Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SALVADOR DA COSTA | ||
Descritores: | RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO RESTITUIÇÃO PRECLUSÃO CASO JULGADO MATERIAL RESPONSABILIDADE CIVIL ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA LIQUIDAÇÃO JUROS DE MORA | ||
Nº do Documento: | SJ20070710003747 | ||
Data do Acordão: | 07/10/2007 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE | ||
Sumário : | 1. Tendo a ré vendedora conhecido da desvalorização da viatura automóvel, derivada do seu uso pelo comprador, depois do trânsito em julgado da sentença que declarou a resolução do contrato de compra e venda, a circunstância de não ter feito valer nessa acção, em defesa ou reconvenção, o seu direito à restituição do valor equivalente ao gozo do veículo, não envolve o funcionamento do princípio da preclusão. 2. Não ofende o caso julgado na acção anterior, relativo à resolução do contrato de compra e venda e à restituição da esfera patrimonial do comprador, a sentença proferida na subsequente acção condenatória do último a restituir à vendedora a quantia correspondente à usufruição da viatura com fundamento no enriquecimento sem causa. 3. A inexistência, na situação envolvente, de facto ilícito inviabiliza a aplicação do regime da responsabilidade civil com vista ao ressarcimento da vendedora do veículo automóvel da desvalorização deste em resultado do seu uso pelo comprador. 4. O instituto do enriquecimento sem causa justifica a restituição da esfera patrimonial da vendedora, que restituiu integralmente a do comprador - relativamente a preço da viatura, aos juros de mora desde a citação e à indemnização de diferencial de valor e preço - a quem, ao fim de quase cinco anos, a viatura é entregue com o percurso de 104 964 quilómetros. 5. O cálculo da mencionada restituição é susceptível de operar à luz da diferença da esfera patrimonial da vendedora, também com recurso ao princípio da equidade, sob aplicação do disposto no artigo 566º do Código Civil. 6. Liquidado na sentença o direito de crédito da vendedora derivado da mencionada restituição, os juros de mora só são susceptíveis de ser devidos após o seu trânsito em julgado. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I AA-Comércio de Viaturas SA intentou, no dia 16 de Junho de 2004, contra BB, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 32 650 e juros de mora, com fundamento em enriquecimento sem causa, por virtude de lhe ter devolvido o preço do veículo automóvel com matrícula nº 00-00-NN, objecto de um contrato de compra e venda, e pago juros e indemnização, na sequência da resolução daquele contrato sob acção intentada pelo réu e este lhe haver devolvido o veículo utilizado durante 1306 dias e com 104, 694 quilómetros. O réu, na contestação, invocou o caso julgado e a inexistência dos pressupostos de facto da indemnização por enriquecimento sem causa, justificando esta posição na utilização do veículo baseada em contrato de compra e venda válido até ao trânsito em julgado da sentença que o resolveu, e de o mesmo ter ficado em seu poder por virtude de a autora não ter aceite a solução de entrega imediata, e de não ter havido prejuízo para ela porque manteve na sua posse, durante quatro anos, 8 189104$, e pediu a condenação dela a indemnizá-lo, por litigância de má fé, em montante não inferior a € 2 500. A autora, na réplica, afirmou não se verificar a excepção do caso julgado por virtude de as acções não serem idênticas quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir e, quanto à litigância de má fé, respondeu que, não tendo o veículo a qualidade tida por essencial relativa à rebatibilidade dos bancos traseiros, serviu no entanto para transportar quadros e o condutor no espaço de 104 694 quilómetros. No dia 24 de Junho de 2005, na fase da condensação, foi proferida sentença, por via da qual foi decidido, por um lado, improceder a excepção do caso julgado por na sentença anterior só terem ficado decididos com força de caso julgado os direitos que assistiam ao ora réu por virtude do incumprimento do contrato de compra e venda, e nesta acção se pretende ver decididos os direitos da ora autora por virtude de o veículo lhe haver sido devolvido severamente desvalorizado. E, por outro, no sentido da condenação do réu no pagamento de € 32 650 e dos juros desde a data da citação, com fundamento no enriquecimento sem causa, e de que se não verificava a má fé. Apelou o réu, e a Relação, por acórdão proferido no dia 19 de Setembro de 2006, qualificando a situação como de responsabilidade civil por utilização ilícita do veículo automóvel, revogou o segmento condenatório da sentença e relegou para liquidação em execução de sentença o apuramento da indemnização devida pelo réu à autora. O apelante e a apelada interpuseram recurso de revista do acórdão da Relação, formulando o primeiro, em síntese útil, as seguintes conclusões de alegação: - não há facto ilícito que funde a indemnização, pelo que foi violado o artigo 483.