Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1963/11.6TVLSB.L3.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: BERNARDO DOMINGOS
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
FIEL DEPOSITÁRIO
CONTRATO DE DEPÓSITO
CONTRATO DE CONSIGNAÇÃO
DESCAMINHO
RISCO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 10/03/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO / IMPOSSIBILIDADE DO CUMPRIMENTO E MORA NÃO IMPUTÁVEIS AO DEVEDOR / FALTA DE CUMPRIMENTO E MORA IMPUTÁVEIS AO DEVEDOR / CONTRATOS EM ESPECIAL / DEPÓSITO / DIREITOS E OBRIGAÇÕES DO DEPOSITÁRIO.
Doutrina:
- Carlos Ferreira de Andrade, Contratos, II, 2012, p. 125;
- Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra, 2000, p. 103 e ss.;
- J. A. Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, p. 56;
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 460-461.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 408.º, 790.º, 796.º, 799.º, 1185.º, 1187.º, ALÍNEA C) E 1188.º.
Sumário :
O autor que tem na sua posse bens móveis que lhe haviam sido confiados, como depositário ou consignatário, tem legitimidade para exigir o ressarcimento dos prejuízos causados com o seu descaminho ou perecimento e a ser indemnizado pelo seu valor com fundamento em facto ilícito e culposo imputável ao réu nomeado fiel depositário desses bens.
Decisão Texto Integral:

Relatório[1]




AA intentou acção declarativa com processo ordinário contra

(1) BB, (2) CC, (3) DD, (4) EE e (5) FF

alegando em síntese que se dedica ao comércio de antiguidades e, no âmbito da sua actividade, teve contactos com o pai do Io réu e com este réu, tendo sido alvo de uma queixa crime sem fundamento em 2007, deduzida pelo pai do Io réu, que, com o conluio do filho, ora Io réu, requereu, por apenso ao processo crime e com o objectivo de extorquir todo o património do autor, o arresto preventivo de bens do autor, tendo-se procedido a arresto de bens em imóveis do autor em Fevereiro de 2008, com a nomeação do 5o réu como fiel depositário, indicado para esse efeito pelo pai do Io réu.

Mais alegou que, em Junho de 2010, já depois do falecimento do pai do Io réu e por via do arquivamento do inquérito aberto contra o autor, o tribunal decretou a caducidade do arresto, sem que, contudo, lhe tivessem sido devolvidos os bens arrestados, por o fiel depositário, ora 5o réu se ter recusado a fazê-lo, apesar de lhe ter sido instaurado processo crime e, não tendo o autor recuperado os bens que discrimina, são todos réus responsáveis pelos prejuízos resultantes desta perda, o Io e 5o réus nos termos do conluio com o falecido pai do Io, engendrado para extorquir o património do autor, os 3o e 4o réus na qualidade de solicitadores nomeados que se abstiveram de comparecer nas diligências de arresto e não fiscalizaram a legalidade dos procedimentos, bem como o destino dos bens e a 2a ré na qualidade de mandatária do requerente do arresto que, presente nessas mesmas diligências, não tomou qualquer cautela para controlar a fiscalização do transporte e destino dos bens.

Alegou ainda que os bens desaparecidos tinham o valor global de 672 309,35 euros e que com o seu desaparecimento deixou de auferir a quantia de 571 462,94 euros, correspondente a 85% do seu valor, tudo no montante de 1 243 772,30 euros, a que acrescem danos no valor de 850 000,00 euros por ter entrado em incumprimento num mútuo, 300 000 euros por prejuízos sofridos na moradia onde foi efectuado o arresto e 500 000,00 euros por danos não patrimoniais.

Concluiu pedindo a condenação solidária dos réus a pagar-lhe a quantia de 2 978 772,30 euros acrescida de juros legais e de uma sanção pecuniária compulsória no valor de 5 000,00 euros por dia em que, a contar da citação, se abstenham de proceder à entrega dos bens que foram objecto do arresto em perfeitas condições.

Os réus contestaram separadamente, mas todos arguindo as excepções de ineptidão da petição inicial e de prescrição, por terem decorrido mais de 3 anos entre as diligências de arresto e a propositura da acção em Setembro de 2009 e arguindo os Io, 2a e 5o réus a ilegitimidade activa, por o autor sempre ter alegado que os bens arrestados não lhe pertenciam e os Io, 3o e 4o a sua ilegitimidade passiva, por não serem titulares da relação material controvertida.

