Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A4160
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: VENDA DE COISA DEFEITUOSA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
DEFESA DO CONSUMIDOR
REPARAÇÃO
SUBSTITUIÇÃO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
PRAZO DE CADUCIDADE
Nº do Documento: SJ200712130041606
Data do Acordão: 12/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA REVISTA
Sumário :
I - Tal como o art. 913.º do CC, o art. 4.º da LDC consagra um critério funcional: a coisa entregue pelo vendedor, na execução do contrato de compra e venda deve estar isenta de vícios físicos, defeitos intrínsecos inerentes ao seu estado material que estejam em desconformidade com o contratualmente estabelecido, ou em desconformidade com o que, legitimamente, for esperado pelo comprador.
II - Sendo diferente a definição de “defeito da coisa vendida” que consta do art. 913.º do CC e do art. 4.º, n.º1, da LDC, é mais favorável ao consumidor a que resulta desta lei.
III - Este normativo da LDC deixa entrever uma clara protecção do consumidor, desde logo, ao considerar um critério objectivo – a coisa vendida para ser isenta de “defeito” deve ter aptidão, idoneidade, e as qualidades intrínsecas hábeis a satisfazer os fins e os efeitos a que se destinam, segundo as normas legalmente estabelecidas – e, também, um critério subjectivo, atribuindo relevância às expectativas legítimas do consumidor.
IV - No caso em apreço, o bem vendido é um veículo todo-o-terreno de gama média-alta, comprado em estado de novo e que, desde o início, patenteou “defeitos” que não são, de modo algum, admissíveis numa viatura que sai do stand para as mãos do comprador.
V - Dada a magnitude dos defeitos que persistem, não está em causa o facto de eles comprometerem ou não, a normal utilização em segurança do veículo, mas o facto de nunca a sua existência desde a compra se compadecer com as expectativas do comprador, sendo que o fabricante/importador nem sequer alegou que desconhecia a existência desses defeitos de origem.
VI- Independentemente das vicissitudes do relacionamento entre o Autor e a Ré – em relação a esta e às suas concessionárias – que pela estrutura organizacional do fabricante/importador se ocupavam também da assistência técnica – o certo é que os compradores nunca dispuseram do veículo com a aptidão – qualidades técnicas – que obviamente são garantia do fabricante – nem nunca o veículo, pela dificuldade em ser convenientemente reparado pôde satisfazer a expectativa dos compradores.
VII - O comprador de coisa defeituosa pode, por esta ordem, exigir do fornecedor/vendedor: 1º - a reparação da coisa; 2º - a sua substituição; 3º - a redução do preço ou a resolução do contrato, conquanto exerça esse direito, respeitando o prazo de caducidade - art. 12.º da LDC.
VIII - Ante a manifesta impossibilidade por razões a que os AA. são alheios, da Ré fabricante/importador por si e pelas suas concessionárias, eliminarem os defeitos que originariamente afectavam o veículo – não proporcionando segurança, confiança e fiabilidade – têm os AA. para protecção dos seus interesse económicos – art. 9.º, n.º 1, da LDC – direito a ver substituído o bem, nos termos da segunda alternativa conferida pelo n.º 1 do art. 12.º da LDC.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA e BB intentaram, em 6.4.2004, pelas Varas Cíveis da Comarca de Lisboa – 4ª Vara – acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra:

- F….-C…. de C…. Ldª.

- O…. P…..-C….. e I….. de V….., U….. Ldª.

Pedindo a condenação das rés a entregar aos autores uma viatura nova ou a indemnizá-los em quantia equivalente, bem como no pagamento do montante de € 7.500,00, a título de danos não patrimoniais.

Alegam, em síntese, que, em 09.10.00, adquiriram, novo, na ré “F….”, o veículo de marca Opel, modelo Frontera, com a matrícula …-...-QJ, pelo preço de € 29.149,58.

Essa viatura, considerada topo de gama, apresentou vários defeitos desde a data da sua aquisição, o que originou imensos transtornos.

De todos esses defeitos a ré “O…” só reconheceu a deficiência na bóia do combustível.

Os autores perderam a confiança em tal viatura, o que muito veio a afectar as suas vidas, sendo que chegaram a ficar parados no meio da via, devido à imobilização súbita do veículo em questão, necessitando de chamar um reboque.

Enquanto a sua viatura estava a ser reparada, as rés nem sempre forneceram outro veículo de substituição. Os autores tiveram muitos incómodos com toda esta situação. O autor começou a ficar muito nervoso, o que afectou a harmonia do casal.

Em contestação, a ré “F….” defende-se por excepção, sustentando que os autores não voltaram a aparecer nas suas oficinas, reclamando a reparação de avarias, a partir de 25.05.01, passando a deslocar-se à “L…, U…. de A…. S.A.”, o que determinou a caducidade do direito que invocam.

Por impugnação, refere que o veículo em questão não é considerado topo de gama, sendo um “todo-o-terreno” de gama alta.

As anomalias invocadas pelo autor foram devidamente reparadas.

Em contestação, a ré “O…P….” arguiu a nulidade da produção antecipada de prova, por não se ter verificado o contraditório, bem como, a nulidade da petição inicial no que concerne aos factos atinentes a tal prova.

Impugnando os factos articulados pelos autores, refere que as reclamações apresentadas pelos autores carecem de fundamento. Só a bóia de combustível é que estava avariada e, por isso, foi substituída.
Verificou-se apenas desgaste do material decorrente da utilização do dito veículo.

Na réplica, os autores defendem a inexistência das excepções invocadas pelas rés e pedem a condenação da ré “F….” como litigante de má-fé, em multa e indemnização.

Por despacho, transitado em julgado, foi julgada procedente a referida nulidade suscitada pela ré “O…. P….” sendo, consequentemente, inoponível a esta ré a aludida produção de prova.

Foi proferido despacho saneador, com selecção da matéria de facto assente e da que constitui a base instrutória, tendo sido relegada para final o conhecimento da excepção da caducidade.
***

A final foi proferida sentença, julgando-se procedente, por provada, a excepção da caducidade, relativamente à ré “F…”, pelo que se absolveu esta ré do pedido.

Julgou-se a acção improcedente, por não provada, e, consequentemente, absolveu-se a ré “O… de P….” do pedido.
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Inconformados, os AA. recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão de 19.4.2007 – fls. 380 a 410 – negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida.
***

De novo inconformados recorreram para este Supremo Tribunal e, nas alegações apresentadas, formularam as seguintes conclusões:

1. De acordo com a prova produzida nos autos dúvidas não podem subsistir que se discutem na presente causa defeitos de origem que nunca foram devidamente sanados, mas sempre foram reclamados, tanto perante a O….P….. como perante a F…..

