Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A4351
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RIBEIRO DE ALMEIDA
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
Nº do Documento: SJ200402030043516
Data do Acordão: 02/03/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 966/03
Data: 06/11/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I- Em caso de venda já efectuada, havendo mais que um titular, qualquer deles pode propor a acção sem ter que recorrer ao processo especial a que se refere o artigo 1465 do Código de Processo Civil.
II- O processual aí referido só é necessário se o preferente não quiser correr o risco de vir a ser preterido por um concorrente.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


A) A, B e mulher, intentaram acção para preferência, contra C, D, e E pedindo:
a) Serem os RR condenados a reconhecerem o direito de arrendamento, há mais de um ano, AA sobre, respectivamente, os 1.° e 3° andares do prédio identificado no artigo 1° da p.i. supra e na escritura junta como documento n.º 10;

b) Serem os RR condenados a reconhecerem o direito dos AA a, em conjunto, preferirem na compra da totalidade desse prédio, identificado no artigo 1 ° da p.i. e na escritura unta sob o documento nº 10, nos termos e condições desta constantes, adquirindo assim o direito de propriedade (em regime de compropriedade) e posse desse mesmo prédio e,

c) Ser reconhecido aos ora Autores o direito de, nos termos referidos na alínea b) do pedido, haverem para si, em compropriedade, a totalidade do prédio vendido,

d) Serem os RR condenados a absterem-se de praticar quaisquer actos que ofendam ou colidam com os direitos dos AA.;

e) Ser ordenado o cancelamento do registo predial que, a favor dos 3°s RR., incide sobre o prédio ajuizado.

Alegaram, que são arrendatários, respectivamente do 1° e 3° andares do prédio urbano sito na Rua Conselheiro Lobato, nº ..., freguesia de S. Lázaro, concelho de Braga, inscrito na matriz urbana da referida freguesia sob o art. 1299 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n.º 41.760; no dia 7 de Fevereiro de 2000, o procurador da 3ª Ré, F, através de carta registada com aviso de recepção, comunicou-lhes, singelamente e sem quaisquer indicações ou pormenores, que o prédio havia sido vendido à sua representada, declarando também nessa carta que a renda deverá ser paga, nas condições constantes no contrato de arrendamento, no 2° andar do prédio sito na Rua Conselheiro Lobato, nº ..., contra a entrega do respectivo recibo de quitação conforme documento que junta; na sequência disso, diligenciou a 1ª A., nos Cartórios Notariais mais próximos da área da situação ou localização do imóvel em apreço, no sentido de obter a certidão da alegada escritura de compra e venda, tendo acabado de obtê-la em 12 de Setembro de 2000, no Primeiro Cartório Notarial de Braga, querem exercer em conjunto o direito de preferência sobre a totalidade do prédio, através desta acção.
A fls. 40 encontra-se o depósito da quantia de 32.508.252$00, correspondente ao preço, despesas de escritura e de registo predial do imóvel referido.

B) Os RR. E e marido contestaram, impugnando parte dos factos alegados pelos autores e excepcionando a caducidade do direito por eles invocado bem como o exercício abusivo deste mesmo direito.
E, alegando terem procedido no prédio referido a diversas obras de conservação e manutenção, no que gastaram a quantia de Esc. 21.174.192$90, com IVA incluído, e que terão de proceder a diversas obras essenciais à segurança do prédio, formularam pedido reconvencional, com o qual pretendem a condenação dos AA. no pagamento da referida quantia de Esc. 21.174.192$90 e ainda na quantia que se viera a liquidar em execução de sentença quanto às obras que ainda irão realizar.
Os RR. C e D contestaram, em moldes praticamente idênticos aos dos RR. E e marido, não tendo, porém, formulado pedido reconvencional.
Os AA contestaram o pedido reconvencional e concluíram como na petição inicial

C) Foi proferido despacho saneador, no qual se remeteu, para sentença final, o conhecimento da excepção da caducidade e foi organizada a base instrutória.
A final foi proferida sentença que julgou a acção provada e procedente e improcedente a reconvenção.
Não se conformando com a decisão, dela, atempadamente apelaram os réus, mas sem êxito.

