Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
294/2002.E1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE GRUPO CONTRIBUTIVO
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
DEVER DE INFORMAÇÃO
TOMADOR DO SEGURO
Data do Acordão: 04/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES -
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS.
DIREITO DOS SEGUROS - CONTRATO DE SEGURO / SEGURO DE GRUPO / SEGURO DE VIDA.
Doutrina:
- Bigot-Gonçalves, Les Assurances de Groupe, Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 2009, p. 204.
- Joaquim de Sousa Ribeiro, Direito dos Contratos, Estudos, Coimbra editora, Coimbra, 2007, pp. 49, 61.
- Kessler/Gilmore, Contracts. Cases and Materials, 1970, apud Sousa Ribeiro, Cláusulas Contratuais Gerais e o paradigma do contrato, Coimbra, 1990, p. 193.
- Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1997, pp. 648-660.
- Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Coimbra, 1995, p. 423.
- Sousa Ribeiro, «A boa fé como norma de validade», in Direito dos Contratos,Estudos, Coimbra, 2007, pp. 206-281.
- Styles, «Good Faith: A Principled Matter», in Angelo dm Forte (eds.), Good Faith in Contract and Property Law, Oxford, 1999, pp.160 e ss., 178-179.
- Vettori, Diritto dei Contratti e “Costituzione” Europea, Regole e principi ordinanti, Milano, 2005, pp. 184-195.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 9.º, 227.º, 237.º, 239.º, 762.º, N.º2.
D. L. N.º 176/95, DE 26 DE JULHO: - ARTIGOS 1.º, ALS. B), G) E H), 4.º, N.º1.
D. L. N.º 446/85, DE 25 DE OUTUBRO: - ARTIGOS 5.º, 6.º, 8.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 22 DE JUNHO DE 2005, PROCESSO N.º 1497/05-1;
-DE 2 DE DEZEMBRO DE 2013, PROCESSO N.º 306/10.0TCGMR.G1.S1.
Sumário :
I - Designa-se por contrato de seguro o contrato pelo qual uma pessoa transfere para outra o risco de verificação de um dano, na esfera própria ou alheia, mediante o pagamento de uma remuneração. A pessoa que transfere o risco diz-se tomador ou subscritor do seguro; a que assume esse risco e recebe a remuneração – prémio – diz-se seguradora; a pessoa cuja esfera jurídica é protegida diz-se segurado, que pode ou não coincidir com o tomador do seguro.

II - O contrato de seguro do ramo vida oferece uma particularidade relevante: trata-se de um seguro contributivo, em que o banco mutuante é o tomador do seguro – entidade que celebra o contrato de seguro com a seguradora, sendo responsável pelo pagamento do prémio; os mutuários do crédito concedido são o grupo segurável, i.e., as pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo ou interesse comum; as pessoas mutuárias são aquelas cujo risco de vida, saúde ou integridade física tenha sido aceite pela seguradora depois da recepção das declarações de adesão ao grupo, quer dizer, do documento de consentimento da pessoa segura na efectivação do seguro – e que contribuem, no todo ou em parte, para o pagamento do prémio.

III - Estes contratos são, portanto, contratos de adesão, cuja formação ocorre em dois momentos distintos. Num primeiro momento, é celebrado um contrato entre a seguradora e o tomador do seguro e, num segundo momento, concretizam-se as adesões dos membros do grupo. O contrato de seguro é predisposto pela seguradora e pelo tomador e são estas entidades que modelam o seu conteúdo: o segurado, por virtude de um vínculo que o liga ao tomador, limita-se a aderir ao contrato objecto de predisposição.

IV - O acto de adesão do segurado em relação às condições do contrato de seguro consubstancia uma manifestação de vontade de que é contraparte a seguradora, o que permite atribuir ao aderente uma protecção equivalente à do segurado num contrato de seguro individual, aplicando-se o DL n.º 446/85, de 25/10 para regular as relações entre o segurado e a seguradora.

V - Os deveres de comunicação e esclarecimento, na íntegra, do conteúdo negocial estão previstos nos arts. 5.º e 6.º do DL 446/85 e resultam directamente do princípio da boa fé contratual consagrado no art. 227.º do Código Civil, estendendo-se a todas as partes dos contratos que tenham poder de impor cláusulas negociais ao consumidor.

VI - O facto de o legislador ter fixado, no art. 4.º, n.º 1 do DL n.º 176/95, de 26 de Julho, deveres de informação a cargo do tomador de seguro, não significa que tenha querido onerar exclusivamente o banco com estes deveres e exonerar a seguradora, perante o aderente, dos deveres que já decorriam dos arts 5.º e 6.º do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I – Relatório

 

AA, em representação de sua filha menor, BB, intentou contra Seguros CC, a presente acção declarativa sob a forma ordinária, pedindo que seja a Ré condenada a reconhecer que se verificou o evento do qual emerge a obrigação de pagamento do capital seguro no montante de € 39.903,93 e, consequentemente, condenada a liquidar esse valor.

Cumulativamente peticiona ainda que a Ré seja condenada a pagar à Autora o remanescente do capital em dívida à data da morte do segurado, no montante de € 497,18.

Requereu ainda a intervenção principal provocada do Banco DD portugal, SA.

A Ré contestou nos termos de fls. 46 e segs., concluindo pela improcedência da acção.

Foi admitido o chamamento do Banco DD, SA, que fez seu o articulado da Autora.

A Autora apresentou réplica conforme fls. 86 e segs., concluindo como na petição inicial.

Após subsequente tramitação dos autos e realizada a audiência de julgamento, o Tribunal respondeu à matéria de facto pela forma constante de fls. 602/604, que não foi objecto de reclamação.

Foi, em seguida, proferida a sentença de fls. 610 e segs., que julgando a acção totalmente procedente, decidiu:

«1 – Condenar a Ré CC a pagar ao Banco DD SA, a quantia de € 39.406,65, relativamente ao capital em dívida do empréstimo contraído pelo segurado EE, à data da sua morte, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, calculados sobre o referido capital, à taxa legal, desde a data da citação, até efectivo e integral pagamento.

2 – Condenar a Ré CC a pagar à A. BB, aqui representada pela sua progenitora, AA, a quantia de € 497,18, correspondente ao valor remanescente do total do capital seguro (€ 39.903,93), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, calculados sobre o referido valor, à taxa legal, desde a data da citação, até efectivo e integral pagamento.»

Inconformada, apelou a Ré Seguros CC, tendo os Juízes da Relação de Évora acordado em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida.

Novamente inconformada, a Seguradora interpõe recurso de revista, em que formula as seguintes conclusões:

«i. O presente recurso vem interposto do douto Acórdão proferido a fls. … que decidiu julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Recorrente da sentença proferida nos autos que correu termos no Tribunal Judicial de Almeirim, sob o nº de processo 294/2002.

ii. É fundamento do presente recurso a verificação do pressuposto referido na alínea c) do artigo 672º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

iii. O douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora está, salvo douto entendimento diverso, em contradição com o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo n.º 24/10.0TBVNG.P1.S1, cuja cópia se junta, (e que pode ser consultado in http://www.dgsi.pt/JSTJ.NSF/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ed910c0a215dbe5380257b9e004648b5?OpenDocument).

iv. O Acórdão recorrido entendeu que incumbia, pois, à seguradora recorrente o dever de comunicação e esclarecimento das cláusulas contratuais gerais e em especial da cláusula em causa constante do ponto 6.1, sendo que não resulta da matéria de facto provada que tenham sido comunicadas ao segurado EE todas as cláusulas contratuais gerais que faziam parte integrante do contrato de seguro e em especial aquela que a recorrente invocou para recusar a sua obrigação contratual.

