Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04P3289
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
MEDIDA DA PENA
Nº do Documento: SJ200411030032893
Data do Acordão: 11/03/2004
Votação: MAIORIA COM 1 DEC VOT E 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário : I   -  O art. 25.º do DL 15/93, de 22-01, configura um tipo privilegiado em razão do grau de ilicitude em relação ao tipo fundamental do art. 21.º, pressupondo que a ilicitude do facto se mostre «consideravelmente diminuída» em razão de circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, e a qualidade ou a quantidade dos produtos.

II  - Nesta perspectiva de avaliação, em que relevam considerações de ilicitude e não de culpa, pode dizer-se que, logo pela natureza do produto em causa, qualidades e, sobretudo, a quantidade detida e transportada pelo arguido (341,651 g de cocaína, e 17,787 g de canabis), a ilicitude se apresenta em acentuada dimensão de gravidade, longe das percepções valorativas do facto diminuto e, muito mais, da gravidade «consideravelmente diminuída» suposta pelo referido art. 25.º.

III - O reconhecimento do fenómeno do tráfico de estupefacientes e da comoção social que provoca, que faz salientar a necessidade de acautelar as finalidades de prevenção geral na determinação das penas como garantia da validade das normas e de confiança da comunidade, não pode levar a descurar as finalidades de reinserção dentro do modelo de prevenção especial.

IV - A confissão integral e, especialmente, o arrependimento sincero, e as dificuldades que estão supostas na condição de consumidor de estupefacientes, aliadas à unicidade da conduta sem indícios de qualquer pressuposto organizativo, apontam para que a moldura do crime base de tráfico, de 4 a 12 anos de prisão, se apresente desajustada e sem a plasticidade suficiente para tratar adequadamente a actuação do arguido nas suas circunstâncias e na consideração global de facto e da personalidade, pelo que se impõe fazer uso do instituto da atenuação especial da pena, previsto no art. 72.º do CP, e fixar em 3 anos de prisão a pena a aplicar ao arguido.

V  - E, uma vez que os factos provados, especialmente o arrependimento sincero, revelam uma personalidade predisposta a aceitar os valores comunitários essenciais e a conformar-se com tais valores, sendo de esperar que a simples ameaça de execução seja bastante injunção para prevenir a reincidência, justifica-se a suspensão da execução da pena, que se fixa pelo período de 5 anos, com adequado acompanhamento em regime de prova, nos termos dos arts. 50.º e 53.º, n.º 1, ambos do CP.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Na 5ª Vara Criminal - 2ª Secção, da Comarca de Lisboa, perante o respectivo tribunal colectivo, foi o arguido AA, identificado no processo, condenado, como autor de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art° 25° do Dec-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos.