II. A falta de reparação adequada, que permita ao veículo funcionar e circular sem apresentar problemas como se estivesse nas condições normais de aquisição de um veículo novo, em termos práticos equivale a uma falta de reparação.

III. Os Autores reclamaram os defeitos da viatura desde o início, que são precisamente os mesmos relativamente aos quais foi intentada a acção ora recorrida.
Diga-se que se os Autores vieram requerer a entrega de uma viatura equivalente e não a reparação da viatura constante dos autos, tal deve-se ao facto dos defeitos desde sempre denunciados, ou seja, originais de fabrico, nunca terem sido devidamente sanados, ainda que as Rés tenham procedido à reparação da viatura por diversas vezes.

IV. A venda de coisa defeituosa vem regulada especificamente nos artigos 913° e ss do Código Civil, consagrando a chamada garantia edilícia, que protege o comprador contra os defeitos essenciais da coisa vendida.

V. Os Autores apenas subsidiariamente e perante a constatação inequívoca da inadequada reparação solicitaram a entrega de um veículo novo em substituição do adquirido.

VI. Foram feitas várias diligências infrutíferas pelos Autores junto das Rés no sentido da resolução dos problemas originais.
Acresce que a reclamação que data de 29 de Abril de 2001 mais não é que um acto de desespero dos Autores no sentido de ultimar de uma vez por todas a resolução consensual do assunto, que até ao momento não tinham logrado obter, sendo esta reclamação escrita uma advertência para a via judicial, tendo as Rés procedido ainda a reparações no veículo, que se materializou numa Produção Antecipada da Prova, a qual deu entrada no Tribunal em 12 de Julho de 2002.

VII. Necessário é salientar que se os Autores não intentaram antes a acção, tal deveu-se ao facto das Rés sempre terem reparado a viatura e de se terem vindo a verificar sucessivas falhas no que respeita às reparações efectuadas, ou seja, os defeitos da viatura nunca foram solucionados pelas Rés.

VIII. Contrariamente ao alegado pelas Rés e que o douto Tribunal considera provado, a denúncia dos defeitos foi oportuna e tempestivamente efectuada junto das Rés em várias datas, algumas anteriores à de 29 de Abril de 2001, outras posteriores, foram feitas várias reparações da viatura e depois dessas reparações a viatura voltou a evidenciar os mesmos problemas devendo ser, por isso, a excepção da caducidade deduzida considerada improcedente.

IX. Saliente-se que o Relatório Pericial apenso aos autos não foi devidamente valorado na decisão da causa, sendo que não foi contestado por qualquer meio idóneo admissível, nomeadamente contra peritagem. Refiram-se, assim, as conclusões apresentadas de forma inequívoca no ponto 3 de onde se ressalva “… em termos gerais, os peritos podem concluir que o O.P. (objecto de perícia) se encontra defeituoso pois apresenta deficiências intoleráveis para uma viatura deste tipo, preço e idade, adquirido directamente de um concessionário de marca, em estado novo (...) “considerando todos os incómodos já causados ao comprador e a falta de confiança do proprietário do veículo em apreciação seria desejável que as Rés, procedessem à substituição imediata do veículo, por outro igual ou congénere, ou que os AA. fossem adequadamente indemnizados, de algum modo, pelos prejuízos, inconvenientes e incómodos a que foram sujeitos pelas sucessivas avarias.”.

X. Ao decidir conforme decidiu o Tribunal “a quo” não aplicou devidamente os preceitos legais no que se refere à venda de coisas defeituosas (artigo 913° e ss do Código Civil).

Termos em que deve ser reconhecido provimento ao presente recurso, sendo, em consequência, revogada a douta sentença recorrida.

A “F…” contra-alegou, pugnando pela confirmação do Acórdão.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1) - Os autores celebraram, no dia 09.10.00, um contrato de compra e venda do veículo de marca Opel, modelo Frontera, com a matrícula …-…-QJ, no valor total de € 29.149,58;

2) - O autor escreveu à Opel Alemã, uma carta, datada de 29.04.01, mencionando que tinha adquirido a dita viatura e que teve logo problemas com o computador de bordo, pois vinha avariado, o que o obrigou a três deslocações à ré “F…”, para descobrirem o problema; posteriormente, o motor passou a verter óleo pela cabeça e pela junta do cárter; os faróis metiam água no interior; o vidro da porta esquerda fecha mal; o velocímetro por vezes não funciona; a pintura do capot está defeituosa; o fecho do capot abre mal; existem pontos de ferrugem por debaixo da viatura; termina exigindo um veículo novo;

3) - A ré “O… P….”, por carta de 17.05.01, escreveu ao autor, informando-o de que não existe qualquer fuga de óleo pela junta da cabeça do motor, existindo uma humidade derivada da condensação do próprio óleo, sendo uma humidade viscosa;

4) - Por fax, de 21.05.01, o autor escreveu à ré “O… P…”, solicitando o parecer escrito do técnico relativamente à dita ferrugem;

5) - Por fax, de 04.04.02, o autor escreveu à ré “F….” solicitando o envio, por escrito, de todas as intervenções e reparações que a dita viatura tivera;

6) - Por fax, de 05.04.02, o autor escreveu à ré “O… P….” reclamando uma viatura nova, em substituição da mencionada, face aos defeitos encontrados;

7) - Por fax, de 07.04.02, o autor escreveu à “L…..” informando-a de que, por duas vezes consecutivas, e após a dita viatura sair das instalações daquela, parou em plena via, uma das vezes por falta de ligação dos tubos do depósito e na outra, porque os tubos estavam ligados ao contrário;

8) - Por fax, de 07.04.02, o autor escreveu à “L….” mencionando que existe uma falha no computador do dito veículo, o desembaciador traseiro não funciona, no cinto de segurança do condutor a mola “pasmou”, os faróis de longo alcance ainda não funcionam, o motor continua a verter óleo, os vidros fecham mal, o rádio está avariado, o velocímetro está estragado;

