Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1781/15.2T8VRL.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODERES DA RELAÇÃO
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
A. VAZ SERRA, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 108.º, 1975/1976, p. 357.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO N.º 662.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 19-01-2017, PROCESSO N.º 841/12.6TBMGR.C1.S1;
-DE 02-11-2017, PROCESSO N.º 62/09.5TBLGS.E1.S1, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. As questões de facto estão reservadas às instâncias, cabendo a derradeira decisão à Relação, a quem estão conferidos os poderes específicos consagrados no art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

II. Os factos resultantes de prova por presunções judiciais também não podem ser sindicados pelo Supremo Tribunal de Justiça.

III. Este, contudo, pode apreciar da legalidade do uso das presunções judiciais.

IV. Enquadrando-se o resultado da presunção judicial dentro da lógica de certas situações da vida comum, não padecendo da falta de lógica, e, muito menos, sendo manifesta ou evidente, nomeadamente em matéria como a da simulação, não está em causa a legalidade do uso da presunção judicial.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I – RELATÓRIO


AA instaurou, em 26 de outubro de 2015, nos Juízos Centrais Cíveis de …, Comarca de Vila Real, contra BB e mulher, CC, Caixa …, S.A., e UNICRE, S.A., ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que fosse declarado resolvido o contrato-promessa de compra e venda relativo à fração autónoma designada pela letra “J”, correspondente ao 4.º andar direito do prédio sito na Rua …, n.º …, em …, e descrito, sob o n.º 3…/19…5 (…), na Conservatória do Registo Predial de Vila Real, que os Réus BB e CC fossem condenados a pagar-lhe a quantia de € 85 000,00, acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, e lhe fosse reconhecido o direito de retenção sobre a referida fração, para garantia do seu crédito.

Para tanto, alegou, em síntese, que em 3 de agosto de 2015, celebrou, com o R. e mulher, o referido contrato, pelo qual prometeram vender-lhe e ele prometeu comprar tal fração, para habitação, pelo preço de € 85 000,00, com a entrega do sinal de € 45 000,00, tendo convencionado celebrar a respetiva escritura até ao dia 15 de setembro de 2015; entretanto, em 3 de setembro de 2015, enviou aos promitentes-vendedores carta a comunicar-lhes a marcação da escritura para o dia 15 de setembro de 2015, respondendo o R. que não iria comparecer, como sucedeu; a fração está onerada com hipoteca a favor da R. Caixa … e penhora a favor da R. UNICRE; e, desde 3 de agosto de 2015, ocupa a fração, em conformidade com o convencionado.

Citados, o R. e a mulher não contestaram.

Contestou a R. UNICRE, por impugnação, e arguindo a nulidade do contrato-promessa, por inobservância do disposto no art. 410.º, n.º 3, do Código Civil, invocando que o eventual direito de retenção lhe é inoponível e concluindo pela sua absolvição do pedido.

Contestou ainda a R. Caixa …, alegando que o A. e os RR. BB e mulher apenas quiseram ficcionar uma realidade para enganar e lesar terceiros, fazendo com que, em caso de cobrança coerciva de créditos, a fração se mantivesse na disponibilidade dos RR., pelo que o contrato é nulo, por simulação, e concluiu pela sua absolvição do pedido.

O A. respondeu à matéria de exceção, no sentido da sua improcedência.

Tendo prosseguido o processo e realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 22 de novembro de 2016, sentença, que julgando a ação procedente, declarou resolvido o contrato-promessa de compra e venda; condenou os Réus BB e mulher a pagarem ao Autor a quantia de € 85 000,00, acrescida de juros, à taxa legal desde a citação até integral pagamento; reconheceu ao Autor o direito de retenção sobre a fração, para garantia do pagamento daquele crédito, mas sendo inoponível em relação à execução onde foi efetuada a penhora a favor da Ré UNICRE. 

Inconformada, a Ré Caixa … apelou para o Tribunal da Relação de …, que, por acórdão de 4 de outubro de 2017, dando procedência ao recurso, revogou parcialmente a sentença, absolvendo a Ré Caixa … do pedido.


Inconformado, foi agora o Autor a recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça, e, tendo alegado, formulou essencialmente as conclusões:


a) A Relação violou diversas normas legais, ao alterar o acervo fáctico de acordo com meras presunções e regras da experiência da vida.

b) A Relação decidiu credibilizar e considerar isento o depoimento da testemunha DD, quando sabia que era bancário, trabalhando para um dos Réus.

c) A verdade material não foi obtida, pelo contrário, foi vilipendiada no aresto.

d) Não se pode considerar que houve simulação só porque a matéria de facto é desvirtuada e é dado valor a depoimentos parciais que se afastam da verdade.

e) O art. 662.º do CPC consagra que a Relação só pode alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, o que não foi o caso.

f) Os princípios da imediação e da oralidade são extremamente importantes para a justa e correta apreciação do mérito, princípios que não estiveram presentes na elaboração do acórdão.

g) A decisão da 1.ª instância foi devidamente fundamentada, sendo inalterável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção do julgador.


