Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1784/21.8T8LOU-A.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
SENTENÇA
DECISÃO CONDENATÓRIA
IMPUGNAÇÃO PAULIANA
LEGITIMIDADE ATIVA
EXECUÇÃO
TERCEIRO
IMOVEL
AQUISIÇÃO
REGISTO DA AÇÃO
MÁ FÉ
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
REQUERIMENTO EXECUTIVO
Data do Acordão: 04/10/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I- Numa execução para pagamento de quantia certa, em que o exequente erigiu como título executivo a sentença condenatória proferida na acção de impugnação pauliana, é parte ilegítima para a execução o terceiro subadquirente dos bens que nela não teve qualquer intervenção, nem houve lugar ao registo da acção.

II - A legitimidade para a execução do terceiro subadquirente (sociedade comercial) que não foi demandado na acção pauliana, não pode ser aferida com base na alegação feita no requerimento executivo sobre a má-fé e a desconsideração da personalidade jurídica.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - RELATÓRIO



1.1.- O exequente - AA - instaurou (23/6/2021) acção executiva para pagamento de quantia certa, com forma de processo comum, contra os executados

BB

I..., S.A.

Construções C..., Unipessoal, Lda. ( actualmente C..., Lda.)

Com base na sentença de 13/7/2020, proferida na acção de impugnação pauliana com o n.º 2623/19.5..., do juízo central cível de ...-J..., pediu pagamento do seu crédito de € 100.00,00.

Alegou, em resumo:

Por sentença datada de 13/7/2020, foi declarada a ineficácia do acto de alienação pelo ali 1º Réu BB, mediante entrada em espécie no capital social da 2º ré, a aqui executada I..., S.A., de:

- metade indivisa de um prédio urbano, parcela de terreno destinada a construção, sito no Lugar ..., Travessa ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na CRP ... sob o nº ...90, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 1160, e,

- de metade indivisa de um prédio urbano, parcela de terreno destinada a construção, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na CRP ... sob o nº ...67, na qual, pela Ap. 361 de 2018/06/14, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 1930, autorizando-se a execução respetiva na medida em que tal execução se mostre necessária.

Da respetiva sentença, foram interpostos recursos de apelação, principal e subordinado, admitidos com efeito meramente devolutivo, os quais ainda se encontram em apreciação.

No entanto, a mesma torna-se absolutamente indispensável, porquanto se verificou que a ali ré I..., S.A., demandada na qualidade terceira adquirente dos bens objeto da ação pauliana, aqui executada, não obstante conhecedora do teor e alcance da supra identificada sentença, procedeu à permuta dos supra identificados bens (cujos anteriores atos de alienação foram declarados ineficazes) para a aqui 2º executada ConstruçõesC..., Unipessoal, Lda.cuja quota única pertence a CC (5º Réu demandado) na ação pauliana de que a presente execução é apensa e filho de BB) e cuja gerência pertence, justamente, ao devedor, ali réu BB.

A suprarreferida transmissão operou-se em 15/1/2021, por contrato de permuta (Doc. 4 - certidão que ora se junta), encontrando-se registada a constituição da supra identificada Construções C..., Unipessoal, Lda. pela AP. 17/20201015, ou seja, todos actos celebrados após o proferimento da sentença que serve de título executivo à presente execução, entre partes intervenientes na referida ação e, portanto, em manifesta de má-fé e detrimento do aqui exequente.

A sentença proferida na acção pauliana é suscetível de constituir título executivo contra o(s) terceiro(s) adquirentes, mais a mais, sendo esses terceiros adquirentes entidades coletivas constituídas com o propósito de impedir a satisfação dos direitos do exequente/credor pelos próprios sujeitos individuais que foram partes visadas na ação pauliana.

Como consequência da procedência da impugnação pauliana a venda ou sucessivas vendas são ineficazes relativamente ao credor impugnante que a pode penhorar, ainda que ela se encontre inscrita em nome de outro titular, como se a venda ou vendas não se tivessem efetuadas

1.2. - A Executada C..., Lda. deduziu embargos de executado em que, para além de impugnar parcialmente a factualidade alegada, suscitou a sua ilegitimidade, a impropriedade do meio processual de execução e o abuso de direito.