9) - Por carta de 20.06.02, a ré “O…. P…..” escreveu à Sr.ª Advogada do autor comunicando-lhe que este havia apresentado sucessivas reclamações, algumas das quais sem qualquer fundamento técnico, como sejam as relacionadas com a humidade nos faróis, ferrugem no ferrolho da bagageira, ferrugem nas borrachas das portas, valvolina estragada, desembaciadores de vidros ineficazes, ruídos de natureza vária, falhas na tinta do pára-choques, molas do cinto de segurança desafinadas, falta de precisão do velocímetro, altura incorrecta do travão de mão, mas que foram solucionadas, atenta uma política comercial de satisfação do cliente-autor;

10) - Mais informou que outras reclamações nunca corresponderam a defeitos de produto ou a avarias, mas apenas ao desgaste dos materiais, como sejam, a oxidação no charrion do veículo, o escurecimento da área da junta do motor devido à condensação do óleo, o desgaste dos discos e das pastilhas de travão;

11) - Informou, ainda, que a única reclamação considerada com fundamento técnico teve a ver com a avaria na bóia de combustível do dito veículo, a qual determinava erros na leitura analógica do combustível, estando a situação já reposta;

12) - Por carta, de 29.07.02, o autor respondeu à ré “O… P….” discordando do teor da dita carta de 20.06.02, por não corresponder à realidade dos factos;

13) - O dito veículo é considerado de gama média-alta;

14) - Desde a sua aquisição pelos autores, o referido veículo apresentou anomalias no mostrador do computador de bordo onde surge um “F”, que assinala uma “falha” no sistema; o desembaciador traseiro não funciona; o motor apresentava uma mancha de óleo na zona da frente da cabeça; o pára-brisas apresenta bolhas de ar na zona da serigrafia protectora da cola vedante do vidro; as borrachas que prendem os amortecedores estavam ligeiramente estaladas na sua periferia; o ar condicionado ficou inoperacional; por baixo do dito veículo surgiram alguns pontos de ferrugem, bem como oxidação superficial do “chassis”; a consola central do veículo emana muito calor;

15) - A anomalia no mostrador do computador de bordo, onde mostra um “F” que assinala uma “falha” no sistema é compatível com a avaria da bóia do depósito do combustível;

16) - Durante os períodos em que a dita viatura foi sujeita a reparação, foi fornecida aos autores um veículo ligeiro de marca Opel, modelo Astra e/ou Corsa;

17) - Os autores utilizavam o aludido veículo nas suas deslocações familiares e também para visitarem os pais da autora, na zona do Porto;

18) - À data da compra da dita viatura, os autores viviam na Quinta do Conde e deslocavam-se todos os dias para Lisboa, para trabalhar;

19) - Em certas alturas, os autores solicitaram a assistência do ACP;

20) - Numa ocasião, a BT transportou a família dos autores para casa;

21) - Numa altura, os autores chegaram atrasados a um almoço convívio, em Leiria, alegadamente, por tal veículo ter sofrido uma avaria não especificada;

22) - Em Maio/01, os autores queixaram-se de que aparecia um “F” no computador de bordo quando o depósito de combustível se encontrava na reserva, por isso a ré “F…” procedeu à encomenda de uma bóia de combustível, que não chegou a ser aplicada porque, apesar de avisados, os autores não mais apareceram nas oficinas daquela ré;

23) - O diferencial foi “visto” em 07.01.04, por um técnico da O…. P…;

24) - O motor da dita viatura apresentou uma mancha de óleo estável que pode ter resultado de condensação;

25) - Em Maio/01, os autores queixaram-se de que o vidro esquerdo estava a fechar mal, o que levou a que a porta fosse desguarnecida para lubrificar o elevador, por forma a eliminar o defeito, não apresentando os autores qualquer queixa posterior;

26) - Os autores não voltaram a contactar a ré “F….”, desde Maio/01;

27) - A deficiência das borrachas dos amortecedores do vidro da bagageira não comporta qualquer risco para a utilização do dito veículo;

28) - À ré “F….” não foi apresentada reclamação relativamente ao funcionamento do ar condicionado;

29) - A O…. P…. vistoriou o dito veículo relativamente ao ar condicionado;

30) - Após reparação promovida pela ré “O… P…” do sistema de ar condicionado, em Janeiro/04, o autor comunicou que a avaria tinha sido resolvida;

31) - Os autores reclamaram que se verificavam pontos de ferrugem em várias partes do veículo em questão, e como a garantia era da ré “O…. P…”, esta foi contactada e disponibilizou um técnico para analisar a situação;

32) - A ré “F….” nunca foi interpelada a respeito de deficiências no isolamento da consola central;

33) - Os técnicos da ré “O….P….” apreciaram a reclamação dirigida pelo autor sobre o assunto;

34) - O autor, na sequência da instalação de um “kit” de marcha-atrás, efectuada pelos funcionários da ré “F…”, elogiou o seu trabalho;

35) - O autor convidava vários funcionários da ré “F….” para almoçar, o que não veio a acontecer;

36) - Quanto ao veículo de “substituição”, o mesmo sempre foi fornecido, tratando-se de viaturas de cinco lugares e em boas condições técnicas;

37) - A última vez que o dito veículo esteve na oficina da ré “F….” foi em 25.05.01;

38) - A partir de então, os autores passaram a visitar as oficinas “L…., U… de A…. S.A.”, com sede na Av. ….., nº …, na Cova da Piedade, em Almada;

39) - A ré “O… P….”, para além de fabricante de determinados modelos é a importadora exclusiva dos veículos de marca Opel, para o território português;

40) - A ré “O…. P….” não tem vocação técnica, nem dispõe dos meios necessários, para a assistência ou reparação de veículos, não dispondo sequer de instalações oficinais;

41) - Os veículos fabricados e importados pela ré “O… P….” são vendidos a uma rede oficial de distribuidores, que os revendem depois, em nome próprio, aos clientes finais;

42) - E são mantidos e reparados por uma rede oficial de reparadores autorizados, os quais, na maioria das vezes, acumulam também a qualidade de distribuidores;

43) - É nesta rede de distribuidores e reparadores autorizados O… que se integram, com ambas as qualidades, a ré “F….” e a sociedade “L….”, onde o veículo em questão foi por várias vezes assistido;

44) - A ré “O…. P….”, na sua organização, dispõe de um departamento técnico próprio, destinado a prestar, aos reparadores autorizados O…, formação técnica, aconselhamento e acompanhamento de algumas situações concretas que, pela sua natureza, apresentem qualquer aspecto de novidade técnica ou um grau de dificuldade que o justifiquem;

