Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7005/06.6TBMAI.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BENTO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
COISA IMÓVEL
COISA FUTURA
VENDA DE COISA FUTURA
DEVER ACESSÓRIO
TERMO ESSENCIAL
MORA
MORA DO DEVEDOR
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
PERDA DE INTERESSE DO CREDOR
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
Data do Acordão: 06/07/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

I - Perante um contrato-promessa de compra e venda de prédio urbano, a construir pelo promitente vendedor, o cumprimento do mesmo consiste na outorga da escritura, no prazo convencionado, bem como pressupõe, entre outros, o cumprimento pelo promitente vendedor das obrigações acessórias de concluir a construção do prédio, conforme as especificações ajustadas, de o inscrever na matriz e no registo e de requerer a licença de habitação.
II - Muito embora o dever de construir seja autonomizável do dever de vender – segundo o programa negocial convencionado entre as partes – tais obrigações são indivisíveis: o dever principal ou primário emergente do contrato-promessa é a obrigação de outorgar a escritura pública de compra e venda, emitindo a prometida declaração negocial de venda; e o dever acessório de preparar a realização da escritura, desde logo concluindo a construção convencionada e obtendo, seguidamente, a licença de habitação.
III - A previsão feita no contrato-promessa de outorga da escritura, até Junho de 2004, não se confunde com impreteribilidade, sendo manifesto que com tal previsão não quiseram as partes fixar um data-limite e impreterível, um prazo final e essencial para a conclusão da construção e outorga da escritura.
IV - A mora, pressupondo a subsistência da possibilidade da prestação, é um mero incumprimento temporário, não legitimando a resolução do contrato, não obstante, poder converter-se em incumprimento definitivo, nos termos do art. 808.º, n.º 1, do CC, se por via dela o credor perder o interesse na prestação ou se o devedor não cumprir o prazo adicional e final que lhe for fixado por aquele.
V - A perda do interesse não se verifica porque o credor a alega nem porque, em juízo meramente subjectivo, entende que a prestação já não lhe aproveita; a subsistência ou desaparecimento do interesse deve ser aferida em função do juízo que, numa ponderação global do caso, efectuaria um homem razoável e de bom senso.
VI - A exigência de um critério objectivo de apreciação do interesse na prestação e da respectiva perda de interesse restringe esta aos casos de frustração do fim da prestação (aquisição da moradia prometida vender) e de realização do fim da prestação por via diversa do cumprimento.
VII - Se é certo que os autores alegaram que com a aquisição de uma outra moradia em Junho de 2006 – quase dois anos após a constituição em mora – perderam o interesse no objecto do contrato-promessa, o facto é que, nesse caso, o interesse desapareceu não por causa da mora, mas directa e imediatamente por causa de uma outra decisão negocial dos autores, com vista a substituir a aquisição visada com o contrato prometido, o que revela que a necessidade de habitação dos autores continuava por satisfazer adequadamente.
VIII - É eticamente inexigível que, perante a mora de uma das partes, a outra tenha que a suportar, per omnia saecula saeculorum, continuando vinculada sem nada poder fazer; para que assim não seja o art. 808.º, n.º 1, do CC confere-lhe o poder de fixar ao devedor em mora um derradeiro prazo suplementar – é a conversão do incumprimento temporário em incumprimento definitivo, através da notificação admonitória.
IX - Não tendo sido este o caminho seguido pelos autores – que depois de tolerarem durante cerca de 2 anos o atraso na celebração da escritura, enveredaram pela aquisição de uma outra casa, sem previamente terem desencadeado, pela via da interpelação admonitória, a resolução do contrato-promessa –, as sucessivas interpelações quinzenais por eles efectuadas (que não fixavam um prazo final, terminante e categórico) não podem ser consideradas idóneas à resolução do contrato.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


RELATÓRIO

Foi proposta no Tribunal Judicial da Comarca da Maia por AA e mulher BB contra CC – Construções e Investimentos Imobiliários, L.da acção com processo ordinário, visando:

- a declaração do incumprimento definitivo pela Ré do contrato-promessa de compra e venda entre eles celebrado em 07 de Julho de 2002, relativamente a uma moradia tipo T5, a edificar no prédio sito na Rua ......, nº ....., e Rua ....., na freguesia de Nogueira, concelho da Maia que os AA prometeram comprar e a Ré vender-lhes com a consequente resolução do mesmo;

- a condenação da Ré a pagar-lhes, a título de indemnização pelo não cumprimento culposo, o dobro do sinal prestado na quantia de € 200 000,00, acrescida de juros de mora a contar da citação até integral pagamento;

- a condenação da Ré a entregar-lhes os electrodomésticos por eles adquiridos e instalados na referida moradia;

A acção foi contestada e, na sequência de audiência de julgamento e de alegações de direito por escrito, foi proferida sentença que julgou a acção procedente, por provada, e em consequência:
- Declarou o incumprimento definitivo do contrato-promessa identificado nos autos (designadamente no Item 1) dos Factos Assentes) por parte da Ré CC – Construções e Investimentos Imobiliários, L.da, com a consequente resolução do mesmo;
- Condenou a mesma Ré CC – Construções e InvestimentosImobiliários, L.da a pagar aos Autores AA e mulher BB, a título de indemnização pelo não cumprimento culposo, o dobro do sinal prestado na quantia de € 200 000,00 (duzentos mil Euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4 % ao ano, vencidos a partir da citação da Ré e até integral pagamento;
- Condenou a mesma Ré CC – Construções e Investimentos Imobiliários, L.da a entregar aos Autores AA e mulher BB os electrodomésticos por eles adquiridos, referidos no Item 28) dos Factos Assentes.

