Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7617/15.7T8PRT.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: ACÇÃO POPULAR
AÇÃO POPULAR
INTERESSES DIFUSOS
LEGITIMIDADE ACTIVA
LEGITIMIDADE ATIVA
ACÇÃO INIBITÓRIA
AÇÃO INIBITÓRIA
ADMISSIBILIDADE
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
INTERESSE EM AGIR
CONFLITO DE INTERESSES
DIREITOS DO CONSUMIDOR
CONTA BANCÁRIA
INSTITUIÇÃO DE CRÉDITO
CRÉDITO HIPOTECÁRIO
Data do Acordão: 09/08/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO BANCÁRIO - ACTOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ( ATOS BANCÁRIOS EM ESPECIAI ) - CRÉDITO BANCÁRIO / CRÉDITO À HABITAÇÃO / MÚTUO HIPOTECÁRIO.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS / DIREITO DE ACÇÃO POPULAR ( DIREITO DE AÇÃO POPULAR ).
DIREITO DO CONSUMO - DIREITOS DO CONSUMIDOR / DIREITO DE ACÇÃO INIBITÓRIA ( DIREITO DE AÇÃO INIBITÓRIA ).
Doutrina:
- Miguel Teixeira de Sousa, A Legitimidade Popular Na Tutela Dos Interesses Difusos.
Legislação Nacional:
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 52.º, N.º3.
LEI DE DEFESA DO CONSUMIDOR, APROVADA PELA LEI N.º 24/96, DE 31-07: - ARTIGO 10.º, N.º1.
LEI N.º 83/95, DE 31-08: - ARTIGOS 2.º, N.º1, 13.º.
Sumário :
I - A ação popular tem como objecto a tutela de interesses difusos (o que compreende os interesses difusos stricto sensu, os interesses colectivos e os interesses individuais homogéneos), os quais se caraterizam por possuírem uma dimensão individual e supra individual, pela sua titularidade caber a todos e a cada um dos membros de uma classe ou de um grupo (independentemente da sua vontade) e por recaírem sobre bens que podem ser gozados de forma concorrente e não exclusiva.

II - Os interesses individuais homogéneos são definíveis como situações jurídicas genericamente consideradas, correspondendo aos interesses de cada um dos titulares de um interesse difuso ou de um interesse colectivo.

III - A tutela do interesse difuso supõe a abstração de particularidades respeitantes a cada um dos titulares, pois o que sobreleva é a proteção do interesse supra individual e a prossecução da finalidade visada com a sua criação na ordem jurídica, o que prescinde da apreciação de qualquer especificidade; porém, quando por intermédio daquela acção se almeje a tutela de um interesse colectivo, releva a proteção de situações individuais dos respectivos titulares, sendo que tal é admissível apenas até ao limite em que seja aceitável uma apreciação indiferenciada das mesmas, sem que, contudo, se dispense a análise individualizada de cada uma.

IV - Posto que a ação popular não é admissível quando o demandado possa invocar diferentes defesas contra os vários representados, deve-se atentar na posição por este assumida, assumindo-se assim aquela possibilidade como um critério prático para discutir a sua admissibilidade.

V - A legitimidade popular deve ser aferida em função do poder de representação dos titulares do interesse por parte do autor popular e do seu interesse na demanda, sendo que os representados devem todos ter sido atingidos pela violação do mesmo interesse difuso ou estarem em risco de o serem.

VII - A adequação da representação pressupõe a inexistência de um conflito de interesses entre o autor popular e os titulares do interesse difuso e a garantia de que a sua atuação permite substituir a presença daqueles em juízo.

VIII - Invocando os autores um interesse pretensamente partilhado por todos os clientes da ré – o pagamento de prestações dos créditos bancários para habitação através de qualquer meio idóneo para o efeito, nomeadamente contas bancárias sedeadas noutras instituições – que não está a ser por esta respeitado e as respectivas consequências, é de considerar que estamos perante a defesa de interesses colectivos (que se prendem com a forma de amortização dos ditos financiamentos), não revelando a causa de pedir ou o pedido quaisquer particularidades derivadas da multiplicidade dos factos que caraterizam as relações entre o banco e os seus mutuários.