45) - A ré “O…. P…..” dispõe também, na respectiva estrutura empresarial, de um centro de atendimento ao cliente Opel, em cujas funções se compreendem o atendimento e registo de reclamações telefónicas de clientes, bem como a mediação e acompanhamento da relação entre cliente e reparador autorizado;

46) - Das reclamações apresentadas à ré “O…. P….” apenas uma correspondia a “defeito de produto”, neste caso, a bóia do combustível que não indicava correctamente o nível;

47) - Sob responsabilidade da ré “O… P….” e no âmbito da extensão temporal da garantia, a bóia foi substituída;

48) - Em Janeiro/04, e sob reclamação da autora, a ré “O… P…” procedeu à reparação do ar condicionado, do diferencial e da consola central;

49) - Nenhuma das deficiências mencionadas – anomalias no mostrador do computador de bordo onde surge um “F”, que assinala uma “falha” no sistema; o desembaciador traseiro que não funciona; o motor que apresentava uma mancha de óleo na zona da frente da cabeça; o pára-brisas que apresenta bolhas de ar na zona da serigrafia protectora da cola vedante do vidro; as borrachas que prendem os amortecedores que estavam ligeiramente estaladas na sua periferia; o ar condicionado que ficou inoperacional; os pontos de ferrugem que surgiram por baixo do dito veículo, bem como a oxidação superficial do “chassis”; a consola central do veículo que emana muito calor – compromete a normal utilização, em segurança, do dito veículo;

50) - A presente acção deu entrada em 06.04.04.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se ocorreu caducidade do direito de accionar a 1ª Ré, e se os recorrentes podem exigir da 2ª Ré a substituição do veículo que esta lhes vendeu, em estado de novo, face às deficiências que desde o início patenteou.

Entre os AA. e a Ré O… P…. foi, em 9.10.2000, inquestionavelmente, celebrado um contrato de compra e venda – art. 874º e 879º do Código Civil – tendo por objecto um veículo de marca Opel modelo Frontera.

Os AA. constataram a existência de defeitos vários, logo após a compra, e exigiram da vendedora uma viatura nova, ou indemnização do equivalente valor, bem como indemnização por danos não patrimoniais.

O cerne da questão que colocam, de novo, está em saber se ocorreu caducidade do direito de accionar, estando coenvolvida na questão decidenda, essencialmente, a problemática da venda de coisa defeituosa.

A coisa entregue pelo vendedor, na execução do contrato de compra e venda deve estar isenta de vícios físicos, defeitos intrínsecos inerentes ao seu estado material que estejam em desconformidade com o contratualmente estabelecido, ou em desconformidade com o que, legitimamente, for esperado pelo comprador.

O art. 913º do Código Civil estatui:

“1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.
2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria”.

Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. II, pág. 205, comentam a certo trecho.

“...O artigo 913º cria um regime especial (cuja real natureza constitui um dos temas mais debatidos na doutrina germânica [...]) para as quatro categorias de vícios que nele são destacadas:

a) Vício que desvalorize a coisa;
b) Vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada;
c) Falta das qualidades asseguradas pelo vendedor;
d) Falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.

Equiparando, no seu tratamento, os vícios às faltas de qualidades da coisa e integrando todas as coisas por uns e outras afectadas na categoria genérica das coisas defeituosas, a lei evitou as dúvidas que, na doutrina italiana por exemplo, se têm suscitado sobre o critério de distinção entre um e outro grupo de casos.
Como disposição interpretativa, manda o nº2 atender, para a determinação do fim da coisa vendida, à função normal das coisas da mesma categoria [...]”.

O relevante para se aferir da correcta execução da prestação do contraente vendedor é saber se a coisa vendida é hábil, idónea, para a função a que se destina.

A lei consagra, pois, um critério funcional.

A venda da coisa pode considerar-se venda defeituosa quando, numa perspectiva de “funcionalidade”, contém:

“ Vício que a desvaloriza ou impede a realização do fim a que se destina; falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que se destina.
Nesta medida, diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente – função negocial concreta programada pelas partes – ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art. 913º,nº2,)” – cfr. “Compra e Venda de Coisas Defeituosas-Conformidade e Segurança”, de Calvão da Silva, pág. 41.

“A coisa é defeituosa se tiver um vício ou se for desconforme atendendo ao que foi acordado.
O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto a desconformidade representa a discordância com respeito ao fim acordado.
Os vícios e as desconformidades constituem defeito da coisa” – “Direito das Obrigações” – Pedro Romano Martinez, edição de Maio 2000, pág. 122-123.

Da conjugação do disposto nos arts. 913º, nº1, e 914º do Código Civil com os arts. 908º a 910º e 915º e segs., do mesmo diploma, resulta que o comprador de coisa defeituosa goza do direito de exigir do vendedor a reparação da coisa; de anulação do contrato e do direito de redução do preço e também do direito à indemnização do interesse contratual negativo.

Como ensina Calvão da Silva, obra citada, pág. 56:

“Além da anulação do contrato e da redução do preço, cumuláveis com a indemnização, o regime da venda de coisas defeituosas reconhece ainda ao comprador um quarto direito: o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela (art.914°, 1ª parte); mas esta obrigação não existe, se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece (art.914°, 2ª parte).
Esse desconhecimento tem de ser alegado e provado pelo próprio vendedor, visto tratar-se de facto impeditivo do direito contra si invocado pelo comprador (art.342°, nº2) e estar obrigado a prestar a coisa isenta de vícios ou defeitos.
Equivale a dizer, noutra formulação, que o direito à reparação ou substituição da coisa repousa sobre a culpa presumida do vendedor, cabendo a este ilidir tal presunção mediante prova em contrário (art. 350°, nº2), isto é, a prova da sua ignorância, sem culpa, do vício ou da falta de qualidade da coisa, como facto impeditivo do direito invocado pelo comprador...” [destaque e sublinhados nossos].

Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações”, vol. III, págs. 119 e 120, escreve:

Em relação à venda de coisas específicas, o art. 913º, nºl, qualifica-a como defeituosa se ela “sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor, ou necessárias para a realização daquele fim”…
[…] A aplicação do regime da venda de coisas defeituosas assenta em dois pressupostos de natureza diferente, sendo o primeiro a ocorrência de um defeito e o segundo a existência de determinadas repercussões desse defeito no âmbito do programa contratual.
[…] A não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor ocorre sempre que este tenha certificado ao comprador a existência de qualidades na coisa e esta certificação não corresponda à realidade, estando-se assim também perante uma concepção objectiva de defeito”.
O mesmo tratadista, no Volume I dos “Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Teles”, em escrito doutrinal denominado “Caveat Venditor”, depois de acentuar a discrepância de regime legal entre a venda de coisas genéricas (art. 918º do Código Civil) e específicas defeituosas (art.913º), escreve – págs. 267 e 268:
“Muito mais benéfico para o comprador se apresenta, por isso, o regime da venda de coisas genéricas (art. 918. º) […].
[…] Por esse motivo, existem na doutrina posições que se pronunciam contra esta dualidade de regimes e propugnam igualmente o enquadramento da venda de coisa específica no regime do incumprimento, através da defesa da tese de que o erro referido nos arts. 913º e 905º e ss. diz respeito não à fase da formação, mas da execução do contrato.
Outros autores mantêm, porém, o entendimento de que o regime da venda específica de coisas defeituosas não se reconduz ao cumprimento defeituoso, exigindo antes um erro em sentido técnico, posição que, embora não sendo a melhor de jure condendo, nos parece ser a encontra consagrada de jure condito”.

Pedro Martinez – “Direito das Obrigações-Parte Especial” – “O regime do cumprimento defeituoso, estabelecido nos arts.913º e segs. do Código Civil, vale tanto no caso de ser prestada a coisa devida, mas esta se apresentar com um defeito, como também para as hipóteses em que foi prestada coisa diversa da devida (o chamado aliud)” – pág.124.

A fls. 126 sustenta – “As consequências da compra e venda de coisas defeituosas determinam-se atentos três aspectos: em primeiro lugar, na medida em que se trata de um cumprimento defeituoso, encontram aplicação as regras gerais da responsabilidade contratual (arts. 798º ss. Código Civil); segundo, no art. 913º, nº1, do Código Civil faz-se uma remissão para a secção anterior… Nos termos gerais, incumbe ao comprador a prova do defeito (art. 342º, nº l Código Civil) e presume-se a culpa do vendedor, se a coisa entregue padecer de defeito (art. 799º, nºl, Código Civil)”.

Por força do art. 916º do Código Civil, para que haja responsabilidade pela venda de coisa defeituosa é necessário que o comprador, previamente, denuncie ao vendedor o vício ou falta de qualidade da coisa, excepto se este tiver actuado com dolo – nº1 do citado normativo – e, nos termos do nº2, a denúncia deve ser feita até 30 dias, depois de conhecido o vício e dentro de seis meses após a entrega da coisa.

De harmonia com o art. 914º do Código Civil o comprador tem o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa, ou, se for necessário, e ela for fungível, a respectiva substituição.

O art. 916º do Código Civil estabelece, claramente, um prazo de caducidade – o comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou falta de qualidade da coisa vendida, no prazo de 30 dias, após a o seu descobrimento, e dentro de seis meses após a entrega da coisa.

Mas, além das regras previstas no Código Civil, no caso em apreço concorre a aplicação da Lei 24/96, de 31.7 (Lei de Defesa do Consumidor – doravante LDC) com a redacção anterior às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 67/2003, de 8 de Abril, atenta a data do contrato de compra e venda em causa, que estabelece o regime legal aplicável à defesa dos consumidores.

O direito dos consumidores à qualidade dos bens e serviços consumidos bem como à reparação dos danos é um direito com tutela constitucional – art. 60º, nº1, da Lei Maior.

O art. 2º, nº1, da LDC fornece a noção de consumidor nos seguintes termos.

“Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios”.

Não se questiona que os AA. adquiriram o seu veículo como particulares, pessoas singulares, consumidores, à Ré O… que exerce o comércio profissional de vendedor automóvel.

O direito à qualidade a que tem direito o consumidor, consubstancia-se na aptidão dos bens e serviços para a realização dos fins a que são destinados, devendo produzir os efeitos que lhes são atribuídos segundo as normas previstas ou, faltando elas, serem de modo adequado a satisfazer as “legítimas expectativas do consumidor” – art. 4º.

A LDC consagra um critério funcional, tal como o art. 913º do Código Civil – o bem deve ter aptidão para satisfação dos fins a que se destina e eficácia compatível com as legítimas expectativas do consumidor.

Como ensina Calvão da Silva, in “Compra e Venda de Coisas Defeituosas – Conformidade e Segurança”, 4ª edição, pág. 124 – os requisitos de aptidão e eficácia dos bens de consumo, verificam-se - “não sofrendo de vício que os desvalorize ou impeça a realização do fim a que são destinados, ou tendo as qualidades asseguradas pelo fornecedor ou necessárias para a realização daquele fim e desempenho ou performance atribuído aos bens do mesmo tipo, em conformidade com o contrato, o fim ou uso específico nele previsto e a função normal das coisas da mesma categoria (art.913° do Código Civil).”

Pedro Martinez, in “Direitos das Obrigações-Parte Especial” – Edição de 2000 – a fls. 125/126 escreve:

“O defeito da coisa vendida só leva à aplicação do regime da venda de coisas defeituosas caso o comprador o desconheça sem culpa.
Há, pois, que distinguir o defeito oculto do defeito aparente e do defeito conhecido.
O defeito oculto é aquele que, sendo desconhecido do comprador, pode ser legitimamente ignorado, pois não era detectável através de um exame diligente.
De modo inverso, sempre que a desconformidade se puder revelar mediante um exame diligente, o defeito é aparente.
Por último, o defeito conhecido corresponde aos vícios da coisa que foram revelados ao comprador, tanto pela contraparte, como por terceiro, ou de que ele se apercebeu pela sua perícia. Atento o princípio da boa fé e o regime da responsabilidade civil, não se pode equiparar o comprador que desconhece o defeito, àquele que está cônscio da situação, ou que dele não sabe por negligência. Deste modo, a responsabilidade derivada da venda de coisas defeituosas só existe em caso de defeitos ocultos”. (sublinhámos).

Quanto à tutela dos direitos do consumidor/comprador a LDC, na versão inicial, estatui no art. 12° – Direito à reparação de danos.

“1 - O consumidor a quem seja fornecida a coisa com defeito, salvo se dele tivesse sido previamente informado e esclarecido antes da celebração do contrato, pode exigir, independentemente de culpa do fornecedor do bem, a reparação da coisa, a sua substituição, a redução do preço ou a resolução do contrato.
2 - O consumidor deve denunciar o defeito no prazo de 30 dias, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, após o seu conhecimento e dentro dos prazos de garantia previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 4º da presente lei.
3 - Os direitos conferidos ao consumidor nos termos do nº1 caducam findo qualquer dos prazos referidos no número anterior sem que o consumidor tenha feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, não se contando para o efeito o tempo despendido com as operações de reparação.
4 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos.
5 - O produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos de produtos que coloque no mercado, nos termos da lei”.