Por impugnação, alegou o 4o réu que não teve qualquer intervenção nos factos alegados na petição inicial, pois nunca aceitou a nomeação como agente de execução; alegou o 3o réu que requereu o reforço policial para os três locais em que se procedeu ao arresto e, como não podia estar ao mesmo tempo em todos eles, organizou uma equipa de solicitadores, que se distribuíram pelas várias diligências, combinando com a 2a ré que esta estaria na Av. João … e uma colega da 2a ré estaria na Av. …, tendo o 3o réu tomado a seu cargo a Av. … e orientado toda a equipa e tendo sido o transporte solicitado, diligenciado e contratado pelos Io e 2a ré; alegou a 2a ré que compareceu na Av. João …, comparecendo uma colega sua na Av. … e que os 3o e 4o réus delegaram competências em dois colegas solicitadores de execução que estiveram presentes nos locais respectivos ainda antes da hora designada para a diligência e ainda que não interveio na diligência para além do que foi orientado pelos solicitadores de execução, não interveio na estimativa do valor dos bens, nem no seu transporte, nem no local do seu armazenamento, que ignora qual seja; alegou o Io réu que nunca teve qualquer relação com o autor, para além de o ter visto algumas vezes em casa do seu pai, nem nunca interveio por qualquer forma no arresto; alegou o 5o réu que aceitou ser fiel depositário a pedido do pai do Io réu, a quem conhecia havia muitos anos, mas foi este que tratou de todos os aspectos práticos do arresto, nomeadamente contratação de recursos para o dia da diligência e acomodação dos bens, pelo que deu indicações aos transportadores para depositarem os bens num armazém indicado pelo pai do Io réu e que, de acordo com o que apurou, reunia as condições necessárias, deixando de acompanhar a situação depois de o requerente do arresto ter ficado doente e ter falecido, até ser notificado para entregar os bens, altura em que se deslocou ao armazém em causa e verificou com surpresa que nesse armazém estava a laborar uma sociedade, tendo-lhe sido dito que o pai do Io réu teria declarado ao dono do armazém para ficar com os bens, como pagamento das rendas em atraso.

Concluíram os réus, nas suas respectivas contestações, pedindo a procedência das excepções e a improcedência da acção.

O autor respondeu às contestações, opondo-se às excepções.

Proferida decisão que absolveu os réus da instância por ineptidão da petição inicial, foi a mesma revogada por acórdão do Tribunal da Relação, que determinou o prosseguimento dos autos.

Regressados os autos à Ia instância, foi proferido despacho de aperfeiçoamento, não tendo, porém, sido admitida a petição inicial aperfeiçoada, com o fundamento de terem sido excedidos os termos em que havia sido feito o convite ao aperfeiçoamento.

Foram saneados os autos, julgando-se improcedentes as excepções de ilegitimidade activa e passiva e relegando-se para final o conhecimento da excepção de prescrição.

Procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, absolvendo os Io, 2a, 3o e 4o réus e condenando o 5o réu a pagar ao autor 93 200,00 euros, acrescido de juros de mora.

Foi interposto recurso pelo autor, tendo sido proferido acórdão neste Tribunal da Relação que anulou a sentença e determinou a reabertura da audiência de julgamento para a ampliação da matéria de facto relativamente ao alegado nos artigos 45, 47, 48, 50, 342, 305, 309 (estes dois últimos, 305 e 309 respeitantes ao valor dos bens arrestados discriminados nos artigos 89 a 304, impugnados pelos réus) e 350 a 352 (estes dois últimos relativos aos danos não patrimoniais resultantes do desaparecimento dos bens e não apenas relativamente ao arresto em si) da petição inicial, 18 e 19 da contestação do Io réu, 14 a 17, 64, 65, 69 a 71 da contestação da 2a ré, 74 a 77, 83 a 85 e 87 da contestação do 3o réu, 27 da contestação do réu e 22 a 27 e 29 a 32 da contestação do 5o réu.

Na Ia instância foi reaberta a audiência para a ampliação da matéria de facto, após o que foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu todos os réus do pedido.

