Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1469/02.4JFLSB-B.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: RODRIGUES DA COSTA
Descritores: RECURSO DE REVISÃO
LEGITIMIDADE
PERDA DE BENS A FAVOR DO ESTADO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/11/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE REVISÃO
Decisão: NEGADA REVISÃO
Sumário : I -A mera circunstância dos recorrentes se arrogarem a propriedade de determinados bens imóveis que foram declarados perdidos a favor do Estado não lhes confere legitimidade para o recurso extraordinário de revisão de sentença. Com efeito, legalmente, apenas têm legitimidade para requerer a revisão o MP, o assistente, relativamente a sentenças absolutórias ou a despachos de não pronúncia, o condenado ou o seu defensor, relativamente a sentenças condenatórias – art. 450.º, n.º 1, als. a), b) e c), do CPP.
II - Não revestindo nenhuma das qualidades pessoais em que a lei faz assentar a legitimidade para requerer a revisão, o recurso tem que ser rejeitado.
III -De qualquer forma, os recorrentes alegam que os imóveis declarados perdidos a favor do Estado eram e são de sua propriedade e não do arguido e, nessa medida, foram afectados pela decisão em direitos seus; por outro lado, alegam não terem sido notificados da decisão, só tendo tido conhecimento dela por mero acaso.
IV -A serem verídicos estes pressupostos, os recorrentes podem fazer valer esses seus direitos, só que não através destes tipo de recurso – cf. arts. 110.º do CP e 401.º, n.º 1, al. d); do CPP.
V - Para poderem exercer os referidos direitos, os recorrentes poderão ir ao processo onde foi decretado o perdimento dos bens e requerem a sua notificação, com vista a usarem os meios adequados, seja pela via do processo penal, seja, eventualmente, pela via cível.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO
1. AA, BB e CC vieram interpor recurso extraordinário de revisão de sentença do acórdão proferido no âmbito do processo comum colectivo n.º 1469-02.4JFLSB pela 9.ª Vara Criminal de Lisboa em 24/05/2007 e confirmado por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/11/2007, alegando, em síntese o seguinte:
«1 - Os imóveis cujo perdimento se ordenou não eram pertença do agente dos factos ilícitos apurados nos autos na data da prática dos mesmos, nem no momento em que a perda foi decretada, conforme documentos que se juntam e aqui se dão como reproduzidos (…)
«2 - A declaração de perdimento fundou-se somente na confissão do arguido que declarou que «De acordo com a confissão do arguido se provou em 508 (“entre Janeiro de 98 a Dezembro de 99 despendeu o dinheiro de que se apropriou nas circunstâncias descritas na aquisição dos imóveis 497 que foram apreendidos”), serão perdidos a favor do Estado os imóveis apreendidos e descritos em 497, adquiridos com dinheiro de que o arguido se apropriou nas circunstâncias acima descritas.»
«3 - Sucede porém que tal elemento de prova não podia neste caso ser valorado, em exclusivo, tendo em consideração que a mesma apenas tem força probatória contra o confitente, conforme dispõe o art. 358.º do Código Civil.
«4 - As declarações do arguido, pelo menos nesta matéria não fazem qualquer sentido, uma vez que a generalidade dos imóveis nem sequer foi adquirida no período referido pelo mesmo (Janeiro de 98 a Dezembro de 99).
«5 - Facto que o próprio arguido não podia desconhecer.
«6 - O imóvel descrito com o número ... A e ... B da Rua ..., Conservatória de Santarém, n.º 135, foi adquirido pelo arguido nos autos DD em 1975, conforme documento que se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
«7 - Ou seja, 23 anos antes dos factos pelos quais foi condenado.
«8 - E 23 anos antes da data em que referiu ter adquirido bens com dinheiro proveniente da actividade ilícita.
«9 - Tal facto demonstra que a confissão do arguido não é elemento de prova ou fundamento bastante para declarar o perdimento dos imóveis em causa.
«10 - Os bens imóveis em causa não foram considerados como terem servido ou estivessem destinados a servir a prática dos ilícitos apurados nos autos.