A Ré não se conformou e apelou para a Relação do Porto, com êxito, na medida em que tal sentença foi revogada, julgando-se a acção totalmente improcedente com absolvição da Ré dos pedidos.

Novo recurso, desta vez de revista para o STJ, interposto pelos AA, visando a revogação de tal acórdão, com contra-alegações da Ré no sentido da manutenção do acórdão.

Remetido o processo a este STJ, após o exame preliminar, foram corridos os vistos.

Redistribuído o processo e colhido novo visto, por cessação de funções do Relator e de um dos Adjuntos, nada continua a obstar ao conhecimento do recurso.

FUNDAMENTAÇÃO

         - Matéria de facto:

Mostram-nos as instâncias como provados os seguintes factos:

1. Por contrato promessa de compra e venda e venda, outorgado em 07/07/2002, os A prometeram comprar à Ré, que lhes prometeu vender, uma moradia tipo T5, provisoriamente designada pela Moradia ....., a edificar no prédio sito na Rua ............., n° ....., e Rua ..............., na freguesia de Nogueira, concelho da Maia, descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o n° 0000, com o alvará de licença de construção n° 000/00, emitida pela Câmara Municipal da Maia, conforme melhor consta do documento junto aos autos,  a fis. 14 a 16, cujo teor aqui é dado como reproduzido (Alínea A)).

2. A moradia prometida adquirir seria construída de acordo com a memória descritiva anexa ao contrato promessa e que constitui o documento junto aos autos a fls. 17 e 18, cujo teor aqui é dado como reproduzido (Alínea B)).

3. Na mesma data, os Autores celebraram com a Ré um aditamento ao contrato promessa atrás referido, nos termos do qual, pelo preço adicional de € 62.500,00, mandaram executar os trabalhos e melhorias de acabamentos vários, melhor descritos no documento junto aos autos a fls. 20 e 21, cujo teor aqui é dado como reproduzido (Alínea C)).

4. O preço convencionado no contrato promessa foi de € 187.500,00, a que acresce o preço previsto no mencionado aditamento, no montante de € 62.500,00 (Alínea D)).

5. Os Autores procederam, nas respectivas datas de vencimento, ao pagamento do sinal e reforços de sinal, previstos na cláusula terceira do contrato promessa, tendo entregue à Ré, até ao momento, a quantia global de € 100.000,00 (Alínea E)).

6. De acordo com a cláusula quinta do referido contrato promessa, a escritura de compra e venda deve ser outorgada até 30 dias após a emissão da licença de habitabilidade, prevendo-se a outorga da mesma até Junho de 2004, e devendo a Ré informar os Autores, por escrito, aquando da obtenção da referida licença (Alínea F)).

7. De acordo com a cláusula sétima do referido contrato promessa, os Autores terão de informar a Ré do dia, hora e Cartório Notarial onde se realizará a referida escritura, com antecedência mínima de 15 dias, por carta registada com aviso de recepção (Alínea G)).

8. De acordo com a cláusula oitava do referido contrato promessa, a moradia prometida vender será entregue no acto da escritura de compra e venda, devoluta de pessoas e coisas e em perfeitas condições de utilização (Alínea H)).

9. Em Setembro de 2004, a obra não estava concluída, não podendo ser marcada a escritura da moradia (Alínea I)).

10.  A partir desta data, os Autores passaram a interpelar a Ré, na pessoa da sua gerente, de quinze em quinze dias, exigindo o acabamento da moradia e a marcação da escritura (Alínea J)).

11.  A Ré, na pessoa da sua gerente, ia sempre informando os Autores que o acabamento da obra e a escritura estariam para breve, o que não sucedia (Alínea L)).

12.  A Ré enviou aos Autores, que a receberam, a carta que está junta aos autos a fls 27, datada de 22/11/2004, cujo teor aqui é dado como reproduzido (Alínea M)). A

13.  Os Autores estavam de tal forma desesperados que, em 14/11/2005, a Autora remeteu à gerente da Ré o e-mail que constitui o documento juntos aos autos a  flss 32 a 34, cujo teor aqui é dado como reproduzido (Alínea N)).

14.  Em 19/10/2006, a moradia continuava por acabar (Alínea O)). 

15.  Por escritura pública celebrada em 20/07/2005, a Ré declarou vender à sociedade Vale Gordo – Gestão e Empreendimentos Imobiliários, Lda., que declarou 13/30 indivisos do prédio urbano identificado em A) (Alínea P)).

16.  Por escritura pública celebrada em 20/07/2005 a Ré e a sociedade Vale Gordo - Gestão e Empreendimentos Imobiliários, Lda procederam à constituição da propriedade horizontal do edifício construído no prédio identificado em A), composto por trinta fracções autónomas distintas, independentes e isoladas entre si, destinadas a futuras vendas, descritas com a indicação dos respectivos destinos, percentagens e valores no documento complementar que integra a referida escritura (Alínea Q)).

17.  Na mesma escritura, a Ré e a sociedade Vale Gordo – Gestão e Empreendimentos Imobiliários, Lda procederam à divisão da compropriedade, adjudicando as fracções autónomas “C”, “D”, “E”, “F”, “G”, “H”, “I”, “J”, “N”, “O”, “P”, “Q”, “R”, “S”, “T”, “U’” e “V à primeira e adjudicando as fracções autónomas “A”, “B “ , “K”, “L”, “M”, “W”, ;’X”, “Y”, “Z”, “AA”, “AB”, “AC” e “AD” à segunda (Alínea R)).

18.  A licença de habitabilidade relativa ao edifício construído no prédio identificado em I) ainda não foi emitida pela Câmara Municipal da Maia (Alínea S)).