O Acórdão-fundamento proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 2010 no processo n.º 24/10.0TBETR.P1.S1, já transitado em julgado, julgou em sentido diverso, fundamentando que, não está vedado à seguradora opor ao aderente certa cláusula de exclusão de risco, por a omissão do dever de informação e esclarecimento ser exclusivamente imputável ao tomador de seguro, não se comunicando ou transmitindo os efeitos de tal omissão culposa à própria seguradora, em termos de amputar o contrato da cláusula não devidamente informada ao aderente.

v. O Acórdão recorrido e o Acórdão contraditório foram proferidos no âmbito da mesma legislação, aplicando-se in casu o Decreto-lei n.º 446/85, de 25 de Outubro e o Decreto-Lei 176/95, de 26 de Julho.

vi. Ambos os acórdãos são idênticos no que se refere ao caso apreciado e julgado versando sobre a mesma questão fundamental de direito, mais concretamente, sobre quem recai o ónus de comunicação das cláusulas contratuais do contrato de seguro de vida (Tomador de Seguro ou Seguradora) e vinculação (ou não) da Seguradora pela inobservância dos deveres de comunicação e informação das cláusulas contratuais gerais.

vii. Na análise da jurisprudência proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça não foi identificado qualquer Acórdão de Uniformização de Jurisprudência que verse sobre a questão em causa.

viii. Perante o estrito cumprimento por parte da Recorrente dos requisitos da alínea c) do n.º 1 e do n.º 2 do 672º do C.P.C., deverá ser admitida a a revista excepcional remetendo-se os autos à distribuição.

ix. No douto Acórdão em revista, na parte que ao presente recurso interessa, considerou-se: o dever de comunicação assentando também no princípio da boa fé negocial já referido, constitui igualmente dever que incumbe a quem pretenda prevalecer-se dessa mesma cláusula contratual geral, pelo que não podia deixar de concordar-se com a sentença recorrida quando pondera que in casu, quem pretende fazer valer a cláusula de obrigação de comunicação de mudança de profissão, em caso de agravamento dos riscos é, indubitavelmente a seguradora ora recorrente, na medida em que desse agravamento pode resultar a necessidade de impor outras condições contratuais, tais como o agravamento do prémio, sucedendo o mesmo com as demais cláusulas gerais ínsitas naquele contrato de seguro;

Não obstante, entendeu o douto Acórdão que incumbia, pois, à seguradora recorrente o dever de comunicação e esclarecimento das cláusulas contratuais gerais e em especial da cláusula em causa constante do ponto 6.1, sendo que não resulta da matéria de facto provada que tenham sido comunicadas ao segurado EE todas as cláusulas contratuais gerais que faziam parte integrante do contrato de seguro e em especial aquela que a recorrente invocou para recusar a sua obrigação contratual.

Ora,

x. Os aspectos de identidade entre os dois Acórdãos agora em análise, mais concretamente o Acórdão recorrido proferido pelo Tribunal da Relação de Évora e o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo n.º 24/10.0TBVNG.P1.S1, datado de 25.06.2013, são os que infra se identificam e conforme melhor se poderá constatar pela análise integral dos mesmos: i. Tipologia do contrato de seguro associado a um crédito à habitação; ii. Causa do sinistro especificamente excluída dos riscos cobertos pelas Condições Gerais do Contrato de Seguro; iii. Não cumprimento do dever de comunicação e informação das cláusulas contratuais gerais; iv. Discussão sobre a identidade da entidade a quem compete a comunicação e informação de tais cláusulas e v. Eliminação do contrato de seguro da cláusula de exclusão.

xi. No Acórdão posto agora em crise estamos perante uma acção instaurada pelos Autores, ao abrigo de um contrato de seguro grupo vida que garantia o pagamento das importâncias devidas pelo Segurado em caso, nomeadamente, de morte.

xii. O segurado, falecido marido da Autora, faleceu quando se encontrava no exercício da sua profissão de auxiliar de desmontagem de estruturas, sendo que o Banco havia informado a Seguradora que o segurado era “operador de máquinas de jardinagem”.

xiii. Nos termos do disposto na cláusula 6.1.1 das Condições Gerais da Apólice de seguro o tomador de seguro obriga-se a comunicar à Seguradora as alterações que se produzem no grupo seguro e que consistam na mudança de profissão do segurado ou na prática de qualquer actividade que provoque alteração de alguma circunstância essencial e que tenha como consequência um agravamento dos riscos cobertos pela apólice.

Porém,

xiv. Não se provou no acórdão ora posto em crise que tenham sido comunicadas ao segurado EE todas as cláusulas contratuais gerais que faziam parte integrante do contrato, pelo que considerou não poder a Ré Seguradora invocar o conteúdo da respectiva cláusula para se eximir ao pagamento da indemnização.

Por sua vez,

xv. No douto Acórdão-fundamento proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Junho de 2013 no processo n.º 24/10.0TBVNG.P1.S1, já transitado em julgado, estamos, igualmente, perante uma acção instaurada contra a Companhia de Seguros pedindo que fosse condenada a indemnizar os AA. nos termos contratuais, nomeadamente entregando à Instituição de Crédito beneficiária do seguro, o capital em divida e ao segurado o remanescente se o houver, ao abrigo de dois contratos de seguro de vida que garantiam a cobertura dos riscos por morte e invalidez total e permanente por doença ou acidente dos segurados.

xvi. Nem antes nem aquando da subscrição do seguro, o Autor foi informado das condições gerais do produto subscrito e dos riscos excluídos.

xvii. O sinistro encontrava-se abrangido pela cobertura da apólice em virtude da exclusão do contrato da cláusula que o afastava, mantendo-se o contrato válido e eficaz na parte não afectada, como consequência do incumprimento do dever de comunicação dessa cláusula ao Autor-aderente.

xviii. Eis a pergunta que se colocava no Acórdão-fundamento: “A questão debatida no presente recurso tem, pois, a ver com a definição das consequências jurídicas a atribuir ao incumprimento do dever de informação e esclarecimento aos aderentes do teor da referida cláusula de exclusão do risco, no caso de a causa de incapacidade do segurado ser – como foi no caso dos autos - devida a doença do foro neurológico – identificando qual o sujeito sobre que incidia tal obrigação de esclarecimento e determinando se o respectivo incumprimento é susceptível de se repercutir na esfera jurídica do outro contraente, apesar de sobre ele não incidir uma obrigação de explicitação e esclarecimento do aderente ao seguro de grupo.”

xix. Questão que se colocava, igualmente, no douto Acórdão da Relação do Porto ora posto em crise.

xx. Perante isto, entendeu a 1.ª Instância bem como a Relação de Évora, que perfilhou do mesmo entendimento que, dado como provado nos autos que era à Seguradora que incumbia o dever de comunicação e esclarecimento das Cláusulas Contratuais Gerais, e não tendo tal sucedido, não se encontra a Seguradora desonerada da obrigação de indemnizar.

xxi. Ao passo que, no Acórdão-fundamento do presente recurso de revista excepcional se refere doutamente que:“ (…) é incontroverso que tal dever de esclarecimento do aderente recai sobre o banco/tomador de seguro; é este o regime que decorre expressamente do estatuído no art. 4º do DL. 176/95: nos seguros de grupo, salvo convenção em contrário, o tomador de seguro deve obrigatoriamente informar os segurados sobre as coberturas e exclusões contratadas e as obrigações e direitos em caso de sinistro, em conformidade com um espécimen elaborado pela seguradora, cabendo-lhe o ónus da prova de ter fornecido estas informações; por sua vez, deve a seguradora facultar, a pedido dos segurados, todas as informações necessárias para a efectiva compreensão do contrato.”