º do Código Civil; - para a hipótese de se entender haver enriquecimento sem causa, não aplicou o acórdão bem o direito quanto ao apuramento posterior da indemnização, por não estarem provados os danos sofridos pela recorrente; - o recorrente deteve a viatura durante quatro anos do mesmo modo que a recorrente deteve e usou os milhares de contos que lhe pagou; - há caso julgado derivado de contradição prática entre a primeira sentença que fixou a sua indemnização e a segunda que anula ou reduz esta; - se o recorrente tivesse de pagar a desvalorização do veículo, a primeira sentença não lhe atribuía uma viatura em estado novo, mas uma viatura usada, na medida em que teria de pagar a antiguidade da mesma; - por força do princípio da preclusão, devia a recorrente utilizar na primeira acção todos os meios de defesa e era certo que a detenção por si da viatura a desvalorizava; - não é aplicável a figura do enriquecimento sem causa, porque pretendeu entregar a viatura logo que a recebeu e a recorrente recusou-a, sendo-lhe, por isso, imputável o empobrecimento; - a obrigação de indemnizar fundada no enriquecimento sem causa não abrange lucros cessantes mas apenas danos emergentes, desde que a outra parte enriqueça com os mesmos; - os danos indemnizáveis decorrem do custo de aquisição da viatura pela recorrente, do preço de revenda dessa viatura usada, do valor da desvalorização em função da antiguidade, independentemente dos quilómetros percorridos, e do valor do uso da prestação do preço paga pelo recorrente; - a desvalorização automática de 48,5 % ao fim do quarto ano da existência do automóvel, independentemente do número de quilómetros, segundo as tabelas de desvalorização, não tem de ser suportada pelo recorrente; - foi obrigado a manter a viatura em seu poder, com a inerente desvalorização, enquanto a recorrente não esgotou todos os sucessivos recursos; - a circulação da viatura e os quilómetros percorridos resultaram de ter a sua disponibilidade por facto da recorrida, e o seu enriquecimento, se existisse, seria medido não pelo seu uso, mas pelo uso de uma viatura normal utilizada em fins de semana; - o empobrecimento da recorrente não é medido pelo aluguer diário de uma viatura semelhante, porque o custo do aluguer compreende taxas de lucro, amortizações de investimento, desgaste de pneus, revisões, seguros, selos e impostos, e o objecto social da primeira não é o aluguer de viaturas mas a sua revenda; - não poderia ser restituída à recorrente a indemnização de € 25 diários pelo tempo em que dispôs da viatura, porque então, quanto maior fosse a sua mora, maior seria a indemnização, e esta, no enriquecimento sem causa, é fixada para ressarcir prejuízos e não para possibilitar lucros; - restituída à recorrida uma viatura que custara 6 000 000$, com o valor 5 000 000$, a indemnização seria no máximo de 1 000 000$, mas o prejuízo teria de ser apurado em execução de sentença, considerando o valor de aquisição da viatura pela primeira, o preço de revenda da viatura entregue e a rentabilidade gerada pela prestação paga pelo recorrente durante 4 anos; - a viatura desvaloriza-se quer estivesse dentro de uma garagem, em poder do recorrente ou da recorrida, e nenhum a podia alienar antes do trânsito em julgado da sentença, pelo que também teria de ser deduzida esta desvalorização automática, a suportar pela recorrida; - se o recorrente mantivesse a viatura dentro de uma garagem durante quatro anos sem circular, não teria beneficio algum das despesas de manutenção, revisão e impostos. - não é o tempo de disponibilidade da viatura que medirá o enriquecimento, mas quando muito o uso que dela foi feito, os quilómetros percorridos; - o critério do uso por quilómetro percorrido não é o do aluguer, mas no mínimo, o valor de 17$ por quilómetro, fixado pelo Estado para compensar os proprietários