19.  Em Abril de 2004, a sociedade Norasil – Sociedade de Construção Civil S.A. propôs contra a Ré um procedimento cautelar de arresto, que correu termos sob o nº 4441/04.6TBMAI-A no 5° Juízo deste Tribunal e que terminou com a transacção, celebrada em 15/07/2004, constante do documento junto aos altos a fis. 60 a 62, cujo teor aqui é dado como reproduzido (Alínea T)).

20.  A mesma sociedade propôs contra a Ré uma acção ordinária, que correu termos sob o n° 4441/04.6TBMAI no 5° Juízo deste Tribunal e que terminou com a transacção, celebrada em 15/07/2004, constante do documento junto aos autos a fls. 55 a 59, cujo teor aqui é dado como reproduzido (Alínea U)).

21.  A Ré garantiu aos Autores que teria pronta a moradia no prazo indicado no contrato promessa (Item 4°).

22.  Em 23/04/2004, os Autores celebraram com a sociedade DD – Mediação Imobiliária Lda, o contrato que constitui o documento junto aos autos a fls. 22, aqui dado como reproduzido (Item 5°),

23.  Os Autores celebraram o referido contrato na convicção de que teriam de outorgar a escritura da moradia prometida comprar até ao final do mês de Junho de 2004 (Item 6°).

24.  Essa convicção teve, pelo menos, por base o teor da Cláusula 5ª do contrato -  promessa descrito nos autos (Item 7°).

25.  Porque convictos de que a escritura de compra e venda seria celebrada brevemente, e porque lhes apareceu um comprador, os Autores procederam à venda do seu apartamento em 27/08/2004 (Item 11).

26.  Os Autores mudaram-se provisoriamente para uma pequena casa, propriedade do pai da Autora mulher, sita na Rua ....... n° .., ....... em Leça do ...., na convicção de que em Setembro iriam habitar a moradia prometida comprar (Item 12°).

27.  A casa para onde mudaram era mais pequena do que a anterior e do que aquela objecto do contrato-promessa, dificultando a recepção de visitas (Item 13°).

28.  Os Autores procederam à compra e montagem dos electrodomésticos na moradia prometida comprar (Item 17°).

29.  Em Agosto de 2005, pelo menos os arranjos exteriores à moradia não se encontravam prontos (Item 18°).

30.  Durante o ano de 2006, os Autores viram-se compelidos a procurar um outra casa, pois não conseguiam manter a família a viver na casa em que provisoriamente se instalaram (Item 27°).

31.  Os seus dois filhos menores queixavam-se continuamente da falta de espaço a que estavam sujeitos (Item 28°).

32.  Desde a data da venda do seu apartamento, os Autores passaram a receber a família e amigos menos vezes em sua casa do que acontecia anteriormente (Item 29°).

33.  Em Junho de 2006, os Autores procederam à compra de uma moradia, onde hoje moram (Item 30°).

34.  A moradia prometida vender aos AA corresponde à fracção autónoma identificada pela letra “V” na escritura pública referida nos ltens 16) e 17) (Item 31).

- O objecto do recurso:

Cumpre antes de mais, delimitar o objecto do recurso que, como se sabe, se define pelas conclusões da alegação do recorrente (art. 690º nº1 CPC); daí a conveniência da respectiva transcrição:

I – Dos contratos promessa, derivam para as partes, para além da obrigação de cumprimento da prestação principal - celebração do contrato definitivo de compra e venda - deveres secundários, acessórios da prestação principal destinados a preparar aquele cumprimento e/ou assegurar a perfeita execução dessa prestação;

II – A mora como retardamento culposo da prestação, pode constituir-se ex re, de forma automática, isto é, o cumprimento não é feito num determinado prazo, até um determinado dia - é o caso da previsão do artigo 805º, nº 2 alínea a) do Código Civil; ou pode constituir-se ex persona, por interpelação judicial ou extra judicial para o cumprimento, como resulta da previsão do artigo 805° n° 1 do CC.

III – ln casu, foi convencionado um prazo relativo para a celebração da escritura – 30 dias após a emissão da licença de habitabilidade – prevendo-se a outorga da mesma até Junho de 2004, tendo a Ré garantido aos Autores que teria a moradia pronta no prazo indicado no contrato promessa.

IV – Como resulta do contrato promessa em apreço nos Autos a conclusão da moradia na data constante do contrato promessa era um dever secundário, acessório da obrigação principal celebração do contrato prometido - a qual visava assegurar, e cujo incumprimento determinou o retardamento daquela. NA VERDADE,

V – Neste caso concreto o dever acessório – conclusão das obras – era indissociável do dever principal – escritura de compra e venda – porquanto não é possível escriturar uma moradia, enquanto a mesma não estiver concluída.

VI - Se a 30 de Junho de 2004 não se encontrava concluída a moradia, então, nessa data, a obrigação acessória entrou em mora, levando consigo a obrigação principal.

VII - Tal incumprimento é totalmente imputável à Ré – cuja culpa sempre se presume ao abrigo do disposto no artigo 799.° nº 1 do Código Civil - porquanto a mesma sabia existir um arresto sobre a obra, em virtude de dívidas ao empreiteiro decorrentes da construção da mesma, no âmbito do qual transaccionou a realização de uma peritagem que contribuiu ainda mais para o atraso desmesurado da obra.

VIII – ln casu, os Recorrente também interpelaram extrajudicialmente a Ré/ Recorrida para o cumprimento da obrigação principal - marcação da escritura – o que faziam de 15 em 15 dias a partir de Setembro de 2004, conforme resulta provado no Ponto 10 da do Douto Acórdão de que se recorre.

IX - Como resultou provado no Ponto 11 do Douto Acórdão, a Ré/Recorrida aceitava a interpelação, pois em resposta, ia sempre informando os Autores/Recorrentes que o acabamento da obra e a escritura estavam para breve, incentivando-os a escolherem e a comprarem os electrodomésticos para a moradia.