2. Não se conformando com a decisão, a magistrada do Ministério Público interpôs recurso o Supremo Tribunal de Justiça, que fundamentou nos termos da motivação que apresentou e que fez terminar com a formulação das seguintes conclusões:
1ª.- Decorre do art. 25° D.L. 15/93 que o privilegiamento do crime de tráfico de estupefacientes aí previsto resulta de a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade dos produtos estupefacientes.
2ª.- No caso presente o arguido transportava uma apreciável quantidade de ;c cocaína 41,651 gramas), considerada droga dura, e uma razoável quantidade de canabis (l 7,787 gramas), e detinha ainda no seu quarto duas embalagens de canabis, com o peso líquido de 7,569 e uma embalagem de canabis com o peso líquido de 5,767 gramas, destinando tais produtos a serem introduzidos no circuito de comercialização de tais substâncias, mediante contrapartida económica, produtos e quantidades estas de estupefacientes que, como é evidente, têm elevada potencialidade para atingir a saúde de muita gente, o que é incompatível com a verificação, no caso concreto, da diminuição da ilicitude em relação à pressuposta pela incriminação do art. 21° n° l do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro.
3ª.- Os factos provados não integram, pois, o crime de tráfico de estupefacientes privilegiado do art. 25° n° 1 do D.L. 15/93, mas sim o crime de tráfico de estupefacientes p.p. pelo art. 21° do mesmo diploma legal, o qual é punido com uma moldura penal de quatro a doze anos de prisão.
4ª.- Era dentro desta moldura penal que tinha de ser encontrada a pena em concreto aplicável ao arguido, a qual também não podia ser suspensa na sua execução, por a isso se opor desde logo o art. 50° n° l do CP.
5ª.- O acórdão recorrido ao enquadrar os factos provados na previsão do art. do D.L. 15/93 de 22 /l e ao condenar o arguido na pena de três anos de prisão suspensa na sua execução pelo período de cinco anos, violou por erro de interpretação esta disposição legal e ainda os art. 21° do D.L.15/93 e 50° n° l do CP.
6ª- A nosso ver ao arguido deverá ser aplicada a pena de quatro anos e seis meses de prisão, a qual se revela justa e adequada, face a toda a matéria de facto provada, e tendo em conta o elevado grau de ilicitude dos factos por ele cometidos, o dolo directo com que agiu, os motivos que o determinaram, as enormes exigências de reprovação e de prevenção geral e especial, que o crime de tráfico de estupefacientes por ele cometido reclamam, mas também a confissão que fez dos factos, e a sua condição de tetraplégico, fisicamente dependente de terceiras pessoas.
7ª. - Deve pois ser dado provimento ao recurso interposto e revogado o acórdão recorrido, substituindo-o por outro que condene o arguido por um crime de tráfico de estupefacientes p.p. pelo art. 21° do D.L. 15/93 de 22/1 na pena de quatro anos e seis meses de prisão.
O arguido, respondendo à motivação, considera que deve ser negado provimento ao recurso.

3. Neste Supremo Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta teve intervenção nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, teve lugar a audiência com a produção de alegações.
A Exmª magistrada do Ministério Público, aceitou que o recurso merece provimento no que respeita à qualificação dos factos, que integram o crime p. e p. no artigo 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, mas considerando as circunstâncias que favorecem o arguido, entende que se justifica a atenuação especial da pena.
O arguido, pela sua mandatária, reafirmou a posição já manifestada, insistido na bondade da qualificação do acórdão recorrido.
Cumpre apreciar e decidir.

4. O tribunal colectivo considerou provados os seguintes factos:
1) No dia 27 de Setembro de 2003, pelas 02h30m, o arguido desembarcou no Aeroporto da Portela, em Lisboa, sendo procedente de S. Salvador da Baía, Brasil, no voo TP 2516.
2) O arguido foi seleccionado para controlo de bagagem pelos serviços do Aeroporto.
3) O arguido deslocava-se numa cadeira de rodas, dada a sua condição de tetraplégico.
4) No decurso de tal diligência, constatou-se que o arguido transportava, na fralda que então usava, uma embalagem contendo cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 341,651 gramas, e, dentro de uma luva cirúrgica, uma embalagem contendo canabis (resina), com o peso líquido de 17,787 gramas.
5) Mais tarde, no dia 27 de Janeiro de 2004, na busca efectuada à sua residência, sita na Rua dos Lobitos, ... ...., Charneca da Caparica, constatou-se que o arguido detinha no seu quarto um cachimbo com resíduos de canabis, duas embalagens de canabis (resina), com o peso líquido de 7,569 gramas, e uma embalagem de canabis (resina), com o peso líquido de 5,767 gramas..
6) O arguido conhecia a natureza e as características estupefacientes das substâncias apreendidas, que detinha e destinava ceder a indivíduo não identificado, mediante contrapartida monetária.
7) O arguido agiu livre e conscientemente determinado, sabendo que a detenção, o transporte e a cedência de cocaína e canabis lhe eram proibidos.
8) O arguido confessou integralmente os factos respeitantes à actividade delituosa que lhe é imputada.
9) O arguido está sinceramente arrependido conduta.
10) O arguido é tetraplégico.
11) É consumidor de substâncias estupefacientes - ‘cannabis’.
12) Não exerce actividade profissional devido à incapacidade física de 90% de que padece.
13) Recebe uma pensão de invalidez no montante de €: 300,00.
14) Vive com sua mãe e irmão.
15) Como habilitações literárias tem o 12° ano de escolaridade.
16) Não tem antecedentes criminais.