Inconformado, o autor interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação decidido julgar « parcialmente procedente a apelação e:

a) revogar a sentença recorrida na parte que absolveu o 5o réu e condená-lo a pagar ao autor a quantia de 93 200,00 euros (noventa e três mil e duzentos euros), acrescida de juros às taxas legais desde a citação e até integral pagamento.

b) manter a sentença recorrida na parte restante».


*


Inconformados, tanto o autor como o R., FF vieram interpor recurso de revista.

O recurso do autor, não foi admitido pelo relator, por se verificar uma situação de dupla conforme, impeditiva da revista.

A revista interposta pelo réu, foi admitida. Nas suas alegações formulou as seguintes


Conclusões:



«1.   Pese embora, o réu ao não ter na sua disponibilidade os bens do qual ficou fiel depositário, não causou, em concreto, ao ora recorrido, posto que não alegado e provado, qualquer tipo de dano na sua esfera jurídica susceptível de ser indemnizado.

2.     Na verdade, para existir responsabilidade civil extracontratual, além da culpa e da ilicitude, necessário se torna a existência de dano indemnizável na esfera jurídica do autor ora recorrido e bem assim do seu necessário quantum, o que salvo melhor opinião tal não existiu.

3.     Tal só poderá ser de atribuir relativamente aos valores que já constituíam o património do autor e não património de terceiros não «reclamantes», os quais o autor não logrou demonstrar, como lhe competia, o alegado «prejuízo».

4.     Pois a indemnização a que o ora recorrente foi condenado, parte do pressuposto - quanto a nós errado - de que efetivamente era ao autor que lhe deviam ser entregues os bens arrestados e, ao não faze-lo, é ele que tem de ser indemnizado e não a confessada sociedade proprietária dos mesmos, mesmo que esta última nunca venha a exercer tal direito indemnizatório ao autor, como parece não ter acontecido, pois a mesma nunca manifestou aqui ou em algum lugar essa ténue intenção ?!...

5.     Se ao autor a quem deveriam ter sido devolvidos os bens arrestados, não alega, em concreto, que tivesse tido prejuízo, posto que a totalidade dos bens não eram dele, mesmo os que lhe foram «deixados à consignação ou em depósito», não podia vir a ser indemnizado, por um eventual e hipotético prejuízo de ter de vir a indemnizar os proprietários dos bens se, em concreto, nenhum dano comprovado se reflectiu na sua esfera jurídica.

6.     Ora o aliás, douto acórdão recorrido, violou por erro e má interpretação do direito as normas dos artigos 483º nº 1 e 564º nº 1 do Código Civil.

7.     Na verdade, interpretou e aplicou as citadas normas no sentido do dever de indemnizar caber totalmente ao recorrente, tão só pela não devolução dos bens arrestados ao recorrido, mesmo que o mesmo não seja o proprietário dos bens, conforme matéria assente.

8.     Quando deveria ter interpretado e aplicado as citadas normas no sentido de, apesar da conduta do recorrente ser ilícita e culposa, não logrou o autor, demonstrar o efectivo dano/prejuízo, pela não devolução dos bens, que não eram da sua pertença, atribuindo-lhe assim a titularidade dos bens e o correspondente valor, em sentido contrário à matéria assente.

9.     Donde não tendo demonstrado que os proprietários dos bens lhos exigiram, por qualquer meio, ou a sua indemnização pela não devolução, não deveria o réu ora recorrente ser condenado a indemnizar o autor, ora recorrido, por um eventual e hipotético dano, correspondendo o valor da indemnização ao valor total dos bens, que não eram nem são sua pertença, não logrando demonstrar, em concreto, como lhe competia, que dano lhe adveio, ou que lucro não teve, pela não devolução reafirma-se de bens que não lhe pertenciam.

10.    Aliás, qual o direito do recorrido em receber na sua esfera jurídica uma indemnização equivalente à integralidade do valor de bens que não lhe pertenciam, valor esse ou bens que nunca lho foram exigidos?...

Nestes termos e no mais de direito deve o presente recurso de revista ser considerado procedente por provado, e, consequentemente, o aliás, douto acórdão recorrido, ser substituído, por outro, muito mais douto, que absolva o réu do pedido contra si formulado, mantendo-se a aliás, também mui douta sentença de 1ª Instancia…»


*


Contra-alegou o recorrido DD, pedindo a improcedência das revistas.