IX - Sendo possível, face à definição do objeto da causa, proceder a uma apreciação indiferenciada da situação de cada um dos mutuários, competirá ao tribunal, uma vez apuradas as suas particularidades, apreciar se as mesmas inviabilizam uma tomada de decisão numa ação popular ou se, pelo contrário, os elementos factuais que são comuns a todas elas se revelam prevalentes, sempre tendo em vista a necessidade de abstração referida em III.

X - O juízo de manifesta improcedência previsto no art. 13.º da Lei n.º 83/95, de 31-08, supõe a inexistência do fumus boni iuris.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Em 2015.03.27, na Comarca do Porto – Instância Central – 1ª secção cível, AA e BB intentaram a presente ação que denominaram de “ ação popular” contra o Banco Comercial Português, S A.


Pediram

1. Que a todos os clientes da Ré, titulares de contratos de crédito para a aquisição de imóvel habitação, entre os quais os Autores, seja reconhecido o direito a procederem ao pagamento das prestações correspondentes a esses mesmos contratos através de qualquer meio idóneo, nomeadamente, mas não exclusivamente, por débito em conta de depósitos à ordem de que sejam legítimos titulares e com poderes para movimentação junto de qualquer instituição bancária a operar em Portugal ou crédito de dinheiro em conta titulada pela Ré em Portugal com a indicação que permita identificar o contrato para pagamento.

2. Caso o ponto anterior não proceda, que a todos os clientes da Ré titulares de contratos de crédito para a aquisição de imóvel habitação, entre os quais os Autores, seja reconhecido o direito de procederem ao pagamento das prestações correspondentes a esses mesmos contratos por débito em qualquer conta de depósito à ordem aberta junto de qualquer instituição bancária a operar em Portugal da qual sejam legítimos titulares e com poderes para a sua movimentação, independente da conta escolhida ser a que consta ou não no contrato para a aquisição de imóvel habitação celebrado com a Ré;

3. Caso os pontos anteriores não procedam, que a todos os clientes da Ré titulares de contratos de crédito para a aquisição de imóvel habitação, entre os quais os Autores, seja reconhecido o direito a procederem ao pagamento das prestações correspondentes a esses mesmos contratos por débito em qualquer conta de depósito à ordem abertas junto da Ré, de quais sejam legítimos titulares e com poderes para a sua movimentação, independente da conta escolhida ser a que consta ou não no contrato para a aquisição de imóvel habitação celebrado com a Ré.

4. Em qualquer dos casos, que:

- Seja a Ré obrigada a reconhecer que todos os clientes titulares de contratos de crédito para aquisição de imóvel para a habitação, entre os quais os Autores têm direito a alterar o domicilio de pagamento das prestações desses contratos e obrigada a reconhecer publicamente que não pode obstar ao encerramento de uma conta de depósitos à ordem apenas porque na mesma está domiciliado o pagamento das prestações relativas a contratos de crédito para aquisição de imóvel habitação e, em consequência, seja reconhecido o direito a todos os clientes da Ré titulares de contratos de abertura de contas de depósito à ordem, entre os quais os Autores, a encerrar as contas de depósitos à ordem junto da Ré se outras razões a isso não obstarem e a reconhecer publicamente que não pode cobrar comissões de gestão de conta de depósitos à ordem que servem para pagamento das prestações de crédito à aquisição de imóvel habitação, quando a mesma conta consta no contrato que suporta tal crédito.

