Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A4710
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ACTO DE GESTÃO PÚBLICA
ACTO DE GESTÃO PRIVADA
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ESTATUTO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ20080228047106
Data do Acordão: 02/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO
Sumário :
I) - Na vigência do ETAF de 1984 o Tribunal comum é o competente em razão da matéria para apreciação de acção fundada em responsabilidade civil extracontratual, intentada por um particular contra a Companhia de Ferros Portugueses E.P. e Refer-Rede Rodoviária Nacional E.P. por alegados danos imputados a actuação negligente destas entidades.

II) – A causa de pedir invocada, no caso, postulando uma relação jurídico-privada exclui a competência material dos tribunais administrativos.

III) – Não é inconstitucional a norma constante do art. 32º, nº1, dos Estatutos da Refer ao atribuir aos Tribunais comuns a competência material para dirimir litígios em que seja parte.
Decisão Texto Integral:



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA-Urbanizações e Construções, S.A., intentou, em 5.4.2002, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Sintra – com distribuição à 2ª Vara Mista – acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário, contra:

Caminhos de Ferro Portugueses, EP, e;

Refer-Rede Ferroviária Nacional, EP.

Alegando que é dona do camião de matrícula XS-00-00, o qual, no dia 24.11.2000, foi colhido por uma máquina locomotiva da 1ª Ré, na passagem de nível de Massamá.

Mais alega que o piso de madeira da passagem de nível estava em mau estado e tinha falhas nos seus limites laterais, tendo o rodado direito do camião caído numa dessas falhas, e quando o condutor o tentou repor em cima das travessas de madeira, o camião deslizou e atravessou-se, ficando com a frente na linha, entre os carris.

Alega, ainda, que, entretanto, as cancelas fecharam, devido à aproximação de um comboio, o qual foi embater no camião, causando-lhe danos.

Alega, também, que a passagem de nível em causa não está preparada para a intensidade de tráfego que ali se verifica actualmente e que a guarda dessa passagem tinha a obrigação de estar atenta e de accionar atempadamente o mecanismo/sinal para parar a circulação ferroviária, por impedimento da via na passagem de nível, enquanto que o maquinista tinha a obrigação de, obedecendo ao sinal, parar o comboio.

Alega, por último, que a 2ª Ré é a responsável pelo controlo e gestão da passagem de nível de Massamá.

Conclui, assim, que devem as Rés ser condenadas a pagarem-lhe, solidariamente, a quantia de € 19.054,65, acrescida dos juros vincendos após a citação.

A Ré Refer contestou, por excepção, invocando a caducidade do direito da autora de accionar judicialmente a ré e a ilegitimidade desta, e por impugnação, considerando que o acidente se ficou a dever única e exclusivamente a culpa do condutor do pesado, e que, de todo o modo, não tem a responsabilidade da conservação ou manutenção do piso rodoviário que cruza a linha ferroviária nas passagens de nível.

Conclui pela sua absolvição da instância ou do pedido.

A Ré Caminhos de Ferro Portugueses contestou, concluindo pela sua absolvição do pedido, por entender que o acidente em causa só ocorreu devido à manifesta negligência do condutor do veículo pesado.

A Autora replicou, concluindo como na petição.

Entretanto, a Autora requereu a intervenção como réu do Instituto para a Conservação e Exploração da Rede Viária (ICERR).

Notificadas as Rés para se pronunciarem, a Ré Refer veio dizer que nada tinha a opor à requerida intervenção, mas suscitou a questão prévia da competência para a presente causa, invocando o disposto no art.51°, al. h), do ETAF, na redacção do DL n°129/84, de 27.4, vigente à data da propositura da acção, para concluir que a competência cabe ao Tribunal Administrativo e não ao Tribunal Judicial.

A Autora respondeu à arguição de incompetência absoluta do Tribunal, referindo que os factos que alegou não traduzem actos de gestão pública e que, por isso, a excepção deve ser julgada improcedente.

Admitida a requerida intervenção, veio a EP-Estradas de Portugal-E.P.E. contestar, por excepção, invocando, também, a incompetência do tribunal em razão da matéria, bem como, a sua ilegitimidade, e por impugnação, considerando que a responsabilidade pelo acidente pertence ao condutor do veículo pesado.