das viaturas apreendidas em processo criminal, com dedução das despesas e benfeitorias realizadas; - os quilómetros percorridos renderiam 979 798$, deduzidas as despesas e o imposto, o que não significa que seja este o prejuízo, atentos os factores indicados e só seriam devidos juros a partir do momento em que a sentença fosse liquidada; - o recorrente deve ser absolvido do pedido, ou a indemnização deve ser apurada em execução de sentença, até ao limite de € 5 000, desde que a recorrida demonstre os prejuízos; - a sua avaliação terá de valorizar o custo de aquisição de idêntica viatura, o preço de venda da viatura usada, o valor da prestação do preço por ela retido, a desvalorização da viatura durante apenas quatro anos, pelo decurso do tempo, independentemente da sua desvalorização. A apelada formulou, por seu turno, em síntese, as seguintes conclusões de alegação: - o acórdão é nulo por condenar o recorrido no pagamento de indemnização por desvalorização do veículo automóvel e o pedido ter sido de condenação em determinada quantia diária por virtude de indevido locupletamento por utilização da viatura; - não é aplicável o artigo 483° do Código Civil, porque a sua aplicação pressupõe a culpa do agente, o que não ocorre no caso, porque a utilização do veículo automóvel estava legitimada pelo contrato de compra e venda translativo do direito de propriedade, antes sendo aplicáveis as regras do enriquecimento sem causa; - verificada após a entrega do veículo ter o recorrido percorrido com ele os quilómetros que percorreu, o pedido de resolução do contrato de compra e venda com fundamento em a viatura não ter as qualidades asseguradas e acordadas para o fim a que se destinava constitui abuso do direito. - a única via para recompor situação de flagrante injustiça em causa é o recurso às regras do enriquecimento sem causa, suprimindo por essa via o ilegítimo locupletamento do recorrido; - o enriquecimento sem causa ocorre quando existindo inicialmente uma causa, ela deixou de existir e tem por objecto o que for recebido indevidamente por uma causa que cessou; - declarado resolvido o contrato de compra e venda do veículo automóvel com a máxima retroactividade, a causa justificativa para a utilização do veículo entre a data da propositura da acção de resolução e a data da entrega do veículo à recorrente deixou retroactivamente de existir; - a falta de causa justificativa traduz-se na inexistência de uma relação ou facto que, à luz dos princípios aceites no sistema, legitime o enriquecimento, os direitos reais reservam para o seu titular o aproveitamento económico dos bens correspondentes, expresso nas vantagens provenientes do seu uso e fruição. - não existe causa, relação ou facto que legitime que o recorrido tenha retirado vantagens do veículo automóvel no período que mediou entre a data da propositura da acção em que pede a resolução do contrato e a data em que restituiu o veículo à recorrente; - deveria ter sido aplicado o normativo do artigo 479° do Código Civil e reconhecida a inexistência de causa que legitime o beneficio recebido pelo recorrido pela utilização do veículo automóvel; - ele deve ser obrigado a restituir tudo o que obteve à custa da recorrente, único meio de suprimir o seu enriquecimento, - houve intromissão em coisa alheia, em vantagens decorrentes do uso e fruição apenas reservadas ao proprietário, de acordo com boa ordenação dos bens pelo direito; - assente que o preço diário de aluguer de um veículo automóvel com as características da viatura em causa era no mínimo de € 50, essa é a quantia que o recorrido pagaria se alugasse um veiculo que lhe proporcionasse as mesmas vantagens que auferiu com o veículo da recorrente; - ficou empobrecida em € 25 por dia durante o período em que esteve privada do veículo em que o recorrido beneficiou das vantagens por ele propiciadas, com o que enriqueceu no valor correspondente; - na impossibilidade de restituir em espécie o que recebeu, deve restituir o valor correspondente às vantagens auferidas pela utilização do veículo automóvel; - deve ser revogado o acórdão e o recorrido ser condenado no pagamento da quantia considerada na sentença proferida no tribunal da primeira instância. II É a seguinte a factualidade e a dinâmica processual considerada nas instâncias: 1. BB intentou contra AA-Comércio de Viaturas SA, no dia em 3 de Outubro de 2000, acção declarativa constitutivo-condenatória, pedindo