5. Seja a Ré condenada a devolver, a cada um dos seus clientes titulares de contratos de crédito para a aquisição de imóvel habitação, incluindo os Autores, os montantes relativos às comissões de gestão de conta cobrada pela manutenção das contas de depósitos à ordem que tenha servido, nesse período, para pagamento das prestações dos aludidos contratos de crédito para aquisição de imóvel habitação, a apurar individualmente e a posteriori em sede de liquidação de sentença, invocando, para tanto e resumidamente, o direito dos titulares dos contratos de crédito para aquisição de habitação de procederem ao pagamento das prestações desses contratos como lhes aprouver e o direito dos titulares de uma conta de depósitos à ordem de a encerrarem, sendo proibidas as vendas casadas, não podendo, porque são titulares de um contrato de crédito para aquisição de imóvel à habitação cujas prestações são cobradas através daquela conta, ficar impossibilitados de o fazer.


Contestando

e em resumo, a ré alegou que

- a ação é inviável, enquanto ação popular, por se não verificarem os pressupostos da mesma, não podendo a ação prosseguir com outra forma de processo justamente porque foi proposta como ação popular.

- os autores intentaram uma ação popular, mas na defesa dos seus próprios interesses egoístas e que a relação existente entre autores e ré não se traduziu numa simples relação de cliente para banco mas empregado/entidade patronal e daí a concessão de vantagens que não são atribuídas a meros clientes, desde logo se vendo, por aí, que os clientes não estão na mesma posição;

- os factos que integram a causa de pedir são alegados na perspetiva de haverem o comportamento do Banco como violador da proibição das vendas casadas estabelecida no artigo 9º, nº 6 da Lei 24/96, de 31 de Julho, que estabelece ser “vedado ao fornecedor ou prestador de serviços fazer depender o fornecimento de um bem ou prestação de um serviço da aquisição ou da prestação de um outro ou outros.” e que, sendo proibida a venda de produtos casados, a obrigatoriedade da associação de uma conta a um empréstimo bancário para efeito de nela serem debitadas as prestações de um mútuo envolve violação daquela proibição por a “venda” de um produto [o “empréstimo” estar associado à “venda” de um outro (a abertura da conta)] mas que o caso dos autos não envolve um autor, mero cliente de um banco sem benefício de quaisquer vantagens, regalias ou especialidades que o distinguissem dos mais clientes daquele banco não sendo o autor igual aos demais clientes do banco que nele tivessem contratado e pendente produto ou serviço idêntico, pelo que não estamos em presença de interesses individuais homogéneos para efeito de um tal autor poder estender a proteção jurisdicional que pede aos mais clientes do banco em situação idêntica no âmbito do recurso a uma ação popular, tendo cada caso particularidades específicas;

- afirma que assim é uma vez que:

a) o mútuo dos autos foi concedido aos AA. quando o A. marido era funcionário do Banco, a sua solicitação, ao abrigo do Regulamento de Crédito à Habitação para o Sector Bancário (tendo em resultado disto, aquele mútuo ficado a beneficiar de uma taxa de juro remuneratório correspondente a escassos 65% da taxa básica de desconto do Banco de Portugal, sem acrescentamento de qualquer outra taxa, nomeadamente a título de spread sobre o indexante que, para qualquer outro cliente, seria pelo menos de 2%);

b) os AA. beneficiaram e continuam irrevogavelmente a beneficiar de

condições muito mais vantajosas do que aquelas que o Banco Réu disponibilizava ao tempo à generalidade dos seus clientes, de tal forma que, até hoje, pagaram de juros remuneratórios a menos que qualquer outro cliente comum do Banco quantia superior a € 42.000,00 (quase metade do capital que receberam mutuado);

c) apesar de ter revogado o contrato de trabalho, o Banco continuou a isentar os AA. de comissões de manutenção de conta, o que fez enquanto a conta continuou a estar ao serviço do crédito das prestações do subsídio de desemprego;

d) desde 2014 até ao presente, o Banco apenas cobrou ao AA. comissões de manutenção de conta no montante de € 21,00 (tendo a vantagem um desconto de mais de € 42.000,00 nos juros remuneratórios);

e) A conta bancária associada ao mútuo não foi aberta por causa do mútuo, sendo, que, quer antes quer depois deste, sempre foi e continua a ser movimentada pelos AA para os mais diversos serviços que o Banco presta, desde o saque e pagamento de cheques a pagamentos por débito em conta e créditos ou débitos provenientes de operações de venda ou compra de valores mobiliário;

f) Os AA. podiam, por decisão sua que o Banco lhes sugeriu mas que não concretizaram, ter alterado a domiciliação do empréstimo para uma de duas outras contas de depósito à ordem que tinham e têm abertas no Banco ou no Grupo, as quais não estavam e não estão sujeitas à cobrança de comissão de manutenção.