«11 - O tribunal a quo bem sabia que os bens imóveis cujo perdimento decretou não eram pertença do arguido, mas ainda assim não fundamentou por que razão entendeu desapropriar os recorrentes dos seus bens.
«12 - Dos autos não resultou qualquer prova de que os titulares dos imóveis tivessem concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou que dos factos tivessem retirado vantagem.
«13 - Assim, sendo, ao declarar a perda a favor do Estado dos imóveis que legitimamente pertencem aos recorrentes, que nada têm que ver com os ilícitos em causa nos autos fere os mais elementares princípios de justiça e segurança jurídica.
«14 - O tribunal a quo ao decidir desapropriar os recorrentes sem cuidar de apurar dos fundamentos para tal facto, não confrontando o arguido com as certidões prediais dos imóveis, e ao não chamar os recorrentes para virem aos autos exercer o contraditório,
«15 - Tendo declarado a perda a favor do Estado dos bens cuja propriedade é dos recorrentes, os quais nunca foram ouvidos, nem notificados da decisão, tendo tomado conhecimento da decisão do perdimento por mero acaso, fere os mais elementares princípios constitucionais.
«16 - A sentença recorrida ao declarar o perdimento a favor do Estado dos imóveis pertencentes aos recorrentes, violou os arts. 62.º da Constituição da República, 109.º, 110.º e 111.º do Código Penal e, ainda, o art. 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal e o art. 358.º do Código Civil.»
Terminam pedindo que se dê provimento ao recurso, declarando-se a sentença nula na parte em que declara a perda a favor do Estado dos imóveis da (alegada) propriedade dos recorrentes.
2. O Ministério Público respondeu ao recurso, defendendo não haver fundamento para o recurso.
3. O Sr. Juiz do processo, na informação a que alude o art. 454.º do CPP, depois de ter solicitado o envio de certidões várias, sustenta que os recorrentes carecem de legitimidade para interpor o recurso de revisão, pois não se enquadram em nenhuma das alíneas do n.º 1, nem na situação prevista no n.º 2 do art. 450.º , sendo que só o arguido ou o Ministério Público teriam legitimidade para requerer a revisão do acórdão condenatório.
Porém, mesmo que assim não fosse, também não há fundamento para a revisão. Os recorrentes pedem a revisão ao abrigo das alíneas c) e d) do n.º 1, do art. 449.º do CPP. Porém, não alegam factos dados como provados noutra sentença e que sejam inconciliáveis com os que serviram de fundamento à condenação.
Por outro lado, os factos invocados não são factos novos, tanto mais que «todos os elementos de prova, designadamente as certidões de registo predial e as certidões de teor matricial com os registos dos imóveis a favor do arguido e de sua esposa e, posteriormente, a favor de terceiros (estando o usufruto de todos eles registado a favor do arguido e de sua esposa) já constavam dos autos, quer aquando da decisão da 1.ª instância, quer aquando da prolação do acórdão confirmatório do STJ».
«Tais elementos documentais juntos aos autos e a confissão do arguido foram devidamente ponderados quer pelo tribunal de 1.ª instância, quer pelo tribunal superior que decidiu o recurso, sendo que a declaração de perdimento dos aludidos bens imóveis a favor do Estado já foi apreciada em sede de recurso pelo STJ e não mereceu qualquer crítica quanto à sua fundamentação.»
Deste modo, entende que o recurso de revisão não merece provimento.
4. No Supremo Tribunal de Justiça, a Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta teve vista doas autos nos termos do art. 455.º, n.º 1 do CPP, emitindo parecer no sentido de que os recorrentes não têm legitimidade, pelo que o recurso deveria ser rejeitado.
5. Colhidos os vistos em simultâneo, o processo foi presente à conferência para decisão.
II. FUNDAMENTAÇÃO
6. Na 9.º Vara Criminal de Lisboa, foi submetido a julgamento o arguido DD e condenado pela prática de um crime continuado de burla qualificado, previsto e punido pelos arts. 217.º e 218.º, n.º 2, alínea a) do CP na pena de 6 anos de prisão.
Da extensíssima factualidade que ficou assente, ocupando muitas dezenas de páginas, retemos apenas a matéria do art. 497.º dos factos provados, que é a que se relaciona directamente com o presente recurso.