5. A magistrada recorrente suscita a questão relativa à qualificação jurídico-penal dos factos provados, entendendo que integram o crime de tráfico de estupefacientes p. e p. no artigo 21º, nº 1 do Decreto-lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, e não o crime de tráfico de menor gravidade p. no artigo 25º do mesmo diploma.
O artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, define o crime de tráfico e outras actividades ilícitas sobre substancias estupefacientes, descrevendo de maneira assumidamente compreensiva e de largo espectro a respectiva factualidade típica: «Quem , sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver [...], plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas Tabelas I a IV, é punido com a pena de prisão de 4 a 12 anos».
O artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93 contém, pois, a descrição fundamental - o tipo essencial - relativa à previsão e ao tratamento penal das actividades de tráfico de estupefacientes, construindo um tipo de crime que assume, na dogmática das qualificações penais, a natureza de crime de perigo. A lei, nas condutas que descreve, basta-se com a aptidão que revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores (a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão inter-individual das unidades de organização fundamental da sociedade), considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou efectivamente determine: a lei faz recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.
A construção e a estrutura dos crimes ditos de tráfico de estupefacientes, como crimes de perigo, de protecção (total) recuada a momentos anteriores a qualquer manifestação de consequências danosas, e com a descrição típica alargada, pressupõe, porém, a graduação em escalas diversas dos diferentes padrões de ilicitude em que se manifeste a intensidade (a potencialidade) do perigo (um perigo que é abstracto-concreto) para os bens jurídicos protegidos. De contrário, o tipo fundamental, com os índices de intensidade da ilicitude pré-avaliados pela moldura abstracta das penas previstas, poderia fazer corresponder a um grau de ilicitude menor uma pena relativamente grave, com risco de afectação de uma ideia fundamental de proporcionalidade que imperiosamente deve existir na definição dos crimes e das correspondentes penas.
Por isso, a estratificação em graus diversos dos crimes de tráfico (mais dos tipos de ilicitude do que da factualidade típica, que permanece no essencial), respondendo às diferentes realidades, do ponto de vista das condutas e do agente, que necessariamente preexistem à compreensão do legislador: a delimitação pensada para o grande tráfico (artigos 21º e 22º do Decreto-Lei no 15/93), para os pequenos e médios traficantes (artigo 25º) e para os traficantes-consumidores (artigo 26º). (Cfr.. v. g., LOURENÇO MARTINS, "Droga e Direito", ed. Aequitas, 1994, pág. 123; e, entre vários, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 1 de Março de 2001, na "Colectânea de Jurisprudência", ano IX, tomo I, pág. 234).
O artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/93, epigrafado de "tráfico de menor gravidade", dispõe, com efeito, que «se, nos casos dos artigos 21º e 22º a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade e as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações», a pena é de prisão de 1 a 5 anos (alínea a)), ou de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias (alínea b)), conforme a natureza dos produtos (plantas, substancias ou preparações ) que estejam em causa.
Trata-se, como é entendido (v. g., o acórdão deste Supremo Tribunal, cit. de 1 de Março de 2001, com extensa indicação de referências jurisprudenciais), de um tipo privilegiado em razão do grau de ilicitude em relação do tipo fundamental de artigo 21º. Pressupõe, por referência ao tipo fundamental, que a ilicitude do facto se mostre «consideravelmente diminuída» em razão de circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, e a qualidade ou a quantidade dos produtos.
A essência da distinção entre os tipos fundamental e privilegiado reverte, assim, ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), mediada por um conjunto de circunstâncias objectivas que se revelem em concreto, e que devam ser conjuntamente valoradas por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei, e significativas para a conclusão (rectius, para a revelação externa) quanto à existência da considerável diminuição da ilicitude pressuposta no tipo fundamental, cuja gravidade bem evidente está traduzida na moldura das penas que lhe corresponde. Os critérios de proporcionalidade que devem estar pressupostos na definição das penas, constituem, também, um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de «considerável diminuição de ilicitude».
A diversificação dos tipos apenas conforme o grau de ilicitude, com imediato e necessário reflexo na moldura penal, não traduz, afinal, senão a resposta a realidades diferenciadas que supõem respostas também diferenciadas: o grande tráfico e o pequeno e médio tráfico. Mas estas são noções que, antes de se constituírem em categorias normativas, surgem como categorias empíricas susceptíveis de apreensão directa da realidade das coisas. A justeza da intervenção, para a adequada prossecução também de relevantes finalidades de prevenção geral e especial, justifica as opções legais tendentes à adequada diferenciação do tratamento penal entre os grandes traficantes (artigos 21º, 22º e 24º) e os pequenos e médios (artigo 25º), e ainda daqueles que desenvolvem um pequeno tráfico com a finalidade exclusiva de obter para si as substâncias que consomem (artigo 26º).
Os critérios de integração diferencial, delimitados na generalidade da aproximação ou nos limites da descrição típica, têm de ser testados na ponderação imposta, em concreto, pelas circunstâncias do caso, devendo ser considerados na determinação da gravidade da ilicitude, tanto os meios utilizados, como as circunstâncias da acção e a qualidade a quantidade dos produtos.
Tendo presentes os elementos de diferenciação entre os módulos de ilicitude, as circunstâncias do caso não permitem que a ilicitude seja considerada consideravelmente diminuída. A diferenciação entre tipos (artigos 21º, nº 1 e 25º do Decreto-Lei no 15/93) é, essencialmente, entre tipos de ilicitude e não considerações de culpa que não estão em causa neste primeiro momento de abordagem.
Nesta perspectiva de avaliação, pode dizer-se que, logo pela natureza do produto em causa, qualidades e, sobretudo, a quantidade detida e transportada pelo arguido, a ilicitude apresenta-se em acentuada dimensão de gravidade, longe das percepções valorativas do facto diminuto e, muito mais, da gravidade «consideravelmente diminuída» suposta pelo artigo 25º.
Os factos provados integram, pois, a prática pelo arguido de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. no artigo 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.