- desta realidade factual (que está assente) decorre que o caso não se esgota na mera existência de um mútuo e na cobrança das respetivas prestações por débito de uma conta àquele associada e isto porque a proibição do artº 9º, nº 6 da Lei 24/96, em que os AA. se louvam em favor do triunfo na ação, não se esgota, na sua previsão normativa, na simples existência do mútuo e da conta de depósito à ordem a ele associada, obrigando, à ponderação, da conta corrente dos benefícios recíprocos para efeito de sabermos se estamos ou não perante um caso de venda casada, proibida por aquele citado comando legal, corretamente interpretado;

-  foi por isso que a Diretiva Comunitária que refere veio excluir a abertura ou manutenção de uma conta de depósito à ordem associada à acumulação de capital destinado a reembolsar o crédito e a pagar os juros do universo da proibição do artº 9º, nº 6 da Lei 24/96, de 31 de Julho, por se ter percebido que a conta de depósito, instrumental como é do produto bancário contratado a título principal, não releva normativamente para efeito dos valores de política legislativa que inspiram a proibição das vendas casadas;

- o caso concreto dos AA. não pode ser analisado na perspetiva, tout court, da existência do mútuo e do pagamento das prestações que lhe são inerentes por débito na conta a ele associada, obrigando a ter presente os mais factos que envolvem a relação contratual, na complexidade e variedade dos factos que a envolvem e, afinal, a caracterizam;

-  para que a presente ação pudesse seguir como ação popular era necessário:

- que a realidade de facto associada à relação contratual dos AA. com o Banco não tivesse as referidas especialidades, reduzindo-se à simplicidade do mútuo e à existência de uma conta de depósito à ordem apenas destinada e usada para efeito de cumprimento das obrigações a ele associadas;

- que a relação contratual do Banco com todos os mais clientes com os quais tem pendentes mútuos à habitação tivesse também aquela singela

dimensão: mútuo e conta à ordem associada e apenas associada ao cumprimento das respetivas obrigações. Isto porque, se a conta é utilizada pelos respetivos titulares para outros e diferentes fins, o direito à cobrança das comissões emerge desses outros fins não podendo a conta deixar de vencer comissões só porque, na multiplicidade de outros e diversos movimentos, ela serve também para o débito das prestações dos mútuos;

- sem esquecer que há mutuários isentos de comissão de manutenção, o que significa que, à ponderação da multiplicidade dos factos que caracterizam a relação contratual dos AA. com o Banco é preciso somar a ponderação da multiplicidade dos factos que caracterizam a relação do Banco com todos e cada um dos seus mutuários que liquidam as prestações dos seus mútuos por débito em conta à ordem associada a estes mútuos;

- os empréstimos estão associados a contas de depósito à ordem abertas nos Balcões do Banco e que os pagamentos das respetivas prestações são efetuados, com a concordância dos mutuários, por débito em conta, sendo que e as contas de depósito à ordem, além de servirem para o débito das prestações dos empréstimos, são utilizadas pelos seus titulares para muitos outros fins, designadamente para pagamento de cheques sacados sobre o respetivo saldo, débito proveniente da utilização de cartões de crédito, pagamento de prestações de créditos pessoais diferentes do mútuo para habitação, prestações de contratos de locação financeira, realização depósitos a prazo e muitos outros fins, e, neste enfoque, cada caso é um caso, não havendo dois iguais;

- e se cada caso é um caso, por natureza diferente do caso dos AA., é de concluir que a situação destes não faz grupo com os demais clientes do Banco chamados aos autos na condição de titulares de interesses difusos ou de titulares de interesses individuais homogéneos;

- como vem sendo decidido, quando estamos perante situações de facto distintas estamos fora do objeto da ação popular,

- não sendo as relações contratuais dos clientes do banco (em que se inclui o Autor) idêntica, não pode a ação prosseguir como ação popular por falta de verificação dos respetivos pressupostos e que porque foi proposta como ação popular, não pode prosseguir com outra forma de processo.