Com a revista, o Autor pretende a revogação do acórdão recorrido e a sua substituição por decisão que julgue improcedente a existência de simulação.


Contra-alegou a Ré Caixa …, no sentido de ser negado provimento ao recurso.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


Neste recurso, está em discussão, essencialmente, o julgamento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:


1. Por acordo reduzido a escrito, de 03-08-2015, o A. declarou prometer comprar e o R., por si e na qualidade de procurador da sua mulher, declarou prometer vender ao A., livre de quaisquer ónus ou encargos, a fração autónoma designada pela letra “J”, de tipologia T3, destinada a habitação, sita no 4.º andar direito, Rua …, n.º …, em …, descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila Real, sob o n.º 3…/19… – J (…).

2. Mais declararam que o preço de compra e venda seria de € 85 000,00, a ser pago: a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 42 500,00, através do cheque n.º 62…1, e o remanescente no ato da escritura.

3. Consignaram também que a celebração da escritura definitiva seria efetuada até 15-09-2015, cabendo ao A. informar os RR. BB e mulher, do local, data e hora, onde a mesma se iria realizar, com a antecedência mínima de 8 dias, por carta registada com aviso de receção.

4. Fizeram ainda constar que o A. ficava nessa data investido na posse da fração.

5. O A. entregou aos RR. BB e mulher a quantia de € 42 500,00.

6. Em 03-09-2015, o A. enviou uma carta a esses RR., a informá-los de que a escritura pública estava marcada para o dia 15 de setembro de 2015, pelas 9:30 horas, no Cartório Notarial do Dr. EE, sito na Rua …, …, r/ch, …

7. O R. BB enviou então carta ao A., informando-o de que não iria comparecer na escritura, nem tinha condições para mais tarde cumprir o contrato.

8. Em 03-08-2015, os RR. entregaram a fração ao A., que desde então a ocupa, ali pernoitando e recebendo amigos e familiares.

9. Pela Ap. 9, de 16-06-1997, sobre a fração, mostra-se registada, a favor do BANCO FF, hipoteca voluntária, assegurando o montante máximo de 14 900 000$00.

10. Desde 03-09-2001, mostra-se também registada, a favor da Caixa…, hipoteca voluntária, assegurando o montante máximo de 7 231 600$00.

11. Ap. 15, de 06-05-2004, mostra-se ainda registada, a favor da Caixa …, hipoteca voluntária, assegurando o montante máximo de € 121 641,34.

12. Pela Ap. 1532, de 22-05-2012, mostra-se registada, a favor da UNICRE, penhora, para pagamento da quantia de € 18 826,07.

13. Os RR. BB e CC não pagam à Caixa … desde abril de 2011 (introduzido pela Relação).

14. A Caixa … emitiu as notas de crédito, relativas aos créditos garantidos pelas hipotecas referidas nos factos 9. a 11., as quais atingiam, em 05-11-2015, respetivamente, os valores de € 85 202,25 e € 24 836,12 (introduzido pela Relação).

15. O A. e os RR. BB e mulher não quiseram, respetivamente, prometer comprar e prometer vender a fração referida em 1. (introduzido pela Relação).

16. Ao emitirem as declarações mencionadas em 1. a 4. e constantes de fls. 11 a 13, o A. e os RR. BB e CC quiseram apenas ficcionar uma realidade e agiram conjuntamente para enganarem as RR. Caixa … e UNICRE (introduzido pela Relação).



***



2.2. Descrita a matéria de facto, com a modificação decidida pela Relação e o expurgo de redundâncias, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente sobre o julgamento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

O Recorrente, alegando, designadamente, as “erróneas presunções” usadas pela Relação, impugna o julgamento da matéria de facto, pretendendo, por fim, a repristinação da sentença, que lhe reconheceu o direito de retenção sobre o imóvel, nomeadamente quanto à Recorrida Caixa ….

A Recorrida, realçando a competência legal do Supremo Tribunal de Justiça, ampara-se na decisão do acórdão recorrido.


No âmbito da apreciação da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, que integrava o objeto da apelação, a Relação, a coberto do disposto no art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC), modificou a matéria de facto que tinha sido decidida pela 1.ª instância, como se refere no elenco da sua descrição.

O Recorrente, no entanto, veio impugnar o veredicto da Relação, invocando nomeadamente a deficiente apreciação da prova testemunhal e o uso indevido de presunções judiciais.

Fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito – art. 46.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário). De forma expressiva e clara, estabelece-se a regra de que, em sede de revista, o Supremo conhece somente matéria de direito. Assim, as questões de facto estão reservadas às instâncias, cabendo a derradeira decisão à Relação, a quem estão conferidos, nessa matéria, os poderes específicos consagrados no art. 662.º, n.º 1, do CPC.

