Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B510
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: OLIVEIRA BARROS
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
FALTA DE PAGAMENTO
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Nº do Documento: SJ200604060005107
Data do Acordão: 04/06/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : A propositura de acção fundada em sinistro cuja existência se tinha negado a fim de obter a reposição em vigor de contrato de seguro dado por resolvido em consequência da falta de pagamento do competente prémio, bem assim se tendo então assumido total responsabilidade por eventual sinistro que se desconhecesse, constitui violação do princípio da confiança e excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé ao exercício do direito de indemnização invocado nessa acção, configurando abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, prevenido no art.334º C.Civ.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça :


Em 6/7/2000, AA intentou contra a Empresa-A, acção declarativa com processo comum na forma ordinária que foi distribuída ao 1º Juízo Cível da comarca de Matosinhos.

Alegou, em suma : - ter celebrado com essa seguradora contrato de seguro do ramo multiriscos/ habitação destinado a garantir a cobertura dos danos causados no edifício e recheio da sua casa ; - ter em 14/8/97 ocorrido incêndio nessa habitação em virtude do qual se verificaram danos no interior - paredes e tectos - da mesma, cuja reparação ascendeu a 3.128.523$00, e em bens nela existentes, a que acresce o montante de 250.000$00 despendido pelo A. para, juntamente com a família, suprir as necessidades imediatas de alimentação, vestuário e outras, motivadas pela impossibilidade de utilização da moradia e seus utensílios durante, pelo menos, 15 dias : o que tudo a demandada, alegando a nulidade da apólice invocada desde 6/7/97, se recusa a indemnizar.

Aditou não ter recebido carta de anulação do seguro, nem comunicação de que o prémio se encontrava em pagamento ; ter procedido a esse pagamento em 18/8/97 ; e só depois, quando se apercebeu de que tinha ocorrido um sinistro, ter a Ré vindo a invocar a anulação da apólice.

Pediu a condenação da seguradora demandada a pagar-lhe a quantia de 4.050.377$00, acrescida dos juros legais desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Contestando, a Ré excepcionou ter o contrato de seguro aludido sido resolvido por falta de pagamento tempestivo dos competentes prémios. Concretamente, nestes termos :

O A. não procedeu ao pagamento do prémio relativo à anuidade de 8/5/97 a 8/5/98 até 60 dias após aquela primeira data, e o contrato foi resolvido a partir de 6/7/97, cessando os seus efeitos a partir dessa data.

Cinco dias depois da ocorrência do incêndio, por carta datada de 19/8/97, o A. contactou os escritórios da Ré, solicitando a reposição em vigor da apólice anulada a partir do meio dia do dia seguinte, reconhecendo que o contrato se encontrava resolvido, informando que não tinha havido entretanto qualquer sinistro, e assumindo a responsabilidade por qualquer sinistro de que não tivesse conhecimento.

Desconhecendo a existência de qualquer sinistro, a Ré aceitou repor em vigor a apólice.

Só o desconhecimento pela Ré da ocorrência do incêndio aludido determinou a aceitação do pedido apresentado pelo A., sendo que a Ré não aceitaria esse pedido se soubesse da existência do incêndio.

O A. tinha plena consciência disso mesmo, o que o fez enganar a Ré, prestando declarações falsas e viciando a vontade de contratar desta.

Logo que os serviços da Ré constataram a situação da ocorrência do incêndio, pretenderam devolver ao A. a quantia dele recebida referente ao prémio, tendo procedido à emissão do recibo de estorno respectivo, que, com conhecimento ao A., foi enviado ao mediador do contrato.

Deduzida ainda defesa por impugnação, nos termos que o art.490º, nº3º, CPC consente, no tocante às circunstâncias em que ocorreu o incêndio e à dimensão dos danos reclamados, a contestante requereu, por fim, a condenação do A., por litigar de má fé, em multa e em indemnização a seu favor.

Houve réplica, em que se opôs a falta de comunicação, por parte da Ré, da anulação ( rectius, resolução ) do contrato de seguro em causa.

Realizada audiência preliminar com frustrada tentativa de conciliação das partes, foi proferido saneador tabelar, com seguida indicação dos factos assentes e organização da base instrutória.