Em contestação, o Exequente respondeu às excepções alegadas e sustentou a improcedência dos embargos.

1.3. – No saneador – sentença decidiu-se julgar procedentes os embargos, declarar parte ilegítima a embargante e absolver da instância executiva.

1.4. – O Exequente/embargado recorreu de apelação e a Relação, por acórdão de 19/5/2022, decidiu:

“Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, considerando-se a executada “Construções C..., Unipessoal, Lda.” (entretanto denominada “C..., Lda.”) parte legítima”

1.5. – Inconformada, a Executada/ embargante “C..., Lda.”recorreu de revista com as seguintes conclusões:

1.A Executada interpõe o presente recurso por não se conformar com a decisão plasmada no douto acórdão, na medida em que foi entendimento do Tribunal a quo de que esta seria parte legítima no processo nº 1784/21.8T8LOU-A, fundamentando tal decisão na figura da desconsideração da personalidade coletiva.

2.Salvo o devido respeito, a legitimidade processual não se afere com aspectos absolutamente atinentes à razão (ou falta dela) da questão de mérito, mas antes uma questão de forma.

3.A figura da desconsideração da personalidade jurídica societária visa a responsabilização do património daquele que, instrumentalizando a sociedade, retirou proveitos próprios atuando em desconformidade com as finalidades para as quais a sociedade foi criada.

4.A desconsideração da personalidade jurídica é um instituto de natureza subsidiária, excepcional e casuística, pelo que, nessa medida, só poderá ser aplicada mediante as circunstâncias de cada caso, quando não exista outro fundamento legal que invalide a conduta desrespeitosa e sempre apoiada em princípios gerais positivamente consagrados como sejam o abuso de direito, a má-fé e o intuito de prejudicar terceiros.

5.No entanto, não basta a existência de uma situação de confusão de esferas patrimoniais entre o sócio e a sociedade. Mostra-se indispensável para tal efeito a demonstração do prejuízo e, concomitantemente, do nexo de causalidade entre este e a conduta desrespeitosa.

6.Subsumindo tais preceitos aos autos em apreço mais não pode do que concluir-se pela inaplicabilidade deste instituto à Executada.

7.A sentença da acção de impugnação pauliana que serviu como título executivo em nada inibe a venda dos aludidos terrenos, nem tão pouco inibe a construção de habitações individuais, ou em propriedade horizontal ou em prédios destinados à indústria ou comércio.

8.No caso de esses terrenos terem sido transformados em prédios urbanos, por iniciativa da sua dona, o eventual direito do Exequente continuava garantido.

9.Com a permuta desses terrenos as coisas não se alteraram, podendo o adquirente desses terrenos neles construir livremente, enquanto o Exequente podia executar os direitos recebidos pela permuta.

10.A permuta em causa não pôs o eventual direito do Exequente em perigo, apesar dos prédios transmitidos à Executada já não existirem por terem sido transformados, bem pelo contrário, pois que a construção das moradias na sequência da aludida permuta permitiu a valorização dos terrenos

11.Torna-se assim evidente que a permuta não pôs em risco o direito do Exequente executar com sucesso o valor de metade daqueles bens, nomeadamente os € 45.147,47.

12.Por conseguinte nunca estarão preenchidos os requisitos para que possa operar a figura da desconsideração da personalidade jurídica.

13.Na verdade, em momento algum se verificou existir um comportamento culposo ou ilícito por parte dos sócios da Executada. Se a permuta não fosse concretizada, quando transitasse em julgado a sentença que reconheceu a ineficácia da compra e venda de metade indivisa dos prédios urbanos, o Exequente tinha o direito a executar essa mesma metade, no valor de € 45.147,47.

14. No âmbito da permuta não existiu qualquer má-fé ou abuso de direito, tendo a Executada se limitado a exercer um direito que lhe assiste, tendo todo o negócio de permuta e respetivas obras de construção dos edifícios sido realizados na sequência daquilo que é objeto social da Executada, sem recurso a esquemas ardilosos ou fraudulentos.

15. Em momento algum se poderá afirmar que em detrimento da permuta em causa existiram prejuízos para o Exequente e, consequentemente proveitos próprios para a Executada, antes pelo contrário, pois como já referido supra, a satisfação do direito do Exequente nunca esteve em causa, enquanto, ao intentar a execução contra Executada, o Exequente não visou outra coisa que não a paralisação dos empreendimentos em curso.