A lei estabelece um prazo de caducidade para denúncia dos defeitos de coisa móvel consumível – 30 dias após conhecimento do defeito e dentro do prazo de um ano após a entrega da coisa, a menos que exista prazo de garantia superior.

O art. 331º do Código Civil dispõe:

1. Só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal ou convencional, do acto a que a lei ou convenção atribua efeito impeditivo.
2. Quando, porém, se trate de prazo fixado por contrato ou disposição legal relativa a direito disponível, impede também a caducidade o reconhecimento do direito por parte daquele contra quem deva ser exercido.

O reconhecimento do direito como causa impeditiva da caducidade, a que alude o nº2 do art. 331º do Código Civil, tem de ser expresso, inequívoco e preciso, isto é, tem de ser de tal forma que não subsistam quaisquer dúvidas sobre a aceitação pelo devedor do direito do credor – Ac. deste STJ de 25.11.98, BMJ 481, pág. 430.

Nos termos do nº 1 do art. 12º, o consumidor a quem seja fornecida a coisa com defeito, salvo se dela tivesse sido previamente informado e esclarecido antes da celebração do contrato, pode exigir, independentemente de culpa do fornecedor do bem, a reparação da coisa, a sua substituição, a redução do preço ou a resolução do contrato.

Nos termos do nº4 do mesmo artigo, o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos.

Como refere o Prof. Calvão da Silva, “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, pág. 80 e segs:

“O comprador poderá, conforme lhe aprouver, anular o contrato se se verificarem os requisitos legais da anulabilidade por erro ou dolo – provando a essencialidade do erro e a cognoscibilidade, por parte do vendedor, da essencialidade para aquele do elemento sobre que incidiu o erro –, com direito a indemnização, se o vendedor conhecia ou devia conhecer a deformidade da coisa (art. 915º), ou reduzir o preço, com eventual indemnização (art. 911º, ex-vi do art. 913º), ou exigir o exacto cumprimento mediante a eliminação dos defeitos ou a substituição da coisa (art. 914º)”.

Mais adiante – págs. 83/84:

“ [...] A concorrência electiva das pretensões reconhecidas por lei ao comprador não é um absoluto: sofre em certos casos atenuações e a escolha deve ser conforme ao princípio da boa fé, e não cair no puro arbítrio do comprador, sem olhar aos legítimos interesses do vendedor. ...” […].
A eticização da escolha do comprador através do princípio da boa fé é irrecusável, pelo que, se num caso concreto a opção exercida exceder indubitavelmente os limites impostos pela boa fé – porque verbi gratia, a recusa do comprador em aceitar a reparação ou a substituição da coisa oferecida pelo vendedor se revela caprichosa, dada a adequada satisfação do seu perdurante interesse na prestação que dessa oferta resultaria –, poderão intervir as regras do abuso do direito (art. 334º).
Ou seja, a reparação ou substituição da coisa que como dever incumbe ao vendedor (art. 914º) pode, no caso concreto, por exigência dos ditames da boa fé, funcionar como (contra) direito – direito de o alienante rectificar a inexactidão do seu cumprimento, se a reparação ou substituição oferecida der satisfação adequada e tempestiva ao interesse do adquirente, com a recusa deste a contrariar a boa fé na medida em que sacrificava injustificadamente os interesses daquele…”.

O comprador de coisa defeituosa pode, por esta ordem, exigir do fornecedor/vendedor: 1º - a reparação da coisa; 2º - a sua substituição; 3º - a redução do preço ou a resolução do contrato, conquanto exerça esse direito, respeitando o prazo de caducidade referido.

Sendo a LDC uma lei especial em relação ao Código Civil, deverá prevalecer o seu regime, a menos que a disciplina da venda de coisa defeituosa do art. 913º do Código Civil, se revele mais favorável para o comprador/consumidor.

O art. 12º, nº1, da LDC, nessa perspectiva, tem aqui clara aplicação.

Importa, então, saber se o direito dos AA. caducou quanto à 1ª Ré.

Antes de tudo, cumpre dizer que os demandantes pediram a condenação das RR. a entregar uma viatura nova ou a indemnizá-los em igual valor monetário.

Poder-se-á considerar não obstante tal pedido que os AA. começaram por exigir a reparação da coisa como lhes consente o art. 12º, nº1, da LDC na ordem que estabelece?

É certo que a Ré Fulcar, por várias vezes, acolheu o veículo visando eliminar os defeitos acusados pelo Autor (nos articulados das RR. consta que o Autor apresentou mais de 70 “queixas” em relação ao funcionamento e estado do jeep), mas a pretensão do Autor foi, desde o início, a substituição do veículo, até porque, desde logo, ante os múltiplos defeitos que detectou, considerou que para a categoria do veículo (gama média-alta) perdeu a confiança na sua fiabilidade e comportamento estradal.

Como o Acórdão recorrido reconhece, o Autor alegou e demonstrou a existência de defeitos da coisa vendida, sendo certo que no caso, a O…., sendo fabricante responde, objectivamente, pela venda de produto defeituoso e pelos danos que causar.

No Acórdão pode ler-se – fls. 399 a 400 – quando se fundamenta a caducidade do direito de accionar a Ré F….:

“Vem provado que desde a sua aquisição que o veículo pelos Autores adquirido apresentou as seguintes anomalias: no mostrador do computador de bordo onde aparece um “F” que assinala falha de sistema, não funcionamento do desembaciador traseiro; mancha de óleo na zona da frente da cabeça do motor; bolhas de ar na zona de serigrafia protectora da cola vedante do vidro; estalamento das borrachas que prendem os amortecedores na sua periferia; ar condicionado inoperacional; pontos de ferrugem e oxidação superficial do “chassis’; emanação excessiva de calor na consola central do veículo.
Quanto à F… vem provado: Em Maio de 2001 os Autores queixaram-se junto da F…., suposta vendedora da viatura, da anomalia do “F”, a Ré procedeu a encomenda da bóia de combustível que não chegou a ser aplicada porque os Autores apesar de avisados não mais apareceram nas oficinas da Ré, nem mais a contactaram, não tendo apresentado junto desta a reclamação do ar condicionado não tendo os Autores interpelado a F…. a respeito da deficiência do isolamento da consola, sendo certo que a última vez que o veiculo da Autora esteve na oficina da F….. foi em 25/05/01.
Ora, se a viatura em causa, desde o momento da sua aquisição, apresentou aqueles defeitos, como vem provado, é legítimo concluir que quem os notou foram seguramente os Autores que a adquiriram (arts. 349º e 351º do Código Civil).
É legítimo concluir, assim, que desde a sua aquisição que os Autores tiveram conhecimento dessas deficiências. Ora independentemente do ónus da prova relativo à tempestividade da denúncia, é legítimo concluir que, tendo sido apresentada à O…. em 29/04/01 a reclamação aos defeitos, relativamente à Ré F… não se demonstra que tivesse ocorrido, em data interior a essa, um reconhecimento dos direitos dos Autores em termos impeditivos dessa caducidade (facto constitutivo do direito dos Autores).
Por outro lado, ainda, não resulta provado que no ano subsequente à última vez que viatura esteve numa oficina da Fulcar (de 25/05/2001 a 25/05/2002) tenha ocorrido qualquer reconhecimento dos direitos dos Autores por parte da F… – em 04/04/02 o Autor escreveu à Ré F… solicitando o envio, por escrito, de todas as intervenções e reparações que a dita viatura tivera, mas não vem provado que nesse espaço de tempo a Ré F… tenha efectuado, mesmo que por intermédio de terceiros, qualquer reparação da viatura.
Ainda que se entendesse tempestiva a denúncia inicial dos defeitos junto da F…, sempre seria de concluir que o direito de accionar esta Ré caducou no dia 26/11/01.
A acção só deu entrada em 06/04/04 e quando entrou em vigor o DL 67/03 de 08/04 que passou para 2 meses e 2 anos, respectivamente, aqueles prazos (09/04/03), já se havia escoado o prazo de 6 meses a contar da denúncia à F… …”.

Concorda-se com tal decisão já que, não obstante a F… ter procedido a reparações várias no veículo dos AA., tal facto não impediu a caducidade, já que o reconhecimento impeditivo da caducidade tem de ser anterior ao tempo do exercício do direito por parte do credor, idóneo a obstar ao decurso do prazo de caducidade.

Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, págs. 295-296:

“O simples reconhecimento do direito, antes do termo da caducidade, por aquele contra quem deve ser exercido, não tem relevância se, através desse reconhecimento, se não produzir o mesmo resultado que se alcançaria com a prática tempestiva do acto a que a lei ou uma convenção atribuam efeito impeditivo. Só nos casos em que o reconhecimento assuma o mesmo valor do acto normalmente impeditivo é que deixará de verificar-se a caducidade […].
Assim, por exemplo, dispõe o artigo 916° que o comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro de seis meses após a entrega da coisa (salvo se o vendedor houver usado de dolo).
Se, porém, o vendedor reconhece espontaneamente estes defeitos, o reconhecimento torna certa a situação, tornando-se desnecessária a denúncia.”

Ademais, como se acha provado, foram os AA. quem deixou de procurar nas oficinas da F…, indo lá pela última vez 25.5.2001, para eliminação dos defeitos, [prática com que pactuavam, tacitamente, muito embora aquela Ré não lograsse a eliminação dos defeitos], vindo a intentar a acção em 6.4.2004, quando já se escoara o prazo para a propositura.

Quanto à Ré O…. :

No caso dos autos o veículo foi adquirido em 9.10.2000 à Ré O… P…. que é, a um tempo, fabricante/importador e vendedor do veículo.

Pese embora a assistência técnica não seja directamente prestada por si, mas por uma rede de concessionários, entre as quais a “F…” e a “L…” (esta não demandada na acção) a quem os AA. dirigiram reclamações.

Como se escreveu na decisão da 1ª instância, trecho citado no Acórdão recorrido – fls. 390:

“Desde a sua aquisição que o referido veículo apresentou anomalias (…). É neste sentido que os autores escreveram uma carta à O…. alemã, com data de 29/04/01, denunciando tais anomalias e exigindo uma viatura nova.
Posteriormente, com data de 29/04/02, o Autor voltou a reclamar, junto da “O… P…”, um veículo novo, em substituição do adquirido, face aos mencionados defeitos…”.

A O… P… como antes dissemos é, simultaneamente, fabricante e vendedora do jeep todo-o-terreno – arts. 12º, nº5, do DL. 24/96, de 31.7 e DL. 389/89, de 6.11.

Sendo diferente a definição de “defeito da coisa vendida” que consta do art. 913º do Código Civil e do art. 4º, nº1, da LDC, é mais favorável ao consumidor a que resulta desta lei.

Senão vejamos.

Enquanto nos termos do art. 913º do Código Civil, “defeito” é o vício que desvaloriza ou impede a realização do fim a que a coisa é destinada ou se não tiver as qualidades necessárias à realização desse fim, já na LDC – seu art. 4º, nº1 – existe defeito se a coisa objecto da venda não for apta a satisfazer os fins a que se destina ou não produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, se não for de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor.

Este normativo da LDC deixa entrever uma clara protecção do consumidor, desde logo, ao considerar um critério objectivo – a coisa vendida (o que importa no caso) para ser isenta de “defeito” deve ter aptidão, idoneidade, e as qualidades intrínsecas hábeis a satisfazer os fins e os efeitos a que se destinam, segundo as normas legalmente estabelecidas – e, também, um critério subjectivo, atribuindo relevância às expectativas legítimas do consumidor.

No caso em apreço, o bem vendido é um veículo todo-o-terreno de gama média-alta, comprado em estado de novo e que, desde o início, patenteou “defeitos” [um produto é defeituoso quando não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar, tendo em atenção todas as circunstâncias, designadamente a sua apresentação, a utilização que dele razoavelmente possa ser feita e o momento da sua entrada em circulação] (art. 4.°, nº1, da LDC), que não são, de modo algum, admissíveis numa viatura que sai do stand para as mãos do comprador.