A Autora respondeu, concluindo pela improcedência das alegadas excepções.

Foi proferido despacho saneador, onde se conheceu da excepção dilatória da incompetência absoluta do tribunal, entendendo-se que a competência para conhecer do pedido na presente acção, é dos tribunais administrativos e não dos comuns, pelo que, foi julgada procedente a excepção de incompetência absoluta do tribunal comum em razão da matéria, absolvendo-se as rés da instância.


Inconformada, a Autora interpôs recurso de agravo daquele despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa que por Acórdão de 19.6.2007 – fls. 187 a 194 – concedeu provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, considerando o tribunal recorrido o competente em razão da matéria para conhecer do mérito da acção.



Inconformada recorreu para este Supremo Tribunal, a Ré Rede Rodoviária Nacional – Refer E.P. que, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1ª. O Tribunal recorrido, revogando a decisão de 1ª instância, considerou como competente para apreciação do presente pleito, em razão da matéria, o Tribunal comum, dado que, ainda que os elementos do litígio, em relação à recorrente, apontem para a natureza administrativa do mesmo, o disposto no art. 32º, n°1, dos estatutos da recorrente, atribui essa competência aos tribunais judiciais.

2ª. Nos termos do art. 51º alínea h) do E.T.A.F., vigente à data da propositura da acção, compete aos tribunais administrativos a apreciação de acções sobre responsabilidade civil do Estado e demais entes públicos, decorrentes de actos de gestão pública.

3ª. No caso concreto, a Autora na sua P.I., demanda a Ré a título de responsabilidade civil extracontratual, por considerar que o acidente, em causa nos autos, se ficou a dever, em relação à recorrente, a deficiência do piso da passagem de nível e a falta de sinalização adequada da existência de obstáculo na passagem de nível de forma a poder parar os comboios.

4ª. Consequentemente, no que tange à recorrente, está em causa um acto de gestão pública, dado que o mesmo se insere no âmbito da prestação de serviço público de gestão da infra-estrutura ferroviária nacional e dos respectivos sistemas de segurança, arts. 2º, n°2 e 4 alínea b) do DL 104/97.

5ª. Além do exposto, a norma do art. 32º, n°1, do Estatutos da recorrente, Anexo 1 ao DL 104/97 de 29/4 foi revogada pelo art. 18º, n °1, e 40º, n°1 e 2, do DL 558/99 de 17/12.

6ª. Com efeito, o art. 40º, n°1 e 2, do DL 558/99 ao revogar o DL 260/76 de 8/4 e toda a legislação que remetesse para este Decreto-Lei, revogou o art. 32º, n°1 dos estatutos da recorrente dado que esta disposição foi retirada do art. 46º, n°1, do DL 260/76.

7ª Além de, exercendo a recorrente poderes de autoridade em relação à gestão da infra-estrutura ferroviária, arts. 2º, n°1 e 2 alínea b) e 3 n°1 e 2 do Anexo I ao DL 104/97 de 29/4, com a entrada em vigor do DL 558/99, ter passado a ficar equiparada a entidade administrativa para efeitos de determinação dos tribunais competentes, em relação a esta matéria, art. 18º, nº1, do DL 558/99.

8ª Tendo, assim, a decisão recorrida violado, a propósito da competência do tribunal, os arts. 18º, n°1 e 40º, nºs1 e 2, do DL 558/99, devendo ser considerada competente, em razão da matéria, a jurisdição administrativa e absolvida a recorrente da instância.

9ª Por último, a norma do art. 32º, n°1 dos Estatutos da Refer E.P. é, também, inconstitucional se interpretada no sentido de serem os Tribunais Judiciais os competentes para apreciação dos litígios em que seja parte a recorrente, mesmo que em razão da matéria, seja competente outra ordem jurisdicional, por violação do disposto no art. 211º, n°1, da C.R.P.
Deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via do mesmo, revogar-se a decisão recorrida, declarando-se a jurisdição administrativa como a materialmente competente para apreciação do presente pleito, absolvendo-se a recorrente da instância.