16.Por seu turno, e como aludido supra, não só não existiu qualquer prejuízo para o Exequente com a permuta dos terrenos, como o seu direito a executar as metades indivisas dos mesmos saiu reforçado, na medida em que tais terrenos, que inicialmente estavam destinados a construção, tornaram-se exequíveis, valorizados, com a construção das moradias.

17.Por conseguinte, não se vislumbra nos presentes autos o nexo de causalidade entre a permuta efetuada e um eventual prejuízo do Exequente que é necessário para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.

18. Pelo que nunca deverá ser considerado a Executada como parte legítima na execução movida contra si, razão pela qual deverá o Tribunal ad quem reverter a decisão do douto acórdão e decidir pela ilegitimidade da Executada.

1.6.O Exequente/embargado contra-alegou, dizendo em síntese:

1.A legitimidade passiva da recorrente/embargante nos presentes autos afere-se em função do pedido e da causa de pedir apresentadas no requerimento executivo

2. Configurando os embargos do executado uma acção declarativa enxertada na execução, na qual se afere, por apenso e a título incidental, da procedência ou improcedência do pedido de extinção da execução, podem e devem ser apreciadas pelo Tribunal todas as questões substantivas ou adjetivas suscitadas pelo exequente que se atenham nos limites e fins da ação executiva, em particular, tudo o que respeite à acção de impugnação pauliana cuja sentença se deu à execução e se encontra junta aos autos e, bem assim, tudo o que ressalte do efeito do caso julgado.

3. A recorrente/embargante/executada C..., Lda., não obstante não ter sido parte na ação de impugnação pauliana, é, todavia, a sociedade comercial sub-adquirente (do bem do primeiro adquirente), constituída exclusivamente por sócios que foram réus na ação de impugnação, cuja má-fé se alegou e fundamentou, bem como, a atuação daqueles com abuso de direito, em detrimento dos direitos do credor.

4. A embargante confessou na petição de embargos (cfr. art. 24º a 36º) ser conhecedora da existência e dos termos da ação de impugnação pauliana movida contra J..., S.A., CC e DD, cuja sentença se deu como título bastante à execução de que estes embargos são apensos, mais confessando que todos os ali demandados se limitaram (posteriormente, no decurso da ação, ao constituir sucessivas sociedades das quais eram sócios e/ou acionistas e que vieram a adquirir, sucessivamente, os bens) a exercer “o direito e o dever de lutar pela vida, direito que o exequente tem procurado e continua a procurar impedir de ser exercido”.

5. Conforme se alegou e resultou confessado (nos art. 24º a 35º da petição de embargos), a embargante encontra-se de má fé porquanto os seus sócios foram demandados individualmente na ação pauliana e, sendo titulares da vontade conformadora da sociedade (não existindo outros sócios para além deles, a saber, BB, CC e DD), pode-se afirmar que a C..., Lda., também desse facto detinha direto conhecimento.

6. Ou seja, é judicialmente presumível a má-fé da aqui embargante (ou seja, o conhecimento assumido por ela própria de que os bens que estava a adquirir respondiam pela dívida do credor exequente e a anterior transmissão já havia sido declarada ineficaz em ação na qual os seus sócios CC e DD haviam sido, inclusive, demandados individualmente),

7. Porquanto, como é evidenciado pelo acórdão recorrido, “não se trata, sequer, de pessoas distintas, porquanto, a recorrente/embargante não integra pessoa distinta dos seus sócios DD e CC que foram réus na ação de impugnação pauliana”, ou seja, citando Cura Mariano, “o sujeito do conhecimento é o mesmo e as situações de amnésia são raras”.

8. Actuando a embargante, em manifesto abuso de direito (cfr. art. 334º C.C.), com o sentido de não responder, perante o credor/embargado, pelo valor dos bens que recebeu (não obstante conhecedora da declaração anterior da ineficácia da transmissão), com o intuito de, em conluio com os demais, os libertar ou não os fazer responder pela dívida originária de BB (sócio gerente da embargante e pai dos restantes sócios CC e DD), numa manobra de claro prejuízo para o credor/embargado, encontram- se reunidos os pressupostos para a desconsideração absoluta da personalidade coletiva da aqui recorrente/embargante.