6. Na qualificação base do artigo 21°, n° l, do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de Janeiro, e partindo da respectiva moldura penal, há-de então ser fixada a pena a aplicar ao recorrente.
A .aplicação de penas e de medidas de segurança visa a «protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» - dispõe o artigo 40°, nº 1, do Código Penal, sendo que «era caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» - n° 2.
Não tendo o propósito de solucionar por via legislativa a questão dogmática dos fins das penas, a disposição contém, no entanto, imposições normativas específicas que devem ser respeitadas; a formulação da norma reveste a «forma plástica» de um programa de política criminal cujo conteúdo e principais proposições cabe ao legislador definir e que, em consequência, devem ser respeitadas pelo juiz; a norma do artigo 40° condensa, assim, em três proposições fundamentais o programa político criminal sobre a função e os fins das penas: protecção de bens jurídicos e socialização do agente do crime, sendo a culpa o limita da pena mas não seu fundamento.
O modelo de prevenção -porque de protecção de bens jurídicos - acolhido pressupõe, assim, que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva, e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
O conceito de prevenção significa protecção de bens jurídicos pela tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e reforço) da validade da norma violada. A medida da prevenção, que não pode era nenhuma circunstância ser ultrapassada, está, assim, na moldura penal correspondente ao crime. Dentro desta medida (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
Os tráficos de droga constituem, hoje, nas sociedades desenvolvidas, um dos factores que provoca maior perturbação e comoção social, tanto pelos riscos (e incomensuráveis danos) para bens e valores fundamentais como a saúde física e psíquica de milhares de cidadãos, especialmente jovens, com as fracturas devastadoras nas famílias e na coesão social primária, os comportamentos desviantes conexos sobretudo nos percursos da criminalidade adjacente e dependente, como pela exploração das dependências que gera lucros subterrâneos, alimentando economias criminais, que através de reciclagem contaminam a economia legal.
O reconhecimento do fenómeno e da comoção social que provoca, faz salientar a necessidade de acautelar as finalidades de prevenção geral na determinação das penas como garantia da validade das normas e de confiança da comunidade, mas, do mesmo passo, não podem ser descuradas as finalidades de reinserção dentro do modelo de prevenção especial.
No caso sob recurso, as circunstâncias pessoais são, no entanto, muito impressivas, a impor uma abordagem cuidada na ponderação in concreto das finalidades da pena.
Na verdade, a confissão integral e, especialmente, o arrependimento sincero, que releva no quadro das exigências de prevenção especial, e as dificuldades que estão supostas na condição de consumidor de estupefacientes, aliadas à unicidade da conduta sem indícios de qualquer pressuposto organizativo, apontam para que a moldura do crime base de tráfico se apresente desajustada e sem a plasticidade suficiente para tratar adequadamente a actuação do arguido nas suas circunstâncias e na consideração global do facto e da personalidade.
Para as situações em que se verifique um afastamento crítico entre o modelo formal de integração de uma conduta em determinado tipo legal e as circunstâncias específicas que façam situar a ilicitude ou a culpa aquém desse modelo, a lei dispõe de um instituto que funciona como instrumento de segurança do sistema: a atenuação especial da pena com os pressupostos do artigo 72º do Código Penal.
Com efeito, quando o legislador dispõe sobre a moldura penal para certo tipo de crime tem de prever as mais diversas formas e graus de realização do facto, desde os de menor até casos de maior gravidade, especialmente para ter em conta situações pessoais do agente em que a prevenção geral não imponha e a prevenção especial não exija uma pena a encontrar nos limites da moldura penal do tipo.
Para resolver situações em que «a capacidade de previsão do legislador é necessariamente ultrapassada pela riqueza e multiplicidade de situações reais da vida» e em que, «em consequência, mandamentos irrenunciáveis de justiça, adequação (ou necessidade) da punição» impõem-se que o sistema disponha de uma válvula de segurança que permita responder a casos especiais, em que concorram circunstâncias que «diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada relativamente ao complexo normal» de casos que o legislador terá previsto e para os quais fixou os limites da moldura respectiva (cfr., JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, "Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime", 1990, p. 302).
A esta ideia político-criminal responde o instituto da atenuação especial da pena, previsto no artigo 72º do Código Penal.
O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existam circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena - artigo 72º, nº 1.
O nº 2 enumera algumas circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito de diminuir de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa ou a necessidade da pena, ou seja, também diminuição das exigências de prevenção.
Pressuposto material da atenuação da pena, autónomo ou integrado pela intervenção valorativa das situações exemplificativamente enunciadas, é a acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção.
Mas acentuada diminuição significa casos extraordinários ou excepcionais, em que a imagem global do facto se apresenta com uma gravidade tão específica ou diminuída, que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em tais hipóteses quando estatuiu os limites normais da moldura do tipo respectivo (cfr. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, idem, p. 306; e v. g., acórdãos deste Supremo Tribunal, de 18/Out/2001, proc. 2137/01, e de 30/Out/2003, in CJ (STJ), ano XI, tomo III, p. 208).
No entanto, se estiverem verificados os pressupostos materiais, a atenuação especial («o tribunal atenua») é uma autêntica consequência jurídica que o tribunal deve declarar.
No caso, a situação pessoal do arguido e as características da sua personalidade, o arrependimento, a sua condição de consumidor e o prognóstico favorável que permitem, não supõem a necessidade de uma pena fixada na moldura prevista para o crime que formalmente integrou.
Deste modo, tendo em consideração todas as circunstâncias, nos termos dos artigos 71º, nº 2, alíneas b), c), d) e e), 72º e 73º, nº 1, alínea b), do Código Penal, atenua-se especialmente a pena pelo crime previsto no artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, que se fixa em três anos de prisão.

