Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07S742
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SOUSA PEIXOTO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
SUSPENSÃO DO CONTRATO
UTILIZAÇÃO DO VEÍCULO AUTOMÓVEL E DO TELEMÓVEL
RESCISÃO DE CONTRATO
JUSTA CAUSA
Nº do Documento: SJ200706060007424
Data do Acordão: 06/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente terá, além do mais, de especificar os concretos pontos de facto que considere incorrectamente julgados.
2. Para cumprir esse ónus, o recorrente não tem de indicar o número dos quesitos em que esse factos foram incluídos, basta que indique claramente quais os factos sobre que incide a impugnação.
3. Durante a suspensão do contrato, o trabalhador não tem direito a usar o telemóvel e o veículo automóvel que lhe foram distribuídos para utilizar em serviço e na sua vida privada, uma vez que a utilização para fins pessoais não assume autonomia relativamente à utilização para fins profissionais.
4. Não constitui justa causa de rescisão do contrato, o facto da entidade empregadora exigir ao trabalhador que se encontrava de baixa por doença, há mais de 30 dias, a entrega do veículo automóvel e do telemóvel que lhe tinham sido atribuídos para usar em serviço e na vida privada. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


1. "AA" propôs no Tribunal do Trabalho de Lisboa a presente acção emergente de contrato de trabalho contra Empresa-A, pedindo que a ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia global de 264.690,67 euros, acrescida de juros de mora desde a citação, sendo 37.376,16 euros a título de indemnização de antiguidade por rescisão do contrato com justa causa, 50.000,00 euros a título de danos não patrimoniais, 959,88 euros a título de despesas efectuadas ao serviço da ré, 175.248,00 euros a título de trabalho suplementar e 1.106,63 euros indevidamente retirados da sua conta bancária.

A ré contestou, pugnando pela total improcedência do pedido.

Realizado o julgamento e dadas as respostas aos quesitos, foi posteriormente proferida sentença, condenando a ré a pagar ao autor apenas a importância de 1.106,63 euros, por ela indevidamente debitada na conta do autor, acrescida de juros de mora, desde 24.11.2004.

O autor recorreu da sentença e no requerimento de interposição do recurso arguiu a nulidade da mesma, por alegada omissão de pronúncia, mas o Tribunal da Relação de Lisboa indeferiu a nulidade e negou provimento do recurso, o que levou o autor a interpor o presente recurso de revista, cujas alegações concluiu da seguinte forma:

1.ª - A sentença da 1.ª instância padecia mesmo, nos termos do ano 668.º, n.º 1, al. d) do CPC, da nulidade de omissão de pronúncia, em virtude de não ter conhecido e decidido, como devia, do pedido de condenação da Ré no pagamento das despesas que estão documentadas de fls.. 47 a 75.

2.ª - Independentemente da existência ou não dessa nulidade, uma vez que a Ré invocou não ter procedido ao pagamento de tais despesas (apenas) por as mesmas não lhe terem sido apresentadas pelo A., pelo menos desde a citação da Ré para a presente acção, que a existência da obrigação e o respectivo vencimento estavam provados, competindo à Ré a prova do acto extintivo que seria o respectivo pagamento e, não a tendo feito, deveria ter sido condenada.

3.ª - Toda a prova testemunhal produzida nos autos, examinada à luz das regras de experiência comum, teria de ter conduzido à conclusão de que o A., e com grande frequência, trabalhou mais de 50 horas semanais, trabalhou em dias de descanso e feriados e sem um mínimo de 12 horas entre cada jornada de trabalho.

4.ª - Assim o confirmaram plenamente os depoimentos das testemunhas BB e CC, como também os do Sr. DD e EE, e ainda do Sr. FF e Dr. GG, como também os das testemunhas HH e II - que aliás o Sr. Juiz da 1.ª instância, e sem justificar minimamente porquê, não considerou de todo na sua decisão sobre a matéria de facto.
5.ª - Foi produzida prova mais do que bastante de que o A., com enorme frequência, efectuava jornadas de trabalho ao serviço, por conta e no interesse da R., de duração muito superior às 10 horas diárias e às 50 horas semanais, isto em dias úteis de trabalho, e também em dias de descanso e, mesmo em dias feriados,

6.ª - Como aliás as regras de experiência comum de vida e face ao que, apesar de tudo, consta das respostas aos quesitos e das declarações confessórias do representante da Ré, claramente demonstram por ser impossível desenvolver com 50 horas/semana toda a frenética actividade que o A. levava a cabo.

7.ª - É em absoluto inaceitável - desde logo porque contrário aos princípios do predomínio da substância sobre a forma e da desvalorização da busca da verdade material em detrimento da realização da verdade formal - a tese de que não se poderia conhecer dessa parte do recurso por alegadamente não constarem expressamente indicadas nas conclusões de recurso os concretos pontos da matéria de facto que o recorrente pretende ver alterados, quando é óbvio que era aos pontos 23.º a 43.º da matéria de facto que o A. se reportava, e sobretudo sem ter dado a oportunidade de corrigir/relevar tal alegada incompleição.

8.ª - Mesmo que não tivessem sido pelo A. apresentadas à R. - e foram-no! - as despesas documentadas de fls. 47 a 75, o seu pagamento sempre seria devido, pelo que a Ré deveria ter sido nela condenada.

9.ª - Por outro lado, se é certo que (erradamente) a resposta ao quesito n° 38.º é negativa, a verdade é que, provada a existência da obrigação e invocando o devedor que pagou, é sobre ele por incumbe a prova, que não o fez, de tal pagamento, não podendo a redacção dos quesitos conduzir a distorções das regras do ónus da prova.
10.ª - Óbvia se torna assim a existência de um dos factos integradores da justa causa invocada pelo A.. Por outro lado,

11.ª - A atribuição, e manutenção dessa atribuição, do automóvel e telemóvel atribuídos pela Ré para uso total (ou seja, também pessoal) do A., isto é, para a esfera das suas relações pessoais, não pressupõem de todo a efectiva prestação de trabalho.

12.ª - Tal como sucede com outras regalias remuneratórias como um seguro de saúde, um cartão de crédito com um determinado plafond ou uma "stock option".

13.ª - Sendo certo que, por força do art.º 1.º, n.º 1, do aqui aplicável Dec.-Lei 398/83, de 2/11, em situação de suspensão do contrato de trabalho apenas se paralisam os direitos e deveres que pressuponham efectiva prestação de trabalho.

14.ª - Acresce que a Ré retirou o uso do automóvel ao A., não invocando que esse direito (de uso total) existia e cessava por o contrato estar suspenso por impedimento prolongado, mas sim por alegadamente tal direito (para uso total e logo também para uso pessoal) não existir, não integrar a retribuição do A. e poder ser retirado a todo o momento.

15.ª - Admitir e caucionar agora tal postura da Ré, consubstanciaria premiar um verdadeiro "venire contra factum proprium" e uma conduta de completa má fé por parte da mesma Ré, e que de todo em todo os Tribunais [não] podem caucionar.
16.ª - Resulta assim evidente que a actuação da Ré, consubstanciada quer na recusa de pagamento das despesas oportunamente apresentadas pelo A., quer na exigência da imediata entrega da viatura e telemóvel, representa uma conduta de evidente má fé e de incontornável e inaceitável assédio, uma actuação ilícita e uma quebra contratual, gravemente violadoras dos legítimos direitos e garantias do A. e logo mais do que fundamentadoras da rescisão com justa causa por aquele operada.

17.ª - O Acórdão ora recorrido padece, pois, de óbvio erro na apreciação e decisão da matéria de facto e viola multiplamente a lei, designadamente os aqui aplicáveis anos 690°, n° 4, do CPC, 2° e 7° do Dec. Lei 421/83, de 2/12, 1°, n° 1, do Dec. Lei 398/83, de 2/11, e art.º 35°, n° 1, al. b), do RJCCIT aprovado pelo Dec. Lei 64-A/89, de 27/2.