9.A situação em apreço nestes autos é o exemplo mais paradigmático ou representativo dos casos em que a personalidade coletiva é usada de modo ilícito ou abusivo para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, em fraude à lei, que cabe ao direito acautelar – o designado atentado a terceiros.

10.Tal facto é consubstanciador da desconsideração da personalidade coletiva da sociedade e, como tal, por todos os motivos acima expostos, deve a embargante ser considerada parte legítima na execução, mantendo-se o acórdão recorrido na íntegra.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. – Delimitação do objecto do recurso

A questão submetida a revista consiste em saber se a executada Construções C..., Unipessoal, Lda. (actualmente C..., Lda. é parte legítima para a execução de sentença proferida na acção pauliana, na qual não teve intervenção.

2.2. – Os factos provados

«A) O exequente deduziu execução para pagamento de quantia certa contra BB,I..., S.A. e Construções C..., Unipessoal, Lda., alegando o que consta do requerimento executivo de 23.06.2021, e peticionando o pagamento do seu crédito de € 100.00,00 pela venda dos bens envolvidos no negócio que foi declarado ineficaz em relação ao exequente pela sentença de impugnação pauliana apresentada à execução.

B) Para o efeito, o exequente apresentou, como título executivo, a sentença proferida, em 13.07.2020, na ação de impugnação pauliana com o n.º 2623/19.5T8PNF, do juízo central cível de ...-J..., a qual se mostra junta na execução, com o teor que aqui se dá por reproduzido, onde o ora exequente figura como autor e BB, I..., S.A., EE, DD, CC e FF, figuram como 1º, 2º, 3º, 4º 5º e 6º réus, respetivamente.

C)Da sentença exequenda consta, além, do mais, o seguinte dispositivo:

Nos termos expostos, julga-se a acção procedente, por provada, pelo que se determina a ineficácia do acto de alienação pelo 1º Réu, mediante entrada em espécie no capital social da 2ª Ré, de metade indivisa de um prédio urbano, parcela de terreno destinada a construção, sito no Lugar ..., Travessa ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...90, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 1160 e de metade indivisa de um prédio urbano, parcela de terreno destinada a construção, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número...sessenta e sete, na qual, pela AP. 361 de 2018/06/14, inscrito na respetiva matriz sob o artigo 1930, autorizando-se a execução respectiva na medida em que tal execução se mostre necessária para assegurar ao Autor o pagamento de 100.000 EUR, conforme decisão proferida nos autos melhor identificados em A).”.

D)A ação de impugnação pauliana não foi registada na descrição predial dos imóveis referidos no dispositivo da sentença exequenda.

E) Da descrição predial do imóvel descrito na CRPredial ... sob o n.º ...90 constam as seguintes inscrições relevantes:

a.Aquisição, por permuta, a favor de Construções C..., Unipessoal, Lda.”,pela ap. 4622, de 21.01.2021, tendo I..., S.A. como sujeito passivo;

b.Penhora de um meio na execução apensa, pela ap. 2799, de 06.08.2021.

F) Da descrição predial do imóvel descrito na CRPredial ... sob o n.º ...67constam as seguintes inscrições relevantes:

a.Aquisição, por permuta, a favor de Construções C..., Unipessoal, Lda.”, pela ap. 4622, de 21.01.2021, tendo I..., S.A. como sujeito passivo;

b.Penhora de um meio na execução apensa, pela ap. 2799, de 06.08.2021.

G) I..., S.A., na qualidade de primeira outorgante, e Construções C..., Unipessoal, Lda., como segunda outorgante, outorgaram a escritura pública de permuta junta como documento 4 do requerimento executivo, datada de 15.01.2021, com o teor que aqui se dá por reproduzido.»

2.3. – A legitimidade passiva da executada/embargante (actualmente C..., Lda.

Nos termos do art.10 CPC toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam os fins e os limites da acção executiva.