A exceção à referida regra encontra-se prevista no art. 674.º, n.º 3, do CPC, nomeadamente quando haja violação do direito material probatório, nomeadamente por ofensa a uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

Com efeito, em relação à chamada prova legal, o julgador está vinculado aos termos especificamente regulados na lei, não podendo, nesse âmbito, decidir segundo a sua livre convicção, como sucede noutro tipo de prova. Por isso, nesse caso, o Supremo pode apreciar se as regras legais foram devidamente observadas na decisão sobre a matéria de facto.


Por outro lado, para além de não ser possível interferir no juízo de facto formulado pela Relação, esta também não está impedida de recorrer a presunções judiciais para prova de factos.

As presunções judiciais correspondem a ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal – arts. 349.º e 351.º, ambos do Código Civil.

As presunções judiciais resultam da experiência geral da vida, das regras da ciência, arte ou técnica (A. VAZ SERRA, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 108.º, 1975/1976, pág. 357).


No caso vertente, não se tipifica qualquer situação de violação do direito probatório material.

O Recorrente refere, em concreto, a valoração indevida, por falta de credibilidade, do depoimento de testemunha e o uso erróneo das presunções judiciais.

O juízo de facto extraído pela Relação, porém, não pode ser sindicado pelo Supremo, pois cabe àquela a última palavra sobre a matéria de facto, designadamente a resultante de prova testemunhal. Tratando-se, portanto, de prova sujeita à livre apreciação do juiz, não integra a apelidada prova legal e, por isso, não pode estar salvaguardada pelo disposto no art. 674.º, n.º 3, do CPC (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2 de novembro de 2017, processo n.º 62/09.5TBLGS.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt).

Por outro lado, os factos resultantes de prova por presunções judiciais também não podem ser sindicados pelo Supremo, dado tratar-se de matéria de facto da competência das instâncias. Contudo, num plano diverso, pode o Supremo apreciar da legalidade do uso das presunções judiciais, por se tratar de mera questão de direito.

Assim, se a presunção judicial é extraída a partir de facto falso, facto não provado e matéria sem admissão legal de prova testemunhal, ou, por outro lado, se a presunção judicial se revela com manifesta e evidente falta de lógica, pode a questão ser apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de janeiro de 2017, processo n.º 841/12.6TBMGR.C1.S1, acessível em www.dgsi.pt).

No caso, o Recorrente limitou-se a discordar do sentido das presunções judiciais, como discordara da valoração da prova testemunhal.

A Relação, com efeito, recorreu às regras da experiência comum para a prova, por presunção judicial, da simulação do contrato-promessa.

O resultado do uso da presunção judicial, no entanto, enquadra-se dentro da lógica de certas situações da vida comum, não padecendo da falta de lógica, e, muito menos, sendo manifesta ou evidente, nomeadamente em matéria como a da simulação, em que a prova é extremamente difícil e há necessidade do uso das presunções judiciais, sob pena de poder ficar comprometida a justa composição do litígio.

Nestas circunstâncias, acabando por não estar em causa a legalidade do uso das presunções judiciais, não pode o Supremo Tribunal de Justiça interferir no juízo de facto resultante das mesmas presunções judiciais e modificar o acervo da matéria de facto declarada provada.

Por outro lado, a modificação da matéria de facto pela Relação resultou da reapreciação, no uso dos seus poderes legais, conferidos pelo disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC, e que, estando no âmbito da livre apreciação da prova, o Supremo não pode sindicar.

Em suma, o presente caso está, manifestamente, excluído do âmbito da exceção prevista no art. 674.º, n.º 3, do CPC, e, nessa medida, a matéria de facto está, em definitivo, assente pelo acórdão recorrido.


Perante a improcedência da alegação do Recorrente e uma vez que este não impugnou a subsunção jurídica concretizada no acórdão recorrido, conclui-se por negar a revista.


2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

 

I. As questões de facto estão reservadas às instâncias, cabendo a derradeira decisão à Relação, a quem estão conferidos os poderes específicos consagrados no art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

II. Os factos resultantes de prova por presunções judiciais também não podem ser sindicados pelo Supremo Tribunal de Justiça.

III. Este, contudo, pode apreciar da legalidade do uso das presunções judiciais.

IV. Enquadrando-se o resultado da presunção judicial dentro da lógica de certas situações da vida comum, não padecendo da falta de lógica, e, muito menos, sendo manifesta ou evidente, nomeadamente em matéria como a da simulação, não está em causa a legalidade do uso da presunção judicial.


2.4. O Recorrente, ao ficar vencido por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.


2) Condenar o Recorrente (Autor) no pagamento das custas.



Lisboa, 22 de março de 2018


Olindo Geraldes (Relator)


Maria do Rosário Morgado


José Sousa Lameira