A Digna Magistrada do Ministério Público, junto daquele tribunal, pugnou pela manifesta inviabilidade da presente ação popular por entender que não se estava em presença de interesses individuais homogéneos, nenhuma situação homogénea existindo, designadamente nenhuma Cláusula Contratual Geral tendo sido alegada, e, existindo liberdade contratual, as partes, em cada concreto contrato, são livres de acordarem e se vincularem nos termos que lhes aprouver e que melhor satisfaçam os seus concretos e específicos interesses individuais, sendo cada caso um caso.


Em 2016.03.16, no despacho saneador, foi proferida sentença, em que se julgou a ação “manifestamente inviável por se não se verificarem os pressupostos da proposta ação popular e, em consequência, se absolveu o réu dos pedidos formulados pelos autores”.


Estes deduziram o presente recurso de revista “per saltum” para este Supremo, ao abrigo do disposto no artigo 678º do Código de Processo Civil, apresentando as respectivas alegações e conclusões.

A recorrida contra alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Cumpre decidir.


As questões


Tendo em conta que

- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;

- nos recursos se apreciam questões e não razões;

- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido

a única questão posta consiste em saber se a petição inicial formulada nesta ação pelos autores recorrentes deve ou  não ser liminarmente indeferida por ser manifestamente improvável a procedência dos pedidos.


Factos


Os factos a ter em conta são os acima referidos decorrentes da tramitação processual.


Os factos, o direito e o recurso


Na decisão recorrida entendeu-se julgar a ação “manifestamente inviável” e absolver a ré dos pedidos formulados pelos autores, porque se entendeu que, invocando estes, como pressuposto desta ação, que pretendem que siga o seu curso como ação popular, pela existência de interesses individuais homogéneos, tais interesses se não verificavam no caso concreto em apreço, na medida em que as situações concretas dos titulares de contas de depósitos à ordem (DO), associadas a contratos de crédito para habitação de imóvel destinado a habitação, podem não ser idênticas, quer porque as situações de facto podem ser diferentes - as contas DO podem ser utilizadas para diversas finalidades, as comissão de manutenção podem não existir em todos os casos - quer porque a própria situação jurídica daí decorrente também pode não coincidir em relação a todos os clientes.


Os recorrentes entendem que a presente ação deve prosseguir como ação popular pois nela pretendem salvaguardar não só direitos individuais homogéneos, mas também direitos coletivos, na medida em que visam reparar um prejuízo que foi causado no património da coletividade de clientes que se encontram na mesma situação de facto – serem obrigados a manter uma conta de depósito s à ordem associada a um crédito para aquisição de imóvel para habitação - mas também acautelar o interesse público no correto e eficiente funcionamento do mercado, no sentido da defesa da coletividade ou grupo de consumidores de contas de depósitos à ordem de créditos para aquisição de imóvel, independente da sua origem ou natureza.


Ora, será que em função do pedido ou pedidos e dos seus fundamentos de facto e de direito, se pode afirmar desde já que é “manifestamente improvável” a procedência daquele pedido?

Com todo o respeito pelo entendimento vertido na sentença recorrida, cremos que não.

Vejamos porquê.


Nos termos do disposto no nº3 do artigo 52º da Constituição da República Portuguesa, “é conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesse em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei (…)”.


A definição dos casos e termos em que os cidadãos podem recorrer a essa ação popular foi feita pela Lei 83/95, de 31.08.