“Note-se que este regime legal continua a vigorar, no essencial, no âmbito do DL 72/08 ( art. 78º), apesar da preocupação, bem expressa no preâmbulo, de tutela acrescida dos aderentes no âmbito da regulamentação do seguro de grupo contributivo, ao afirmar-se: «Nos contratos de seguro de grupo em que os segurados contribuem para o pagamento, total ou parcial, do prémio, a posição do segurado é substancialmente assimilável à de um tomador de seguro individual. Como tal, importa garantir que a circunstância de o contrato de seguro ser celebrado na modalidade de seguro de grupo não constitui um elemento que determine um diferente nível de protecção dos interesses do segurado e que prejudique a transparência do contrato.”

“Significa e implica este regime legal que, no caso, era efectivamente ao banco/tomador de seguro que cabia ter esclarecido adequadamente o aderente acerca do teor das cláusulas de exclusão incluídas no contrato : saliente-se que este regime especial, fundado na peculiar natureza e estrutura da figura do seguro de grupo, envolvendo uma relação triangular entre os interessados, se sobrepõe naturalmente (precisamente como regime especial que é) ao regime regra das cláusulas contratuais gerais, que impõe ao outro contraente (nos casos normais, que não tenham subjacente um seguro de grupo, obviamente a própria seguradora) a obrigação de comunicar e explicitar as cláusulas ao aderente; porém, no caso do seguro de grupo, este dever de comunicação e informação está legalmente posto a cargo do tomador de seguro, pelo que, em primeira linha, ele não incide sobre a seguradora, a menos que algo diferente resulte das estipulações das partes.”

Com efeito,

xxii. Estando perante um seguro de grupo em que é invocada a existência de uma cláusula contratual geral e a sua não comunicação prévia e respectiva explicação do teor a um aderente, o ónus da prova relativamente a tal facto impende sobre o tomador do seguro, de acordo com a repartição do ónus da prova - artigo 4.° do Decreto-Lei 176/95, de 26.Julho e pelo artigo 342.° do Código Civil.

xxiii. Veja-se o que nos ensina, igualmente, o douto Acórdão de 3 de Maio de 2011 in Colectânea de Jurisprudência". - ISSN 0870-7979. - A. 36, tomo 3, nº 231 (maio-julho 2011) p. 85-88

xxiv. E ainda o douto Acórdão de 22 de Janeiro de 2009 in Colectânea de Jurisprudência : Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça". - ISSN 0870-7979. - A.17, tomo 1 nº 214 (Janeiro-fevereiro-Março 2009) p.78-81.

xxv. O ónus da prova da comunicação ao contraente que submete as cláusulas ao segurado, que no regime dos contratos de seguro de grupo recaí sobre o tomador do seguro, conforme expressamente resulta do n.° 2 do artigo 4.° do citado DL 176/95.

xxvi. O Banco actua por si próprio, em seu próprio nome, no seu próprio interesse, por sua própria conta, como Tomador de Seguro e Beneficiário e é nessa qualidade que ele está obrigado a informar o Segurado do teor das cláusulas contratuais.

xxvii.     Desse incumprimento, pelo Banco, resultou a exclusão do contrato de seguro da cláusula das Condições Gerais da Apólice, oposta pela Ré, a qual excluía a doença que a pessoa segura era portadora, por aplicação do Regime Jurídico das Clausulas Contratuais Gerais – DL n.º 446/85.

xxviii. Contudo, O Douto Acórdão- fundamento abre, ainda, uma outra hipótese “ (…) a responsabilidade acrescida da seguradora por um sinistro cujo risco não estaria contratualmente coberto só poderia assentar num fenómeno de responsabilização objectiva – já que, como se referiu, no caso dos autos se não vislumbra, perante a matéria de facto fixada, qualquer comportamento irregular ou deficiente que lhe possa ser subjectivamente imputado, com base num juízo de censura.”

xxix. Ora, como fundamentar tal responsabilização objectiva da seguradora pelo incumprimento de uma obrigação legal do tomador de seguro?

xxx. “Uma perspectiva possível seria a da invocação do regime da responsabilidade do comitente por actos do comissário ou de representantes legais ou auxiliares, decorrente das previsões normativas dos arts. 500º e 800º do CC: nesta óptica, - perante os interesses económicos coincidentes que estão por detrás da figura do seguro de grupo e a circunstância de seguradora e tomador de seguro integrarem, em muitos casos, os mesmos agrupamentos ou conglomerados económico-financeiros, prosseguindo objectivos lucrativos comuns ou complementares – tender-se-ia a qualificar a actividade do banco como intermediário ou angariador na celebração dos concretos contratos com os aderentes - sendo precisamente nesta actividade de intermediação, consubstanciada na promoção e comercialização de produtos financeiros complementares (crédito à habitação/seguro de vida), que se poderia encontrar fundamento normativo para imputar à seguradora as consequências da actuação irregular do seu associado e mediador na comercialização do produto financeiro em causa.

xxxi. Não parece, porém, que esta visão prático-económica do fenómeno do seguro de grupo possa, sem mais, – num sistema normativo que não previa (e continua a não prever, apesar da regulamentação mais minuciosa que o DL 72/08 adoptou do seguro de grupo e da preocupação de acrescida tutela do segurado nos seguros contributivos – cfr. o disposto no art. 79º, remetendo para o plano geral da responsabilidade civil as consequências do incumprimento dos deveres de informação legalmente previstos) a comunicabilidade à seguradora dos efeitos do incumprimento dos deveres legais de informação a cargo do tomador de seguro - alterar a estrutura e fisionomia jurídica fundamentais desse tipo negocial, assente numa relação contratual básica estabelecida entre duas entidades (tomador de seguro/seguradora), colocadas em plano de total paridade jurídica ( o contrato de seguro acordado entre ambas não pode obviamente configurar-se como contrato de adesão), nenhuma das quais se pode considerar juridicamente como intermediária, auxiliar ou comissário da outra no momento da subscrição das concretas adesões ao clausulado estabelecido.“

Concluindo, por isso, que:

xxxii. “E, deste modo, como se decidiu no acórdão fundamento, a circunstância de, por omissão do dever de informação, imputável exclusivamente ao banco/tomador de seguro, ter ocorrido um vício na formação do contrato subscrito pelo aderente não é susceptível de se repercutir na esfera jurídica da seguradora, levando a alterar aquela relação base, decorrente da contratação entre seguradora e tomador de seguro, em termos de ter de ser por aquela entidade assumido um risco acrescido, não contemplado nas cláusulas inseridas naquele contrato fundamental.”