O título executivo, enquanto documento certificativo da obrigação exequenda, assume uma função delimitadora (por ele se determinam o fim e os limites, objectivos e subjectivos), probatória e constitutiva, estando sujeito ao princípio da tipicidade, e entre os títulos a lei põe à cabeça as “sentenças condenatórias” (art.703 nº1 a) CPC), concebidas como sentenças que de forma expressa ou implícita impõem a alguém (devedor) uma obrigação.

O exequente erigiu como título executivo a sentença condenatória de 13/7/2020, proferida na acção de impugnação pauliana com o nº 2623/19.5T8PNF, do Juízo Cível de ..., e da qual a aqui executada/embargante (subadquirente dos bens) não teve qualquer intervenção.

Na medida em que a recorrente se apresenta como terceira subadquirente dos bens e não tendo intervenção na acção pauliana, problematiza-se a sua legitimidade para a execução tendo em conta a alegação no requerimento executivo da desconsideração da personalidade judiciária.

Na 1ª instância decidiu-se pela absolvição da instância com base na ilegitimidade.

Na 2ª instância considerou-se parte legítima, com base na desconsideração a personalidade jurídica. Muito embora entenda que a sentença de impugnação pauliana não constitui título executivo relativamente a um terceiro que adquiriu o bem do primeiro adquirente, por não ter intervenção na acção pauliana, argumentou-se que sendo esse subadquirente uma sociedade comercial, constituída exclusivamente por sócios que foram réus na acção de impugnação, e tendo sido alegados os factos pertinentes no requerimento executivo, bem como na resposta aos embargos de executado, à desconsideração da personalidade coletiva, é de considerar essa sociedade/terceiro parte legítima para a execução.

A acção de impugnação pauliana, como uma das garantias gerais das obrigações previstas no Código Civil (arts.610 e segs CC) consagra uma verdadeira causa de ineficácia do acto em relação ao impugnante, assumindo natureza pessoal ou obrigacional. Com efeito, o credor impugnante, logo que prove a existência dos pressupostos da pauliana, pode executar a garantia patrimonial do seu crédito sem anular o acto de alienação que a prejudicou. Procedendo a acção, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do interesse, a praticar actos de conservação autorizados por lei e o direito de executar os bens no património do obrigado à restituição (art.616 CC).

Na acção executiva vigora o princípio geral da legitimidade formal, postulado no art.53 do CPC ( “ A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor”), significando que a legitimidade se afere pela comparação entre as partes e o título e, portanto, é em função da literalidade do título que se apura quem tem interesse directo, activo ou passivo, para a execução (critério formal ), diversamente do que sucede na acção declarativa.

O art.54 nº1 do CPC, prevendo um desvio à regra geral, diz que “Tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda; no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão”. É consensual o entendimento de que o termo “sucessão” é usado em sentido amplo, de molde a incluir a transmissão tanto mortis causa, como inter vivos.

Verifica-se que a sociedade Construções C..., Unipessoal, Lda. (actualmente C..., Lda. não consta da sentença, como sujeito passivo, e também não sucedeu, na acepção definida, nas obrigações dos demandados na acção pauliana.

Comprova-se, porém, ser terceiro adquirente por permuta, outorgada em 15/1/2021, com a executada I..., S.A. dos imóveis referidos na sentença da impugnação pauliana, aquisição levada a cabo depois da sentença e antes da instauração da execução.

Relativamente ao terceiro adquirente do bem, por acto oneroso, a sentença condenatória da impugnação pauliana serve de título executivo se a respectiva aquisição for objecto da acção pauliana (arts. 616 nº1, 818, CC e 735 nº2 CPC).

Esta exigência é justificada, desde logo, pelo art.616 nº1 do CC, visto que havendo transmissões posteriores do bem, e sendo o acto oneroso, o impugnante terá sempre de provar a má-fé do terceiro adquirente, por imposição dos arts.612 nº1 e 613 nº1 CC, conforme jurisprudência uniforme (cf., por todos, Ac STJ de 29/5/2014 (proc nº 999/99), em www dgsi.pt). Só não será assim, isto é, só não se exige a comprovação da má fé do adquirente, se a acção de impugnação tiver sido registada ( cujo registo é agora obrigatório, por força do art.3 nº1 a) do CRP, na redacção introduzida pelo DL nº 116/2008 de 4/7) previamente ao registo do acto de subaquisição, caso em que o registo da impugnação implica a oponibilidade da decisão de procedência da pauliana (art.263 nº3 CPC).Na verdade, “o direito do credor impugnante executar o bem transmitido como meio de obter a satisfação do seu credito é incompatível com o poder absoluto inerente ao direito de propriedade de quem o adquiriu, pelo que a lei processual estende a força de caso julgado da acção em que procedeu a impugnação pauliana, porque presume que este teve conhecimento dessa acção antes da prática do acto de aquisição daquele direito de propriedade” ( João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, pág. 225 ).