D) Recorrem agora para este Supremo, os Réus e alegando, formulam iguais conclusões:

1. Através da referida sentença foi ainda reconhecido o direito dos Recorridos haverem para si, em compropriedade a totalidade do prédio urbano, ordenado o cancelamento do registo a favor dos Recorrentes, e julgado parcialmente provado e procedente o pedido reconvencional formulado pelos Recorrentes.

2. Em nenhum momento, os Recorridos manifestaram junto dos ora Recorrentes o seu propósito de adquirirem, separadamente ou em conjunto, e propriedade do prédio de que foram outrora proprietários, nem mesmo após a outorga do contrato de compra e venda.

3. Em 7 de Fevereiro/00, o procurador de E e G comunicou aos Recorridos que a partir daquela data deveriam proceder ao pagamento da renda no 2° andar do prédio adquirido pelos Recorrentes.

4. A Recorrida A, a partir da data de recebimento da carta que lhe foi remetida pelo procurador dos Recorrentes passou a proceder ao pagamento das rendas respeitantes à sua fracção no 2° andar do prédio ora em crise, cessando nessa data todo e qualquer pagamento das rendas aos Recorrentes.

5. O comportamento da Recorrida A gerou nos Recorrentes a convicção consentimento em 30 de Novembro de 1990 ficando o direito ao arrendamento a pertencer de que a mesma tinha renunciado ao direito de preferir na aquisição do prédio.

6. Para pôr termo à acção de despejo movido por E e F, os Recorridos B e H, efectuaram o pagamento das rendas em atraso acrescido de indemnização prevista no art. 58°, nº 3, do RAU, com o intuito de obstar à resolução do contrato de arrendamento

7. A renúncia ao exercício do direito de preferência não está sujeita a forma especial, podendo operar-se da forma expressa ou tácita

8. Constitui abuso de direito o exercício do direito à preferência na compra de um prédio, quando as condutas anteriores dos Recorridos geraram nos Recorrentes a confiança de que aqueles não se apresentariam a preferir.

9. O direito de preferência do locatário habitacional de parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal tem de ser exercido sobre a totalidade do prédio.

10. O locatário de parte do prédio não pode limitar o exercício do direito à parcela que ocupa.

11. São três os titular de direito de preferência: os Recorridos A, B e H, e o arrendatário da loja sito no rés do chão do prédio urbano.

12. Nunca os Recorridos notificaram o arrendatário do estabelecimento comercial sito no R./C do prédio em causa para os termos do art. 1645° do CPC, no sentido de se apurar qual deles iria exercer o direito à preferência.

13. Os direitos de preferência que assistem aos Recorridos e ao arrendatário do rés-do-chão do prédio urbano ora em crise, são direitos concorrentes ou competitivos.

14. Havendo vários locatários com o direito de preferência sobre o prédio vendido, o exercício dessa preferência deve ser efectuado por meio de processo de jurisdição voluntária que começa com um requerimento para se proceder a licitação entre as diversas pessoas a quem o direito pertença.

15. Os locatários dos prédios ora em crise são preferentes legais e só devem ser admitidos a fazer valer os direitos de que são titulares.

16. O Tribunal a quo não pode reconhecer aos Recorridos o direito de haverem para si, em compropriedade a totalidade do prédio vendido.

17. Foram violados os Artigo 47 e 58 n.º 3 do RAU, 216 e 217, 416 a 419 do Código Civil e 1465 do Código de Processo Civil.