xxxiii. O douto Acórdão-fundamento do presente recurso de revista excepcional não foi o único acórdão proferido neste sentido:"Colectânea de Jurisprudência". - ISNN 0870-7979. - A. 32, tomo 1, nº 196 (Janeiro / Fevereiro 2007), p. 165-171. 2007-01-31 e Colectânea de Jurisprudência : Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça". - ISSN 0874-5730. - A. 18, tomo 3, nº 227(Agosto-Dezembro 2010) p. 116-119.

xxxiv. Nestes termos, termina o douto Acórdão-fundamento com a seguinte conclusão que, salvo douto entendimento em contrário, deveria também o Acórdão recorrido sentenciar de igual forma:

“4. 5. - Conclui-se, pois, respondendo à questão inicialmente enunciada, que não podendo a demonstrada omissão, com influência modificativa no âmbito de coberturas do contrato de seguro, ser imputada à Recorrente Seguradora, não se encontra fundamento para manter a condenação desta a pretexto de lhe estar vedado opor ao aderente a actuação ilícita e culposa do tomador do seguro e suas consequências em sede de responsabilidade.”

xxxv. Face ao que antecede e no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito do acórdão recorrido, decidiu o Acórdão-fundamento em sentido diverso do Acórdão da Relação de Évora ora posto em crise, não podendo, por este motivo, manter-se a condenação da Recorrente.

xxxvi. Assim, é entendimento da ora Recorrente que o Tribunal concluiu, erradamente, serem oponíveis à Ré Seguradora, as consequências das omissões perpetuadas por terceiro, devendo nessa medida ser revogado o acórdão proferido face à notória e patente contradição com o proferido pelo Acórdão-fundamento do Supremo Tribunal de Justiça.

xxxvii. Pelo que, deverá ser revogado o Acórdão recorrido no sentido de absolver a Recorrente Seguradora dos pedidos formulados nos autos pelos Autores, na medida em que não é dever da Seguradora a comunicação das cláusulas contratuais gerais, nem pode ser-lhe oponível a omissão do dever de comunicação e informação das cláusulas contratuais gerais, cometida pelo Banco Tomador do Seguro.

Nestes termos e nos demais de direito, deve ser concedido provimento ao presente recurso de revista excepcional, só assim se fazendo JUSTIÇA !»

A recorrida não apresentou contra-alegações.

 

O recurso foi admitido como revista regra com efeitos devolutivos, pois apesar de estarmos perante uma situação de dupla conformidade, tratando-se de um processo instaurado antes de 1 de Janeiro de 2008, com decisão proferida depois de 1 de Setembro de 2013, a lei aplicável, segundo a norma de direito transitório consagrada no art. 7.º, n.º 1 da Lei n.º 41/2013, de 26-06, em relação aos requisitos de admissibilidade dos recurso, é o Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24-08, com as inovações introduzidas pelo Novo Código de Processo Civil, com a excepção da norma do art. 671.º, n.º 3, que restringe a revista em situações de dupla conforme.

Sabido que é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, a única questão a conhecer é a seguinte:

I) Titularidade dos deveres de comunicação e de informação das Condições do Contrato de Seguro de Vida Grupo

 

III – Fundamentação de facto

Os factos que foram considerados provados, pelas instâncias, são os seguintes:

1 – Por escritura de 29/09/1998, outorgada a fls. … a fls. … v. do Livro … no Segundo Cartório Notarial de …, foi celebrado um contrato de mútuo com hipoteca e fiança, entre o Banco DD Portugal, SA e EE.

2 – No dia 26 de Maio de 1999, EE faleceu no estado civil de solteiro, conforme Assento de Óbito nº … da Conservatória do Registo Civil de ….

3 – BB nasceu em 09/11/1998, sendo filha de EE e de AA, conforme certidão de nascimento, registo nº 12 do ano de 1999 da Conservatória do Registo Civil de ….

4 – No dia 24 de Abril de 1998 EE subscreveu um documento designado por: “Boletim de Adesão, Seguro de Vida Grupo, Crédito à Habitação – CC, Grupo DD – …”, em que consta como tomador do seguro o FF e, como segurado, EE – cfr. teor de fl. 30 que aqui se dá por reproduzido.

5 – Na mesma data do preenchimento do referido Boletim de Adesão ao contrato de seguro foi entregue a EE a “Informação Pré-Contratual” que se dá como igualmente reproduzido.

6 – No dia 2 de Outubro de 1998, em Lisboa, com a referência …, a Seguros CC, SASR, emitiu um documento designado por apólice nº …, certificado nº …, com data de efeito de 29/09/1998 com descrição de empréstimo de 300 meses em que consta como tomador de seguro “Banco DD Portugal, S.A.” e como segurado EE – cfr. fls. 32 que aqui se dá como reproduzido.

7 – O facto referido em 2) foi dado a conhecer à Ré, através do tomador do seguro, Banco DD Portugal, S.A., Agência de ….

8 – À data da ocorrência da morte, o capital em dívida do empréstimo contraído pelo segurado era de € 39.406,65 (7.900.324$00).

9 – Por carta registada datada de 29 de Maio de 2000, dirigida a GG, e por este recepcionada, a CC comunicou a impossibilidade de qualquer pagamento de capital em dívida ao Banco DD por terem concluído que EE à data do falecimento se encontrava a exercer uma profissão diferente da inicialmente declarada na proposta aquando da celebração do contrato de seguro.

10 – No dia 4 de Maio de 2000, em …, HH declarou que EE exerceu funções de auxiliar de desmontagem desde 21 de Abril de 1999.

11 – O documento de fls. 61 a 68, designado por condições de contrato de Seguro de Vida Grupo, refere-se ao documento mencionado em 6).

12 – A Ré, após recepção do documento referido em 4), solicitou ao Banco informação sobre o tipo de máquinas em concreto que a pessoa segura operava.

13 – Em resposta, o Banco informou a Ré que a pessoa segura era “operador de máquinas de jardinagem”.

14 – A Ré tem conhecimento que EE faleceu quando se encontrava em cima de um telhado a retirar telhas de lusalite e em plástico tendo-se partido uma das telhas o que provocou a queda no solo de uma altura de cerca de 5/6 metros.

15 – EE faleceu quando se encontrava no exercício da sua profissão de auxiliar de desmontagem de estruturas.

16 – As condições contratuais propostas pela Ré, para aceitação do contrato referido em 6) (fls. 32), teriam sido diferentes, se a profissão do segurado fosse de auxiliar de desmontagem ou servente de construção civil.   

III - Fundamentação de direito

1. A Ré Seguradora, agora recorrente, foi condenada pelas instâncias a pagar ao Banco DD SA, a quantia de € 39.406,65 relativamente ao capital em dívida do empréstimo contraído pelo segurado EE, à data da sua morte, e a quantia de € 497,18, correspondente ao valor remanescente do total do capital seguro, ambas as quantias acrescidas de juros de mora, vencidos e vincendos.

