Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A3590
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALVES VELHO
Descritores: PENHORA
CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
LOCATÁRIO EXECUTADO
Nº do Documento: SJ200711130035901
Data do Acordão: 11/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
- A penhora do direito do locatário em contrato de locação financeira faz-se por notificação à contraparte no contrato – o locador no contrato de leasing (devedor com a posição jurídica de obrigado a vender a coisa) -, a efectuar pelo agente de execução, de que a posição contratual do executado, que lhe permitirá adquirir o direito de propriedade, fica à sua ordem (do agente).
- A penhora considera-se feita e fica completa no momento da notificação.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - AA deduziu, por apenso à acção executiva que BB move contra CC, embargos de terceiro pedindo o reconhecimento da titularidade do direito de locatário objecto da penhora e a suspensão dos termos da execução.
Alegou, em síntese, que é o titular do direito de locação financeira objecto da penhora desde 16/06/2005, data em que foi celebrado o contrato de cessão da posição contratual de locação financeira do imóvel pelo qual adquiriu a posição de locatário, pagando desde então as rendas e habitando o prédio.

Recebidos os embargos, o Exequente contestou, sustentando que o contrato de cessão da posição contratual não lhe é oponível, dado que na data em que ocorreu o reconhecimento notarial das assinaturas apostas no contrato já a penhora se encontrava registada.

Na procedência dos embargos, foi ordenado o levantamento da penhora do direito do locatário, decisão que a Relação confirmou.

O Exequente interpôs este recurso, visando a manutenção da penhora, a coberto das seguintes conclusões:

1ª - Nos autos da execução de que os embargos de terceiro constituem dependência foi penhorado o direito do executado à posição contratual de locatário emergente de um contrato de locação financeira que teve por objecto um imóvel;
2a - Tal direito não é uma expectativa jurídica de aquisição do bem imóvel que constituiu o objecto do contrato de locação financeira;
3ª Sendo, antes, uma relação obrigacional complexa que abrange obrigações e direitos, englobando-se nestes a expectativa jurídica de aquisição do bem imóvel que constituiu o objecto do contrato.
4a - A penhora efectivada na execução incidiu sobre uma posição jurídico - contratual que engloba obrigações e direitos, previstos, respectivamente, nos n.ºs 1 e 2 do art. 10° do citado Dec.- -Lei n.° 149/95;
5a - Nos autos da execução só teria ocorrido a penhora da expectativa jurídica de aquisição do imóvel que constituiu o objecto do contrato de locação financeira se fosse penhorado o direito de o locatário financeiro adquirir o bem locado, findo o contrato, pelo preço estipulado, direito esse previsto no art. 10°, n.° 2, alínea e), do Dec. Lei n.° 149/95, de 24 de Junho;
6a - Não sendo o direito penhorado um " direito ou expectativa de aquisição de um bem determinado", a penhora teria de ser efectuada de harmonia com as disposições respeitantes à penhora de coisas móveis ou imóveis, como resulta do preceituado pelo art. 863°, do Cod. Proc. Civil;
7a - A locação financeira e as suas transmissões estão sujeitas a registo - Código do Registo Predial, art. 2º, n.º 1, alínea l) -, pelo que a penhora da posição contratual de locatário emergente do contrato de locação financeira está, também, sujeita a registo, como resulta da alínea n) do citado art. 2.º;
8a - Da conjugação do disposto pelos art.s 838°, n.º 1, e 863°, do Cod. Proc. Civil, resulta que, se a penhora incidir sobre um direito sujeito a registo (como é o caso da penhora da posição contratual de locatário emergente de um contrato de locação financeira), o regime regra no que concerne ao modo de realização da penhora é o contido na subsecção de penhora de imóveis, pelo que a penhora se realiza com a sua inscrição no registo.
9a - Assim, tem de considerar-se que a penhora do direito penhorado na execução de que os presentes autos constituem dependência ocorreu na data em que se efectuou o seu registo (em 02/08/05) e não na data (20/09/05) em que a locadora foi notificada de que o direito penhorado ficaria à ordem do agente de execução.
10ª - Pelo que, tendo a penhora do direito ocorrido em 2 de Agosto de 2005 - data em que foi inscrita no registo -, a posterior cessão do mesmo direito pelo executado ao embargante e recorrido, que teve lugar em 10/08/05, consubstanciou um acto de disposição do direito penhorado, pelo que é inoponível à execução - Código Civil, art° 819°.
11ª – O acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 2º-1-a) e n) do CRegPredial, 838º-1, 860º-A-1 e 863º, todos do CPC, e 819º do C. Civil

O Recorrido não apresentou contra-alegação.

2. - Vêm assentes os seguintes factos:

- Nos autos de execução foi penhorado o direito do executado como locatário, no âmbito de contrato de locação financeira, do prédio urbano, destinado a habitação, composto de casa de cave, rés-do-chão e andar, sito na Rua ......, ../.., descrito na CRP sob o n.º ......../Braga e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 537;
- A penhora operou-se mediante a notificação à locadora concretizada em 20/09/2005 – data em que a locadora “Finibanco, S.A.” foi notificada de que o direito ficaria á ordem do agente de execução - e foi registada em 02/08/2005;
- Ao Embargante foi cedida a posição contratual de locatário no âmbito do mesmo contrato de locação financeira, por documento escrito datado de 16/06/2005 e com o reconhecimento notarial das assinaturas do dia 10/08/2005.