O autor pede que o acórdão da Relação seja revogado e que a ré seja condenada a pagar-lhe o montante que, a título de trabalho suplementar, se vier a liquidar em execução de sentença, bem como o montante das despesas não pagas e o montante correspondente à indemnização de antiguidade por rescisão do contrato com justa causa, nos termos oportunamente peticionados, pois só assim, diz ele, se fará inteira JUSTIÇA.

A ré contra-alegou defendendo o acerto da decisão recorrida e, neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no mesmo sentido, em “parecer” a que o autor respondeu.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

2. Os factos
Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos que o Tribunal da Relação manteve inalterados:

1 - Em Julho de 1992, o A. foi admitido ao serviço da empresa Empresa-B , para prestar a sua actividade sob as suas ordens, direcção e fiscalização.
2 - Mais tarde, essa empresa mudou a sua denominação para BFB ...
3 - Em virtude da fusão do Banco Fonsecas & Burnay com o Banco Borges & Irmão, surgiu o Banco Português de Investimento (BPI), na sequência do que a BFB a designar-se BPI ....
4 - O A. tinha como local de trabalho as instalações da R. sitas no Porto e tinha a recuperação de crédito na zona Norte.
5 - Durante dois anos, o A. foi a única pessoa encarregada da recuperação de crédito na zona Norte.
6 - Em Julho de 1995, foi contratado um outro funcionário, o Sr. DD, que foi ajudar o A. na sua actividade.
7 - Em 1997, foi colocado mais um trabalhador para a recuperação do crédito na zona Norte, o Sr. EE.
8 - Pelo menos desde o início de 2003, cada funcionário da zona Norte tinha a seguinte carteira de recuperação de crédito para gerir, em função da área geográfica:
- o Sr. DD tinha 120 mil entre Porto/Braga;
- o Sr. EE tinha 90 000 entre Estarreja/Porto;
- o A. tinha os restantes 85 mil entre Coimbra/Aveiro/Guarda/Vila Real e Ponte de Lima.
9 - O A. coordenava a actividade dos dois outros funcionários supra referidos e tinha como superior hierárquico o responsável pelo sector, o Dr. GG.
10 - O A. era considerado pela R. um trabalhador competente e eficaz, que cumpria as suas responsabilidades e obtinha bons resultados, tendo sido alvo de boas avaliações ao seu desempenho.
11 - O A. trabalhava em regime de isenção de horário de trabalho.
12 - A R. atribuiu ao A. um telemóvel e ainda uma viatura automóvel, que o A. utilizava tanto em serviço como para fins pessoais, incluindo aos fins-de-semana e férias.
13 - Em 14.07.2003, o A. entrou na situação de baixa por doença.
14 - Em 11.11.2003, a R. enviou ao A. a carta registada com aviso de recepção constante a fls. 27 dos autos (doc. n° 2 junto com a p.i.), com o seguinte teor:
“Tendo em consideração que presentemente não tem necessidade de utilizar nem o veículo automóvel, nem o telemóvel que lhe foram distribuídos pela BPI Rente para o exercício da sua actividade profissional, deverá fazer a sua entrega, no dia 20 do mês de Novembro, na Rua do Campo Alegre, n° .., no Porto, devendo para o efeito contactar com a Sra. D. JJ.
Caso, por motivo de doença, esteja impedido de entregar o veículo e o telemóvel na morada acima indicada, agradecemos que nos indique, com a maior brevidade possível, o dia e a hora em que os mesmos poderão ser recolhidos na sua residência".
15 - Em 21.11.2003, o A. enviou à R. a carta registada com aviso de recepção, cuja cópia consta a fls. 24 e 25 dos autos (doc. n.º 1 junto com a p.i.) e que a R. recebeu em 25.11.2003, na qual comunica que rescinde o contrato de trabalho com justa causa, pelas razões aí constantes.
16 - O A. manteve-se na situação de baixa até à rescisão do contrato supra referida.
17 - Ultimamente, o A. auferia o vencimento base mensal no valor de € 2.206,37, a que acrescia a quantia mensal de € 908,31 a título de Isenção de Horário de Trabalho, € 155,00 mensais de subsídio de retribuição, e ainda prémios (pagos sob a designação de "remuneração variável"), que, v. g., em Maio de 2003, atingiram o montante de 6.750,00 euros).
18 - O A. beneficiava igualmente de um seguro de saúde e era-lhe reconhecido o direito à titularidade de acções (umas imediatamente disponíveis e outras em "Stock option").
19 - A R. não pagou ao A. qualquer quantia a título de trabalho suplementar.
20 - A R. respondeu à carta do A. referida em 14, através da carta cuja fotocópia consta a fls. 137 e 138 (doc. n° 1 junto com a contestação), datada de 15 de Dezembro de 2003, na qual comunicou ao Autor que não reconhecia os motivos invocados como consubstanciando justa causa de rescisão do contrato de trabalho e que, por isso, era o Autor que lhe ficava a dever a importância correspondente à retribuição referente ao prazo de aviso prévio a que ele se encontrava vinculado.
21- Em 17.12.2003, a R. retirou da conta titulada pelo A. no BPI, a título de “fecho de contas", a quantia de € 1 106,63, assim calculada:
- € 2.595,57 a título de proporcional de subsídio de férias + € 2 949,51 a título de proporcional de retribuição de férias
- € 259,56 a título de parte proporcional de subsídio de Natal já pago
- € 4 412,74 a título de indemnização de pré-aviso não efectuado
- € 1 398,00 de dedução para IRS - € 581,41 de T.S.U.
22 - Pelo menos desde Setembro de 1993, a R. atribuiu ao A. “categoria” não inferior a “Chefe de Secção”.
23 - Nas instalações referidas em 4, o atendimento dos clientes que pretendiam tratar de assuntos relacionados com a recuperação de créditos do R. era efectuado pelo A. e pelos demais funcionários da recuperação de crédito do R. que ali trabalhavam, embora fossem primeiramente recebidos por um funcionário administrativo ou recepcionista.
24 - O A. e demais colegas referidos em 23 prestavam depoimentos em Tribunal, seja na qualidade de testemunhas, seja na qualidade de representantes do R., e prestavam informações por escrito ao M.P., em representação do R. e no âmbito de processos judiciais emergentes do contencioso de crédito não recuperado.
25 - Com a fusão referida em 3, que ocorreu em 1998, o A. e demais colegas em funções na delegação do Porto do Serviço de Recuperação de Crédito da R. passaram a trabalhar na recuperação de créditos das “carteiras” de empresas participadas pelos Bancos que vieram a integrar o Banco BPI, a saber, a “Eurolocação” e a “Eurosfac” (que passou a usar BPI SFAC), o que fez aproximadamente duplicar o número de processos em que intervinham.
26 - No final de 2002, o A. e demais colegas referidos em 23 passaram também a trabalhar na recuperação de créditos de parte da “carteira” da BPI Leasing, a saber a relativa aos “contratos de leasing” respeitantes a automóveis ligeiros, sendo certo que a BPI Leasing havia anteriormente integrado a “carteira” da Leasinvest.
27 - Os processos de recuperação de crédito emergentes das “carteiras” referidas em 25 e 26 chegavam à delegação do Porto do serviço de recuperação de créditos da R. com uma média de mensalidades em falta não inferior a três.
28 - O A. e os seus colegas tiveram que aprender a trabalhar com a carteira “BPI Leasing”, com um novo sistema informático, isto é, um programa novo, o que significava que tinham vários programas para vários produtos do banco.
29 - Os processos de recuperação dos créditos mencionados em 26 exigiam mais apoio administrativo e jurídico, bem como a articulação com o contencioso da R., porquanto a recuperação dos veículos passava pela instauração de procedimentos cautelares e acções judiciais.
30 - Por mais de uma vez, o A. transmitiu ao responsável do crédito da área de risco, Dr. GG, as dificuldades resultantes da situação descrita em 25 a 29, tendo-o alertado para o facto de que, em seu entender, a delegação do Porto do serviço de recuperação de créditos da R. carecia de mais pessoal, equipamentos e instalações adequadas para poder dar uma resposta eficaz ao acréscimo de trabalho que vinham sentindo.
31 - No início de 2003, o Sr. Dr. KK, que é licenciado em Direito, foi trabalhar com o A. e demais colegas referidos em 23.
32 - O Sr. Dr. KK provinha da BPI Leasing, onde havia trabalhado durante cerca de seis meses e na ocasião referida em a) tinha 3 ou 4 meses de experiência efectiva na recuperação de créditos emergentes de “contratos de leasing”;
33 - Pela sua formação académica e profissional, o Sr. Dr. KK passou a preparar os processos referentes aos créditos mencionados em 32 que tinham de ser remetidos para contencioso ou implicavam contactos com este departamento e a dar apoio nos contactos com os Tribunais.
34 - No primeiro semestre de 2003:
a) Verificou-se alguma desorganização e descoordenação nos serviços da R., relacionada com a necessidade de transferir processos de umas instalações para outras e devido a problemas de implementação do sistema informático mencionado em 28;
b) Por tal facto, por vezes, o A. e demais colegas em funções na delegação do Porto do serviço de recuperação de créditos da R. sentiam dificuldade na localização de processos;
c) O A. e demais colegas em funções na delegação do Porto do serviço de recuperação de créditos da R. chegaram a receber processos com mensalidades em atraso, sendo estes atrasos causados por deficiência do sistema informático que não activava a transferência bancária para débito daquelas mensalidades.
35 - No final de 2002, o A. falou com a gerente da R., Dr.ª LL, tendo abordado assuntos relacionados com a actividade da R..