O acórdão recorrido que confirmou a sentença do tribunal de 1.ª instância, entendeu que o sujeito do dever de comunicação e informação de todas as cláusulas do contrato de seguro, em particular da cláusula em litígio, para além do Banco tomador de seguro, cujo dever está consagrado no art. 4.º, n.º 1 do DL n.º 176/95, de 26-07, é a seguradora, ao abrigo dos artigos 5.º e 6.º do DL 446/85, de 25 de Outubro e do princípio da boa fé, contra ela recaindo o ónus da falta de prova acerca do efectivo cumprimento desse mesmo dever.  

            Inconformada, alega a Recorrente seguradora, que o único titular deste dever de informação, é, nos termos do art. 4.º, n.º 1 do DL n.º 176/95, de 26-07, o Banco, tomador do Seguro, sendo, portanto, exclusivamente imputável a este a omissão do dever de informação, não sendo possível operar uma transmissão dos efeitos de tal omissão culposa à seguradora, pelo que deve a Seguradora ser absolvida dos pedidos formulados pela Autora.

2. No caso sub judice está em causa um contrato de seguro de grupo do ramo vida, no qual a Ré figura como seguradora, o interveniente Banco DD Portugal S.A., como tomador do seguro e o falecido EE, como segurado.

Designa-se por contrato de seguro o contrato pelo qual uma pessoa transfere para outra o risco de verificação de um dano, na esfera própria ou alheia, mediante o pagamento de uma remuneração. A pessoa que transfere o risco diz-se tomador ou subscritor do seguro; a que assume esse risco e recebe a remuneração – prémio – diz-se seguradora; a pessoa cuja esfera jurídica é protegida diz-se segurado, que pode ou não coincidir com o tomador do seguro.

No caso vertente, o contrato de seguro do ramo vida oferece uma particularidade relevante: trata-se de um seguro contributivo, em que o banco mutuante é o tomador do seguro – entidade que celebra o contrato de seguro com a seguradora, sendo responsável pelo pagamento do prémio; os mutuários do crédito concedido são o grupo segurável, i.e., as pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo ou interesse comum; as pessoas mutuárias são aquelas cujo risco de vida, saúde ou integridade física tenha sido aceite pela seguradora depois da recepção das declarações de adesão ao grupo, quer dizer, do documento de consentimento da pessoa segura na efectivação do seguro – e que contribuem, no todo ou em parte, para o pagamento do prémio (art. 1.º, als. b), g) e h) do DL n.º 176/95, de 26 de Julho).

Mas, este contrato não se define apenas por ser um contrato de seguro de grupo. O seu processo de formação apresenta especificidades, na medida em que as suas cláusulas não são negociadas com o segurado, que se limita a aderir ao contrato em bloco. Estes contratos são, portanto, contratos de adesão, cuja formação ocorre em dois momentos distintos. Num primeiro momento, é celebrado um contrato entre a seguradora e o tomador do seguro e, num segundo momento, concretizam-se as adesões dos membros do grupo. O contrato de seguro é predisposto pela seguradora e pelo tomador e são estas entidades que modelam o seu conteúdo: o segurado, por virtude de um vínculo que o liga ao tomador, limita-se a aderir ao contrato objecto de predisposição.

A partir do momento em que se dá a adesão, constitui-se uma relação trilateral entre a seguradora, o tomador do seguro e o aderente e, portanto, o contrato deixou de regular exclusivamente os interesses do tomador e da seguradora, passando a regular os interesses do segurado, a cuja protecção a ordem jurídica confere primazia.

 

3. Na vida quotidiana dos cidadãos, quando adquirem habitação própria com recurso ao empréstimo bancário, o Banco (mutuante) propõe aos mutuários a subscrição de um contrato de seguro de vida, para que, em caso de morte ou incapacidade do segurado, a quantia ainda em dívida seja paga pela seguradora ao Banco.

Estas propostas negociais adoptam o modelo de um contrato de adesão, cujas cláusulas os segurados não têm qualquer possibilidade de discutir ou negociar, e que, a mais das vezes, nem conhecem na sua totalidade, por falta de transparência das entidades envolvidas, Bancos e Seguradoras, normalmente ligadas por vínculos jurídicos e pertencentes ao mesmo grupo financeiro.

Em face desta realidade sócio-económica, a lei (Decreto-Lei 446/85, de 25 de Outubro) vem em auxílio da parte mais fraca, o segurado, impondo às entidades com poder negocial para redigir unilateralmente estes contratos deveres de informação e de comunicação, bem como proibindo, através de uma enumeração exemplificativa, um conjunto de cláusulas contrárias à boa fé e ao equilíbrio das prestações.

A Parte Geral do Código Civil tratou o negócio jurídico como uma figura estrutural, totalmente abstracta e desligada de qualquer função. Mas na ciência jurídica actual, as pessoas não são concebidas, em termos abstractos, como partes iguais de um contrato, considerando-se, antes, o seu papel concreto no domínio das operações económicas e das relações sociais.

O regime jurídico das cláusulas contratuais gerais constitui um regime especial tutelador, em face do direito comum dos contratos. Este regime especial visa conter os efeitos disfuncionais da liberdade contratual e proteger determinada categoria de sujeitos, os aderentes, os quais se encontram integrados em formas estruturais que geram situações de poder a favor de organizações, numa situação que tipicamente os impossibilita de uma autotutela dos seus interesses. Estão, assim, desprovidos de qualquer poder negocial em relação à fixação do conteúdo dos contratos que assinam, sem possibilidade de negociar ou de fazer contrapropostas, e sem alternativas à aceitação formal de cláusulas redigidas pela contraparte, que encaram como uma «inevitabilidade» necessária para terem acesso a bens ou serviços essenciais à sua sobrevivência e qualidade de vida.  

Dada a disparidade de poder entre as partes do contrato de adesão, assume um papel decisivo a garantia do “modelo de informação” ou “imperativo de transparência”, cuja finalidade é potenciar a formação consciente e ponderada da vontade negocial, parificando posições de disparidade cognitiva, quer quanto ao objecto, quer quanto às condições do contrato[1].

Reconhece-se que a liberdade de contratar assenta em pressupostos cognitivos e que a necessidade de transparência e de informação, reportada à fase da formação da vontade, permite combater «a estrutural assimetria informativa entre as partes», e exige ao profissional «deveres positivos de informação, de acordo com parâmetros quantitativos e qualitativos capazes de afiançarem a integralidade, a exactidão e a eficácia de comunicação»[2]. O princípio da transparência adequa-se, ainda, ao discurso argumentativo próprio do pensamento civilista, pois a sua função é instrumental à autonomia privada, permitindo criar condições para o seu exercício. O objectivo deste modelo é, assim, o de melhorar a qualidade do consentimento do consumidor, e também, corrigir o desequilíbrio das prestações, bem como promover a defesa da justiça interna do contrato[3].

 A contratação em massa, dirigida a um conjunto indeterminado de destinatários, permite às empresas impor a sua vontade, e obter, para além da redução dos custos com a celebração dos contratos, outras vantagens económicas, através da deslocação indevida dos riscos para os aderentes e do aumento potencial das cláusulas abusivas. Diz-se a este propósito que «a parte mais forte ficou em condições de legislar por contrato, de uma maneira substancialmente autoritária»[4].