A Agravada “AA” contra-alegou, pugnando pela confirmação do Acórdão.


Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que, factualmente, releva o que consta do Relatório.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se a competência material para apreciação do litígio expresso na acção é o Tribunal comum ou o Tribunal administrativo;

- saber se a norma do art. 32º, n°1 dos Estatutos da Refer E.P. é, também, inconstitucional se interpretada no sentido de serem os Tribunais Judiciais os materialmente competentes para apreciação dos litígios em que seja parte a recorrente, por violação do disposto no art. 211º, n°1, da C.R.P.

Vejamos:

A competência do Tribunal determina-se pelo pedido formulado pelo Autor e pelos fundamentos que invoca.

Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1. °- 88), acerca do critério aferidor da competência material, ensina:

“São vários esses elementos também chamados índices de competência (Calamandrei).
Constam das várias normas que provêem a tal respeito.
Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção – seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjacentes (identidade das partes).
A competência do tribunal – ensina Redenti (vol. I, pág. 265), afere-se pelo “quid disputatum” (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor.
E o que está certo para os elementos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes”.

Estatui o art. 67º do Código de Processo Civil – “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada”.

Como pode ler-se, in “A Nova Competência dos Tribunais Civis”, de Miguel Teixeira de Sousa, Edições Lex, 1999, págs. 31-32:

A competência material dos tribunais civis é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual. Segundo o critério de atribuição positiva, pertencem à competência do tribunal civil todas as causas cujo objecto seja uma situação jurídica regulada pelo direito privado, nomeadamente civil ou comercial. (...).
(...) Segundo o critério de competência residual, incluem-se na com­petência dos tribunais civis todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum outro tribunal.
Isto é: os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual (art. 211º, nº1, da Constituição da república Portuguesa; art. 18º, nº1, da LOFTJ) e no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais civis aqueles que possuem a competência residual – (cfr. arts. 34º e 57º LOFTJ)”.

Como decorre do art. 212º, nº3, da Constituição da República – “Compete aos Tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais”.

Concorda-se com o Acórdão recorrido quando afirma: “…à data da propositura da acção (5.4.02), estava em vigor o ETAF constante do DL n°129/84, de 27.4, com as alterações introduzidas pelo DL n°229/96, de 29.11, e não o ETAF aprovado pela Lei n°l 3/2002, de 19.2, que entrou em vigor um ano após a data da sua publicação, com excepção do art.7°, que entrou em vigor no dia seguinte (cfr. o art.9°), sendo que, as novas disposições não se aplicam aos processos que se encontrem pendentes à data da sua entrada em vigor (cfr. o art.2°, n°l)”.

Assim é à luz do ETAF de 1984 que a questão decidenda deve ser apreciada.

Atenta a causa de pedir e o pedido formulado, dúvidas não existem quanto a considerar que a pretensão indemnizatória da Autora radica nos princípios de responsabilidade extracontratual, já que nenhuma relação contratual existe entre os agora pleiteantes.

Relevante para determinar a competência material, atenta a legislação em vigor ao tempo da propositura da acção, é a qualificação do acto imputado às RR. tendo em conta a causa de pedir, ou seja, saber se se está perante um acto de gestão pública ou de gestão privada, porque, segundo ETAF de 1984 – art. 51º, nº1, h) – em caso de responsabilidade civil extracontratual emergente de actos do Estado, demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos ou agentes, a competência material dos tribunais administrativos se reporta a actos de gestão pública.

Estando excluída da jurisdição administrativa as acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público (cfr. o art.4°, n°l, al.f)).

Marcello Caetano, in “Princípios Fundamentais de Direito Administrativo”, 1977-372 a propósito do conceito de gestão privada, ensina: “verifica-se quando os órgãos das pessoas jurídicas de Direito órgãos das pessoas jurídicas de Direito Público que tenham actividade administrativa, exercem ou podem exercer, consoante a competência conferida por lei, poderes correspondentes a direitos pessoais ou patrimoniais reguladas pelo Direito Privado, exactamente como quaisquer outras pessoas jurídicas”.