Vejamos, então, em que casos e termos, pode um cidadão - qualquer cidadão no uso dos seus direitos civis e políticos (cfr. nº1 do artigo 2º da referida Lei) – instaurar a referida ação popular.


Comecemos por expor alguns conceitos, socorrendo-nos, fundamentalmente, da obra do professor Miguel Teixeira de Sousa intitulada “A Legitimidade Popular Na Tutela Dos Interesses Difusos”.


O objeto de uma ação popular são os interesses difusos, onde podem incluir-se, quer os interesses difusos “stricto sensu," quer os interesses coletivos, quer ainda os respetivos interesses individuais homogéneos.

No objeto da ação popular nunca pode compreender direitos ou interesses meramente individuais.

Daí que a diferença que existe entre a ação popular e a ação individual ser a mesma que existe entre o interesse difuso e interesse individual.

Atentemos, pois, no conceito de interesses difusos.


Os interesses difusos são interesses que possuem uma dimensão individual e supra- individual, ao contrário dos interesses individuais, que só possuem uma dimensão individual, pertencem exclusivamente a um ou a alguns titulares.


Os interesses particulares homogéneos são aqueles em que não existem situações individuais particularizadas, mas tão só situações jurídicas genericamente consideradas.


Os interesses difusos encontram-se dispersos ou disseminados por vários titulares, mas são interesses sem sujeito ou sem titulares, cabem a cada a todos a cada um dos membros de uma classe ou de um grupo, mas são insusceptíveis de apropriação individual por qualquer desses sujeitos, sendo, pois, a dupla dimensão individual e supra -individual uma característica essencial desses interesses.


Os interesses difusos são indiferenciados, não só porque podem pertencer a qualquer sujeito que se inclua numa certa classe ou categoria, mas também porque eles existem independentemente de qualquer relação voluntária estabelecida entre os seus titulares.

São interesses de uma classe ou de um grupo, ou seja, de um conjunto de pessoas que podem satisfazer uma necessidade através da apropriação de um mesmo bem e é por isso que se pode falar também de interesses difusos de consumidores.


Os interesses difusos recaem sobre bens que podem ser gozados de uma forma concorrente e não exclusiva, pois que os seus titulares, ao beneficiarem de um certo bem, não impedem os outros que possam igualmente disfrutar desse mesmo bem.


Os interesses individuais homogéneos podem ser definidos como os interesses de cada um dos titulares de um interesse difuso “stricto sensu” ou de um interesse coletivo.

Não são apenas interesses singulares, isto é, de um indivíduo, mas também interesses supra- individuais, pois que pertencem a todos os titulares do interesse difuso “stricto sensu” ou do interesse coletivo.


Na ação popular procura-se a tutela de um interesse difuso, assim como os correspondentes interesses individuais homogéneos de todos os seus titulares.

No entanto, para que a tutela coletiva seja praticável, ela impõe normalmente a abstração de algumas particularidades respeitantes a cada um dos seus titulares.

Na verdade, a tutela coletiva não é possível sem a abstração do “lastro de individualização” que é característica das situações “standard”.


A tutela de interesses difusos “stricto sensu” e a tutela de interesses coletivos visam finalidades que não são totalmente coincidentes.


Quando se trata de defender interesses difusos, o que sobreleva é a proteção do interesse supra individual “qual tale” e a prossecução da finalidade visada com a sua previsão no ordenamento jurídico, por exemplo, a prevenção de uma agressão ambiental ou uma reação contra o uso de uma cláusula contratual ilegal.

Quando se trata de defender interesses coletivos, o que ressalta é a proteção das situações individuais de cada um dos titulares.


Enquanto os interesses difusos são sempre compatíveis com uma tutela subjetivamente indiferenciada, à proteção dos interesses coletivos pode não interessar a apreciação individualizada da situação de cada um dos titulares.


A tutela dos interesses coletivos só é admissível até onde for aceitável uma apreciação indiferenciada da situação de cada um dos seus titilares.