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Na perspectiva da delimitação pelo recorrente[2], os recursos têm como âmbito as questões suscitadas nas conclusões das alegações (art.ºs 635º nº 4 e 639º do novo Cód. Proc. Civil)[3], salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 608º do  novo Cód. Proc. Civil).

Das conclusões acabadas de transcrever decorre que está em causa saber se apesar dos bens descaminhados não pertencerem ao autor, este pode ser beneficiário da indemnização correspondente ao valor desses bens.



Dos factos



Mostra-se consolidada a seguinte factualidade:

1. « O autor desde pelo menos 1994 que se dedica ao comércio de antiguidades e obras de arte, considerado com conhecimento e prestígio nessa actividade, designadamente nas seguintes moradas: Avenida João ..., 18, RC Esquerdo, …. e Avenida João …, 16, RC Direito, … e Avenida …, 117, em ….

2. Em tais moradas o A. procedia, além do mais, à guarda para exibição de antiguidades e obras de arte, nomeadamente móveis, quadros, pratas, arte sacra, tapeçarias e outros objectos de decoração, residindo ainda no n° 18 referido.

3. Todos os bens lhes estavam confiados, mas alguns dos objectos encontravam-se à consignação, ou seja, uma vez vendidos o A. recebia uma percentagem e entregava o restante produto da venda aos respectivos proprietários.

4. GG apresentou participação criminal contra o ora A., denunciando factos susceptíveis de configurar a prática de um crime de burla qualificada, na forma continuada.

5.     Na sequência de tal queixa crime foi ainda requerido por GG, junto do … Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de …, contra o ora A. o arresto preventivo, tendo nesse processo o requerente sido patrocinado pela 2a ré CC, na qualidade de mandatária e subscritora nomeadamente do requerimento inicial (nos termos constantes do documento junto a fls. 622 a 630 cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

6. Por decisão proferida a 18 de Fevereiro de 2008, foi decretado o arresto preventivo referido, dos seguintes bens: a) Prédio misto descrito na Ia Conservatória do Registo Predial de … sob o n° 001…3/011…5 e inscrito na matriz predial rústica sob o n° 105, da secção F, e na matriz predial urbana sob o artigo 5290; b) o recheio da moradia sita na Avenida …, n° 117, em …; c) o recheio do estabelecimento comercial sito na Avenida João …, n° 16, r/c Dto, em …; e d) o recheio da moradia sita na Avenida João …, n°18, r/c esq., em … (nos termos constantes da certidão junta a fls. 916 a 923 cujo teor se reproduz).

7. O Tribunal de Instrução Criminal de … determinou, ainda, que com a maior brevidade, o requerente do arresto indicasse pessoa idónea a fim de a mesma ser nomeada fiel depositária dos bens arrestados, figurando ainda na decisão que o requerente consignou que colocaria à disposição do tribunal os meios necessários à apreensão, remoção e depósito dos bens arrestados.

8. O requerente do arresto indicou para a realização das diligências, dois solicitadores de execução: o ora 3o R., DD, solicitador de execução com a cédula profissional n° 1…8 e o 4o Réu EE, também solicitador de execução, com a cédula n° 1…0 (cf. fls. 632 e 633).

9. Foi nomeado fiel depositário, por indicação do requerente, o 5o réu, FF (cf. fls. 634 e 635).

10. No dia 22 de Fevereiro de 2008 decorreram as diligências tendentes ao arresto do recheio da moradia sita na Avenida João …, n° 18, r/c esq., em …, o recheio do estabelecimento comercial sito na Avenida João …, n° 16, r/c Dto, em …; e d) o recheio da moradia sita na Avenida João …, n° 18, r/c esq., em … .

11. Do auto de arresto relativo ao recheio da Av. João …, n° 16, cuja cópia certificada está junta a fls. 930 a 944 e cujo teor se dá por reproduzido, resulta terem estado presentes, além do mais, a 2a ré e o 5o réu, constando como local de depósito dos bens "Lugar do Outeiro …, …", referindo-se nas observações finais que foram arroladas 74 verbas, e atribui-se o valor total às mesmas de 36.640€.

12. Do auto de arresto relativo ao recheio da Av. … 117 aludido, cuja cópia certificada está junta a fls. 945 a 958 e cujo teor se dá por reproduzido, resulta terem estado presentes, além do mais o 5o réu, constando como local de depósito dos bens "Lugar do Outeiro …, …", no qual foram descritas e arrestadas 78 verbas, referindo-se nas observações finais que foram retiradas do arrolamento as verbas três e setenta e sete (no valor indicado de 300€ e de 200€ respectivamente), e atribui-se o valor total às mesmas de 56.560€.