3. - A questão nuclear colocada no recurso consiste em saber em que momento teve lugar a penhora “do direito do executado, como locatário (do imóvel), no âmbito do contrato de locação financeira”, nomeadamente se a penhora desse direito se tem por efectuada como mero efeito da comunicação electrónica à Conservatória de Registo Predial, sendo aplicável o regime da penhora de bens imóveis, por remissão do art. 863º CPC, ou se a mesma apenas se opera com a notificação ao locador de que a posição contratual do executado fica à ordem do solicitador de execução, nos termos fixados no art. 856º, por remissão do art. 860º-A do mesmo Código.

4. - Mérito do recurso.

4. 1. - O contrato de locação financeira é um contrato duradouro cuja finalidade consiste em proporcionar a uma das partes, o locatário, um financiamento mediante a atribuição da posse e utilização para certo fim pelo locador que, por sua vez, o adquire para esse uso, tudo mediante o pagamento de uma renda, por certo período de tempo, com a faculdade de, no respectivo termo, o locatário poder adquirir, por compra, o bem por um preço convencionado, em princípio coincidente com o valor residual do bem não recuperado pelas rendas pagas (art. 1º do DL n.º 149/95, de 24/6).

Sendo “essencialmente, um negócio de crédito”, de “feição financeira” a locação financeira inclui elementos próprios do contrato de locação e do mútuo revelando ainda notas da compra e venda.
Assim, o locador é o proprietário da coisa locada até ao fim do prazo contratual, mantendo reserva legal em seu benefício dessa propriedade em garantia do financiamento prestado durante a vigência da execução contratual (art. 9º do DL cit.).
Em contrapartida, o locatário não adquire, por efeito do contrato qualquer direito de natureza real sobre o bem, apenas integrando na sua titularidade jurídica o direito de o usar e fruir, e, findo o contrato, o direito potestativo de o adquirir, pelo preço acordado (art. 10º do mesmo DL).

A lei prevê expressamente a transmissão entre vivos da posição do locatário (art. 11º).

4. 2. - Perante uma tal realidade, designadamente no concernente ao conteúdo das posições jurídicas do locado e do locatário no contrato de locação financeira, e em especial, ao que aqui releva, a faculdade de o último poder comprar ao primeiro, decorrido o período convencionado, o bem de que este manteve a propriedade, a lei processual, reconhecendo-a, passou a prever e regular, com a Reforma de 95/96, consagrando a “possibilidade de penhorar direitos ou expectativas de aquisição de bens determinados por parte do executado” (Relatório do DL n.º 329-A/95).

Como, vincando a especificidade do objecto da penhora em causa, refere RUI PINTO (“Penhora e Alienação de Outros Direitos …na Reforma da Acção Executiva”, “THEMIS”, Revista da FDUNL, Ano IV--N.º 7-2003, pg. 150), «objecto desta penhora são, prima facie, situações jurídicas activas que, afectando em termos reais um bem, permitem que o titular possa no futuro adquiri-lo para si, já não o próprio direito de propriedade ou outro direito real de gozo, pois que este está na titularidade de terceiro, contraparte no contrato”.
Objecto da penhora não é, pois, a coisa, ela mesma (a fracção autónoma, o veículo, etc.), mas o direito que sobre ela emerge da posição jurídica do executado, abrangendo “toda a posição contratual do executado, com o seu conteúdo real, i. e., o direito ou a expectativa de aquisição, e com todo o seu conteúdo obrigacional” (cit. 151).
A expectativa consiste, então, na posição que o locatário tem de vir a adquirir nos termos que o contrato lho faculta – no fim do contrato e pelo preço acordado.
É essa posição que é alienada na venda executiva quando se mantenha até final da execução a penhora da expectativa de aquisição, deixando então o executado/locatário de ser parte no contrato, que nele é substituído pelo adquirente. Não assim se, entretanto, o bem foi adquirido pelo executado/locatário, pois que sobre ele passa a recair directamente a penhora.

4. 3. - Reflectindo estes conteúdos jurídicos, maxime, de a expectativa de aquisição ter como objecto uma coisa que não é propriedade do executado, mas de terceiro, parte no contrato, como sucede no caso da locação financeira, o art. 860º-A CPC estabelece que à realização da penhora se proceda nos termos previstos para a penhora de créditos.
Vale isto por dizer que, por expressa disposição do art. 856º, a penhora se faz por notificação à contraparte no contrato – o locador no contrato de leasing (devedor com a posição jurídica de obrigado a vender a coisa) -, a efectuar pelo agente de execução, de que a posição contratual do executado, que lhe permitirá adquirir o direito de propriedade, fica à sua ordem (do agente), aplicando-se ainda, devidamente adaptado, o regime dos arts. 858º e 859º quanto à existência e exigibilidade da obrigação.
A penhora considera-se, pois, feita e fica completa no momento da notificação, podendo ser depois impugnada.