Tais defeitos que, desde o início se manifestaram, são os seguintes; - “Desde a sua aquisição pelos autores, o referido veículo apresentou anomalias no mostrador do computador de bordo onde surge um “F”, que assinala uma “falha” no sistema; o desembaciador traseiro não funciona; o motor apresentava uma mancha de óleo na zona da frente da cabeça; o pára-brisas apresenta bolhas de ar na zona da serigrafia protectora da cola vedante do vidro; as borrachas que prendem os amortecedores estavam ligeiramente estaladas na sua periferia; o ar condicionado ficou inoperacional; por baixo do dito veículo surgiram alguns pontos de ferrugem, bem como oxidação superficial do “chassis”; a consola central do veículo emana muito calor”. (sublinhámos)

As concessionárias da Ré O…, se eliminaram alguns dos defeitos, não eliminaram outros, mas cumpre perguntar: – atentas as legítimas expectativas de quem compra um jeep de gama média-alta de uma prestigiada marca, espera que à saída do stand (passe a expressão) já apresente os sintomas que este apresentou, ou ao invés, deve ter confiança no facto de ter adquirido um veículo sólido, durável, fiável?

A resposta é óbvia e, independentemente das vicissitudes do relacionamento entre o Autor e a Ré O… – em relação a esta e às suas concessionárias – que pela estrutura organizacional da O… se ocupavam também da assistência técnica – o certo é que os compradores nunca dispuseram do veículo com a aptidão – qualidades técnicas – que obviamente são garantia do fabricante – nem nunca o veículo, pela dificuldade em ser convenientemente reparado pôde satisfazer a expectativa dos compradores.

A compra de um automóvel importa, as mais das vezes, um encargo pesado e, pese embora ser bem consumível – art. 208º do Código Civil – que o tempo e o uso deterioram, existe um razoável período de tempo em que defeitos, como os que se manifestaram, não ocorrem, a menos que o comprador faça um desastrado uso, o que não está em causa.

De notar que, como consta do facto provado 23), em 7.1.2004, cerca de 4 meses antes da propositura da acção, ainda a Ré O… examinava o diferencial do veículo.

Com o devido respeito, aquilo que a Ré O…, por carta de 20.6.2002, dirigida à Mandatária dos AA. - cfr. itens 9) e 10) considera desgaste de materiais – a oxidação no charrion do veículo, o escurecimento da área da junta do motor devido à condensação do óleo, o desgaste dos discos e das pastilhas de travão – manifestamente são defeitos de fabrico e não avarias inerentes ao uso da coisa, a menos que um sólido jeep com cerca de dois anos de uso, “normalmente”, já apresente tais “sintomas” em órgãos vitais.

No item 49) dos factos provados consta: – “Nenhuma das deficiências mencionadas – anomalias no mostrador do computador de bordo onde surge um “F”, que assinala uma “falha” no sistema; o desembaciador traseiro que não funciona; o motor que apresentava uma mancha de óleo na zona da frente da cabeça; o pára-brisas que apresenta bolhas de ar na zona da serigrafia protectora da cola vedante do vidro; as borrachas que prendem os amortecedores que estavam ligeiramente estaladas na sua periferia; o ar condicionado que ficou inoperacional; os pontos de ferrugem que surgiram por baixo do dito veículo, bem como a oxidação superficial do “chassis”; a consola central do veículo que emana muito calor – compromete a normal utilização, em segurança, do dito veículo; (itálico e sublinhado nosso)

A fls. 409 do Acórdão recorrido consta:

Resulta assente, é indubitável que a Ré O…. não reparou integralmente as anomalias mencionadas. Não põem as anomalias não reparadas em causa a segurança da viatura, conforme o Tribunal recorrido deu como provado, desconhecendo-se o âmbito da garantia oficial da marca.
Desconhecendo-se o âmbito da garantia (e sua extensão), não é possível responsabilizar a Ré O… P…. quanto às anomalias acima descritas.”

Com o devido respeito, permitimo-nos discordar.

Primeiro, a parte final do item 49) é um mero juízo conclusivo e, por isso, tal afirmação deve ter-se por não escrita – art. 646º, nº4, do Código de Processo Civil; depois, mesmo que o não fosse, a afirmação de que a Ré não reparou integralmente as avarias – afirmação com a qual se concorda – [tanto mais que os factos revelam que a Ré, ela mesmo, teve intervenção técnica para lá da F…. e da L….. – sem êxito] o que demonstra cumprimento defeituoso.

Dada a magnitude dos defeitos que persistem, não está em causa o facto de eles comprometerem ou não, a normal utilização em segurança do veículo, mas o facto de nunca a sua existência desde a compra se compadecer com as expectativas do comprador, sendo que a O…. nem sequer alegou que desconhecia a existência desses defeitos de origem.

Assim, e ante a manifesta impossibilidade por razões a que os AA. são alheios, da Ré O…, por si e pelas suas concessionárias, eliminarem os defeitos que originariamente afectavam o veículo – não proporcionando segurança, confiança e fiabilidade – têm os AA. para protecção dos seus interesse económicos – art. 9º, nº1, da LDC “O consumidor tem direito à protecção dos seus interesses económicos, impondo-se nas relações jurídicas de consumo a igualdade material dos intervenientes, a lealdade e a boa fé, nos preliminares, na formação e ainda na vigência dos contratos”. – direito a ver substituído o bem, nos termos da segunda alternativa conferida pelo nº1 do art. 12º da LDC.

Decisão:

Nestes termos, concede-se a revista, revogando-se o Acórdão sob censura, condenando-se a Ré O…. P…., a substituir o veículo que vendeu aos AA. entregando-lhes um novo, ou caso já não se fabrique, a entregar-lhes o correspondente valor monetário.

Custas aqui e nas Instâncias, na proporção de 15% para os AA. e 85% para as Rés.


Supremo Tribunal de Justiça, 13 Dezembro de 2007

Fonseca Ramos
Rui Maurício
Cardoso Albuquerque


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1- “Cumprimento defeituoso ou inexacto – a) É aquele em que a prestação efectuada não tem os requisitos idóneos a fazê-la coincidir com o conteúdo do programa obrigacional, tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correcção e boa fé. b) A inexactidão pode ser quantitativa e qualitativa. c) O primeiro caso coincide com a prestação parcial em relação ao cumprimento da obrigação. d) A inexactidão qualitativa do cumprimento em sentido amplo pode traduzir-se tanto numa diversidade da prestação, como numa deformidade, num vício ou falta de qualidade da mesma ou na existência de direitos de terceiro sobre o seu objecto” – José Baptista Machado, “Resolução por Incumprimento”, in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, 2º, 386 da Ré, que não conseguiu eliminar os defeitos do bem que vendeu e produziu; ademais sempre seria de considerar que, competindo-lhe a eliminação dos defeitos não o logrou – não ilidindo a presunção de culpa do art. 799º, nº1, do Código Civil.