7. A suspensão da execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a três anos deve ter lugar, nos termos do artigo 50º do Código Penal, sempre que, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, for de concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pelos valores do direito, através da advertência da condenação e da injunção que impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores inscritos nas normas.
A suspensão da execução, acompanhada das medidas e das condições admitidas na lei que forem consideradas adequadas a cada situação, permite, além disso, manter as condições de sociabilidade próprias à condução da vida no respeito pelos valores do direito como factores de inclusão, evitando os riscos de fractura familiar, social, laboral e comportamental como factores de exclusão.
Não são, por outro lado, considerações de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos prognósticos sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas.
Por fim, a suspensão da execução da pena não depende de um qualquer modelo de discricionariedade, mas, antes, do exercício de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos.
A medida de substituição realiza, assim, de modo determinante, um programa de política criminal, que tem como elemento central a não execução de penas curtas de prisão, na maior medida possível e socialmente suportável pelo lado da prevenção geral, relativamente a casos de pequena e mesmo de média criminalidade.
Deste modo, as penas de prisão aplicadas m medida não superior a três anos devem ser, por princípio, suspensas na execução, salvo se o juízo de prognose sobre o comportamento futuro do agente se apresente claramente desfavorável, e a suspensão for impedida por prementes exigências geral-preventivas, em feição eminentemente utilitarista da prevenção.
O juízo prognóstico favorável constitui, porém, mais do que numa formulação radicalmente positiva, a ausência de elementos ou de certezas que apontem para um juízo negativo sobre a suficiência da simples ameaça da execução para obstar à prática de futuros crimes.
Sendo esta a perspectiva, os factos provados, especialmente o arrependimento sincero, revelam uma personalidade predisposta a aceitar os valores comunitários essenciais e a conformar-se com tais valores, sendo de esperar que a simples ameaça de execução seja bastante injunção para prevenir a reincidência.
Justifica-se, assim, a suspensão da execução da pena, nos termos do artigo 50º do Código Penal, que se fixa pelo período de cinco anos, com adequado acompanhamento em regime de prova, nos termos do artigo 53º, nº 1 do Código Penal.