X – A mora no cumprimento da obrigação principal é imputável à Ré/Recorrida, conforme o alegado na Conclusão VII.

XI - Em consequência da mora, os Autores recorrentes perderam o interesse no cumprimento.

XII - A perda de interesse é aferida por critérios objectivos, baseados numa análise global do contrato inexecutado (da sua natureza e das suas cláusulas e na consideração do «comportamento» total dos contraentes (particularmente da situação de expectativa do credor). Estes índices, ao permitirem avaliar a repercussão do incumprimento no equilíbrio sinalagmático do contrato, possibilitam a relevância resolutiva da violação de uma obrigação principal ( … ), de um dever secundário importante ( … ), de um dever lateral ( … ), de um incumprimento parcial significante, e da falta ou mora de alguma prestação no cumprimento de um contrato duradouro tout court ( … )”

XIII - ln casu, os factos provados nos Pontos 14,18,19, 21, 24,25,26,27, 30, 31,32 e 33, do Douto Acórdão devem ser considerados pelo Tribunal como factos que, objectivamente, traduzem a perda do interesse dos Recorrentes. .

XIV – É que, frustrando-se reiteradamente a promessa da Recorrida de que se encontrava para breve a realização da escritura, e ao fim de dois anos com a família a viver em condições precárias, face à degradação das condições de vida, viram-se obrigados a comprar uma outra casa que pusesse termo à situação insustentável e lhes garantisse as condições de habitabilidade e qualidade de vida que procuravam aquando da celebração do contrato prometido.

XV- Ao considerar que a Recorrida não estava em mora, violou, pois, o Douto Acórdão o disposto nos artigos 804º, nº 2, 805° do Código Civil.

XVI – Ao considerar que os Recorrentes não perderam o interesse na prestação violou o Douto Acórdão violou o artigo 808.° do Código Civil.

Concluem os recorrentes pedindo a revogação do acórdão recorrido para subsistir a decisão da 1ª instância.

O objecto do presente recurso supõe, portanto, a apreciação das seguintes questões:

- O contrato-promessa de compra e venda como relação obrigacional complexa;

- A mora e as suas consequências, designadamente em sede de resolução contratual; a perda de interesse (por frustração do fim e pela realização do fim por outra via diversa do cumprimento) e a notificação admonitória;

- A notificação admonitória como meio de operar a resolução do contrato contra o contraente em mora, nos casos de subsistência do interesse na prestação.

Comecemos pela primeira: O contrato-promessa de compra e venda como relação obrigacional complexa

Estamos perante um contrato-promessa de compra e venda de coisa futura – prédio urbano - a construir pelo promitente-vendedor.

Como tal assumiu o promitente-vendedor a obrigação de emitir oportunamente a declaração negocial de transferência do direito de propriedade sobre esse imóvel para o promitente-comprador; com efeito, a celebração ulterior do contrato de compra e venda prometido através da outorga da respectiva escritura pública, exarando as inerentes declarações de venda e de compra, é o dever principal que recai sobre as partes em tal contrato-promessa.

Mas, as obrigações derivadas do contrato-promessa, tal como, de resto, da generalidade dos contratos, não se esgotam nesses deveres principais.

Esta visão tradicional da obrigação, recortada na abstracção e na generalidade, não permite captar todos os vínculos emergentes do contrato na sua unidade e funcionalidade. Por outro lado, as manifestações essencialmente variadas e específicas da vida, que se projectam no conteúdo das relações contratuais, designadamente através da relevância do chamado fim do contrato, não são captadas por um conceito formal, linear e abstracto, como é o dever de prestação.

Com efeito, entre as partes de um contrato não existem apenas os deveres de efectuar a prestação principal correspondente. O intento das partes de alcançar a satisfação de determinados fins faz surgir entre elas toda uma série de vínculos singulares de diferente natureza (dever de prestação principal, deveres acessórios deste, deveres laterais de adopção de outros comportamentos, direitos potestativos, sujeições, expectativas, ónus, etc). Estes vínculos estão todos ao serviço da realização do fim contratual e resultam directamente de norma legal expressa, de cláusula geral de boa-fé, de cláusula geral expressa, etc (cfr. Mota Pinto, Direito das Obrigações, Sumários das lições, 1972, p. 30-31).

Por conseguinte, actualmente, o contrato é perspectivado como uma relação obrigacional complexa - em que o dever de prestação (e o correlativo direito) é apenas um dos seus elementos, quiçá o mais importante – integrando um conjunto ou sistema de vínculos de diversa natureza, emergentes do facto constitutivo da obrigação e unificados pela sua comum afectação à realização do mesmo fim contratual.

A este propósito, escreve Menezes Cordeiro:

“A complexidade intra-obrigacional traduz a ideia de que o vínculo obrigacional abriga, no seu seio, não um simples dever de prestar, simétrico a uma pretensão creditícia, mas antes vários elementos jurídicos dotados de autonomia bastante para, de um conteúdo unitário, fazerem uma realidade composta”  (cfr. Da boa-fé no Direito Civil, vol. I, p. 586).

E mais adiante:

“O crédito paradigmático importa uma situação relativa, no sentido próprio de correspondência entre um direito e um dever contrapostos. O cerne é constituído pela conduta humana a desenvolver pelo devedor, a favor do credor: trata-se da prestação ou prestação principal. Como comportamento, a prestação principal pode, ela própria, envolver várias operações materiais; constitui, porém, uma unidade jurídica, constante cm todas as obrigações do mesmo tipo que possam surgir. Várias prestações, susceptíveis de ser atribuídas, noutras circunstâncias, de modo autónomo, podem estar reunidas num escopo comum ou aparecer geneticamente ligadas. A obrigação implica, então, créditos múltiplos e diz-se complexa: tem varias prestações principais ou, quando uma delas domine, em termos finais, uma principal e várias secundárias” (cfr. ob cit, p590-591).