 

A moderna teoria dos contratos defende uma mudança de orientação no direito dos contratos, traduzida na passagem do paradigma do liberalismo económico, em que o contrato era visto como o resultado de interesses antagónicos negociados com dureza e egoísmo, para uma nova concepção de contrato baseada num princípio de respeito pelos interesses do outro e numa ética de cooperação e de solidariedade.   

Este novo paradigma, resultante da crise do pensamento liberal sobre o contrato, exige às organizações utilizadoras de cláusulas contratuais gerais novos deveres destinados a suprir a desigualdade estrutural entre as partes dos contratos de adesão, entre os quais se destacam os deveres de comunicação e de informação previstos nos arts. 5.º e 6.º do DL 446/85, de 25 de Outubro e, em geral, o dever de não lesar os interesses da contraparte e os deveres pré-contratuais de lealdade,  conselho, correcção, assistência e cooperação, decorrentes do art. 227.º do Código Civil.

O art.º 5.º, n.º 1 prevê, para o dever de comunicação, que “as cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las”. De acordo com subsequente o nº 2, “a comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência”.

O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contraente que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.” (n.º 3 do art. 5.º).

 No âmbito do dever de informação, o art. 6.º dispõe:

1 - O contraente que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique.

2 - Devem ainda ser prestados todos os esclarecimentos razoáveis solicitados.

Quanto ao efeito da violação de qualquer um daqueles deveres, o art. 8.º do prevê que se considerem excluídas do contrato as cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do art. 5.º (al. a); e as cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo (al. b).

 

4. A Seguradora Ré não coloca agora no recurso de revista a questão de saber se foi ou não cumprido o dever de informação em relação ao segurado, mas apenas a da titularidade deste dever, alegando que esse dever pertence ao Banco, tomador de seguro, e não a si enquanto seguradora, pelo que não pode ser responsabilizada pelo incumprimento do Banco.

Damos por assente, em sede de revista, a decisão das instâncias de que a Seguradora não informou o segurado do dever de comunicar qualquer mudança de profissão que tivesse impacto no risco, de forma a que a Seguradora tivesse a possibilidade de agravar os prémios ou alterar as condições do contrato em conformidade com os riscos acrescidos.

A este propósito, consta o seguinte, na matéria de facto:

O segurado, EE, comunicou ao Banco, na altura da subscrição do contrato de seguro, que a sua profissão era “operador de máquinas de jardinagem”, tendo o Banco fornecido esta informação à Seguradora (facto provado n.º 13).

Contudo, a sua profissão passou a ser de «auxiliar de desmontagem de estruturas», tendo-se demonstrado que se a seguradora tivesse sabido desta mudança teria alterado os termos em que celebrou o contrato de seguro (facto provado n.º 16).

Em consequência, por carta registada de 29 de Maio de 2000, a Seguradora, CC, comunicou a impossibilidade de pagamento do capital em dívida ao Banco DD por ter concluído que EE à data do falecimento se encontrava a exercer uma profissão diferente da inicialmente declarada na proposta da celebração do contrato de seguro (facto provado n.º 9). A Ré teve conhecimento de que o segurado faleceu quando se encontrava no exercício da sua profissão de auxiliar de desmontagem de estruturas, em cima de um telhado a retirar telhas, o que provocou a sua queda no solo a uma altura de cerca de 5/6 metros (factos provados n.ºs 14 e 115).

Segundo a tese da seguradora, ficando provado que o segurado mudou de profissão sem que tivesse comunicado tal facto, como lhe competia, o contrato de seguro teria cessado e não produziria os seus efeitos, conforme o art. 459.º do Código Comercial.

No recurso de apelação, a Seguradora, confrontada com a sentença recorrida que decreta a inoponibilidade dessa cláusula ao segurado em virtude de incumprimento do dever de informação a cargo da Seguradora, veio alegar que a titularidade do dever de informar o segurado das condições do contrato de seguro cabia ao Banco, tomador do Seguro.

De acordo com o que consta no ponto 6.1 das condições gerais do contrato “O tomador de seguro obriga-se a comunicar à Seguradora as alterações que se produzam no grupo seguro e que consistam em:

6.1.1 Mudança de profissão do Segurado ou prática de qualquer actividade que provoque alteração de alguma circunstância essencial e que tenha como consequência um agravamento dos riscos cobertos pela apólice”.

Assim sendo, nos termos das condições gerais do contrato, cumpre ao tomador do seguro a obrigação da referida comunicação à seguradora.

Contudo, sendo a comunicação da mudança de profissão, pelo segurado, um pressuposto absolutamente necessário para que o Banco cumprisse o seu dever de informação para com a seguradora, seria essencial que o segurado tivesse sido informado do dever de comunicar a sua mudança de profissão.

Ora, a matéria de facto apenas indica que o contrato de mútuo com hipoteca e fiança foi celebrado, entre o Banco DD e o segurado, EE, no dia 29-09-1998 (facto provado n.º1), que no dia 24 de Abril de 1998, EE subscreveu um documento designado por “Boletim de Adesão” (facto provado n.º 4) e que nesta mesma data foi entregue a EE a “Informação Pré-Contratual” (facto provado n.º 5).

Analisados os documentos referidos, dele não consta qualquer cláusula que imponha ao segurado um dever de comunicar uma eventual mudança de profissão.

A cláusula 6.1, que obriga o Banco a comunicar à Seguradora a mudança de profissão do segurado, fazia parte das Condições do Contrato de Seguro de Vida Grupo (documento de fls. 61 a 68), que integrava a Apólice emitida pela Seguradora a 2-10-1998, conforme decorre da conjugação dos factos provados 6 e 11.

Não se provou que esta cláusula tivesse sido comunicada ao segurado nem que lhe tivesse sido entregue a apólice juntamente com as Condições do Contrato.

Sendo assim, apesar de o titular desta obrigação, fixada na cláusula 6.1 das condições do contrato, ser o tomador do seguro, o seu cumprimento tem como pressuposto a comunicação por parte do segurado acerca da mudança de profissão, o que este não podia fazer, pois tal dever não lhe foi comunicado pela seguradora.

 Vejamos:

A lei frisa, de forma expressa, no artigo 4.°, n.º 1 do DL n.º 176/95, de 26 de Julho, o dever de informação do tomador de seguro - «Nos seguros de grupo, o tomador do seguro deve obrigatoriamente informar os segurados sobre as coberturas e exclusões contratadas, as obrigações e direitos em caso de sinistro e as alterações posteriores que ocorram neste âmbito, em conformidade com um espécimen elaborado pela seguradora».

Mas significará tal disposição que nos contratos em que está em causa uma relação tripartida, como o caso dos contratos de seguro de grupo, apenas o banco tomador de seguro está vinculado a esta obrigação de comunicar integralmente as cláusulas do contrato ao segurado?

Os deveres de comunicação e esclarecimento, na íntegra, do conteúdo negocial estão previstos nos arts. 5.º e 6.º do DL 446/85 e resultam directamente do princípio da boa fé contratual consagrado no art. 227.º do Código Civil, estendendo-se a todas as partes dos contratos que tenham poder de impor cláusulas negociais ao consumidor.