Após julgamento, veio a ser proferida, em 12/5/2004, sentença que julgou a acção parcialmente procedente e provada e condenou a Ré a pagar ao A a quantia de € 11.954,98, correspondente a 2. 396.760$00, com juros legais desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Por acórdão de 7/11/2005, a Relação do Porto julgou procedente o recurso que aquela seguradora interpôs dessa sentença, que revogou, absolvendo a Ré do pedido.

É dessa decisão que o A. pede, agora, revista.

Em fecho da alegação respectiva deduz 31 conclusões, o que de imediato revela desrespeito claro da síntese imposta pelo art.690º, nº1º, CPC.

Notado que o art.713º, nº2º, ora aplicável ex vi do art.726º, CPC tão só exige a indicação das questões a resolver, constata-se, afinal, opor-se, apenas, à decisão impugnada : a) - no que respeita à resolução automática do contrato de seguro excepcionada, o incumprimento do dever de informação previsto no art.6º do DL 446/85, de 25/10, consubstanciado na falta do aviso prévio imposto pelo art.4º do DL 105/94, de 23/4; e - b) - contrariedade do disposto no art.11º, nº2º, do DL 446/ 85, de 25/10, no entendimento de que, no documento a fls.29, o recorrente assumiu expressa e inequivocamente a resolução do contrato, uma vez que o motivo - falta de pagamento - alegado pela Ré não constituía (sem mais ) fundamento suficiente para tanto.

Houve contra-alegação, e, corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Convenientemente ordenada (1) , a matéria de facto fixada pelas instâncias é como segue ( indicando-se entre parênteses as correspondentes alíneas e quesitos ) :

( a ) - A Ré é uma companhia de seguros que explora diversos ramos de seguros ( A ).

( b ) - No exercício dessa actividade, celebrou com o A. um contrato de seguro multiriscos/habitação, titulado pela apólice nº 646450/O9/MULT.HABITAÇÃO ( B ).

( c ) - Nos termos desse contrato de seguro, a Ré garantiu a cobertura dos danos causados no edifício e recheio da casa do A., sita na Rua Rui Gameiro, 345, em Custóias ( C ).

( d ) - Nos termos desse contrato, o prémio relativo à anuidade de 8/5/97 a 8/5/98 devia ter sido pago até 60 dias após a primeira data ( 5º).

( e ) - Em 14/8/97 ocorreu um incêndio na habitação referida, em consequência do qual foi danificado o interior das paredes e tectos dessa moradia, designadamente da cozinha, ascendendo a 2. 396.760$00 os prejuízos globais sofridos pelo A. ( D e 1º).

( f ) - O A. pagou, em 18/8/97, prémio de seguro que a Ré aceitou e recebeu ( E e 4º ).

( g ) - Em 18/8/97, quando o A. pagou o prémio acima mencionado, o agente da Ré em Gondomar já tinha conhecimento do incêndio referido, informação que lhe tinha sido transmitida pelo A. (18º).

( h ) - Tendo contactado os escritórios da Ré, o A. reconheceu que o contrato se encontrava resolvido, informou que não houvera, no período que mediou entre a suspensão do seguro e aquela data qualquer sinistro, assumiu a responsabilidade por qualquer sinistro de que não tivesse conhecimento, e solicitou a reposição em vigor da apólice anulada a partir do meio-dia do dia seguinte (20/8), ( tudo ) conforme documento (fax ) com data de 19/8/97 a fls.29 dos autos ( quesitos 8º a 11º ).

- Como registado pela Relação, esse documento é, concretamente, do seguinte teor : " Estando ciente de que o contrato em referência se encontra resolvido ao abrigo do Dec. Lei nº 105/94, e tendo já sido liquidado o valor dos prémios em dívida, solicito a sua reposição em vigor a partir do meio dia de amanhã. Mais se informa que não ocorreu qualquer sinistro entre a data de suspensão e o momento actual, tomando inteira responsabilidade por qualquer sinistro do qual nesta data não se tenha conhecimento ".

( i ) - A assinatura constante do original desse documento é do punho do A. ( 19º).