Exara-se nesse art..497.º o seguinte:
Foram apreendidos os imóveis de seguida identificados:
i. Imóvel correspondente ao R/C Dt.º do prédio urbano sito na ... ou ..., Lt. 45 no ..., descrito na Conservatória do Registo Comercial de Palmela sob o n.º ..., da freguesia de ..., fracção A (Cf. fls. 1679 e 1691), registado em nome de AA;
ii. Imóvel correspondente ao R/C Dt.º do prédio urbano sito na ... ou ... Lt. 45, no ..., descrito na Conservatória do Registo Comercial de Palmela sob o n.º ..., da freguesia de ..., fracção B (Cf. fls. 1679), registado em nome de AA.;
iii. Imóvel correspondente ao R/C do Lt. 1 da Rua ... no ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela como fracção “A” do prédio urbano ..., da freguesia de ... (Cf. fls. 1687), registado em nome de EE;
iv. Imóvel correspondente ao R/C do Lt. 1 da Rua ..., ..., no ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela como fracção “B” do prédio urbano ..., da freguesia de ... (Cf. fls. 1687), registado em nome de AA;
v. Imóvel correspondente ao 1.º andar dt.º (com terraço e arrecadação) do Lt. Da Rua ..., ..., no ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Palmela como fracção “G” do prédio urbano ..., da freguesia de ... (Cf. fls. 1687 e 1693), registado em nome de AA;
vi. Imóvel sito na Rua ..., n.º -A e -B, descrito na Conservatória do Registo Comercial de Santarém, sob o n.º ..., registado em nome de AA.
Assinale-se ainda, na parte decisória, o ponto 5. do dispositivo:
«Porque foram adquiridos com dinheiro de que o arguido ilicitamente se apropriou, declaram-se perdidos a favor do Estado os imóveis apreendidos nos autos e descritos no art. 497.º da matéria de facto dada como provada.»
Da decisão da 1.ª instância houve recurso para o STJ, que confirmou o decidido e, nomeadamente, quanto à perda de bens, decidiu o seguinte:
2.5.
Perdimento dos bens a favor do Estado.
Vem dizer o arguido que, ao decretar a perda a favor do Estado de bens pertencentes a terceiro, sem a menor prova de que os mesmos tenham concorrido, de forma censurável para a sua utilização e mesmo perante a total ausência de fundamentação, em qualquer outro caso, o douto acórdão violou o disposto no n° 1, do art.110°, n.º 2 “a contrario”, do mesmo artigo e no n.º 4, do art. 97.º, do mesmo Código (conclusão iv).
A pág. 7 da sua motivação (n.° 37) sustenta o recorrente que os bens apreendidos não lhe pertencem, nem à data dos factos, nem no momento em que a perda foi decretada.
Nessa óptica, não tem o recorrente legitimidade para impugnar a decisão de perdimento, pois que a decisão não foi proferida contra ele e, nos termos do disposto no art. 401.°, n.° 1 al. b), o arguido só dessas decisões pode recorrer.
Neste sentido já decidiu este Supremo Tribunal de Justiça, designadamente nos Acs de 22/06/1994, proc. n° 45934, de 07/02/1996, proc. n° 48898, de 26/02/1997, proc. n° 122/96, de 13/03/1997, Acs STJ V, 1, de 18/06/98, proc. n° 36/98, de 25/10/2000,
25/10/2000, proc. n° 1996/00-3, de 07/11/2002, Acs STJ X, 3, 219 e de 30/04/2003, proc. n° 356/03-3.
De todo o modo, está provado que o arguido “entre Janeiro de 1998 a Dezembro de 1999, despendeu o dinheiro de que se apropriou nas circunstâncias acima referidas na aquisição dos imóveis descritos no artigo 497° e que foram apreendidos.” (.n° 508° da matéria de facto).
Facto, aliás, confessado pelo recorrente.
Ora, dispõe o art. 109.°, n.° 1 do C. Penal que são declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
E o artigo 111.° do mesmo diploma, que toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado (n.° i) e que são também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido directamente adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie (n.° 2).