12-A. Este auto foi assinado pelo 3o réu (resposta ao artigo 85° da contestação do 3o réu).

13. Do auto de arresto relativo ao recheio da Av. João … n° 18 aludido, cuja cópia certificada está junta a fls. 961 a 966 e cujo teor se dá por reproduzido, resulta terem estado presentes, além do mais, o autor, a 2a ré e o 5o réu, constando como local de depósito dos bens "Lugar do Outeiro …, …", no qual foram descritas e arrestadas 18 verbas, referindo-se nas observações finais que todos os bens foram removidos à excepção das verbas 9 e 11, e atribui-se o valor total às mesmas de 570€ o que deduzindo as verbas referidas se conclui serem de 500€;

14. Em todos os autos de arresto figura como agente de execução o 3o réu, DD.

15. Por decisão proferida a 21/06/2010, notificado ao autor a 15/07/2010, foi no âmbito do processo de arresto referido, declarada a caducidade do arresto, decidindo-se ainda que se "comunique ao fiel depositário nomeado a caducidade do arresto determinando-se a devolução dos bens ao requerido" (cf. fls. 980 cujo teor se dá por integralmente reproduzido).

16. Além do ora autor, a 2a ré, o 3o réu e o 5o réu foram notificados de tal decisão (cf. fls. 982 a 986).

18. No âmbito do processo referido o fiel depositário informou que não tem acesso aos bens - nos termos constantes do requerimento junto a fls. 73 e 74, pelo que por despacho foi ordenada que se extraísse certidão para instauração de procedimento criminal relativamente ao ora 5o réu e o requerente do arresto, por se encontrar indiciado a prática pelos mesmos de um crime de descaminho e desobediência.

19. No âmbito do processo crime referido, foi a requerimento do A., ordenado que fossem emitidos mandados de apreensão dos bens arrestados nas moradas indicadas pelo própria A. e constantes do despacho cuja certidão está junta a fls. 1003 e cujo teor se dá por reproduzido.

20. Em obediência ao mandado referido, foi tentada a apreensão junto da morada do primeiro réu (filho do requerente do inventário), resultando da participação da PSP junta a fls. 1018, que em deslocação a tal residência juntamente com o A., este "passou revista ao imóvel com o expresso consentimento do seu proprietário, não tendo verificado no seu interior qualquer bem a ser arrestado, pelo que não se deu cumprimento à referida diligência".

21. Foi ainda no âmbito desse mesmo processo realizado um auto de apreensão de bens que se encontravam na posse de "HH", os seguintes bens: uma papeleira …, Uma cómoda …, uma mesa de cabeceira … e uma tela de … com flores - cfr. Auto de fls. 1025 e 1026 cujo teor se reproduz.

22. Também foi ainda no âmbito desse mesmo processo realizado um auto de apreensão de bens que se encontravam na posse de II, os seguintes bens: secretária estilo … em pau-santo, cómoda estilo …, cadeiras estilo … e um par de jarras alemãs, Dresden, com bases em prata javali leitão - cfr. Auto de fls. 1029 cujo teor se reproduz.

23. No âmbito da oposição apresentada pelo ora A. no âmbito do processo referido, o mesmo deduziu oposição, no âmbito da qual refere, além do mais, que os bens que se encontravam na Av. João … 16, r/c, em …, os situados na Av. … 117 em …, e os bens objecto do arresto no n° 18 da Av. João …, com excepção das verbas n°s 1, 3, 12 a 14, são pertença da Sociedade JJ e Companhia Unipessoal, Lda (cf. oposição cuja cópia foi junta a fls. 1066 a 1071 cujo teor se reproduz).

24. Após o arresto efectuado a loja situada no n° 16 da Av. João … encerrou a sua actividade.

25. O A. sentiu-se entristecido, angustiado e abalado com o arresto dos bens em causa.

26. No dia 17 de Março de 2010, faleceu GG, requerente do arresto preventivo aludido (cf. certidão de óbito junta).

27. Por sentença, não transitada em julgado, proferida na Ia secção Criminal da Instância Central de …, o 5o réu FF, foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança, nos termos constantes da cópia junta a fls. 1319 a 1340 e cujo teor se reproduz.