8. Deste modo, concede-se parcial provimento ao recurso, condenando o arguido AA pela prática de um crime p. e p. no artigo 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena, especialmente atenuada nos termos dos artigos 72º e 73º, nº 1 do Código Penal, de três anos de prisão, suspensa por cinco anos com regime de prova, nos termos dos artigos 50º e 53º, nº 1 do mesmo diploma.
Não é devida taxa de justiça.

Lisboa, 3 de Novembro de 2004
Henriques Gaspar (relator)
Antunes Grancho
Silva Flor
Pires Salpico (vencido como relator, nos termos da "Declaração de Voto" e do projecto de acórdão, que se juntam e fazem parte integrante do presente acórdão).

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Declaração de Voto


-1-

Discordamos totalmente da decisão que fez vencimento no caso sub judice já que, alterando-se o enquadramento jurídico-penal do art. 25º do Dec-Lei Nº 15/93, de 22 de Janeiro, no qual o arguido fora condenado, na 1ª instância, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos, para o crime tipificado no art. 21º, nº1, do citado Dec-Lei nº 15/93, sendo agora neste Supremo, condenado na mesma pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 5 anos.

Em suma: no fundo, mal, a nosso ver, o Supremo, na decisão que agora fez vencimento, não tirou as necessárias consequências do novo enquadramento jurídico-penal do crime de tráfico de estupefacientes, art. 21º, nº1, do Dec-Lei nº 15/93 aplicando idêntica pena à que fora imposta na 1ª Instância pelo crime de menor gravidade previsto no art. 25º do Dec-Lei nº 15/93.


-2-

Também, na nossa óptica, não se verificaram, à face dos factos provados, os requisitos e as circunstâncias que permitam uma atenuação especial da pena e a suspensão da sua execução, não podendo esquecer-se a situação verdadeiramente catastrófica existente em Portugal - traduzida num aterrador aumento da criminalidade violenta, e numa intensa degradação social - em grande parte potenciadas pela difusão e tráfico criminosos de estupefacientes.

Por isso, nos pronunciámos pela aplicação da pena prevista no art. 21º do Dec-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, muito próxima do seu limite mínimo, ou seja, a pena de 4 anos e 2 meses de prisão.

Lisboa, 3 de Novembro de 2004

Pires Salpico