Na situação dos autos nem a executada/embargante figura na acção pauliana, nem houve lugar ao registo da acção. Por isso, a sentença condenatória não serve aqui de título executivo contra a embargante, sendo parte ilegítima.

Não é parte legitima para a execução com fundamento no art.53 CPC.

Não tem aplicação o art.54 nº1, por não haver sucessão na obrigação, nem o art.54 nº2, por não se tratar de dívida provida de garantia real, com o inerente direito de sequela.

Também a sentença não faz aqui caso julgado relativamente à embargante, porque é um terceiro juridicamente interessado, e não houve lugar sequer ao registo da acção pauliana.

O acórdão recorrido, convocando a natureza dos embargos de executado, afirma que neles se pode conhecer da impugnação pauliana ( “Desde que o Tribunal se mova nos limites e fins da ação executiva, qualquer questão substantiva ou adjetiva pode ser suscitada, e conhecida, nos embargos de executado, designadamente a impugnação pauliana, a qual também pode ser suscitada por via de exceção”) para concluir que a C..., Lda., empresa que não foi parte na acção de impugnação pauliana, pode ser abrangida pela força de caso julgado da sentença aí proferida, considerando a desconsideração da personalidade jurídica, dizendo que “ Em nossa opinião a “C..., Lda. não integra pessoa distinta dos seus sócios DD e CC, que foram Réus na ação de impugnação pauliana, tudo se passando como se estes Réus, pessoas singulares, “tivessem tirado um casaco e vestido outro” da mesma forma que a anterior “Construções C..., Unipessoal, Lda.” se não distinguia da pessoa do seu sócio único CC”.

Justifica o conhecimento com o seguinte tópico:

“Subjacentes ao instituto do abuso de direito e ao do “levantamento/desconsideração da personalidade coletiva” estão princípios e valores de ordem pública, o que os torna de conhecimento oficioso.

Na contestação aos embargos, a Exequente faz apelo expresso ao abuso de direito e, apesar de não se referir expressamente ao levantamento da pessoa coletiva, nenhum obstáculo existe que o Tribunal o considere, já que a “indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” é da competência do juiz (art.º 5º nº 3 do CPC). Os demais factos constantes dos autos indiciam que os Réus, pessoas singulares, recorreram à constituição de “pessoa coletiva” com o propósito de prejudicar fraudulentamente o aqui Exequente”.

Sobre a natureza e função da oposição por embargos de executado, tem vindo a qualificar-se como uma acção declarativa, estruturalmente autónoma, mas instrumental e funcionalmente ligada à acção executiva, com vista ao exercício do direito de defesa face a essa pretensão, não comportando, por isso, a reconvenção. Na verdade, destinando-se a oposição a “um acertamento negativo da situação substantiva de sentido contrário ao acertamento positivo consubstanciado no título”, cujo escopo primordial é o de “obstar ao prosseguimento da acção executiva mediante a eliminação por via indirecta da eficácia do título executivo enquanto tal”, no plano formal a petição dos embargos de executado tem a estrutura e conteúdo de uma petição da acção declarativa, mas no plano material a oposição consubstancia uma reacção à pretensão executiva, sendo substancialmente uma contestação.

Quando o título executivo é uma sentença, a lei postula um sistema restritivo de oposição, limitando-a às situações taxativamente previstas no art.729 CPC, sendo que a embargante invocou como fundamento a sua ilegitimidade passiva (alínea c)).