( j ) - O desconhecimento pela Ré da ocorrência do incêndio aludido determinou a aceitação do pedido apresentado pelo A. ( 12º e 13º).

( l ) - A Ré não aceitaria esse pedido no caso de saber da existência do incêndio ( 14º).

( m ) - O A. tinha plena consciência desses factos ( 15º).

( n ) - Poucos dias após a ocorrência do acidente, deslocaram-se a casa do A. o agente da Ré de Gondomar, acompanhado de um funcionário da Ré, e analisaram a casa toda, tiraram notas, e fotografaram os danos causados ( 21º).

( o ) - Assim que constataram a situação da ocorrência do incêndio, os serviços da Ré pretenderam devolver ao A. a quantia relativa ao prémio dele recebida, tendo procedido à emissão do respectivo recibo de estorno, que foi enviado ao mediador do contrato, tendo de tal sido dado conhecimento ao A. ( 16º e 17º).

( p ) - Posteriormente ao pagamento referido, a Ré remeteu ao A. a carta ( com data de 5/11/97 ) a fls.11 ( F ).

( q ) - Apesar de interpelada pelo A., a Ré não procedeu a qualquer pagamento resultante do incêndio aludido ( G ).

Os factos a ter agora em consideração são apenas os que se acaba de deixar referidos.

Como decorre do art.664º CPC, judex secundum allegata et probata partium judicare debet.

Daí que só mesmo " por mera curiosidade " ( sic ) se tenha mencionado no acórdão recorrido o depoimento de testemunha referido na motivação da decisão sobre a matéria de facto, mediador de seguros, que afirmou estar o A. ciente de que decorridos 60 dias sobre a data do vencimento do prémio, o seguro seria anulado, " o que já não era a primeira vez que acontecia com este contrato de seguro ( ... ) ".

Nos termos dos arts.1º, nº1º, e 5º, nº 1º, do DL 105/94, de 23/4, vigente ao tempo dos factos dos autos, na falta de pagamento pontual do prémio ou fracção na data indicada no competente aviso, o tomador de seguro constituía-se em mora e, decorridos 60 dias após aquela data, o contrato ficava automaticamente resolvido, sem possibilidade de ser reposto em vigor.

A anuidade em curso à data do sinistro em causa era a relativa ao período de 8/5/97 a 8/5/98.

Devendo o competente prémio de seguro ter sido satisfeito até 60 dias após aquela primeira data, só veio a ser pago em 18/8/97.

De harmonia com o art.5º, nº 1º, do DL 105/94 de 23/4, na data do sinistro em causa - 14/8/97 - e na do pagamento do prémio referido - 18/8/97 -, o contrato de seguro ajuizado estaria resolvido, o que obstava a que pudesse exigir-se à Ré a obrigação, dele emergente, de indemnizar o A. pelos prejuízos resultantes do sinistro, visto que o contrato que a tanto a obrigava se encontraria extinto em conformidade com o determinado naquele preceito.

Mencionando que, em tema de falta de pagamento do prémio, o contrato de seguro aludido estipula que " À falta de pagamento dos prémios aplicam-se as disposições legais em vigor ", a sentença apelada principia por considerar tratar-se de dispositivo com conteúdo não inteligível pelos destinatários - mas qualquer um entenderá que quer dizer que quem não pagar os prémios se sujeita às consequências que a lei estabelecer para esse caso - e que se trata de cláusula contratual geral - como de facto, mas aprovada pela entidade para tanto competente, que é o Instituto de Seguros de Portugal -, e que implica um especial dever informação do destinatário, conforme art.6º do DL 446/85, de 25/10 ( o que poderia eventualmente lembrar outro art.6º, desta feita do C.Civ.).

Prossegue, em todo o caso, dizendo o legislador " ciente dessa realidade " e referindo o disposto nos arts.4º, nºs 1º e 3º, do DL 105/94, de 23/4 : o que quererá, por certo, significar - e nada a tal haverá que obtemperar - que é a própria lei que se encarrega de zelar por que o falado dever de informação seja efectivamente cumprido.