Foram proferidas contra alegações, através das quais os recorridos se batem pela manutenção do julgado.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

E) Os Factos:

a) Por contrato particular reduzido a escrito em 1 de Abril de 1975, o 1º R., C, deu de arrendamento a I, ex-marido da 1.ª Autora A e este tomou daquele de arrendamento, para sua habitação e do seu agregado, o primeiro andar do prédio urbano sito na Rua Conselheiro Lobato, nº ..... Freguesia de S. Lázaro concelho de Braga, inscrito na matriz urbana da referida freguesia sob o artigo 1299 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n.º 41.760, pelo prazo renovável de um mês e pela renda mensal de Esc. 2.000$00 (dois mil escudos), com inicio em 1 de Abril de 1975 (Doc. de fls. 7).

b) Na data da celebração deste contrato, a 1ª A. A, era casada com o referido arrendatário, e divorciou-se por mútuo consentimento em 30 de Novembro de 1990 ficando o direito ao arrendamento a pertencer àquela 1ª A., e, nessa qualidade vem ela ocupando o arrendado e pagando a respectiva renda (Doc. de fls. 8 e de fls. 9 a 12).

c) Essa renda é presentemente do montante mensal de Esc. 7.920$00 (Doc. de fls. 13).

d) Por contrato de 15 de Janeiro de 1978 o 1.º R., C, deu de arrendamento ao 2º A., B, e este tomou daquele de arrendamento, para sua habitação e do seu agregado familiar o terceiro andar do mesmo prédio, identificado em A) supra, pelo prazo renovável de um mês e pela renda mensal de Esc. 750$00 (setecentos e cinquenta escudos), com início em 15 de Janeiro de 1978, e, nessa qualidade vem ele ocupando o arrendado e pagando a respectiva renda, a qual, actualmente, é do montante mensal de Esc. 6.500$00 (Doc. de fls. 14 a 16)

e) No dia 07 de Fevereiro de 2000 o procurador da 3." R. F, através de carta registada com aviso de recepção, comunicou aos ora 1º e 2º Autores que o prédio havia sido, vendido à sua representada declarando nessa carta apenas que "a renda deverá ser paga, nas condições constantes no contrato de arrendamento, no 2º andar do prédio sito na Rua Conselheiro Lobato nº ...., contra a entrega do respectivo recibo de quitação" (Doc. de fls. 17 e 18).

f) Os adquirentes na escritura de 26 de Janeiro de 2000 – os ora 3º RR – não tiveram que suportar quaisquer custos ou despesas, a título de pagamento de sisa, em virtude do aludido negócio, e a titulo de emolumentos e despesas notariais importou a referida escritura e despenderam aqueles 3º RR o montante de Esc. 383.040$00 (trezentos e oitenta e três mil, e quarenta escudos), tendo as despesas de registo, na Conservatória do Registo Predial de Braga a favor dos ora 3º RR ascendido ao montante de Esc.: 125.212$00 (cento e vinte e cinco mil, duzentos e doze escudos).

g) A escritura de compra e venda foi outorgada, em 26 de Janeiro de 2000, pelo já referido F, na qualidade de procurador da compradora E, sendo vendedor C representado por J sua procuradora, e na mesma este declarou vender àquela que declarou comprar, pelo preço de 32.000.000$00 que declarou já ter recebido, o prédio urbano composto de R/C três andares e sótão, sito na R. Conselheiro Lobato .... a ....- Braga, descrito na Conservatória sob o n.º 41.760, inscrito na matriz urbana sob o ara. 1299 (Doc. de fls. 19 a 23).

h) O referido F encontra-se actualmente a habitar o 2º andar do prédio referido.

i) O anterior arrendatário do 2º andar do citado prédio L, saiu do mesmo em fins de 1999.

j) Correu termos no 4.º juízo cível do tribunal da Comarca de Braga, acção sumária com o n.º 754/2000 em que era autora E, e Réus B e esposa H, em que era pedida a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas por parte dos RR, e como os RR, pagaram as rendas em divida no prazo da contestação, com acréscimo de 50% foi declarada a caducidade do direito de resolução do contrato por parte da A. (certidão de fls. 135 e 136).

k) Em 29 de Setembro de 2000 os AA depositaram na Caixa Geral de Depósitos a quantia de Esc. 32.508.252$00 (Doc. de fls. 40).