Gestão pública segundo o mesmo autor – obra citada – pág. 373 – existe quando os órgãos das pessoas jurídicas de Direito Público podem utilizar a autoridade que lhes permite praticar actos definitivos e executórios, e empregar a coacção para executá-los”.

Como ensina o Professor Freitas do Amaral, in “Curso de Direito Administrativo”, Vol, I, pág.123“Estando em causa um comportamento da administração pública que se julga ilegal ou arbitrário, o Tribunal competente será o tribunal comum, se à questão forem aplicáveis normas de direito civil”.

O art. 3º do ETAF – Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais – DL 129/84 de 27.04. [e diploma complementar DL.nº374/84 de 29.11], aplicáveis ao caso em apreço estabelece:

“Incumbe aos tribunais administrativos e fiscais, na administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e provados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

O art. 4º, nº1, f) do mencionado diploma, exclui desse âmbito – “Os recursos e as acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público”.

Como observam Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida nas “Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo”, Almedina, 38 e 39:

“No que se refere à responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados, estabelece o artigo 4º, nº1, alínea i) do ETAF, que a jurisdição administrativa só é competente para apreciar quando a esses sujeitos for aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.
No que se refere às pessoas colectivas de direito privado, continua, pois, a ser relevante, para determinar se um litígio é da competência dos tribunais administrativos ou dos tribunais comuns, saber se o facto constitutivo da responsabilidade se encontra ou não submetido à aplicação de um regime especifico de direito público…”.

Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral” (7ª edição, I, 643) ensina que actos de gestão pública são os que visando a satisfação de interesses colectivos, realizam fins específicos do Estado ou outro ente público e assentam sobre o jus autorictatis da entidade que os pratica; os actos de gestão privada são, de modo geral, aqueles que, embora praticados por órgãos do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, estão sujeitos às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares.

Também assim Vaz Serra, RLJ 103°, 350.

Como se pode ler no Acórdão deste Tribunal de Conflitos, de 25.9.2003, Proc.11/2003, in www.dgsi.pt de que foi Relator o Ex. Conselheiro Salvador da Costa:

“…Em princípio, incumbe à jurisdição administrativa o julgamento de quaisquer acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, ou seja, todos os litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, com excepção dos que o legislador ordinário expressamente atribua a outra jurisdição.
Densificando o mencionado dispositivo constitucional, no quadro da administração da justiça, a lei ordinária atribui aos tribunais administrativos e fiscais o assegurar da defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, a repressão da violação da legalidade e a dirimência de conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações administrativas e fiscais (artigo 3° do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril - ETAF).
Acresce que a lei exclui dessa jurisdição, além do mais, os recursos e as acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público (4°, n.º1 alínea f), do ETAF).
Finalmente, […] a lei atribui aos órgãos da jurisdição administrativa, particularmente aos tribunais administrativos de círculo, a competência para conhecer das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo as acções de regresso (artigo 51° n.º 1, alínea h) do ETAF).” [destaque e sublinhados nossos].

No caso dos autos a pretensão ressarcitória da Autora não radica em qualquer acto de gestão pública das RR.

Na tese da Autora – e por ela, como vimos, se deve aferir da competência material do Tribunal – os danos que sofreu o seu camião no dia 24.11.2000 – deveram-se ao facto de a 2ª Ré não ter accionado convenientemente as barreiras duma passagem de nível de comboios, o que fez com o que o veículo tivesse sido colidido por uma locomotiva da 1ª Ré; quanto à 1ª Ré imputa-lhe o facto de ter descurado a manutenção do local onde o acidente ocorreu.

A “Refer” tem por objecto principal a prestação do serviço público de gestão da infra-estrutura integrante da rede ferroviária nacional.

No entanto a prestação daquele serviço não implica a prática de quaisquer actos de gestão pública; a responsabilidade pela prática dos factos alegados implicará a aplicação de normas de direito privado da competência dos tribunais comuns, por via do critério residual que a lei consagra, como vimos antes.