As considerações da alegação do recorrente no âmbito da disciplina das cláusulas contratuais gerais não carecem de mais desenvolvida consideração, bastando notar que o art.11º, nº2º, do DL 446 /85, de 25/10, se refere à interpretação dessa espécie de cláusulas e não às declarações constantes de documentos, a que se aplica o disposto no art.236º C.Civ.

Em termos úteis, a sentença apelada ateve-se, por fim, ao determinado no art.4º do DL 105/94, de 23/4, que, nosso o destaque, dispunha assim :

"1 - A seguradora encontra-se obrigada, até 10 dias antes da data em que o prémio ou fracção é devido nos termos do artigo anterior, a avisar, por escrito, o tomador do seguro, indicando essa data e o valor a pagar.

2 - Do aviso a que se refere o número anterior devem obrigatoriamente constar as consequências da falta de pagamento do prémio, nomeadamente a data a partir da qual o contrato é automaticamente resolvido nos termos do artigo seguinte.

3 - Em caso de dúvida, recai sobre a seguradora o ónus da prova relativa ao aviso referido nos números anteriores. ".

A seguradora deve, pois, avisar, por escrito, o tomador do seguro para pagar, só então se começando a contar o prazo para a resolução automática do respectivo contrato - arts. 4º, nºs 1º e 3º, e 5°, nº1º do DL. citado. Discorreu-se então desta maneira :

A resolução automática do contrato de seguro por falta de pagamento do respectivo prémio pressupõe e exige que a seguradora avise, antes do seu vencimento, o tomador do seguro para pagar, indicando a data e valor devidos.

A Ré não alegou, nem provou, que procedeu a esse aviso.

Daí que o prazo de 60 dias previsto no falado art.5° do DL 105/94 ainda não tenha decorrido, ou, sequer, principiado a correr .

Com efeito, começando a correr a partir da data constante do aviso e não provado ter este sido efectivamente enviado, aquele prazo não se iniciou, estando o A. ainda em tempo de pagar o prémio.

Deste jeito, julgou-se na 1ª instância que o contrato de seguro em questão permanecia em vigor na data do incêndio, só podendo a Ré queixar-se da sua incúria, por não ter procedido ao envio do aviso para pagamento, ou, a tê-lo feito, ao omitir a competente alegação e prova, devendo, em consequência, sofrer o gravame do não cumprimento desse ónus ( art.342° C.Civ.), que vem a ser o reconhecimento do direito invocado pelo A.

Não tendo a seguradora demandada alegado e, consequentemente, provado que tinha procedido à comunicação exigida pelo art.4º, nº1º, do DL 105/94, de 23/4, como lhe era imposto pelo nº 3º do mesmo, apesar de o prémio não ter sido pago no prazo legal, o contrato de seguro accionado continuava, segundo se entendeu, em vigor à data da ocorrência do sinistro, subsistindo, por conseguinte, a obrigação da Ré de indemnizar os prejuízos dele resultantes.

Quanto ao documento de que consta o alegado reconhecimento pelo A. de que o contrato se encontrava resolvido, julgou-se, com invocação do disposto no art.436° C.Civ., que não contem uma declaração de vontade expressa e inequívoca de resolver o contrato, sendo, aliás, anormal que o A. pretendesse resolver um contrato que só lhe poderia trazer benefícios.

O recurso de apelação interposto pela Ré seguradora assentou, precisamente, no teor do documento a fls.29, assinado pelo A., em que este, reconhecendo assim que o contrato de seguro em causa se encontrava resolvido à data do pagamento referido, solicitou a sua reposição em vigor.

Pretendido que o A. o assinou irreflectidamente, o quesito 20º, de que tal constava, recebeu resposta negativa. Considerou, então, a Relação :

Admitido poder a declaração do A. de aceitação da resolução do contrato, da inexistência de qualquer sinistro no período em questão, e de assunção de responsabilidade por qualquer sinistro ocorrido sem que fosse conhecido, ter sido efectuada com reserva mental, tendo sido emitida contra a vontade real e com o intuito de enganar a declaratária, sempre, no entanto, essa declaração seria válida, visto não demonstrar-se que a reserva fosse conhecida da mesma - cfr. art.244º C.Civ.