27. Todos os bens objecto dos arrestos em causa pertenciam à sociedade JJ e Companhia, Lda (facto resultante da confissão do autor, nos termos exarados na acta de audiência de julgamento de fls 1727)».


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Do Direito




O acórdão recorrido apreciou e decidiu a questão objecto do recurso do réu, concluindo pelo direito do autor a ser indemnizado pelo valor dos bens de que foram dissipados e que não regressaram à sua posse, por facto ilícito e culposo imputável ao R., nomeado fiel depositário desses bens. Os fundamentos desta decisão são os seguintes:

« A sentença recorrida entendeu que não procede o direito de indemnização invocado pelo autor, porque se provou que os bens arrestados e desaparecidos não lhe pertenciam, mas sim a uma sociedade.

Provou-se que o arresto foi realizado em três moradas, e que nessas moradas o autor se dedica ao comércio de antiguidades e de obras de arte e aí procedia à guarda para exibição de antiguidades e obras de arte, todos lhe estando confiados, alguns deles à consignação, caso em que, uma vez vendidos, a autor recebia uma percentagem e entregava o restante do produto da venda aos respectivos proprietários (pontos 1, 2 e 3 dos factos); provou-se também que todos os bens objecto dos arrestos em causa pertenciam à sociedade JJ e Companhia, Lda (ponto 27 dos factos).

Sendo assim, os bens arrestados, embora não pertencessem ao autor, estavam-lhe confiados, alguns à consignação, do que resultava para o autor a obrigação de os restituir aos seus proprietários, ou de restituir o produto da sua venda, consoante se tratasse de depósito (artigos 1185° e seguintes, nomeadamente artigo 1187° c), do CC) ou se tratasse de uma venda à consignação, com obrigação de devolução ou de entrega do produto da venda, sendo, neste último caso, um contrato com eficácia real, em conformidade com o artigo 408° do CC (cfr Carlos Ferreira de Andrade, "Contratos" II, 2012, 125 sobre o contrato estimatório ou de venda à consignação).

Tratando-se de bens à consignação e face à sua natureza real, o risco de perda da coisa sempre ficará a cargo do consignatário, pois, sendo um contrato real que importa a transferência do domínio, nos termos do artigo 796° do CC a perda da coisa por causa não imputável ao alienante, neste caso o consignante, corre por conta do adquirente, neste caso o consignatário ora autor, que assim sofre prejuízo com a sua perda.

Já no contrato de depósito, por força das disposições combinadas dos artigos 1188°, 790° e 799° do CC, o depositário, neste caso o autor, só fica exonerado das obrigações de guarda e restituição se a perda da coisa ocorrer por causa que não lhe é imputável, cabendo-lhe, portanto, o ónus de provar ao dono dos bens que não teve culpa na sua perda.

Por outro lado, os bens encontravam-se nas moradas em causa no âmbito da actividade comercial de venda de antiguidades e de peças de arte do autor, que assim retirava necessariamente benefícios dessa situação, trazendo-lhe a mera exibição dos bens vantagens comerciais, não podendo deixar de se considerar que a sua perda lhe provocou prejuízo.

Conclui-se, portanto que, embora não seja proprietário dos bens, o autor é lesado, sofrendo necessariamente prejuízos próprios com a perda dos bens e, podendo, como tal, reclamar a correspondente indemnização».

Não podemos deixar de concordar com os fundamentos da decisão. Na verdade os bens dissipados estavam, legitimamente, na posse do autor e este responde perante os donos, pelo seu descaminho ou perecimento (art.º 796º nº 1 do CC) daí que tenha legitimidade para exigir o ressarcimento dos prejuízos, uma vez que tem de responder por eles perante quem lhos confiou.

Deste modo e sem necessidade de mais considerações improcede a revista.


Concluindo



Pelo exposto, acorda-se na improcedência da revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Notifique.


Lisboa, em 3 de outubro de 2019.


José Manuel Bernardo Domingos (Relator)

João Luís Marques Bernardo

António Abrantes Geraldes

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[1] Parcialmente transcrito do acórdão recorrido.
[2] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil antigo e 635º nº 2 do NCPC) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, hoje 636º nº 1 e 2 do NCPC). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs.
[3] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.