativo à conta à ordem na Caixa Geral de Depósitos não era suficiente — seria necessária a alteração da titularidade da conta à ordem, com a “transmutação de contas singulares [em] contas colectivas solidárias”.

25. O conceito de tradição da coisa doada implícito no artigo 947.º do Código Civil exige que a coisa doada seja colocada à disposição do donatário 4.

26. Ora a entrega de um cartão de débito não é um meio idóneo para que a coisa seja colocada à disposição do donatário.

27. O cartão de débito é pessoal e intransmissível 5, pelo que o titular do cartão não pode entregá-lo a terceiros — e, reciprocamente, o portador do cartão, desde que não seja o seu titular, não pode movimentar a conta bancária associada.

28. Em concreto, a circunstância de a Ré AA ter retirado o dinheiro “por conta da Ré BB [e] de EE” 6 não é, só por si, suficiente para que conclua que lhe era lícito retirar o dinheiro da conta da Caixa Geral de Depósitos através de um cartão de débito de que não era titular.

29. Entre a alteração da titularidade da conta bancária e a entrega de um cartão de débito a terceiro, sem alteração da titularidade da conta bancária associada, há uma diferença fundamental: enquanto que a alteração da titularidade da conta bancária faz com que a quantia doada fique na disponibilidade do donatário 7, a entrega do cartão de débito a terceiro, sem alteração da titularidade da conta bancária associada não o faz.

30. Em consequência, a entrega do cartão de débito às donatárias BB e EE não é uma tradição da coisa doada, no sentido do art. 947.º do Código Civil.

III. — DECISÃO

Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelas Recorrentes AA e BB.

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2024

Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)

José Maria Ferreira Lopes

Nuno Ataíde das Neves

_____


1. Cf. facto dado como provado sob o n.º 8.

2. Cf. facto dado como provado sob o n.º 21.

3. Cf. facto dado como provado sob o n.º 22.

4. Sobre o conceito de tradição, vide, por todos, na doutrina, António Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil, vol. XI — Contratos em especial. — 1.ª parte: Compra e venda. Doação. Sociedade, Locação, Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 405-408, e Nuno Manuel Pinto Oliveira, Contrato de compra e venda, vol. II — Sujeitos e objecto. Efeitos essenciais da compra e venda, Gestlegal, 2023, págs. 299 ss., e, na jurisprudência, os acórdãos do STJ de 7 de Janeiro de 2003 — processo n.º 03A1615 —, de 10 de Maio de 2004 — processo n.º 04B3711 —, de 6 de Outubro de 2005 — processo n.º 04B2753 —, de 12 de Junho de 2012 — processo n.º 1874/09.5TBPVZ.P1.S1 —, de 25 de Junho de 2015 — processo n.º 26118/10.3T2SNT.L1.S1 — , de 16 de Junho de 2016 — processo n.º 865/13.6TBDL.L1.S1 — ou de 2 de Novembro de 2023 — processo n.º 304/17.3T8PVZ.P1.S1.

5. Cf. designadamente a definição da Associação Portuguesa de Bancos: “O cartão de débito não é um cartão pessoal e intransmissível associado a uma conta de pagamento que permite realizar vários tipos de operações, como levantamentos de numerário, pagamentos de bens e serviços, consultas de conta, entre outras. A utilização do cartão de débito implica a dedução imediata, do respetivo valor, diretamente na conta associada” — WWW. < https://www.apb.pt/cliente_bancario/servicos_bancarios/pagamentos/ >.

6. Cf. facto dado como provado sob o n.º 14.↩︎

7. Cf. acórdãos do STJ de 10 de Maio de 2004 — processo n.º 04B3711 —, de 6 de Outubro de 2005 — processo n.º 04B2753 — ou de 16 de Junho de 2016 — processo n.º 865/13.6TBDL.L1.S1.