Noutro prisma, desconhecendo a Ré seguradora a ocorrência de qualquer incêndio no prédio objecto do contrato de seguro e bem assim provado que só aceitou repor em vigor a apólice com base na predita declaração do A. e nesse desconhecimento, o que nunca aceitaria se soubesse da existência de tal incêndio, e que o A. tinha plena consciência disso mesmo, está-se perante situação de erro determinante de anulabilidade do negócio de renovação do contrato, visto que a vontade real se formou em consequência de erro do declarante - cfr. art.251º C.Civ. Tal, porém, só interessa à renovação do contrato : seria esse o negócio anulável.

Em vista, ainda, da referida declaração do A., e salientando estar-se no domínio das relações disponíveis, concluiu-se no acórdão recorrido ter ocorrido por esse modo resolução válida do contrato de seguro accionado, dando, por isso, por " ultrapassada " a necessidade de a Ré demonstrar que tinha procedido à comunicação exigida pelo art.4º do DL 105/94, de 23/4.

Tanto mais assim é, prossegue, que, nos termos do nº 3º desse normativo só em caso de dúvida recai sobre a seguradora o ónus da prova dessa comunicação, e que essa dúvida, no caso, não subsiste em vista do reconhecimento implícito desse facto que a aceitação da resolução do contrato e o pedido da sua renovação constitui.

Considerada ultrapassada, com a aceitação da resolução por parte do A., a questão da comunicação escrita que o art. 4º do DL 105/94, de 23/4, exige, julgou-se insubsistente o ónus da prova dessa comunicação por parte da seguradora Ré, com o incumprimento do qual se tinha justificado na 1ª instância o afastamento da resolução ( dita anulação ) do contrato de seguro ajuizado e a inoperância do pagamento do prémio efectuado em 19/8/97, em termos da manutenção, sem qualquer quebra, desse contrato, por forma a obrigar aquela seguradora a indemnizar os prejuízos advindos do sinistro ocorrido no período que mediou entre o 60º dia após o vencimento do prémio e a predita data em que aquele pagamento se verificou.

Em ultima ratio, entendeu-se no acórdão em recurso que, mesmo a existir o direito invocado, a conduta do A. constitui, ainda assim, violação manifesta do princípio da confiança, excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, e configura abuso de direito prevenido no art.334º C. Civ., na modalidade do venire contra factum proprium, posto que, em contrário do por ele próprio expressamente declarado, se dispôs a obter indemnização com fundamento em facto cuja existência tinha negado ( bem assim tendo assumido total responsabilidade por eventual ressarcimento por sinistro que desconhecesse ). Pois bem :

A importância conferida à obrigatoriedade de aviso para pagamento dos prémios de seguro de que conste a consequência da falta de pagamento oportuno é tal que se lhe refere expressamente o preâmbulo ou relatório do DL 142/2000, de 15/7, em que se contem agora o regime jurídico do pagamento dos prémios dos contratos de seguro (2). A própria forma - escrita - exigida revela, aliás, essa importância. Isto adiantado :

Como resulta claro do já deixado exposto, a questão a resolver centra-se exclusivamente na relevância do documento ( fax ) de 19/8/97 a fls.29, referido em ( h ), supra.

Bem que não referida no acórdão recorrido, é em relação à renúncia invocada na apelação - e não, como considerado na sentença apelada, com referência à declaração de resolução que o art. 436° C.Civ. prevê - que se pode porventura obtemperar que o falado documento não contém uma declaração de vontade expressa e inequívoca nesse sentido : nele, na verdade, não só não há menção alguma do sinistro ocorrido 5 dias antes, como se nega mesmo, expressamente, ter ocorrido qualquer sinistro de que o segurado tivesse conhecimento. ( A essa falsidade, porém, e como já observado, só podem atribuir-se consequências em relação à renovação do contrato - em relação à qual a ora recorrida lembrou o disposto no art.8º do DL 105/94 ).