A notificação é feita com as formalidades da citação pessoal e sujeita ao regime desta, o que significa que a validade do acto de penhora depende da efectiva notificação na pessoa do devedor, sob pena de ocorrer falta de notificação, nulidade cognoscível oficiosamente e a todo o tempo – arts. 194º-a), 202º e 206º-1 CPC.

Uma vez realizada a penhora, mediante o cumprimento do formalismo previsto no art. 856º-1, a mesma será registável pois que, sendo-o a locação financeira e as suas transmissões, como previsto nos arts. 3º-3 do DL 149/95 e 2º-1-l) do CRegPredial, ao mesmo regime devem manter-se sujeitas as vicissitudes da situação jurídica de aquisição dos bens objecto do contrato.

Resta dizer que quando, como acima se aflorou, ocorra a aquisição do bem pelo executado antes da venda executiva, prevê a norma do n.º 3 do art. 860º-A , «evitando qualquer vazio por desaparecimento do objecto inicial da penhora», que, por “conversão automática” a mesma (penhora) passe a incidir sobre o próprio bem adquirido, mudando assim o objecto da penhora de “posição contratual para “direito real”, devendo, na circunstância, o agente de execução proceder à realização da penhora correspondente – de imóveis, nos termos do art. 838º e ss. ou de móveis, em conformidade com o previsto no art. 848º e ss..
Quando tal não ocorra, insiste-se, a penhora mantém-se como penhora da posição contratual (direito de crédito) e inerente expectativa de aquisição, e é esse o direito que é levado á venda, sendo que se a posição jurídica do executado se extinguir, por qualquer causa de extinção do contrato, a penhora também se extingue por desaparecimento do objecto (Autor e Revista cit., A.V - N.º 9 – 2004, “A Execução e Terceiros – Em Especial na Pemhora e na Venda”, pg. 242).


4. 4. - Aqui chegados, bem pode concluir-se que a penhora da posição jurídica do locatário, no contrato de leasing, que integra a expectativa de aquisição do bem locado, se realiza na modalidade especial da penhora de direitos, com sujeição, ao regime estabelecido no art. 860º-A do CPC, que, quando à forma de efectivação e eventual litigiosidade relativa à existência e exigibilidade do direito, por expresso reenvio da norma do seu n.º1, manda que se apliquem as normas dos arts. 856º, 858º e 859º, que são os artigos antecedentes acerca da penhora de créditos adaptáveis.

Consequentemente, a norma de direito subsidiário contida no art. 863º não estende o seu campo de aplicação ao modo de realização dessa penhora, relegando-o para o regime da penhora de bens imóveis ou de bens móveis consoante os casos, ou seja do “objecto corpóreo de um direito real” pressupondo que o executado é o seu proprietário e possuidor.
Continua-se no campo da penhora de direitos e/ou expectativas de aquisição, residualmente determinado por exclusão daqueles, de sorte que, também por exclusão, o art. 863º terá a sua área de aplicação, aliás nele próprio definido como “subsidiária”, no que não tiver regulamentação privativa e expressa no capítulo da penhora de direitos, o que, como se crê ter ficado demonstrado, não é, manifestamente, o caso da realização da penhora e fixação do conteúdo do direito penhorado (cfr., também sobre o âmbito de aplicação do art. 863º, LEBRE DE FREITAS, “CPC, Anotado”, vol. 3.º, 336 e 483).
Entendimento diferente conduziria, desde logo, à completa inutilidade e initeligibilidade de normas como a do n.º 3 do art. 860º-A, destinada justamente, como já aludido, a colmatar qualquer lacuna na passagem da posição jurídica à concretização da aquisição do bem.

Não é, por outro lado, a sujeição a registo que pode levar à aplicação do art. 838º-1 e 3 do CPC, mediante comunicação electrónica à CRP seguida da elaboração e afixação do auto de penhora.
A penhora consubstancia-se no auto ou na notificação de que o direito fica à ordem do solicitador de execução. O registo não é mais que “condição de eficácia” da penhora efectuada, concedendo ao titular do direito inscrito a prioridade prevista na lei (arts. 819º C.Civ. e 6º CRegPredial), como pode inferir-se da doutrina acolhida pelo artigo 862º-A-6 (L. FREITAS, ob. cit., 482).


4. 5. - Assim sendo, porque a penhora da posição jurídica do executado só se operou em 20 de Setembro de 2005, porquanto só nessa data se deu cumprimento às formalidades essenciais exigidas pela lei para a realização válida e eficaz dessa modalidade de penhora (arts. 860º-A e 856º-1 CPC), o registo anteriormente efectuado, enquanto lavrado com base em título insuficiente para prova legal do facto registado, é também inválido (art. 16º-1-b) CReg Predial).


Improcedem, pois, as conclusões da alegação do Recorrente.

5. - Decisão.

Pelo que ficou exposto, acorda-se em:
- Negar provimento ao recurso;
- Manter a decisão impugnada; e,
- Condenar o Recorrente nas custas.

Lisboa, 13 Novembro de 2007

Alves Velho (Relator)

Moreira Camilo
Urbano Dias