E foi exactamente nesses termos que o acórdão recorrido decidiu:
«Da perda de bens
Incorre ainda o arguido na perda de bens a favor do Estado Português, dos objectos que serviram ou estavam destinados a servir para a prática dos crimes e cujos requisitos obedeçam ao disposto no art° 109, n° 1 do C.Penal, bem como na perda a favor do Estado Português, do valor correspondente às vantagens patrimoniais que auferiram com a prática do crime (art° 111/2 do C.Penal).
Assim, atento o disposto nos citados preceitos legais e o que, de acordo com confissão do arguido se provou em 508, serão declarados perdidos a favor do Estado os imóveis apreendidos e descritos em 497, adquiridos com o dinheiro de que o arguido se apropriou nas circunstâncias acima descritas. »
Ora, em primeiro lugar: os requerentes não têm legitimidade para o recurso. Com efeito, legalmente, apenas têm legitimidade para requerer a revisão o Ministério Público, o assistente, relativamente a sentenças absolutórias ou a despachos de não pronúncia, o condenado ou o seu defensor, relativamente a sentenças condenatórias (art. 450.º, n.º 1, alíneas a), b) e c) do CPP. Os requerentes não estão, manifestamente, em nenhuma dessas situações.
Nesse aspecto, são estranhos à relação processual que culminou na condenação do arguido e perda dos bens apreendidos. Os recorrentes arrogam-se a propriedade destes bens. Tal, porém, não lhes confere legitimidade para interporem o presente recurso.
Em segundo lugar, toda a alegação deles está feita em moldes de uma impugnação do decidido, como se se tratasse de um recurso ordinário da decisão, para o qual não seria este o meio próprio. É significativo que terminem a motivação pedindo a nulidade da decisão na parte em que declarou perdidos os bens imóveis de cuja propriedade se arrogam e indicando como violado, entre outros que para aqui não relevam, o art. 374.º, n. º 2 do CPP, ou seja, a fundamentação da decisão. Ora, o recurso extraordinário de revisão visa um novo julgamento da causa, com base em algum dos fundamentos taxativos indicados no art. 449.º, n.º 1 do CPP, e não a reanálise do decidido, como pretendem os recorrentes. O objectivo da revisão é alcançar a justiça material do caso, através de um novo julgamento, como se disse, em casos em que se verifique qualquer um dos factos indicados taxativamente, os quais, pela sua gravidade, podem pôr seriamente em causa a condenação ou a absolvição: Daí que só o condenado ou o seu defensor, o Ministério Público e o assistente possam pedir a revisão.
Não é, como se disse, manifestamente, o caso dos autos.
Não revestindo nenhuma das qualidades pessoais em que a lei faz assentar a legitimidade para requerer a revisão, nem reunindo os pressupostos de que a mesma lei faz depender o pedido, os recorrentes não têm legitimidade para este tipo de recurso.
Consequentemente, faltando a legitimidade, o recurso tem que ser rejeitado.
De qualquer forma, os recorrentes alegam que os imóveis declarados perdidos a favor do Estado eram e são da sua propriedade e não do arguido e, nessa medida, foram afectados pela decisão em direitos seus.
Por outro lado, alegam não terem sido notificados da decisão, só tendo tido conhecimento dela por mero acaso.
A serem verídicos estes pressupostos, os recorrentes podem fazer valer esses seus direitos. Só que não através deste tipo de recurso. O Código Penal e o de Processo Penal prevêem essa possibilidade (art. 110.º do CP e art. 401.º, n.º 1, alínea d) do CPP).
Para poderem exercer os referidos direitos, os recorrentes poderão ir ao processo onde foi decretado o perdimento dos bens e requererem a sua notificação, com vista a usarem os meios adequados, seja pela via do processo penal, seja, eventualmente, pela via cível.
III. DECISÃO
7. Nestes termos, acordam na (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar, por falta de legitimidade, o recurso extraordinário de revisão de sentença interposto por AA, BB e CC.
8. Custas pelos requerentes com 3 UC de taxa de justiça por cada um deles.

Supremo Tribunal de Justiça, 11 de Fevereiro de 2010

Rodrigues da Costa (Relator)
Arménio Sottomayor
Carmona da Mota