A tutela individual requer uma cuidadosa reconstrução dos factos e o sucesso dela pode depender da averiguação de alguns pormenores, mas a tutela coletiva só é viável abstraindo das especificidades de cada uma das situações individuais.


  Quando uma ação se destina à proteção de interesses difusos “stricto sensu”, ela tutela um interesse indivisível e insusceptível de ser individualizado, pelo que não se requer qualquer apreciação individual de cada um dos titulares daquele interesse.


Quando se destina à proteção de interesses coletivos, ela permite a coletivização de uma massa de ações individuais, mas como estão em causa bens privado de vários sujeitos, não pode dispensar uma análise individualizada da situação de cada um dos seus titulares.


A ação inibitória prevista no artigo 10º, nº1, proémio, da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei 24/96, de 31.07, deve ser considerada, quando seja proposta por um consumidor ou por uma associação de consumidores, uma ação popular.


A ação popular não é admissível quando o demandado possa invocar contra algum ou alguns dos representados uma defesa pessoal, isto é, quando possa utilizar fundamentos de defesa específicos contra alguns desses representados.


Assim, a possibilidade de o demandado numa ação popular invocar diferentes defesas contra vários representados pode ser utilizada como um critério prático para verificar se eles são titulares de um mesmo interesse individual homogéneo.


Isto favorece que o demandado procure demonstrar que as especificidades da situação de algum ou alguns deles prevaleçam sobre os elementos de facto e de direito que lhe devem ser comuns, o que conduz a discussão para a análise da admissibilidade da ação e afasta-a dos problemas relativos ao mérito da causa.

Por isso, deve o Tribunal exercer o devido controlo sobre a atuação do demandado.


A legitimidade popular deve ser aferida em função de dois elementos:

- o poder de representação do autor popular, ou seja, a faculdade que cabe ao demandante de representar os titulares do interesse difuso;

- o interesse em demandar do autor popular, isto é, a vantagem que o demandante retira da procedência da ação.


Os representados numa ação popular têm de ser titulares de um mesmo interesse individual homogéneo, ou seja, todos devem ser atingidos pela violação de um mesmo interesse difuso ou todos devem estar em risco de serem afetados pela ofenda de um mesmo interesse difuso.


Não basta que um autor popular possua poderes de representação dos titulares de um interesse difuso, também é necessário que esse autor tenha uma relação com aquela interesse que justifique que, no caso concreto, ele possa instaurar a ação popular.


A adequação da representação exercida pelo autor popular pressupõe o preenchimento de dois requisitos: um deles, de carater negativo, é a ausência de qualquer conflito de interesses entre o autor popular e os titulares do interesse difuso; o outro requisito, de carater positivo, é a garantia que a atuação do demandante permite substituir a presença dos titulares do interesse difuso na ação popular.


Posto isto, voltemos ao caso concreto em apreço.


O interesse invocado pelos autores consiste, fundamentalmente e em face do pedido principal formulado por estes, no interesse de “a todos os clientes da Ré, titulares de contratos de crédito para a aquisição de imóvel habitação, entre os quais os Autores, seja reconhecido o direito a procederem ao pagamento das prestações correspondentes a esses mesmos contratos através de qualquer meio idóneo, nomeadamente, mas não exclusivamente, por débito em conta de depósitos à ordem de que sejam legítimos titulares e com poderes para movimentação junto de qualquer instituição bancária a operar em Portugal ou crédito de dinheiro em conta titulada pela Ré em Portugal com a indicação que permita identificar o contrato para pagamento”.


Os autores alegam que esse interesse foi e está a não ser respeitado pela ré, daí decorrendo determinadas consequências para os autores e demais clientes da mesma e a obrigação desta ré em reconhecer esse interesse – ou os interesses constantes dos pedidos formulados subsidiariamente – ao nível do domicílio do pagamento das prestações, do enceramento de contas de depósito à ordem e de pagamento de comissões de gestão.


Ora, em face disto e dos conceitos acima referidos, entendemos que estamos perante interesses coletivos, passiveis de serem invocados numa ação popular.