Por conseguinte, o conteúdo da relação obrigacional complexa analisa-se em direitos (e correlativos deveres) principais de prestação – elemento fundamental dirigido à consecução do fim determinante do surgimento da relação obrigacional – e deveres secundários.

Estes, por sua vez, podem ser com prestação autónoma da principal (prestação sucedânea do dever primário de prestação ou prestação coexistente com a prestação principal) ou acessórios da prestação principal.

Estes últimos – deveres secundários, acessórios da prestação principal não têm autonomia em relação ao dever principal de prestação nem actuam sobre ele, estão exclusivamente dirigidos à realização do interesse no crédito (interesse no cumprimento) e são, assim, acessórios do dever primário de prestação (cfr. Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, p. 337).

Os deveres secundários acessórios da prestação principal destinam-se, segundo o Prof. A. Varela, a preparar o cumprimento ou a assegurar a perfeita execução da prestação (cfr. Das Obrigações em geral, vol. I, 10ª ed., p. 122, itálico nosso).

A complexidade e variedade dos deveres que nascem dos contratos – o sistema de vínculos – não obstante a possível destrinça entre eles dos deveres principais e primários, por um lado, dos secundários, por outro, (para não referir outros deveres laterais e acessórios) e sua consequente divisibilidade há-de ser sempre resolvida à luz do interesse do credor, tendo em conta a vontade das partes e a natureza ou função do negócio.

Assim, o cumprimento do contrato-promessa de compra e venda de prédio urbano a construir pelo promitente vendedor consistia na outorga da escritura pública, no prazo convencionado de 30 dias a contar da emissão da licença de habitabilidade, pressupunha, entre outros, o cumprimento pelo promitente vendedor das obrigações acessórias de concluir a construção do prédio, conforme as especificações ajustadas, de o inscrever na matriz e no Registo e de requerer a licença de habitação.

Muito embora o dever de construir, (tal como os demais mencionados), seja autonomizável do dever de vender, segundo o programa negocial convencionado entre as partes, tais obrigações são indivisíveis: o dever principal ou primário emergente do contrato-promessa é a obrigação de outorgar a escritura pública de compra e venda, emitindo a prometida declaração negocial de venda, e o secundário acessório o de preparar a realização dessa escritura, desde logo, concluindo a construção convencionada (e obter, seguidamente, a licença de habitação).

Por conseguinte, e concluindo, tal como qualquer contrato, também um contrato-promessa de compra e venda de prédio urbano a construir pelo promitente vendedor configura uma relação obrigacional complexa.

Passemos agora à apreciação da 2ª questão: A mora e as suas consequências em sede de resolução contratual; a perda de interesse e a notificação admonitória;

No contrato em causa, foi convencionado na respectiva cláusula 5ª que a escritura de compra e venda seria outorgada até 30 dias após a emissão da licença de habitabilidade, prevendo-se logo no contrato-promessa a outorga da mesma até Junho de 2004, e a obrigação que recaía sobre a Ré de informar os Autores, por escrito, aquando da obtenção da referida licença.

Mais se apurou que a Ré garantiu aos Autores que teria pronta a moradia no prazo indicado no contrato promessa (Item 4°).

Como se depreende do acórdão recorrido, referindo-se àquela previsão de outorga da escritura até Junho de 2004, previsibilidade não se confunde com impreteribilidade, “sendo manifesto que as partes com aquela cláusula não quiseram fixar uma data-limite e impreterível”.

Logo, forçoso é concluir que, apesar da previsão da conclusão da construção para Junho de 2004, no contrato-promessa não foi convencionado prazo final e essencial para a conclusão da construção nem para a outorga da escritura (salvo quanto a esta o prazo de 30 dias após a emissão da licença de habitabilidade).

Há que distinguir o “tempo da obrigação” do “tempo da prestação”.

No tempo da obrigação, o elemento tempo incide sobre a relação obrigacional como uma unidade, marcando o seu início e o seu fim, delimitando o período em que a vinculação é efectiva (termo de eficácia); no tempo da prestação, diversamente, é o momento da execução da prestação que constitui o objecto da obrigação, ou seja, o tempo do cumprimento (cfr. Diez-Picazo, ob cit., p. 327).

Por outras palavras, o tempo da obrigação significa o prazo da prestação – sequência temporal ou período no qual a vinculação deve vigorar e surtir efeitos e no decurso da qual deve ter lugar a execução da prestação prometida – e o tempo do cumprimento significa o termo - uma indicação temporal específica, um instante ou momento exacto no calendário no qual deve ter lugar a execução da prestação.

A delimitação temporal do tempo da obrigação – o início e o termo da vinculação -  não tem, porém, um significado unívoco.

Com efeito, a fixação do prazo tanto pode significar que a obrigação tem de ser efectuada dentro dele, sob pena de o negócio caducar, por a prestação já não ter interesse para o credor (negócio fixo absoluto) como a faculdade de o credor, vencido o prazo sem que a obrigação seja cumprida, resolver o negócio ou exigir indemnização pelo dano moratório (negócio fixo relativo ou simples) (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª ed., p. 45).

No caso dos autos, da previsão da outorga da escritura prometida até Junho de 2004 assumida por ambas as partes decorre a estipulação da convenção do respectivo prazo até Junho de 2004 – entenda-se até 30-06-2004 (art. 279º a) e c) CC).

Mas a utilização da expressão “prevendo-se a outorga …” na cláusula 5ª do contrato-promessa, inculca também, sem margem para dúvidas, que esse prazo não era absoluto, não era impreterível, determinando a caducidade do contrato se ultrapassado sem a escritura.