No caso concreto, a fonte do dever de informação da seguradora, para além do princípio da boa fé, é a lei – artigos 5.º e 6.º do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro - em virtude de o segurado praticar um acto de adesão, limitando-se a aceitar ou a rejeitar em bloco o contrato. Este acto de adesão do segurado é uma manifestação de vontade do aderente, o que significa que, nos contratos de seguro de grupo, em que existe um acto de adesão do segurado, estamos perante um contrato individual entre cada aderente e a seguradora. Sendo assim, é aplicável ao caso o DL n.º 446/85, de 25/10 para regular as relações entre o segurado e a seguradora.

 

O facto de o legislador ter fixado, no art. 4.º, n.º 1 do DL n.º 176/95, de 26 de Julho, deveres de informação a cargo do tomador de seguro, não significa que tenha querido onerar exclusivamente o banco com estes deveres e exonerar a seguradora, perante o aderente, dos deveres que já decorriam dos arts 5.º e 6.º do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro.

A interpretação das normas, defendida pela Recorrente, não se enquadra na finalidade das leis que visam a protecção do consumidor perante entidades com o poder de fixar unilateralmente as cláusulas dos contratos, que aquele se limita a subscrever. O que o legislador quis com o art. 4.º do DL n.º 176/95 foi sanar eventuais dúvidas que se colocassem a propósito dos deveres dos Bancos, tomadores do seguro, e resolver conflitos nas relações internas entre bancos e seguradoras quanto aos seus direitos e deveres recíprocos, mas não afastar, em relação às seguradoras, o regime previsto no DL n.º 446/85, de 25 de Outubro, pilar da defesa do consumidor na ordem jurídica.

O facto de o contrato de seguro de grupo implicar a participação de uma terceira entidade, o tomador de seguro, que angaria clientes para a seguradora e funciona como intermediário na promoção dos contratos, não pode ser utilizado como argumento jurídico para diminuir as garantias do cidadão, nem para exonerar a Seguradora – entidade que recebe os prémios dos mutuários e que com isso visa a obtenção de lucros – do cumprimento dos deveres de informação.

O princípio da boa fé na formação, celebração e execução dos contratos fundamenta também a vinculação das seguradoras a deveres de informação, cooperação e lealdade para com o segurado. A posição privilegiada do Banco, devido à circunstância de a subscrição do contrato de seguro se fazer nas instalações deste, não exonera a seguradora do dever de enviar ao segurado (e ao Banco), antes da data da aceitação do contrato, a documentação relativa ao mesmo, onde constem todas as cláusulas do contrato.

Note-se que é a seguradora que recebe o prémio de seguro, não podendo a entidade que beneficia desta remuneração considerar-se isenta do dever de informar o segurado dos critérios de fixação do mesmo prémio e das circunstâncias em que se admite o aumento do mesmo ou uma alteração do risco de cobertura.

Temos, portanto, de considerar, na análise desta questão, as características destes contratos de seguro de grupo como contratos de adesão, cujas cláusulas o segurado não tem possibilidade de discutir, mas apenas de rejeitar ou aceitar em bloco, bem como a relação jurídica e económica existente entre os Bancos e as Seguradoras, normalmente pertencentes ao mesmo grupo económico-financeiro.

A realidade sócio-económica e psicológica associada aos contratos de seguro do ramo vida e o contexto em que são celebrados, quando ligados a um contrato de mútuo para habitação – bem essencial para a vida dos segurados – contribui, quer para reduzir a atenção do segurado sobre o conteúdo do contrato de seguro, visto como elemento meramente acessório em relação ao empréstimo, quer para a seguradora se aproveitar desta situação, inserindo cláusulas contratuais gerais prejudiciais aos interesses do segurado ou omitindo algumas das causas de exclusão de cobertura. Daí a necessidade de, como bem destaca o acórdão de 22 de Junho de 2005 (processo n.º 1497/05-1), relatado pelo Conselheiro Moreira Alves, considerar o interesse dos aderentes que decorre naturalmente da ligação funcional entre o contrato de empréstimo, o contrato de seguro e o acto de adesão a este último, interesse esse cuja protecção é exigida pelos mais elementares princípios da boa fé, sob pena de a adesão ao contrato de seguro que o banco mutuante exige ao seu devedor, com o inerente encargo de suportar o custo do respectivo prémio, não passar de «simples artifício destinado a obter mais uma prestação a favor da seguradora, muitas vezes ligada ao grupo de que o banco faz parte».

No mesmo sentido se decidiu no acórdão de 2 de Dezembro de 2013, relatado pela agora relatora, proferido no processo n.º 306/10.0TCGMR.G1.S1.

Entendemos, em consequência do exposto, que o dever de comunicação ou de informação deve estender-se também à seguradora, por força dos artigos 5.º e 6.º do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro e do princípio da boa fé, que impõe deveres acessórios de informação, lealdade e cooperação.

 

O facto de a seguradora não ter contacto directo com o aderente não a dispensa deste dever de comunicar ao segurado os requisitos e condições da obrigação de segurar.

Ora, não se provou que a seguradora tivesse remetido ao consumidor, nem sequer ao Banco, as condições do contrato de seguro. Por isso, o Banco também não estava em condições de cumprir as suas obrigações por facto imputável à Seguradora.

  

A seguradora responde assim directamente perante o segurado pela falta de informação, sem prejuízo de poder depois accionar, no plano das relações internas, o Banco, caso demonstre que a falta de informação se ficou a dever a culpa deste.

A responsabilização directa da seguradora para com o segurado resulta, quer do princípio da boa fé, quer da consideração de que, estando-se no domínio do direito do consumo, se deve proteger, em primeira linha, a parte mais débil na relação contratual- o consumidor segurado.

Não colhe o argumento, usado pela Recorrente, segundo o qual, a relação entre o Banco e a seguradora é uma relação de igualdade jurídica entre dois profissionais, à qual não é aplicável o regime das cláusulas contratuais gerais. É que, estando em causa uma terceira parte, dependente economicamente do Banco e que adere às condições do contrato de seguro, o comportamento da seguradora não pode analisar-se de forma isolada ou separada dos interesses do segurado nem da relação de dependência do segurado em relação ao Banco, mutuante e tomador do seguro. O acto de adesão do segurado em relação às condições do contrato de seguro consubstancia uma manifestação de vontade de que é contraparte a seguradora, o que permite atribuir ao aderente uma protecção equivalente à do segurado num contrato de seguro individual[5].

Neste contexto jurídico, verifica-se uma conexão e interligação funcional entre as várias relações jurídicas em causa, que alteram a fisionomia e a estrutura da relação jurídica entre o Banco e a Seguradora, regulada em função da protecção dos interesses do aderente.

Por outro lado, devemos ainda considerar que não se tendo provado que a seguradora tenha comunicado ao Banco as condições do contrato, esta circunstância impede este de cumprir os seus deveres de informação para com o segurado, repercutindo-se esta dupla falta de informação na posição jurídica deste, enquanto terceiro necessitado do serviço em causa e sem qualquer possibilidade de negociar as cláusulas dos contratos que assina. O dever de informação da seguradora é instrumental em relação ao dever de informação do tomador de seguro, verificando-se, assim, que a seguradora é co-autora do facto relativo à não comunicação ao segurado da referida cláusula.