l) A falta de elementos da comunicação constante da carta referida em e) dos factos provados, não permitiu aos ora AA saber as condições em que a venda foi realizada, nomeadamente, o respectivo preço as condições de pagamento, se a venda envolvia ou não qualquer encargo, a identidade do comprador e a data e o Cartório Notarial onde havia sido celebrada a respectiva escritura (resposta quesito 1°).

m) A ora 1ª A., diligenciou nos Cartórios Notariais mais próximos da área da situação ou localização do imóvel em apreço no sentido de obter a certidão da alegada escritura de compra e venda, e só conseguiu obtê-la em 12 de Setembro de 2000, no Primeiro Cartório Notarial de Braga, e só perante o teor desse documento ficaram os AA a saber o teor do aludido contrato de compra e venda, e as condições do negócio (Resposta Quesito 2. °).

n) Encontra-se junto aos autos a fls. 56, 57 e 58 um contrato de arrendamento, mediante o qual M e C, na qualidade de comproprietários do prédio urbano sito na Rua Conselheiro Lobato n.º .... a ...., em Braga, dão de arrendamento a F o 2° andar e o sótão do referido prédio por um prazo de trinta anos, renovável por igual período, com início em 1 de Novembro de 1999, mediante a renda anual de 12.000$00 no primeiro ano de vigência do contrato, e a partir dai sujeita às actualizações legais (Resposta Quesito 3.°).

o) A Autora A, após a comunicação referida em e) dos Factos Provados, passou a pagar a renda relativa à sua fracção, no 2° andar do prédio, conforme a referida comunicação (resposta quesito 1º)

p) No 2° andar do referido prédio foram efectuadas diversas obras de beneficiação, e, além dessas, algumas obras no sótão, pequenas obras no armazém e no quiosque, e algumas obras nas partes comuns, todas descritas no relatório de as. 205 206 e 207, sendo o seu valor global no mínimo de 37.100 € (resposta quesito 13.°).

F) Decidindo:

Como, se sabe, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (Artigo 684 n.º 3 e 690 n.º 1 do Código de Processo Civil), importando assim decidir as questões nelas colocadas e bem assim as que forem do conhecimento oficioso.
Das conclusões das alegações de recurso, que são comuns a ambos os recurso, as questões suscitadas são as de saber se os Autores exerceram o direito de preferência de forma abusiva

É condição da acção de preferência o prévio afastamento dos outros titulares do direito, através do processo previsto no artigo 1465° do C. P. Civil.