Como aliás o comprova a conduta das partes anterior a 01-07-2004.

Com efeito, está provado que a Ré garantiu aos AA a conclusão das obras – note-se, não a outorga da escritura… - até Junho de 2004.

Tal facto deve ser interpretado no sentido de a Ré ter assegurado aos AA, isto é, ter-se obrigado perante eles, que, até Junho de 2004, a obra estaria concluída e, logo que fosse emitida a licença de habitação (para a qual o curso das obras já não constituiria obstáculo), poderia ser marcada a escritura de compra e venda prometida que, concedendo a conclusão da construção em 30-06-2004, teria lugar necessariamente depois dessa data.

Foi assim que os AA interpretaram aquela declaração da Ré e era assim que um declaratário normal colocado na posição deles, ou seja, aguardando a conclusão das obras, sempre a interpretaria (art. 236º nº1 CC).

A Ré vinculou-se perante os AA - e estes aceitaram – a concluir a construção da moradia até Junho de 2004; houve, pois, acordo das partes.

E, a ser cumprido este compromisso, a escritura ocorreria necessariamente após o dia 30-06-2004, pois que para esta faltava, pelo menos, a obtenção da licença de habitação que necessariamente levaria algum tempo e protelaria a escritura para data posterior a essa data.

Logo, da conduta das partes antes de 01-07-2004 depreende-se que, já nessa altura, interpretavam o prazo referido na cláusula 5ª como relativo, não implicando necessariamente a caducidade ou o incumprimento definitivo do contrato-promessa.

Como também o confirma a conduta posterior a 01-07-2004, com as reclamações dos AA da outorga da escritura e as promessas da Ré que a mesma estaria para breve…

E sendo, no complexo obrigacional convencionado, a obrigação de concluir a construção da moradia uma obrigação secundária da obrigação principal assumida no contrato-promessa (por isso que se destinava a preparar o cumprimento desta), havemos de convir que a partir de 01-07-2004, a Ré incorreu em mora.

Ou seja, a inobservância do prazo de conclusão da construção não é relevante no complexo negocial em causa em que o dever primário e principal era a outorga de um contrato de compra e venda.

O interesse dos AA era o cumprimento do contrato prometido – a compra e venda do prédio – e não a conclusão da construção deste; logo, compra e venda e não empreitada…

Por conseguinte, não tendo outorgado a escritura de compra e venda convencionada até ao dia 30-06-2004, após esta data, a Ré incorreu em mora e não em incumprimento definitivo, como o demonstram as diligências efectuadas pelos AA, junto da Ré, após essa data com vista à outorga da escritura e à celebração do contrato prometido, em que, obviamente, continuavam interessados.

Na verdade, a mora consiste no retardamento ou atraso no cumprimento da obrigação e pressupõe a possibilidade de cumprimento desta bem como a subsistência do interesse do credor no cumprimento (eventualmente acrescido da indemnização moratória); é o que decorre do art. 804º nº 1 e 2 CC: “o devedor considera-se em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido” (nº2) e “a simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor” (nº1).

Sobre a Ré impendia a obrigação de provar que a falta de cumprimento (a mora é um incumprimento temporário…) não procedia de culpa sua (art. 799º nº1 CC).

O que não fez, ilidindo a presunção.

Consequentemente, estamos perante mora culposa da Ré, promitente-vendedora, no cumprimento da obrigação.

Neste ponto, divergimos da Relação quando no respectivo acórdão entendeu que as partes, com a previsão da outorga da escritura até Junho de 2004 (cfr cláusula 5ª), não convencionaram qualquer prazo para o cumprimento do contrato-promessa.

Assente a mora da Ré, importa agora apurar se aos AA assiste o direito de resolver o contrato-promessa.

Prescreve o art. 808º nº1 CC que, se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.

A mora, só por si, pressupondo a subsistência da possibilidade da prestação, é um mero incumprimento temporário que não equivale ao incumprimento definitivo; logo, só por si, não legitima a resolução do contrato.

Mas pode converter-se em incumprimento definitivo, nos termos do art. 808º nº1 CC se, por via dela, o credor perder o interesse na prestação ou se o devedor não cumprir no prazo adicional e final que lhe for fixado pelo credor.

Sustentam os AA, recorrentes, haverem perdido o interesse no contrato prometido.

Prescreve a este propósito o nº2 do art. 808º citado que a perda de interesse na prestação é apreciada objectivamente.

Não basta, pois, uma perda subjectiva de interesse na prestação; é necessário que essa perda de interesse transpareça numa apreciação objectiva da situação.

A perda do interesse não se verifica porque o credor a alega nem porque, em juízo meramente subjectivo, entende que a prestação já não lhe aproveita – o que pode decorrer de mero capricho seu.

O interesse é uma relação entre a pessoa e os bens – id quod inter est – fundada na aptidão destes para satisfazer necessidades daqueles.

Mas a subsistência ou desaparecimento de tal relação é aferida, não em função do juízo do respectivo sujeito – ninguém é (bom) juiz em causa própria… - mas em função do juízo que, numa ponderação global do caso (na qual, entre outras, avulta o fim do credor ao celebrar o contrato), efectuaria um homem de bom senso e razoável, suposto pela ordem jurídica.

Com efeito, a satisfação do interesse do credor é o fim principal da prestação, podendo afirmar-se que, sendo a relação obrigacional um processo (isto é, um conjunto de actos encadeados entre si) tendente ao cumprimento, este só se realiza de acordo com esse processo quando o credor vê realizado o interesse que pretendia com aquela relação obrigacional, na dupla vertente de prestação-acção (conduta devida) e de prestação-resultado (fim da prestação), pois, “muito embora o interesse do credor, cuja satisfação é o fim e razão de ser da obrigação, seja um elemento extrínseco à sua estrutura, a decomposição ou cisão da prestação em acção de prestar (conduta) e resultado útil a prestar acaba por estar subjacente ao regime jurídico do cumprimento e não cumprimento” (cfr. Calvão da Silva, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, Coimbra, 1987, p. 82).