36 - Até final de 2002, antes da integração da área de negócios da BPI Leasing no Banco BPI e da consequente passagem para a R. de parte da “carteira” de incumprimento da BPI Leasing, esta última tinha 10 ou 11 pessoas a trabalhar nos seus serviços de recuperação de crédito e contencioso, englobando “recuperadores”, advogados, e um funcionário que fazia a ligação entre uns e outros.
37 - Das pessoas referidas em 36, a única que em 2003 foi trabalhar com o A. e demais colegas referidos em 23 foi o Dr. KK.
38 - Em Junho de 2003, o A. teve um “acidente de viação”, causado pelo despiste do veículo que conduzia.
39 - O A. chefiava a equipa de trabalhadores da R. referida em 23.
40 - No âmbito das suas funções, competia ao A. resolver as situações mais graves e de maior risco relativas a toda a área geográfica da delegação do Porto do serviço de recuperação de crédito da R., bem como, nomeadamente, dar destino às viaturas recuperadas, gerir os seguros das mesmas e calcular valores de antecipação com vista à amortização total das responsabilidades de clientes.
41 - O A. respondia perante o Dr. GG relativamente à equipa referida em 39 e a ele reportava;
42 - O Dr. GG delegava no A. algumas decisões, relativamente a assuntos da sua competência.
43 - O Dr. GG respondia perante a gerência do R. relativamente aos resultados do sector da recuperação de crédito.
44 - Enquanto esteve ao serviço da R., o A. trabalhou muitas vezes mais de oito horas diárias e era frequente ter de efectuar diligências para recuperação de veículos da R. depois das 20h00m.
45 - Durante vários anos, a delegação do Porto do serviço de recuperação de crédito da R. foi considerada como muito eficiente.
46 - A partir de finais de 2000 ou inícios de 2001, os gerentes dos balcões do Banco BPI passaram a ter poderes de aprovação de “crédito automóvel”, dentro de determinados limites e, a partir de Janeiro de 2003, o “negócio” do “crédito automóvel” centrou-se no Banco BPI, passando os balcões a aprovar e outorgar também “contratos” de “Aluguer de Longa Duração” e de “Leasing”.
47 - Havia muita pressão dos directores comerciais sobre analistas de crédito, para se fazerem negócios.
48 - Com o recebimento das “carteiras” referidas em 25 e 26, o chamado “crédito mal parado” aumentou.
49 - Na sequência dos factos descritos em 25 e 26, a actividade da R. passou a englobar actividades decorrentes de operações de “Aluguer de Longa Duração”, “crédito com reserva de propriedade” (actuando por conta do Banco BPI), “leasing automóvel” (actuando por conta da BPI Leasing e do Banco BPI).
50 - Na sequência do descrito em 49, a delegação do Porto do serviço de recuperação de crédito da R. passou a intervir na recuperação de créditos de todas as operações ali descritas.
51 - Os gerentes dos balcões do Banco BPI e os directores comerciais do Banco BPI, da BPI Leasing e da R. tinham grande preocupação em atingir os “objectivos de vendas” que lhes eram estipulados.
52 - Chegaram a ser celebrados contratos com clientes que haviam recebido informações comerciais desfavoráveis e relativamente a clientes sobre os quais pendia inibição do uso de cheques aplicada pelo Banco de Portugal;
53 - Pelo menos parte das situações de incumprimento referidas em 27 foi causada pelo descrito em 52.
54 - A situação descrita em 52 foi causada pela preocupação que os gerentes e directores comerciais referidos na resposta anterior que aprovaram os “contratos” ali mencionados tinham de atingir os objectivos referidos em 51, bem como à cedência dos analistas de crédito à pressão mencionada em 47.
55- O A., por diversas vezes, manifestou à Dr.ª LL e ao Director Comercial, Dr. MM, a sua discordância pelo que considerava ser uma política de excessiva permissividade na concessão de crédito e para as condições de trabalho da delegação do Porto do serviço de recuperação de crédito do R., que entendia serem deficitárias.
56 - A R. atribuiu ao A. o telemóvel referido em 12, para este o utilizar quer em serviço, quer para fins pessoais.
57 - A R. custeava a assinatura e chamadas do telefone referido em 12 até determinado limite e, caso esse limite fosse ultrapassado, o A. custearia as despesas inerentes, na parte em que as mesmas excediam o referido limite.
58 - Devido às condições em que exercia as suas funções, à constante preocupação em dar resposta às inúmeras solicitações decorrentes das mesmas e ao excesso de trabalho, o A. vivia num estado de grande tensão e ansiedade.
59 - Na sequência do referido em 14, o A. fez entregar nos serviços da R. o veículo e o telemóvel ali referidos.
60 - A Empresa-B – no Porto – estava instalada num edifício na Rua Ricardo Severo.
61 - Tratava-se de uma delegação instalada numa sala cedida pela então BFB Leasing, com cerca de 10 m2 e onde chegaram a trabalhar seis pessoas.
62 - No exercício das suas funções, o A. passava sensivelmente metade do seu tempo de trabalho fora das instalações da R..
63 - Mais tarde, a BFB Leasing deixou o edifício identificado em 60, passando a R., que à data usava BFB Rent, a utilizar a totalidade do mesmo.
64 - Na ocasião referida em 63, a delegação da R. no Porto contava com cerca de 20 trabalhadores, dos quais a maior parte exerciam funções na área comercial.
65 - Em 1997, as instalações da então BFB Rent foram transferidas para um edifício na Rua do Campo Alegre, no Porto.
66 - A recuperação de crédito ficou instalada numa sala de cerca de 20 m2, com janelas e ar condicionado.
67 - As janelas mencionadas em 66 eram viradas a Sul e não abriam e o ar condicionado estava quase sempre avariado e, quando funcionava, não trabalhava de forma eficaz.
68 - Desde 2001, o A. manteve uma relação amorosa com uma senhora residente em Castelo Branco, razão pela qual se deslocava a esta localidade e, pelo menos, por vezes, ali pernoitava;
69 - A senhora referida em 68 explorava dois “ginásios” em Castelo Branco.
70 - O A. não compareceu ao serviço desde 13/01/2003 até 25/01/2003.
71 - Alguns dias depois de 13/01/2003, a senhora referida em 68 telefonou para o Dr. GG, informando-o de que o A. estava doente e não podia ir trabalhar;
72 - Em 20/01/2003, o A. enviou à R., pelo correio, pelo menos um atestado médico para justificar a sua ausência no período referido em 70.
73 - Quando o A. se apresentou ao serviço após o período de doença referido na resposta anterior, o Dr. GG exprimiu-lhe o seu desagrado pelo facto de o A. não ter comunicado aos serviços da R., de forma expedita, a situação de doença em que se encontrava.
74 - Em 14/07/2003, o A. deixou de comparecer ao serviço.
75 - O A. só deu a conhecer à R. a situação referida em 13 e 74 alguns dias depois de 14/07/2003, quando lhe remeteu o “Certificado Temporário para o Trabalho por Estado de Doença” cuja cópia se acha a fls. 291.
76 - Durante o tempo em que esteve ausente, tanto o Dr. GG, como a Gerente da Ré, tentaram, por várias vezes, entrar em contacto telefónico com o A., para saberem do seu estado de saúde e para resolução de alguns assuntos que ele tinha entre mãos e era preciso resolver.
77 - E ligavam para o telefone móvel que lhe estava confiado.
78 - Em todas as ocasiões referidas em 77 sucedeu que ou o telefone dava sinal de chamada e o A. não atendia, ou nem sequer se completava a ligação, por o telefone do A. estar desligado.
79 - O carro cuja utilização a R. facultava ao A. era um veículo recuperado a um dos clientes que deixara de pagar as respectivas prestações de ALD.
80 - O veículo referido em 79 só era entregue ao A. após ter cessado a vigência do acordo firmado com o cliente que o tivera em seu poder.
81 - Se o cliente a quem a viatura tenha sido retirada chegasse a um acordo com a R., o carro poderia ser-lhe devolvido, mas tal sempre pressuporia a atribuição ao A. de outra viatura.
82 - O A. tinha conhecimento do descrito em 79 e 80.
83 - O cliente da R., NN, titular do “contrato nº 2000-5157-0101”, que teve início em 22/03/2000, entregou ao A., em numerário, a quantia de € 4.950, a fim de liquidar responsabilidades emergentes de tal acordo.
84 - Da quantia referida na resposta anterior, o A. fez entregar na contabilidade da R., pelo menos, € 2.450.
85 - Em data não posterior a 09/08/2001, o Sr. OO dirigiu-se aos escritórios da R., no Porto, tendo falado com o A., a quem se apresentou como pai do cliente PP, que era titular do “contrato nº 1998-3837-01-01;
86 - Na ocasião referida em 85, Ricardo Ramos entregou ao A., em numerário, uma quantia não inferior a Esc. 970.000$00, para liquidação de responsabilidades emergentes do “contrato” referido em 85.
87 - O A. não entregou a OO qualquer recibo que documentasse o recebimento da quantia mencionada em 86-.
88 - Em 09/08/2001, o A. fez entregar na contabilidade da R. a quantia global de Esc. 970.000$00, através de dois depósitos, de Esc. 600.000$00, e Esc. 370.000$00, respectivamente.
89 - A R. teve conhecimento dos factos referidos em 83 a 88 em data não posterior à realização de uma auditoria efectuada à Direcção de Financiamento Automóvel, a qual se iniciou por despacho do Director da Direcção Central de Auditoria e Inspecção Comercial da R. datado de 17/05/2004 e terminou com informação daquela Direcção datada de 15/10/2004.
90 - A conta referida em 21 tinha a designação de “conta-ordenado”, sendo nela que a R. creditava as remunerações auferidas pelo A..