O art. 32°, nºl, dos estatutos da Refer, aprovados pelo DL nº104/97, de 29/4, dispunha que competia aos tribunais judiciais o julgamento das acções em que ela fosse demandada por responsabilidade civil extracontratual.

Sustenta a Refer que os actos em causa são de gestão pública relacionados com “os poderes de autoridade em relação à gestão da infra-estrutura ferroviária”, e que, além disso, aquele diploma, tal como o DL. 260/76, de 8.4 – que regia sobre o seu Estatuto se encontra revogado pelo DL.558/99, de 17.12 [regime geral das empresas públicas] – pelo que, mesmo que se considere aplicável aquele art., 32º, nº1, no sentido da competência dos Tribunais comuns – tal interpretação é inconstitucional por violar o art. 211º do CRP.

Sobre esta problemática sufragamos totalmente o sentenciado pelo Tribunal de Conflitos, no seu Acórdão de 6.7.2006, in www.dgsi.pt, onde se discutia a mesma questão, ademais em processo em que a Refer foi parte.

“ […] O referido art. 32º não correspondeu a uma qualquer actuação inovadora do Governo em matéria de reserva relativa da Assembleia da República (cfr. o art. 165º, n.º1, al. p), da CRP), mas traduziu somente a reiteração, para o caso de uma certa empresa pública, de algo que a legislação em vigor no país já genericamente dispunha.
Ora, na medida em que o Governo não alterou, “motu próprio” e através do art. 32º introduzido pelo DL n.º104/97, a definição então existente acerca da repartição das competências dos tribunais, necessário é concluir que tal preceito dos estatutos da REFER não pode padecer da inconstitucionalidade que exclusivamente adviria dessa suposta intervenção inovadora.
Entretanto, o DL nº260/76 foi revogado pelo DL nº558/99, de 17.12, cujo art. 18º veio regular em moldes aparentemente novos a questão de se saber quais os tribunais competentes para julgar os litígios em que intervenham empresas públicas.
Assim, poderia questionar-se se o art. 32º dos estatutos da REFER, dada a sua assinalada similitude com o art. 46º do DL nº260/76, não será deveras e materialmente uma norma geral, ainda que contida num diploma especial – e, por isso, susceptível de derrogação por aquele art. 18º.
Contudo, é de excluir radicalmente essa possibilidade de se considerar o dito art. 32º revogado pela “lex generalis”.
Com efeito, a recepção, no art. 32º dos estatutos da REFER, da solução geral que o art. 46º do DL n.º 260/76 previa corresponde a um intuito de particularização que obrigava a considerar, doravante, aquele preceito dos estatutos como “lex specialis”; e nada nos permite concluir que o legislador quis sobrepor a solução acolhida no art. 18º do DL n.º 558/99 a quaisquer preceitos especiais que diferentemente dispusessem.
Consequentemente, atento o que preceitua o art. 7º, n.º 3, do Código Civil, o art. 32º dos estatutos da REFER permaneceu em vigor apesar da edição do DL n.º 558/99.
Vigorando o art. 32º e não havendo razões de inconstitucionalidade que impusessem a sua desaplicação na data em que a lide foi instaurada, tudo indica que será à luz dessa norma que o dissídio ora em presença haverá de ser solucionado. Na verdade, o preceito dizia com clareza qual a ordem jurisdicional competente para julgar a acção dos autos – pois atribuía, “recte”, aos “tribunais judiciais” a competência para esse efeito”. [destaque e sublinhado nossos].

Finalmente, cumpre dizer que o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº211/2007, de 21.3.2007 – Proc. 430/02 da 3ª secção – acessível no sítio da Internet do Tribunal Constitucional, pronunciou-se sobre a questão, tendo decidido não julgar inconstitucional a norma do art. 32º, nº1, dos Estatutos da Refer na interpretação que aqui se perfilha e que não dissente da acolhida no Acórdão sob censura.

Decisão:

Nestes termos, nega-se provimento ao agravo.

Custas pela recorrente.


Supremo Tribunal de Justiça, 28 de Fevereiro de 2008

Fonseca Ramos ( relator)
Rui Maurício
Cardoso de Albuquerque