Na verdade, o que está aqui em causa é o interesse ou interesses dos autores e de cada um dos titulares de contratos de crédito para habitação, interesse ou interesses estes definidos nos termos acima referidos, fundamentalmente ligados ao pagamento das prestações.

O que os autores pretendem defender não é só a sua situação individual, mas também a de uma massa de interesses individuais de outros titulares de empréstimos para habitação.


Face ao objecto da presente ação – definido, como se sabe, pelo pedido e pela causa de pedir - não estão aqui em causa quaisquer particularidades, nomeadamente as decorrentes da eventual “multiplicidade dos factos que caraterizam a relação do Banco com todos e cada um dos seus mutuários”, como se escreveu na sentença recorrida, particularidades estas que, eventualmente e em fase ulterior do processo poderão ser apreciadas.


Apenas está em causa se num contrato de crédito para a aquisição de imóvel para habitação aos autores e a demais titulares dos contratos deve ser reconhecido o direito de procederem aos pagamento das prestações correspondentes a esses contratos através de qualquer meio de pagamento idóneo, ou então, se devem ser reconhecidos os outros direitos invocados subsidiariamente pelos autores.


Tal como a ação foi proposta, é perfeitamente possível uma apreciação indiferenciada de cada um dos titulares dos empréstimos, sendo que competirá ao Tribunal, numa fase ulterior do processo, averiguar se as particularidades invocadas pela ré podem ser abstraídas para a tomada de uma decisão numa ação popular, tendo sempre em atenção, como acima ficou referido, que a tutela coletiva não é possível sem a abstração do “lastro de individualização” que é caraterística das situações “standard”.


Há que ter sempre em atenção que os elementos de facto a ter em conta não são só os que eventualmente existam como específicos de cada situação, mas também os elementos de facto comuns a todas elas, devendo o Tribunal exercer o devido controlo sobre a prevalência daqueles primeiros elementos que eventualmente existam sobre os elementos de facto comuns que sustentam os pedidos formulados, sem nunca perder de vista a tendencial abstração daqueles elementos particulares como base quase necessária para a possibilidade da existência da ação popular.


Na verdade, se qualquer elemento particular invocado por um demandante fosse suficiente para descaraterizar imediatamente o interesse como coletivo, praticamente seria impossível a existência de qualquer ação popular, ficando esta, na realidade, na disponibilidade daquele.


Finalmente, há que dizer que não se revela, desde já, qualquer conflito de interesses entre os autores e os outros titulares do interesse comum por eles invocado, antes e pelo contrário, revela-se, tal como a questão é posta pelos autores, essa comunidade.


Na verdade e tendo em conta o núcleo da matéria posta à apreciação do Tribunal – repete-se, fundamentalmente relacionada com o pagamento das prestações de empréstimos para habitação – à partida e sem prejuízo da ulterior apreciação da preponderância de qualquer situação particular que torne impossível a sua abstração para aquele efeito, parece-nos ser evidente que é do interesse de qualquer daqueles titulares que lhe seja reconhecido “o direito a procederem ao pagamento das prestações (…) através de qualquer meio idóneo”, sendo certo que poderão exercer ou não e da forma que tiverem por mais conveniente, a faculdade contida nesse direito, se reconhecido.


Concluímos, pois, que não se afigurando a ausência do “fumus boni júris” subjacente ao juízo de manifesta improbabilidade do pedido referida no artigo 13º da citada Lei 83/95 como causa do indeferimento da petição, deve a ação prosseguir os seus termos para os efeitos do acima expostos, assim merecendo censura a decisão recorrida.


A decisão


Nesta conformidade, acorda-se em conceder a revista e assim, revogando a decisão recorrida, ordenar que os autos voltem à 1ª instância, devendo a ação prosseguir os seus ulteriores termos.

Custas pela recorrida.


Lisboa, 8 de Setembro de 2016


Oliveira Vasconcelos (Relator)

Fernando Bento

João Trindade