3. O direito
Como decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, as questões por ele colocadas são as seguintes:
- saber se a sentença da 1.ª instância sofre de nulidade, por omissão de pronúncia;
- saber se a ré devia ter sido condenada a pagar a quantia de 959,88 euros peticionada pelo autor a título de despesas por ele efectuadas ao serviço da ré;
- saber se a prova testemunhal produzida nos autos, examinada à luz das regras de experiência comum, permite concluir que o autor trabalhou, com grande frequência, mais de 50 horas semanais, trabalhou em dias de descanso e feriados e sem um mínimo de 12 horas entre cada jornada de trabalho;
- saber se a Relação devia ter conhecido da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
- saber se o autor teve justa causa para rescindir o contrato de trabalho.

Por uma questão de precedência lógica, começaremos por apreciar as questões relacionadas com a matéria de facto.

3.1 Da matéria de facto
Como resulta das conclusões formuladas pelo recorrente, são duas, aparentemente, as questões por ele suscitadas em sede da matéria de facto: uma relativa ao erro na apreciação da prova testemunhal e na fixação da matéria de facto e outra referente ao não conhecimento por parte da Relação do recurso de apelação na parte atinente à impugnação da matéria de facto.

Todavia, como inequivocamente decorre do teor da alegação do recorrente, o erro que ele invoca na valoração da prova testemunhal e na fixação dos factos materiais da causa diz respeito à decisão que foi proferida na 1.ª instância. Aliás, não tendo a Relação conhecido da impugnação da matéria de facto, é óbvio que o acórdão recorrido não era susceptível de padecer do aludido erro. E, reconhecendo – e bem (2) – o próprio recorrente que o Supremo Tribunal de Justiça não têm competência para apreciar a referida impugnação (vide p. 14, último parágrafo, das suas alegações), as alegações e conclusões por ele produzidas relativamente ao referido erro de julgamento são absolutamente descabidas e mais não são, nessa parte, do que uma mera reprodução das alegações e conclusões apresentadas no recurso de apelação.

Deste modo, a questão aparentemente suscitada nas conclusões 3.ª, 4.ª, 5.ª e 6.ª acaba por não ser uma verdadeira questão e, por isso, dela não se conhece.

A única questão verdadeiramente suscitada pelo recorrente, relativamente à matéria de facto, é a que se prende com o não conhecimento pela Relação da impugnação da decisão proferida na 1.ª instância sobre a matéria de facto por ele levantada no recurso de apelação.

Vejamos os termos em que essa questão foi colocada no recurso de apelação e as razões aduzidas pela Relação para dela não conhecer.

Na petição inicial, o autor alegou que, durante doze anos, tinha trabalhado duramente, levantando-se às seis da manhã, para apenas chegar a casa, no outro dia, às duas da manhã (art.º 31.º da p.i.) e alegou que, nos últimos cinco anos, tinha trabalhado uma média nunca inferior a 14 horas por dia e 70 por semana (art.º 86.º da p.i.).

Estes factos foram levados, respectivamente, aos quesitos 23.º e 43.º da base instrutória os quais, em conjunto, receberam a seguinte resposta: “Provado apenas que, enquanto esteve ao serviço da ré, o A. trabalhou muitas vezes mais de oito horas diárias e que era frequente efectuar diligências, para recuperação de veículos da R., depois das 20h00.”