Ora, no caso dos autos, os AA visavam com o contrato-promessa, em 07-07-2002, a futura, até 30-06-2004, aquisição de uma habitação; logo, por via da declaração negocial de alienação do direito de propriedade pela Ré, promitente-vendedora (prestação-acção), a satisfação para futuro da necessidade de habitação familiar (prestação-resultado).

E, convencidos de que (e confiando em que) o contrato-promessa seria cumprido, celebraram contrato de mediação imobiliária com vista à alienação da fracção autónoma que então habitavam.        

Venderam essa fracção em 24-08-2004, apesar de nesta data, a Ré já se encontrar em mora, sempre confiando no cumprimento em breve do contrato-promessa.

Mudaram-se então para uma casa mais pequena que aquela que habitavam e alienaram e que a que tinham prometido comprar e que não satisfazia as suas necessidades de espaço, passando a receber a família e os amigos menos vezes que na casa que alienaram.

Entretanto, a partir de Setembro de 2004, não estando a obra concluída, passaram a interpelar a Ré, na pessoa da sua gerente, de 15 em 15 dias para concluir a moradia e marcar a escritura, respondendo esta sempre que o acabamento e a escritura estavam para breve e, em 22-11-2004, depois da missiva remetida pela Autora, em 14-11-2004, via email - e cujo teor a fls 32-34 aqui se dá por reproduzido - à Ré, esta comunicou aos AA, em 22-11-2004 designadamente, que, caso pretendessem efectuar alteração de mobiliário de cozinha, o deveriam fazer no prazo de 30 dias, sob pena de ser instalado o idêntico na “Casa Modelo”.

No entanto, em 19-10-2006 – data da instauração desta acção - a moradia continuava inacabada e sem licença de habitabilidade.

Em Junho de 2006, porém, os AA adquiriram uma moradia onde actualmente habitam.

Quer dizer: os factos mostram que mais de dois anos depois, a Ré continuava em mora…,

Dificilmente deixará de se configurar para qualquer pessoa de elementar e razoável bom senso (bonus pater familiae) a inexigibilidade de subsistência da vinculação a um contrato – para cuja concretização e nela acreditando programou um investimento que envolvia (como, de facto, envolveu) a alienação da fracção autónoma que habitava, passando a habitar em casa emprestada que não dispunha das comodidades da que alienara – depois de sucessivas e infrutíferas interpelações para a outorga da escritura.

Mas a exigência de um critério objectivo de apreciação do interesse na prestação e da respectiva perda restringe esta aos casos de frustração do fim da prestação – a aquisição da moradia prometida vender - e de realização do fim da prestação por via diversa do cumprimento – transferência da propriedade da moradia por outro meio que não o cumprimento do contrato-promessa.

Quer dizer: a conversão da mora em incumprimento definitivo pela via da perda de interesse na prestação pressupõe a frustração do fim desta ou a realização do seu fim por outra via que não a do cumprimento.

Como é óbvio, nenhum destes casos se verifica no caso em apreço: nem o cumprimento do contrato-promessa, por causa da mora, se tornou objectivamente impossível, nem os AA adquiriram, por qualquer outra forma jurídica, a propriedade daquela concreta moradia prometida vender, impossibilitando também por essa via, aquele cumprimento.

Se a prestação é um meio para satisfazer o interesse do credor, só interessa a este enquanto meio para atingir esse resultado; logo, enquanto for possível obter o resultado, não há - objectivamente, entenda-se - perda de interesse.

É certo que os AA alegam que, com a compra que fizeram em Junho de 2006 – quase dois anos após a constituição em mora – terem perdido o interesse no contrato-promessa.

Mas aí o interesse desapareceu, não por causa da mora, mas directa e imediatamente por causa de uma outra decisão negocial dos AA com vista a substituir a aquisição visada com o contrato prometido.

O art. 808º nº1 CC, porém, é explícito: “Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação…”

Logo, a mora só determina a perda objectiva de interesse no cumprimento do contrato-promessa quando a celebração do contrato prometido já não tenha qualquer valor para o credor por este haver deixado de ter qualquer vantagem ou utilidade (interesse) na declaração negocial prometida do devedor moroso (cfr. Von Tuhr, Tratado de las Obligaciones, Tomo II, 1999, p. 123).

A este propósito, escreveu-se no douto acórdão recorrido:

“A superveniente perda do interesse ou falta de utilidade da prestação para o accipiens terá de resultar objectivamente das condições e das expectativas concretas que estiveram na origem da celebração do negócio, bem como das que, posteriormente, venham a condicionar a sua execução, inscrevendo-se no contexto daquilo que se designa por «programa obrigacional».

Não basta a simples diminuição do interesse do credor, exigindo-se, antes, uma perda efectiva desse interesse, isto é, uma perda subjectiva com justificação objectiva. Tem de ser, pois, uma perda absoluta e completa, traduzida, via de regra, no desaparecimento da necessidade que a prestação visava satisfazer.

Saliente-se, entretanto, que a perda do interesse tem de resultar da mora no cumprimento e não de qualquer outra circunstância” (itálico nosso).

Não há, portanto, desaparecimento do interesse dos AA no cumprimento do contrato-promessa.

E a demonstrá-lo está o negócio de substituição que eles realizaram com vista a satisfazer a sua necessidade de habitação; quer dizer, não obstante a persistência do incumprimento temporário da Ré, a necessidade de habitação dos AA subsistia e só por via de tal negócio (efectuado em Junho de 2006) foi ou terá sido satisfeita.