É, no entanto, insofismável ter-se provado que o ora recorrente assinou esse documento, e que nem erro, aliás, alegou a esse respeito : antes, e apenas, a falta de consciência da declaração aventada nos items 11º e 12º-a) da réplica, que, conforme resposta negativa ao quesito 20º, não se provou.

Resulta óbvia a intenção de defesa do consumidor que inspirou a determinação da obrigatoriedade do aviso escrito para pagamento de que conste a consequência da sua falta. E não foi, de facto, alegada, sequer, a satisfação do ónus decorrente do disposto no art.4º do DL 105/94, de 23/4, analisado na sentença apelada.

Disse-se já, por outro lado, que a acentuada má fé manifestada no falado documento ( fax ) a fls. 29 só afectará de modo directo a proposta de renovação do contrato de seguro nele adiantada.

Menos bem se verá configurada nesse documento a afinal excepcionada renúncia a pretensão relativa a sinistro anterior - cuja ocorrência nele, precisamente, se negou : não a há, pelo menos, expressa e inequívoca.

Também não parece que tenha efectivamente ocorrido por esse modo resolução válida do contrato de seguro accionado, como considerado no acórdão recorrido - isto é, que possa ter-se por operada a extinção do contrato por declaração unilateral do segurado, que, nesse particular, se limitou a dar-se por ciente de que o contrato em questão se encontrava ( já ) " resolvido ao abrigo do Dec. Lei nº 105/94 ".

Em rigor, assim efectivamente reconhecida a existência dessa resolução por banda da ora recorrida e ao abrigo do DL 105/94 de 23/4, nada, inclusivamente, se mostra expressamente adiantado em termos de reconhecimento da validade da mesma - todavia necessariamente implícito, é certo, nos termos do fax aludido.

Tanto que expressamente solicitada a reposição em vigor do contrato a partir do dia seguinte, incontornável vem a ser, ainda, o reconhecimento que se faz nesse documento da eficácia da resolução operada.

É, por fim, exacto que o nº3º do art.4º do DL 105/94 só em caso de dúvida faz recair sobre a seguradora o ónus da prova da comunicação que lhe é imposta pelo seu nº1º.

Dando-se o segurado por ciente - ou seja, sabedor - de que o contrato se encontrava resolvido ao abrigo do DL 105/94, poderia, inclusivamente, ver-se nisso o reconhecimento implícito de que tinha sido oportunamente avisado - por escrito, como nele exigido - para pagar e das consequências da falta de pagamento oportuno, ou seja, reconhecimento implícito da validade ( licitude ) dessa resolução, em termos de esclarecida e conscientemente a aceitar.

Nada, com efeito, revela que a aceitação da resolução do contrato excepcionada e o pedido da sua renovação tenham sido feitos sem efectiva consciência do modo por que essa resolução opera nos termos da lei.

Houve, como assim, aceitação - implícita, ao menos - da resolução que o documento aludido refere e que a propositura desta acção contraria : o que tudo o acórdão recorrido subsume, em último termo, à proibição de condutas contraditórias ínsita no art.334º C.Civ.

Sem dúvida censurável, do ponto de vista ético, a conduta do ora recorrente, o abuso do direito que a lei previne supõe situação ofensiva do comum sentimento de justiça tal que a não consinta a consciência social.

Considerou-se - crê-se que bem - que a actuação do ora recorrente integra a previsão daquele preceito.

Assim, conquanto não esquecida a finalidade de protecção do consumidor subjacente ao disposto no art.4º do DL 105/94, de 23/4, e mesmo quando não entendido que o recorrente efectivamente se demitiu do direito de fazer valer a pretensão de indemnização deduzida nestes autos, sobra mostrar-se prejudicado o exercício do direito que nesta acção se quis fazer valer pela proibição do abuso do direito instituída no art.334º C.Civ. Daí a decisão que segue :

Nega-se a revista.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 6 de Abril de 2006
Oliveira Barros - relator
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
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(1) V. a propósito Antunes Varela, RLJ 129º/51.

(2) Revogando-o ( seu art.14º), substituiu o constante do DL 105/94, de 23/4, aplicável neste caso, como já visto, por força do disposto no art.12º, nº1º, C.Civ. Foi alterado pelo DL 122/2005, de 29/7.