Na apelação, o autor impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto, alegando que o tribunal a quo apenas tinha consignado que “enquanto esteve ao serviço do R., o A. trabalhou muitas vezes mais de oito horas diárias e que era frequente efectuar diligências para recuperação de veículos da R. depois das 20h00” e que o mesmo não tinha tomado em consideração os factos descritos e demonstrados pelas testemunhas BB, CC, FF, HH e II, cujos depoimentos tinham sido bastante claros acerca da prestação de trabalho por parte do autor muito para além das 10 horas diárias e também aos fins de semana. E, concretizando a sua alegação, o autor transcreveu excertos dos depoimentos prestados pelas ditas testemunhas, indicando não só a cassete em que cada um deles se encontrava gravado, mas também o número de “voltas” em que cada um começava e acabava. E, nas conclusões do recurso, o autor alegou, nomeadamente, que “[t]oda a prova testemunhal produzida nos autos, examinada à luz das regras de experiência comum, teria de ter conduzido à conclusão de que o A., e com grande frequência, trabalhou mais de 50 horas por semana, trabalhou em dias de descanso e feriados e sem um mínimo de 12 horas entre cada jornada de trabalho” (conclusão 2.ª) e que tal era plenamente confirmado pelos depoimentos das testemunhas BB, CC, DD, EE, FF, Dr. GG, HH e II (conclusões 3.ª, 4.ª, 5.ª e 6.ª)

O Tribunal da Relação não conheceu da impugnação da matéria de facto, com a seguinte fundamentação:
“O que se verifica no caso concreto é que o recorrente, quer no corpo da alegação quer nas conclusões, apesar de propugnar para que se dê como provado que trabalhou mais de 50 horas semanais, em dias d descanso e feriados e sem um mínimo de 12 horas de intervalo entre cada jornada de trabalho, não diz qual ou quais as respostas à base instrutória que devem ser objecto de alteração por parte do Tribunal de recurso, não remetendo, clara e expressamente, para específicos pontos da base instrutória, de onde constasse a descrição desse circunstancialismo factual, em termos de poder ser levado à decisão sobre a matéria de facto.
(...)
Não se pode deixar de dizer que parece que o Autor/apelante se está a referir à resposta (conjunta) aos pontos 23 e 43. Todavia, não compete a este Tribunal de recurso “escolher”, em face do alegado pelo recorrente, qual ou quais os pontos da matéria de facto que aquele pretende ver alterados, assim se substituindo àquele, mas antes deve ser o mesmo recorrente que deve indicar, com precisão e sem margem para qualquer equívoco, o(s) concreto(s) aspecto(s) da factualidade dada como provada na 1.ª instância que deve ser objecto de reapreciação. Só assim se dará cumprimento ao ónus previsto na al. a) do n.º 1 do art.º 690.º-A.”

Como se alcança dos excertos transcritos, a Relação entendeu que o autor não tinha cumprido o ónus previsto na al. a) do n.º 1 do art.º 690.º-A. Foi esse o fundamento por que não conheceu da impugnação da matéria de facto.

O recorrente discorda daquela decisão, por dois motivos. Em primeiro lugar, por entender que especificou devidamente os pontos da matéria de facto que pretendia impugnar, por ser absolutamente claro que os pontos em causa eram os contidos na resposta conjunta dada aos quesitos 23.º e 43.º da base instrutória, não exigindo a lei que a indicação tenha de ser feita por referência aos próprios números da matéria de facto. Em segundo lugar, por entender que sempre devia ter sido convidado a completar as suas alegações e conclusões.

Vejamos de que lado está a razão.

Nos termos do n.º 1 do art.º 690.º-A do CPC:
“Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

E nos termos do n.º 2 do mesmo artigo:
“No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º-C..”

O art.º 690.º-A foi aditado (3) ao CPC pelo Decreto-Lei n.º 39/95, de 15/2, que veio prever e regulamentar a possibilidade de documentação ou registo das audiências de julgamento e da prova nelas produzida, visando, desse modo, criar um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito (vide preâmbulo do referido decreto-lei).

Todavia, como se diz no preâmbulo daquele diploma,
«A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso.
Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.
A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.
Este especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentando e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712.º) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1.ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.
Daí que se estabeleça, no art.º 690.º-A, que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende impugnar, motivar o seu recurso através da transcrição [ (4) ] das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto.»

Como decorre do preâmbulo do D.L. n.º 39/95, o legislador criou um mecanismo que veio conferir às partes a garantia de um duplo grau de jurisdição em sede da matéria de facto, mas não quis que esse mecanismo viesse a ser utilizado com fins puramente dilatórios. E, para obstar a que tal acontecesse, impôs ao recorrente um específico ónus alegatório quer no que respeita à delimitação do objecto do recurso, quer no que toca à respectiva fundamentação.

No que toca à delimitação do objecto do recurso, o recorrente ficou obrigado, sob pena de rejeição do recurso, a especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e, no que toca à fundamentação, ficou obrigado não só a indicar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, mas ficou obrigado ainda, quando os meios de prova invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tivessem sido gravados, a proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda.

Com o Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10/8, a obrigação de transcrever as passagens da gravação desapareceu e foi substituída pela obrigação de indicar os depoimentos em que se funda a impugnação, por referência ao assinalado na acta, nos termos do n.º 2 do art.º 522.º-C, ou seja, pela indicação do início e termo da gravação de cada um dos depoimentos invocados.

No caso em apreço, o cumprimento do referido ónus, relativamente à especificação dos concretos meios probatórios que, segundo o recorrente, impunham uma decisão diferente sobre a matéria de facto não foi posto em causa, nem havia razões para que tal, uma vez que o recorrente indicou os depoimentos que, na sua perspectiva, justificavam outra decisão, indicou a cassete onde cada um deles estava gravado e a respectiva localização do início e termo dos mesmos.

A questão coloca-se acerca do ónus de especificação dos concretos pontos de facto que o recorrente considera terem sido incorrectamente julgados. E, como já foi dito, a Relação considerou que essa especificação não tinha sido feita e, por isso, não apreciou a impugnação da matéria de facto.

Não podemos, todavia, subscrever aquela decisão.

Na verdade, lendo as alegações e conclusões do recurso de apelação, percebe-se perfeitamente quais foram os pontos da matéria de facto que o autor pretendeu impugnar.
Assim, no ponto III das suas alegações, que intitulou “Da impugnação da decisão de facto e consequente modificação da mesma”, o recorrente começa por dizer que “a decisão de facto proferida pelo Tribunal a quo não reflecte em absoluto a ponderação da totalidade da prova produzida em sede de audiência de julgamento testemunhal”.

E, de seguida, acrescenta “[r]ecorde-se que a presente acção [...] do ponto de vista da matéria de facto era relativamente simples, na medida em que apenas se pretendia saber se o A. prestou mais de 50 horas semanais, se prestou trabalho em dias de descanso semanal, ou se prestou trabalho sem um intervalo mínimo de 12 horas entre cada jornada de trabalho”.

“Com efeito [continua o recorrente] na matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo apenas se consignou que “enquanto esteve ao serviço do R. o A. trabalhou muitas vezes mais de oito horas diárias e era frequente ter de efectuar diligências para recuperação de veículos da R. depois das 20h00”.

E, a seguir, acrescenta, “[o]u seja, o Tribunal a quo não tomou, salvo o devido respeito, em boa consideração os factos – porque os há e com relevância para a boa decisão da causa! – descritos e demonstrados pelas testemunhas Sr. BB e Sr. CC, e principalmente por estes, já que também os Srs. FF, HH e II prestaram depoimentos bastante claros acerca da prestação de tempo de trabalho por parte do A., ora recorrente, muito para além das 10 horas diárias e também aos fins de semana.”

E mais adiante, depois de se debruçar sobre cada um dos depoimentos que invocou, o recorrente diz o seguinte:
“De tudo quanto antecede, forçoso é concluir que, ao invés do que erradamente julgou o Sr. Juiz a quo – e que aliás, sem justificar minimamente, desconsiderou depoimentos de algumas testemunhas que sobre tal matéria (também) depuseram confirmando-a por inteiro –, foi produzida prova mais do que bastante de que, por força do modo como a Ré organizava e distribuía a actividade do A., este, com enorme frequência, efectuava jornadas de trabalho ao serviço, por conta e no interesse da empresa, de duração muito superior às 10 horas diárias e às 50 horas semanais, isto em dias úteis de trabalho, e também em dias de descanso e, mesmo, em dias feriados.”