A relação entre a seguradora e o banco é essencial para o acesso do segurado aos bens e serviços em causa, e portanto deve decorrer tendo em vista os objectivos de protecção do consumidor almejados pelo legislador, não podendo nenhuma das entidades referidas ficar isenta de deveres de informação em relação ao consumidor

É que se considerarmos, como pretende a Recorrente, que a Seguradora não tem o dever de informar o Banco nem o segurado acerca destas cláusulas, como aquela em discussão nos autos, fica sempre em aberto à seguradora a possibilidade de aparecer com cláusulas surpresa e assim se eximir da sua obrigação de segurar, prejudicando o segurado. Na prática, as Seguradoras e os Bancos poderiam fazer uso desta estratégia para, em última análise, cobrarem aos cidadãos, aquando do empréstimo para habitação, uma taxa extra, a título de prémio de seguro, sem em contrapartida oferecerem qualquer garantia de protecção aos cidadãos. E a ordem jurídica não pode aceitar este resultado contrário à finalidade da lei e à boa fé enquanto princípio geral de direito, fonte de deveres acessórios de conduta.

A previsão legal do dever de informação a cargo do tomador de seguro não significa que o legislador tenha querido excluir a seguradora de idêntico dever. Não se trata, portanto, de fazer repercutir na esfera jurídica da seguradora o incumprimento do Banco, como alega a Recorrente, mas sim de imputar à seguradora a titularidade de deveres de informação e o incumprimento destes, a título pessoal.

 A intenção do legislador, dada a particular vulnerabilidade do aderente, não pode deixar de ter sido a de reforçar o dever de informação de uma das partes do contrato de seguro de grupo – o Banco – e não a de dispensar a seguradora de um dever que, de qualquer forma, já resultava dos arts 5.º e 6.º do DL n.º 446/85 e do princípio da boa fé consagrado nos arts 227.º, 239.º e 762.º, n.º 2 do CC.

Também não releva o argumento da recorrente, segundo o qual o DL n.º 176/95 constitui direito especial em relação ao regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, que prevalece sobre este segundo a regra o direito especial derroga o regime comum ou geral. A classificação de uma norma como norma especial não é um dado apriorístico, mas pressupõe uma prévia interpretação da mesma, de acordo com os cânones de interpretação fixados na lei (art. 9.º do Código Civil): o elemento gramatical ou letra da lei, o elemento racional, que abrange a occasio legis (conjuntura económico-social que presidiu à elaboração da lei) e a ratio legis (a finalidade ou razão de ser da lei), e o elemento sistemático enquanto unidade da ordem jurídica e coerência valorativa da mesma.

Ora, o contexto em que a norma foi elaborada e a razão de ser da lei – o aumento da protecção do consumidor e das garantias de transparência – indicam claramente a funcionalização da relação jurídica entre o Banco e a Seguradora à protecção dos interesses da parte mais fraca do contrato, conforme resulta do Preâmbulo do diploma (DL n.º 176/95, de 26-07), que afirma «A importância da informação do consumidor no novo quadro da actividade seguradora».  

A prossecução deste objectivo implica necessariamente um reforço da protecção do aderente e não a sua diminuição, pelo que não podemos considerar o DL n.º 176/95 como uma lei especial que derroga o diploma que fixa o regime das cláusulas contratuais gerais, enquanto lei geral ou comum. Até porque não se pode considerar que o DL n.º 446/85 seja lei geral ou comum, sendo antes uma lei especial em relação ao regime comum dos contratos e que o derroga. Estaríamos, então, apenas perante duas leis especiais em relação ao regime geral dos contratos e cuja interpretação e aplicação deve ser harmonizada, sem que nenhuma delas afaste a outra.

O princípio da boa fé e o princípio do equilíbrio das prestações, enquanto critérios interpretativos do contrato (arts. 237.º e 239.º do Código Civil), também impõem esta solução, violando a equidade contratual que o segurado possa ficar sem a prestação do serviço, por falta de informação de cláusula que prevê o dever do tomador de seguro informar a seguradora acerca da mudança de profissão, num contexto em que não se provou que o segurado e o Banco tivessem sido informados das condições do contrato onde constava esta cláusula.

A jurisprudência e a doutrina têm reconhecido à boa fé um papel cada vez mais amplo, em todas as fases da vida do contrato: na formação e na celebração do contrato, na interpretação e integração de lacunas do contrato, na execução do mesmo e nos efeitos da sua extinção por resolução ou anulação. O princípio da boa fé passou a assumir, para além de uma função integrativa, correctiva e de regulação de condutas, a função de controlo do conteúdo dos contratos, de juízo de validade das cláusulas singulares, de tutela da autodeterminação e da confiança do aderente e de garantia de equilíbrio das prestações e da equidade contratual[6]. Como regra de conduta, a boa fé tem uma natureza supletiva tendencial e de grande extensão, concretiza-se através de deveres de informação e de lealdade, e «reduz a margem de discricionariedade da actuação privada, em função de objectivos externos»[7].

Em conclusão, pretendendo a seguradora invocar o incumprimento da obrigação do segurado comunicar a mudança de profissão, a ela cabia o ónus da prova de ter cumprido o seu dever de informar o segurado e o Banco acerca dessa mesma obrigação, não podendo fundamentar a sua exoneração no art. 4.º, n.º 1 do DL 176/95, de 26/07, por tal resultado ser contrário à lei (arts 5.º e 6.º do DL 446/85, de 25-10) e ao princípio da boa fé na formação e na execução dos contratos (arts. 227.º e 762.º, n.º 2 do Código Civil).

Em consequência, por aplicação do art. 8.º do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro, considera-se excluída do contrato de seguro a cláusula que prevê o dever de informação da mudança de profissão, por tal cláusula não ter sido comunicada ao segurado nos termos do art. 5.º do citado diploma legal, condenando-se a seguradora a pagar o capital em dívida acrescido de juros de mora vencidos e vincendos.

 

Improcedem, portanto, todas as conclusões da alegação de recurso da Recorrente.

IV – Decisão

Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

            Custas a cargo da Recorrente.

Lisboa, 14 de Abril de 2015

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Sebastião Póvoas

Moreira Alves

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[1] Cf. Joaquim de Sousa Ribeiro, Direito dos Contratos, Estudos, Coimbra editora, Coimbra, 2007, p. 49.
[2] Ibidem, p. 61.
[3] Cf. Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Coimbra, 1995, p. 423.
[4] Cf. Kessler/Gilmore, Contracts. Cases and Materials, 1970, apud Sousa Ribeiro, Cláusulas Contratuais Gerais e o paradigma do contrato, Coimbra, 1990, p. 193.
[5] Cf. Bigot-Gonçalves, Les Assurances de Groupe, Presses Universitaires d’Aix-Marseille, 2009, p. 204.
[6] Cf. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1997, pp. 648-660; Sousa Ribeiro, «A boa fé como norma de validade», in Direito dos Contratos,Estudos, Coimbra, 2007, pp. 206-281; Vettori, Diritto dei Contratti e “Costituzione” Europea, Regole e principi ordinanti, Milano, 2005, pp. 184-195; Styles, «Good Faith: A Principled Matter», in Angelo dm Forte (eds.), Good Faith in Contract and Property Law, Oxford, 1999, pp.160 e ss e pp. 178-179, defendendo as virtualidades do princípio geral da boa fé como forma de conferir mais coerência e racionalidade ao direito dos contratos e de promover a justiça substancial.
[7] Cf. Menezes Cordeiro, ob. cit., pp. 648-649.