Importa observar que – como já se afirmou, por exemplo, no Ac STJ de 12/11/2009 ( proc nº 3910/05), em www dgsi - “ A função primacial dos embargos de executado – tal como a da oposição à execução, que lhes sucedeu - não é a de dirimir um litígio entre as partes, em aspectos que possam extravasar o andamento e tramitação da acção executiva, mas apenas, como decorre do seu carácter incidental, resolver uma questão, substantiva ou adjectiva, na estrita medida em que esta se projecta no destino do processo de que os embargos são dependência: na verdade, embora os embargos constituam um procedimento estruturalmente autónomo, estão funcionalmente ligados ao processo executivo, visando a pronúncia que neles é feita, quer sobre o mérito, quer sobre matéria processual, servir exclusivamente as finalidades e os fins da execução”.

Na situação dos autos verifica-se que o exequente introduziu no requerimento executivo uma causa (de natureza declarativa) que extravasa a própria execução, ao alegar não só a má fé da sociedade embargante como o facto de haver sido constituída pelos executados, partes da acção pauliana, com o propósito de impedir a satisfação do direito do credor exequente, e que o acórdão recorrido integrou no instituto da desconsideração da personalidade jurídica.

Coloca-se, por isso, a questão de saber se, para sustentar a legitimidade da executada/embargante, o exequente pode deduzir no requerimento executivo uma causa declarativa sobre a desconsideração da personalidade jurídica.

Os incidentes de natureza declarativa, enxertados na execução, estão expressamente previstos na lei, e deles não consta um incidente prévio para se apurar a desconsideração da personalidade jurídica, como sucede no direito brasileiro, cujo art.790 VII CPC/2015 estatui estarem sujeitos à execução “os bens do responsável, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica”, em que o incidente será instaurado a pedido da parte ( art.133 ), permitido também na execução ( art.134 ), implicando a suspensão do processo executivo.

O litígio sobre a má fé na aquisição, posterior à sentença, do bem objecto da pauliana por um terceiro subadquirente, ou sobre os pressupostos da desconsideração não pode ser discutido e dirimido na execução, porque se a todo o direito “corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo” (art.2 nº1 CPC) o meio adequado é o da acção declarativa (art.10 CPC), segundo o princípio da legalidade das formas. Ora, tanto a acção pauliana, como a acção sobre a desconsideração da personalidade jurídica não visam a realização coactiva de uma obrigação, mas declarar previamente a existência do direito.

E este argumento decorre ainda do art.818 CC que permitindo o direito de execução sobre bens de terceiro exige que o credor “haja procedentemente impugnado”, e essa impugnação só pode ser feita através da respectiva acção ( declarativa) pauliana.

Por outro lado, não pode aqui aplicar-se analogicamente o regime da habilitação legitimidade no caso de sucessão do direito ou obrigação (art.54 nº1 CPC) em que “no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão”, pois o que está em causa é a (in)eficácia da transmissão do bem e a posição do terceiro demandado, logo são distintas as razões justificativas, o que afasta a integração analógica.

E nem mesmo as razões de celeridade e economia processual alegadas pelo exequente na contestação dos embargos (art.22) possibilitam outra interpretação, sendo certo que o registo da acção pauliana (que não foi feito) e consequente oponibilidade do caso julgado da sentença legitimava a demanda executiva contra a embargante.

Neste contexto, a executada/embargante é parte ilegítima, o que implica a absolvição da instância, como decidiu a 1ª instância, revogando-se o acórdão recorrido.

2.4. - Síntese conclusiva

1.Numa execução para pagamento de quantia certa, em que o exequente erigiu como título executivo a sentença condenatória proferida na acção de impugnação pauliana, é parte ilegítima para a execução o terceiro subadquirente dos bens que nela não teve qualquer intervenção, nem houve lugar ao registo da acção.

2.A legitimidade para a execução do terceiro subadquirente (sociedade comercial) que não foi demandado na acção pauliana, não pode ser aferida com base na alegação feita no requerimento executivo sobre a má-fé e a desconsideração da personalidade jurídica.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar procedente a revista e revogar o acórdão recorrido, mantendo-se a decisão da 1ª instância que absolveu a embargante da instância.

2)


Condenar o exequente/embargado nas custas, sem prejuízo do apoio judiciário.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 10 de Abril de 2024.

Jorge Arcanjo (Relator)

Manuel Aguiar Pereira

Jorge Leal