E na conclusão n.º 2 do recurso, disse que “[t]oda a prova testemunhal produzida nos autos, examinada à luz das regras de experiência comum, teria de ter conduzido à conclusão de que o A., e com grande frequência, trabalhou mais de 50 horas semanais, trabalhou em dias de descanso e feriados e sem um mínimo de 12 horas entre cada jornada de trabalho”.

Perante o assim alegado, não há razão para ter dúvidas acerca dos concretos pontos de facto que o recorrente quis impugnar, pois, como facilmente se alcança, os factos em questão são aqueles que ele próprio transcreveu (“enquanto esteve ao serviço do R. o A. trabalhou muitas vezes mais de oito horas diárias e era frequente ter de efectuar diligências para recuperação de veículos da R. depois das 20h00”) e que correspondem à resposta que, em conjunto, foi dada aos quesitos 23.º e 43.º da base instrutória.

É certo que o recorrente não indicou o número dos quesitos a que aqueles factos dizem respeito, mas, como ele bem salienta nas suas alegações, a lei não obriga a tanto, uma vez que apenas obriga a especificar os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados.

Ora, sendo perfeitamente compreensíveis os pontos de facto que o recorrente pretendeu impugnar, cumprido está o ónus previsto na al. a) do n.º 1 do art.º 690.º-A do CPC, não havendo, por isso, razões para que o Tribunal da Relação de Lisboa deixasse de apreciar a impugnação da matéria de facto. E, não o tendo feito, os autos deveriam, em princípio, baixar àquele tribunal, para que a referida impugnação fosse devidamente apreciada.

Entendemos, todavia, que, no caso sub judice, tal não é necessário.

Com efeito, estando em causa a prestação de trabalho suplementar, o seu pagamento só é exigível quando a sua prestação tenha sido prévia e expressamente determinada pela entidade empregadora ou quando tenha sido prestado com o conhecimento e sem a oposição desta (art.º 7.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 421/83, de 2/12, na interpretação que lhe foi dada pelo Acórdão do T.C. n.º 635/99, de 23.11.99, publicado no D.R., II.ª Série, de 21.3.2000).

Ora, não tendo o autor alegado seja o que for a tal respeito (sendo certo que sobre ele recaía o respectivo ónus, por se tratar de factos constitutivos do direito que invocou – art.º 342.º, n.º 1, do C.C.), é óbvio que a pretensão por si formulada na presente acção, relativamente ao pagamento do trabalho suplementar que alega ter efectuado ao serviço da ré, sempre teria de ser julgada improcedente, ainda que a Relação viesse a julgar procedente a impugnação da matéria de facto e, em consequência disso, viesse a alterar a resposta dada aos quesitos 23.º e 43.º e a dar como provado que o autor tinha efectivamente trabalhado para a ré, com enorme frequência, mais de 10 horas por dia e mais de 50 horas por semana, quer em dias normais de trabalho quer em dias de descanso e, mesmo, em dias feriados.

E, sendo assim, torna-se inútil fazer baixar o processo à Relação.

3.2 Da nulidade da sentença
Na petição inicial, o autor alegou que a ré não lhe tinha pago as despesas relativas à actividade ao serviço da ré nos meses de Novembro e Dezembro de 2002, no valor, respectivamente, de 494,88 e 465,00 euros, que por ele lhe tinha sido apresentadas, como habitualmente. E, em consonância com tal alegação, pediu que a ré fosse condenada a pagar--lhe as referidas importâncias.

No requerimento de interposição do recurso de apelação, o autor arguiu a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, alegando que o M.mo Juiz não tinha apreciado aquele pedido.

A Relação, conhecendo daquela invocada nulidade, indeferiu-a com o fundamento de que a sentença tinha realmente conhecido daquele pedido, julgando-o improcedente.

No recurso de revista, o recorrente continua a defender o contrário, mas a sua posição não tem o menor cabimento, pois, ao contrário do que alega, a sentença conheceu expressamente do aludido pedido, no seu ponto n.º 3 (“Da invocada justa causa”).

Aí se escreveu, a tal propósito, o seguinte:
“Relativamente ao outro fundamento invocado pelo A. aquando da rescisão do seu contrato de trabalho, a saber se o alegado não pagamento de despesas relativas à actividade por si prestada à R. ao serviço desta, e relativas aos meses de Novembro e Dezembro de 2002, temos que, de acordo com as regras do ónus da prova, cabia ao A. alegar e provar ter suportado tais despesas bem como que havia solicitado à R. o seu pagamento (art.º 342.º, n.º 1 do C.C.). Feita tal prova, competiria à R. provar o pagamento de tais despesas (art.º 342.º, n.º 1 do C.C.).
Nesse sentido, foi formulado o art.º 37.º da Base Instrutória, no qual foram vertidos os factos cuja alegação e prova competia ao A..
Porém, tal artigo mereceu resposta negativa, pelo que os factos em apreço não resultaram provados.
Assim sendo, conclui-se que dos dois fundamentos invocados pelo A. para rescindir o seu contrato de trabalho o primeiro não configura justa causa de rescisão do mesmo contrato [...]
Em consequência, improcedem os pedidos de condenação da R. a pagar ao A. a indemnização de antiguidade, a indemnização por danos morais, e a quantia de € 959,88 euros a título de reembolso de despesas relativas aos meses de Novembro e Dezembro de 2002.”

O teor do excerto transcrito prova, à evidência, a sem razão do recorrente, o que implica a improcedência do recurso nesta parte.

3.3 Do pagamento das despesas alegadamente efectuadas pelo autor ao serviço da ré, nos meses de Novembro e Dezembro de 2002
Já vimos qual foi a decisão da 1.ª instância relativamente às despesas agora em apreço, bem como a respectiva fundamentação. Essa decisão foi confirmada pela Relação e a mesmas não merece qualquer reparo. Vejamos porquê.

Como já foi referido, na petição inicial (art.º 61.º), o autor alegou que a ré não lhe tinha pago ainda as despesas relativas à actividade ao serviço da ré, em Novembro e Dezembro de 2002, nos valores, respectivamente, de 494,88 e 465,00 euros, que ele lhe tinha apresentado em início de Fevereiro de 2003. E, para prova dessas despesas, o autor juntos os documentos com os n.os 18 e 19, que são documentos da sua autoria, sendo, por isso, de livre apreciação.

Na contestação, a ré alegou que era falso o afirmado nos arts. 58.º, 59.º, 60.º e 61.º (art.º 181.º da contestação) e acrescentou que as despesas relativas a Novembro de 2002 foram pagas em Dezembro de 2002, juntamente com as de Outubro (art.º 182.º da contestação) e que o autor não tinha apresentado quaisquer despesas relativamente ao mês de Dezembro de 2002 (art.º 183.º da contestação).

Os factos referidos foram levados à base instrutória, ficando a constar dos quesitos 37.º e 38.º, cujo teor era o seguinte:
Quesito 37.º: “Em Fevereiro de 2003, o A. apresentou à R. despesas relativas à actividade por si prestada ao serviço daquela, relativas aos meses de Novembro e Dezembro de 2002, no valor, respectivamente, de € 494,88 e 465,00?
Quesito 38.º: “A R. não pagou ao A. tais despesas?”

Ambos os quesitos foram dados como não provados o que significa que o autor não logrou provar – como lhe competia, por serem factos constitutivos do direito ao respectivo reembolso por si invocado – que tinha realizado as referidas despesas ao serviço da ré nem logrou provar que tinha reclamado da ré o seu pagamento.