Por outras palavras: a necessidade de habitação - na qual radicam os motivos típicos dos AA que os determinaram a celebrar o contrato-promessa e os fins por eles visados com o contrato de compra e venda prometido - continuava por satisfazer adequadamente; logo, presidindo à apreciação da perda de interesse na prestação uma perspectiva objectivista (com as características de generalidade e de abstracção que a afastam da subjectividade), forçoso é reconhecer que, não obstante a duração da mora e a daí decorrente razão de queixa dos AA, o interesse no cumprimento do contrato-promessa subsistia.

Como, sem margem para dúvidas, o demonstra a comunicação de fls 12-13, remetida pela Autora, reveladora do seu interesse (subjectivo) no contrato prometido.

O que se verifica é, pois, uma mora de duração prolongada da Ré, à qual os AA foram anuindo.

         E o problema que se coloca é o de saber se um contraente cumpridor deve permanecer indefinidamente vinculado num negócio em que a parte contrária se encontra em mora sem dele se poder desvincular.

Podemos adiantar, desde já, que não, que tal é eticamente inexigível.

E com isto, avançamos agora para a última questão: A notificação admonitória como meio de operar a resolução do contrato contra o contraente em mora, nos casos de subsistência do interesse na prestação.

Como decorre do que supra se disse, é eticamente inexigível que, perante a mora de uma das partes, a outra tenha que a suportar, per omnia saecula saeculorum, continuando vinculada, sem nada poder fazer.

E com isso entramos na apreciação da outra via de conversão do incumprimento temporário em incumprimento definitivo: a fixação de prazo final e peremptório para cumprimento.

Tem lugar através da chamada notificação admonitória, porque o credor pode ter “legítimo interesse em libertar-se do vínculo que recai sobre ele, na hipótese de o devedor não cumprir em tempo oportuno” (cfr, A. Varela, ob cit, vol II, p. 119).

O que se compreende: se uma das partes não cumpre a outra não tem que ficar vinculada…e, por isso, tem todo o interesse em se retirar do contrato, através da resolução deste.

Para isso, o art. 808º nº1 confere-lhe o poder de fixar ao devedor em mora um derradeiro prazo suplementar no qual este ainda pode efectuar a prestação sob pena de, não o não o fazendo, já não lhe interessar a prestação originariamente convencionada, o que significará a exclusão, a partir do termo desse prazo, do direito ao cumprimento.

Antes de resolver o contrato, o credor deve, regra geral, conceder ao devedor moroso um prazo prudencial para o cumprimento da sua obrigação, dando-lhe assim uma última oportunidade de se subtrair às consequências, não raro duras, da resolução. A fixação de prazo é um requerimento que se faz ao devedor para que cumpra a sua obrigação antes de um dia determinado” (cfr. Von Tuhr, ob cit, p. 122).

É a chamada conversão do incumprimento temporário (mora) em incumprimento definitivo através da notificação admonitória.

Aludindo a estes casos de inexigibilidade para o credor de espera indefinida pelo cumprimento pelo devedor em mora, escreveu Baptista Machado:

“Não seria justo manter o credor indefinidamente vinculado ao contrato (inibindo-o designadamente de fazer uma compra de cobertura ou de por qualquer outro modo prover à satisfação da necessidade que o levou a contratar) visto que ele, embora com direito ao ressarcimento dos danos moratórios, ficaria sempre sujeito a ter de cumprir por seu lado – bem como a ter de receber a prestação retardada. Por isso, em várias legislações se prevê a possibilidade de o credor (parte não inadimplente), uma vez incurso em mora o devedor, fixar a este um prazo suplementar razoável - mas peremptório – dentro do qual se deverá verificar o cumprimento, sob pena de resolução automática do negócio” (cfr. Pressupostos da resolução por incumprimento, in Obra Dispersa, vol. I, p.163).

Mas não foi esse o caminho seguido pelos AA, recorrentes que, depois de tolerarem durante cerca de dois anos o atraso na celebração da escritura, enveredarem pela aquisição de outra casa (negócio de substituição) sem previamente terem desencadeado, por esta via da interpelação admonitória, a resolução do contrato-promessa.

As sucessivas interpelações quinzenais, porque não fixavam um prazo final, terminante e categórico, decorrido o qual, eles deixavam de estar interessados no cumprimento do contrato-promessa, não eram idóneas para operar tal resultado.

Por conseguinte, celebrado contrato-promessa de compra e venda de bem destinado a satisfazer necessidade permanente e duradoura – como é a de habitação - e incurso em mora o promitente vendedor, tal incumprimento temporário, só por si e independentemente da sua duração, não determina a perda objectiva de interesse no cumprimento daquele contrato e a sua consequente resolução.

Logo, a perda de interesse do promitente comprador no contrato prometido decorrente da eventual substituição deste por outro negócio com o mesmo fim daquele, unilateralmente decidida pelo promitente comprador, é meramente subjectiva e, como tal, irrelevante.

Não determinando a mora a perda objectiva do interesse do promitente-comprador na prestação, pode ainda assim ser convertida em incumprimento definitivo através da fixação ao promitente vendedor de um prazo razoável para o cumprimento da obrigação assumida no contrato-promessa, decorrido o qual o cumprimento deste deixará de interessar .

Logo, se bem que com uma fundamentação não coincidente, não merece censura o acórdão recorrido, impondo-se, por isso, negar a revista.

ACÓRDÃO

Pelo exposto, acorda-se neste STJ em negar a revista confirmando o douto acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa e STJ, 07 de Junho de 2011


Os Conselheiros

Fernando Bento (Relator)
João Bernardo
João Trindade