O abuso de direito, consagrado no Artigo 334 do Código Civil, pode manifestar-se num «venire contra factum proprium», ou seja, quando a conduta anterior do titular do direito, objectivamente considerada em face da boa fé ou dos bons costumes, produz a convicção de que ele não exercerá o mesmo direito, pois tal exercício ofenderia clamorosamente a boa fé e seria manifestamente reprovado pela consciência social dominante.
É certo que os Tribunais só podem fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos, ou a sua conformidade com as razões sociais e económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso, ou seja, se forem exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça como ensinava Manuel de Andrade (Teoria Geral das Obrigações pág. 63) ou na expressão de Vaz Serra com clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante (BMJ 85/253).
Como a concepção que a nossa lei consagra sobre o abuso de direito é objectiva, não é necessário o apelo à intenção do titular do direito, bastando que manifestamente se excedam os limites a que se reporta o citado Artigo 334.
A proibição do «venire contra factum proprium» que possibilita a chamada excepção de procedimento contraditório, está realmente abrangida pela doutrina do abuso de direito – Manuel de Andrade Algumas Questões em Matéria de Injúrias Graves, pág. 73 e 74 e Vaz Serra BMJ 85 pág. 331.
Como refere este último Mestre não é licito fazer valer um direito em contradição com a conduta anterior do titular, se tal conduta, objectivamente interpretada de acordo com a lei, os bons costumes ou a boa fé, legitimava a convicção de que o direito não seria exercido»
A lei não define o que seja boa fé: trata-se de um conceito ético – moral que em cada caso deve ser apreciado pelo julgador.
Por outro lado enquanto princípio ético – jurídico, o princípio da confiança não pode deixar de ser tutelado pela ordem jurídica protegendo a «confiança legítima baseada na conduta de outrem», principalmente quando causa ou pode causar danos.
Duma pura relação de causalidade não pode concluir-se para a responsabilidade. Só a vontade humana, expressa através de uma conduta (activa ou omissiva), poderá fazer com que um contingente processo causal possa ser imputado a alguém.
No instituto de que estamos a tratar a ideia básica é a de que ninguém deverá sofrer prejuízos em razão duma circunstância que se situa no âmbito pessoal de outra, ou, mais concretamente, a ideia de que todo aquele que cria uma particular situação de risco para os interesses de terceiros deve em princípio «responder» por esse risco. – Cf. Baptista Machado Obras Dispersas Vol. I pág. 414 –.
Deve verificar-se, em primeiro lugar, uma situação objectiva de confiança.
Que haja uma espécie de culpa do agente perante si próprio no sentido de que conscientemente assim se quis conduzir. Que haja boa fé da parte que confiou. (Obra citada pág. 415 a 418.).
Ao comportamento abusivo do Autor, devem juntar-se os requisitos gerais, designadamente o nexo de imputação do facto ao agente, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. (Coutinho de Abreu Do Abuso de Direito, pág. 76 e Antunes Varela Obrigações 1970 pág. 371 e seguintes)
Dos factos dados como provados não resulta que os Autores tenham criado nos recorrentes essa confiança, uma vez que, não tendo dado conhecimento do projecto de venda não podiam desde logo confiar que os recorridos não iriam accionar os recorrentes para haver dela o prédio vendido, sobre o qual tinham preferência. Mas diga-se que a decisão sobre o invocado exercício do direito de forma abusiva depende sempre da factualidade provada. O que se prova é que aceitaram os recorridos efectuar o pagamento da renda conforme comunicação do procurador. Mas antes de serem os recorridos considerados preferentes e ser-lhes reconhecido esse direito os mesmos como arrendatários teriam sempre que pagar a renda. Não é este facto determinante para que se possa afirmar que os recorridos exerceram o seu direito de forma abusiva. Acresce que não se pode dizer que os Autores negligenciaram o exercício desse mesmo direito e, ao efectivá-lo passado já bastante tempo, criaram nos Réus a convicção de que o não iriam exercer. Efectivamente, o exercício tardio desse direito resultou de acto dos Réus que não comunicaram, como lhes competia, a venda efectuada e as condições da mesma, pelo que só através de diligências efectuadas em Cartórios Notariais, permitiu aos Autores conhecer o negócio.
O direito não foi exercido de modo abusivo por parte dos recorridos.
Dos mesmos fundamentos de facto os recorrentes concluem que os Réus renunciaram ao direito de preferência.
Renúncia é a perda voluntária de um direito por manifestação unilateral de vontade do respectivo titular nesse mesmo sentido.
Assim, o titular do direito de preferência pode renunciar ao exercício do seu direito mediante declaração a referida declaração de vontade nesse sentido.
Conforme resulta do disposto no Artigo 219 do Código Civil a renúncia ao direito de preferência não está sujeita a forma especial, podendo manifestar-se quer por modo expresso quer tácito (cf. Vaz Serra RLJ 106/149 e Mota Pinto RDES XXV/119).
A declaração, no entanto, tem que ser clara e inequívoca da vontade de não preferir. Se a renúncia não provier de uma declaração expressa tem de se deduzir de factos que com toda a probabilidade a revelam (cf. Artigo 217 n.º 1 do Código Civil). Dos factos dados como provados não se pode concluir com toda a probabilidade que os Autores renunciaram ao exercício do direito de preferência. De todo o modo não se compreende que se diga que os Autores exerceram o seu direito de modo abusivo, e ao mesmo tempo se afirme que renunciaram tacitamente a esse direito. A renúncia extingue o direito, e sendo assim, ele deixa de existir. No abuso de direito esse direito existe, mas foi exercido de modo a ser considerado abusivo. É contraditório afirmar que o direito existe para invocar o abuso de direito, e ao mesmo tempo dizer que houve renúncia a esse direito.