O recorrente alega que competia à ré provar o pagamento das referidas despesas, por ser um facto extintivo do direito por ele invocado, uma vez que, relativamente às despesas do mês de Novembro, ela alegou que tinham sido pagas em Dezembro de 2002, juntamente com as de Outubro, o que não provou e uma vez que, relativamente às despesas de Dezembro de 2002, só havia alegado que não tinham sido pagas por não lhe terem sido apresentadas e não por não serem devidas.

E mais alegou que sempre invocou e sempre soube que tinha apresentado as ditas contas e que a ré, na pessoa do Sr. Dr. GG (exactamente ao contrário do que veio a invocar em juízo), mandara devolver os recibos e facturas que constituem fls. 47 a 75, com o argumento de que as contas de 2002 já haviam sido encerradas pelo que as despesas relativas àquele ano não poderiam ser consideradas.

E alegou ainda que tinha tentado juntar aos autos o documento em que o referido Dr. GG ordenara a referida devolução, precisamente com o argumento de que as contas de 2002 já estavam encerradas e que outras não poderiam ser pagas por não serem do A. ou por não terem de ser trocadas por outras da Rent, documento esse que oportunamente não pôde juntar, por só o ter encontrado ao aceder aos papéis e documentos que tinham sido encaixotados aquando do grave acidente de viação que sofreu em Junho de 2003, mas que lamentavelmente a Relação mandou desentranhar, o qual provaria insofismavelmente não só o contrário das respostas dadas aos quesitos 37.º e 38.º, mas também a falsidade da versão sustentava pela ré em juízo (que todas as despesas apresentadas tinham sido pagas e que as reclamadas não tinham sido apresentadas).

De qualquer modo, remata o recorrente, mesmo sem tal documento, alegando a ré que só não pagou aquelas despesas porque elas não lhe foram apresentadas e havendo-o elas sido, ao menos por via da presente acção, sempre ele deveria ter sido condenada ao respectivo pagamento.

Deixando de lado as considerações feitas pelo recorrente acerca do depoimento prestado Dr. GG e do documento que juntou com as alegações da apelação e que a Relação mandou desentranhar, por serem as mesmas absolutamente irrelevantes em sede do recurso de revista, uma vez que se prendem com a resposta dada ao quesito 37.º e que não foi objecto de impugnação por parte do recorrente, fica-nos apenas a questão de saber se a ré deve ser condenada a pagar ao recorrente as despesas que tem vindo a ser referidas, por esta não ter logrado provar o pagamento das mesmas.

E a resposta não pode deixar de ser negativa, uma vez que a ré só teria de provar o pagamento se o autor tivesse provado que tinha realizado as ditas despesas, o que não logrou provar, como acima já foi dito. O ónus de provar o cumprimento da obrigação recai, sem dúvida, sobre o devedor, mas também é verdade que o devedor não é obrigado a provar o cumprimento de uma obrigação cuja existência ainda não está adquirida.

E ao contrário do que o recorrente parece sugerir, a ré nunca reconheceu a realização das aludidas despesas, uma vez que expressamente as impugnou no art.º 181.º da contestação. E o facto dela ter alegado que as despesas relativas ao mês de Novembro de 2002 haviam sido pagas ao autor em Dezembro de 2002, juntamente com as de Outubro, não significa que as despesas que ela diz ter pago sejam as mesmas que o autor veio reclamar na presente acção, tanto mais que o autor não especificou as ditas despesas, tendo-se limitado a alegar que realizou despesas.

Improcede, pois, o recurso, nesta parte.

3.4 Da justa causa de rescisão
Nos termos do art.º n.º 1 do art.º 34.º da LCCT (5), “[o]correndo justa causa, pode o trabalhador fazer cessar imediatamente o contrato”.

Essa justa causa pode ter natureza subjectiva ou objectiva.

A primeira verifica-se quando o empregador falta culposamente ao cumprimentos dos deveres emergentes do contrato, nomeadamente nos casos referidos nas alíneas do n.º 1 do art.º 35.º (falta culposa de pagamento pontual da retribuição; violação culposa das garantias legais ou convencionais do trabalhador; aplicação de sanção abusiva; falta culposa de condições de segurança, higiene e saúde no trabalho; lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador; ofensas à integridade física ou moral, liberdade, honra ou dignidade do trabalhador, puníveis por lei, praticadas pela entidade empregadora ou seus representantes legítimos).

A segunda assenta em razões meramente objectivas, isto é, em razões que não são imputáveis a culpa do empregador, cujo elenco consta, taxativamente, do n.º 2 do art.º 35.º (necessidade de cumprimento de obrigações legais incompatíveis com a continuação do trabalho; alteração substancial e duradoura das condições de trabalho no exercício legítimo de poderes do empregador; falta não culposa de pagamento pontual da retribuição).

Por sua vez, a rescisão deve ser feita por escrito, com indicação sucinta dos factos que a justificam, nos quinze dias subsequentes ao conhecimento desses factos (art.º 34.º, n.º 1) e só esses factos são atendíveis para justificar judicialmente a rescisão (art.º 34.º, n.º 3) e se o fundamento da rescisão for algum dos mencionados no n.º 1 do art.º 35.442,º, n.º 1, do C.T.).

Por outro lado, quando a rescisão tiver por fundamento algum dos fundamentos referidos no n.º 1 do art.º 35.º, o trabalhador tem direito a uma indemnização calculada nos termos do n.º 3 do art.º 13.º da LCCT, ou seja, terá direito à chamada indemnização de antiguidade que corresponde a um mês de remuneração de base por cada ano de antiguidade ou fracção, mas que nunca será inferior a três meses.

Não basta, porém, que haja uma qualquer violação das obrigações contratuais por parte do empregador, para que o trabalhador possa rescindir o contrato com justa causa subjectiva. Torna-se necessário, ainda, que o comportamento do empregador, além de ilícito e culposo, seja de tal forma grave, em si mesmo e nas suas consequências, que torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral.

Com efeito, apesar da LCCT ser omissa acerca do conceito de justa causa (subjectiva), para efeitos da rescisão do contrato por iniciativa do trabalhador, tem-se entendido pacificamente que deve recorrer-se, com as necessárias adaptações, ao conceito de justa causa de despedimento contido no seu art.º 9.º, n.º 1, uma vez que o art.º 35.º, n.º 4, estabelece que “[a] justa causa será apreciada pelo tribunal nos termos do n.º 5 do artigo 12.º, com as necessárias adaptações”, artigo este que se insere no mesmo capítulo onde se insere o art.º 9.º que trata do despedimento promovido pela entidade empregadora.

No caso em apreço, o autor rescindiu o contrato de trabalho por carta datada de 21 de Novembro de 2003, acusando a ré de lhe ter exigido a entrega da viatura e do telemóvel que lhe estavam atribuídos para uso funcional e pessoal, quando ele se encontrava de baixa por doença e ainda não lhe ter pago as despesas de serviço que ele tinha nos meses de Novembro e Dezembro de 2002 e que já tinham sido apresentadas à ré no início de Fevereiro de 2003. segundo o autor, as referidas condutas traduziam-se numa violação do seu direito à retribuição e numa ofensa à sua dignidade pessoal e profissional, subsumindo-se ao disposto nas alíneas a), b), e) e f) do n.º 1 do art.º 35.º da LCCT.

Como já foi dito anteriormente, o autor não logrou provar a realização das despesas de serviço que alegou ter feito ao serviço da ré nos meses de Novembro e Dezembro de 20002. Mas o mesmo não sucedeu no que toca ao pedido de restituição do telemóvel e da viatura automóvel, pois provado ficou o seguinte:
- a ré atribui ao autor um telemóvel e uma viatura automóvel que ele utilizava tanto em serviço como para fins pessoais, incluindo aos fins de semana e férias (facto n.º 12);
- o telemóvel fora atribuído para ser utilizado pelo autor quer em serviço quer para fins pessoais, custeando a ré a assinatura e chamadas até determinado limite, sendo o excesso suportado pelo autor (factos n.os 56 e 57);
- em 14 de Julho de 2003, o autor entrou de baixa por doença nesse situação se mantendo até à data da rescisão do contrato (facto n.os 13 e 16);
- em 11 de Novembro de 2003, a ré enviou ao autor uma carta ordenando-lhe que entregasse, até ao dia 20 daquele mês e ano, o telemóvel e a viatura que lhe estavam distribuídos, para o exercício da sua actividade profissional, uma vez que não tinha necessidades de os utilizar (facto n.º 14);
- na sequência da carta da ré o autor fez a entrega do telemóvel e da viatura (facto n.º 59);
- o autor rescindiu o contrato de trabalho através da carta de fls. 24 e 25 que, em 21.11.2003, enviou à ré e que por esta foi recebida em 25 do mesmo mês e ano (facto n.º 15).

Na sentença da 1.ª instância entendeu-se que o uso do telemóvel e da viatura automóvel por parte do autor constituíam retribuição em espécie, uma vez que essa utilização era facultada não só para uso profissional, mas também para uso pessoal, o que se traduzia para ele numa vantagem patrimonial de manifesto valor pecuniário. Mas entendeu--se também que o contrato de trabalho do autor já estava suspenso quando a ré lhe exigiu a devolução daqueles objectos, uma vez que ele estava de baixa por doença há mais de 30 dias e que a suspensão do contrato implicava a perda da retribuição, sendo, por isso, legítima a exigência da ré.

Na decisão recorrida seguiu-se o entendimento perfilhado na 1.ª instância.

O autor discorda, por considerar que a argumentação das instâncias que, à primeira vista até poderia parecer correcta, não resiste a uma análise mais aprofundada da questão.

Na verdade, pergunta o recorrente, apelando à lógica, se determinada prestação é atribuída também para uso pessoal do trabalhador, como poderá esse uso pessoal ser afectado, inutilizado ou impedido pelo empregador, quando, mantendo-se a relação de trabalho, mais falta faz ao trabalhador?!

Além disso, acrescenta o autor, ao contrário do que foi decidido no acórdão recorrido, é precisamente o regime de suspensão do contrato que impede aquele resultado, uma vez que a suspensão do contrato não implica a cessação de todos e quaisquer direitos e deveres contratuais, mas tão somente a paralisia daqueles que pressuponham a efectiva prestação de trabalho. Ora, sendo assim, volta a perguntar o recorrente, será que a atribuição para uso pessoal – total – de uma viatura, tal como um seguro de saúde ou até uma “stock option”, exige, como pressuposto necessário da sua manutenção e exercício, que o trabalhador esteja efectivamente a trabalhar?!

É evidente que não. Tal direito mantém-se, diz o autor, por força do disposto no art.º 1.º, ,.º 1, do Decreto-Lei n.º 398/83, de 2/11.

Acresce, diz ele, que a ré não exigiu ao autor a entrega da viatura com o fundamento de que a mesma integrava a retribuição e que, como o contrato estava suspenso, o direito à sua percepção também estaria suspenso, mas sim pretextando que a mesma se destinava apenas a uso de serviço.

Vejamos se o autor tem razão.

Nos termos do art.º 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 398/83, de 2/11, “[d]etermina a suspensão do contrato de trabalho o impedimento temporário por facto não imputável ao trabalhador que se prolongue por mais de um mês, nomeadamente o serviço militar obrigatório ou serviço cívico substitutivo, doença ou acidente”. E nos temos do art.º 2.º. n.º 1, do mesmo diploma legal, “[d]urante a redução ou suspensão mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes, na medida em que não pressuponham a efectiva prestação de trabalho”.

No caso sub judice, o autor entrou de baixa por doença em 14 de Julho de 2003 e nessa situação se manteve até 21.11.2003, data em que enviou à ré a carta de fls. 24 e 25, comunicando-lhe a rescisão do contrato de trabalho que com ela mantinha.

Deste modo, dúvidas não há de que o contrato de trabalho do autor foi suspenso decorrido que foi um mês sobre a data da baixa por doença e de que suspenso estava quando, em 11.11.2003, a ré lhe enviou a carta de fls. 27 solicitando-lhe a entrega, no dia 20 daquele mês e ano, do veículo automóvel e do telemóvel que lhe haviam sido distribuídos.

A questão que se coloca é a de saber, se a ré podia exigir aquela entrega, apesar do contrato de trabalho estar suspenso, uma vez que o veículo automóvel e o telemóvel eram utilizados pelo autor quer em serviço quer na sua vida privada, incluindo aos fins-de-semana e nas férias.

Já vimos que as instâncias responderam afirmativamente àquela questão, por entenderem que a atribuição do veículo e do telemóvel assumia natureza remuneratória (naturalmente na parte em que essa utilização se prendia com fins de natureza pessoal) e que o direito à retribuição ficava suspenso durante a suspensão do contrato, uma vez que o mesmo pressupõe a efectiva prestação de trabalho.

Como já foi dito, o recorrente reconhece que, à primeira vista, a argumentação das instâncias até parece correcta, mas salienta que a atribuição para uso pessoal não é de per si compatível com a exigência da prestação efectiva da actividade.

Entendemos, porém, que não lhe assiste razão.

Na verdade, no caso em apreço está provado que a ré atribuiu ao autor um veículo automóvel e um telemóvel que ele utilizava em serviço e para fins pessoais e, neste contexto factual, é fácil de ver que a referida atribuição tinha fundamentalmente a ver com a prestação laboral, uma vez que aqueles artigos eram instrumentos de trabalho do autor.

Ora, estando o contrato de trabalho suspenso, é óbvio que o autor não tinha o direito a manter na sua posse os ditos instrumentos de trabalho e, por via disso, também não tinha o direito de os utilizar para fins pessoais, uma vez que a sua utilização para estes fins estava intrinsecamente dependente da efectiva prestação da actividade.

Mantém-se válida, por isso, a orientação já perfilhada por este Supremo Tribunal de Justiça nos acórdãos de 13.3.2001 e de 21.2.2006 (6), proferidos, respectivamente nos processos n.º 3507/2001 e 4336/2006, ambos da 4.ª Secção, onde se decidiu que a entidade empregadora não se encontra obrigada a garantir, durante a suspensão do contrato, a utilização pelo trabalhador do veículo automóvel que lhe foi atribuído para ser usado em serviço e na vida privada, apesar dessa atribuição corresponder a uma prestação feita em espécie que reveste natureza remuneratória.

E, sendo assim, importa concluir pela insubsistência da justa causa invocada pelo autor para rescindir o contrato, o que também implica a improcedência do recurso nesta parte.

4. Decisão
Nos termos expostos, decide-se negar a revista e manter a douta decisão recorrida.
Custas pelo autor.

Lisboa, 6 de Junho de 2007

Sousa Peixoto (Relator)
Sousa Grandão
Pinto Hespanhol
------------------------------------------------------------------------
(1) - Relator: Sousa Peixoto (R.º 187); Adjuntos: Sousa Grandão e Pinto Hespanhol.
(2) - Uma vez que o erro na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto não é passível de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (art.º 722.º, n.º 2, do CPC) e uma vez que o erro invocado pelo recorrente contende com a apreciação da prova testemunhal.
(3) - A redacção originária dos n.os 2, 3 e 5 do art.º 690.º-A foi alterada pelo Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10/8.
(4) - A transcrição deixou de ser exigida a partir do Decreto-Lei n.º 183/2000.
(5) - Forma abreviada de designar o regime jurídico da cessação do contrato individual de trabalho e da celebração e caducidade do contrato de trabalho aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27/2, aqui aplicável por ser o que estava em vigor à data em que o autor rescindiu o contrato de trabalho que mantinha com a ré.
(6) - De que foram relatores, respectivamente, os juízes conselheiros Azambuja da Fonseca e Pinto Hespanhol.