Continuam os recorrentes a entender que os recorridos deveriam previamente afastar o outro titular do direito através do processo previsto no Artigo 1465 do Código de Processo Civil.
Estipula o Artigo 1465 do Código de Processo Civil que:

1 – Se já tiver sido efectuada a alienação a que respeita o direito de preferência e este direito couber simultaneamente a várias pessoas, o processo para a determinação do preferente segue os termos do artigo 1460º com as alterações seguintes:

a) O requerimento inicial é feito por qualquer das pessoas com direito de preferência;

Por outro lado aquele Artigo 1460 refere que:

1 – Se o direito de preferência competir a várias pessoas simultaneamente, mas houver de ser exercido apenas por uma, não designada há-de o requerente pedir que sejam todas notificadas para comparecer no dia e hora que forem fixados a fim de se proceder a licitação entre elas; o resultado da licitação é reduzido a auto, no qual se registará o maior lanço de cada licitante.

2 — O direito de preferência é atribuído ao licitante que ofereça o lanço mais elevado. Perdê-lo-à, porém, nos casos previstos no artigo 1459. °

Como se refere no Acórdão sobre revista, esta questão foi tratada na Anotação que o Prof. Antunes Varela ao Acórdão do Supremo na RLJ ano 116 páginas 282 a 288, anotação que vem no seguimento da feita a um outro acórdão do STJ na mesma revista ano 115.
Aí se dizia que o ponto fulcral da matéria consiste em saber se no caso de concurso de preferências» correspondente à situação de facto registada nos autos, o titular de um dos direitos de preferência necessita de afastar previamente os outros direitos concorrentes, para que a acção de preferência proceda.
O afastamento dos demais preferentes pode resultar de renúncia ao direito ou por atribuição judicial do direito ao que maior lanço ofereça no processo previsto no Artigo 1465 do Código de Processo Civil. Este processo é de jurisdição voluntária e, por isso, no dizer de Alberto dos Reis (Processos Especiais Vol. II) implica uma actividade administrativa ao contrário dos processos de jurisdição contenciosa que implicam uma actividade jurisdicional.
O processo referido no Artigo 1465 tem por fim, atribuir, em concurso vários direitos de preempção sobre o mesmo imóvel, ao titular de um deles, que maior lanço tenha oferecido na licitação que ele prevê, o exercício do mesmo, com exclusão dos restantes.
Assim cada um dos preferentes, se já ocorreu a venda, pode intentar a acção sem que obrigatoriamente tenha que recorrer ao processo estabelecido no mencionado preceito, que só lhe dá a garantia de procedibilidade da acção por saber de antemão que não terá melhor concorrente. A notificação dos demais preferentes e o recurso ao processo do Artigo 1465 é assim, uma faculdade e não um ónus que impenda sobre o preferente. (neste sentido Antunes Varela RLJ ano 115 página 283).
O preferente preterido ou não notificado pode intentar acção nos termos do Artigo 1465 e pode preferir em relação àquele que intentou a acção de preferência.
A doutrina do Assento 2/95 de 1 de Fevereiro (DR 1- Autor 20/04) corrobora o entendimento defendido ao referenciar que vendido um prédio urbano a locatário habitacional de parte dele, sem que o proprietário tenha cumprido o disposto no artigo 416 n.º 1, do Código Civil quanto aos restantes locatários, o comprador não perde, pelo simples facto da aquisição, o respectivo direito legal de preferência. E qualquer desses locatários preteridos, como detentor de direito concorrente, não o poderá ver judicialmente reconhecido sem recorrer ao meio processual previsto no art. 1465 ° do Código de Processo Civil, aplicável com as devidas adaptações.

G) Face ao que se deixou exposto acorda-se em negar a revista.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 3 de Fevereiro de 2004
Ribeiro de Almeida
Nuno Cameira
Sousa Leite