a sua condenação a substituir a coisa defeituosa por outra, em estado novo, com as qualidades, características e funcionalidades asseguradas e acordadas, a pagar-lhe 800 000$ a título de indemnização por danos não patrimoniais, e caso a substituição se afigurasse tecnicamente impossível, a declaração de resolução do contrato e a condenação da ré a restituir-lhe de 8 189 104$ e juros legais a contar da data da citação, e a pagar-lhe 620 896$ a título de indemnização pelos prejuízos decorrentes da situação de inadimplência contratual -interesse contratual negativo - acrescida de juros legais a contar da citação, e 800 000$ a título de indemnização pelos danos não patrimoniais resultantes do incumprimento. 2. Para o efeito alegou, essencialmente, haver-lhe sido entregue pela ré um veículo automóvel com características diversas das por si exigidas e pela interlocutora negocial garantidas, aquando da compra - sem bancos traseiros reversíveis – e, por conseguinte, deficiente. 3. No dia 16 de Novembro de 2002 foi proferida sentença, na acção mencionada sob 1, com base nos seguintes factos: a) em 23 de Março de 1999, o autor acordou com a ré, que se dedica ao comércio automóvel, por intermédio do seu empregado vendedor, nas respectivas instalações, a compra e venda de um veículo ligeiro de passageiros, marca “AUDI”, modelo "A.6, 1.9 TOI, de 110 cavalos, de cor cinzento-prata metalizada, com tecto de abrir, auto-rádio incorporado, e equipado com bancos traseiros rebatíveis, total e parcialmente, pelo preço de 8 189 104$ por conta do qual logo pagou 500 000$ ficando então acertado o pagamento remanescente no acto da entrega da viatura; b) na ocasião, significou ao dito vendedor da ré ser pintor, com frequentes exposições agendadas em todo o país, e questionou-o sobre a rebatibilidade total dos bancos traseiros, informando-o da essencialidade, para si, de tal funcionalidade, para lhe permitir o transporte de telas, havendo-lhe o mesmo vendedor garantido que tomara nota do respectivo pedido - de bancos traseiros total e parcialmente rebatíveis; c) à época, a venda de viatura AUDI, modelo A.6, 1.9 TDI, de 110 cavalos, com bancos traseiros rebatíveis, dependia de encomenda, porém, na nota de encomenda" da dita viatura, assinada por BBe pelo dito vendedor, não existe - não foi consignada por este último - qualquer referência a bancos traseiros total ou parcialmente rebatíveis; d) no verso da referida nota de encomenda, subordinada às condições gerais de venda e garantia dos veículos, consta, sob o n.º 6, cláusula com o seguinte teor: "O comprador pode anular a sua encomenda se a empresa vendedora não puder fornecer o veículo com as características mencionadas detalhadamente pelo comprador na nota de encomenda. No caso de anulação, a quantia entregue como sinal e princípio de pagamento na data de encomenda será reembolsada em singelo ao comprador; e) a entrega do referido veículo pela ré ao comprador, o autor, e o pagamento por este do preço residual, ocorreu no dia 17 de Junho de 1999, nas instalações daquela, havendo, na ocasião, o referido empregado/vendedor, efectuado uma demonstração do equipamento do automóvel, explicando o seu funcionamento, sem que fosse, durante tal acto, questionado/indagado por BB sobre a efectiva instalação de bancos traseiros rebatíveis; f) no dia 18 de Junho de 1999, este último contactou telefonicamente a ré para que o informasse como devia proceder para rebater os bancos traseiros do automóvel, havendo-lhe então sido sugerido que se deslocasse às respectivas instalações, no Barreiro, para que lhe fosse explicado o accionamento do particular mecanismo de rebatimento dos referidos bancos, o que aquele fez logo no dia seguinte; g) nesta ocasião – 19 de Junho de 1999 - o dito empregado/vendedor, ao constatar a impossibilidade de rebater os bancos traseiros da viatura, disse-lhe para a apresentar posteriormente na respectiva oficina, a fim de se indagar de alguma solução técnica para o efeito; h) BB sugeriu, então, que o veículo ficasse, desde logo, à disposição da ré, para ser devolvido à fábrica da AUDI, de modo a serem inseridos bancos traseiros rebatíveis, tendo-lhe sido dito, em resposta, que tal não seria necessário, pois tudo se resolveria com a instalação de um Kit apropriado, que a própria empresa vendedora iria, de imediato, solicitar à fábrica de origem; i) a ré procurou saber junto do importador AUDI para Portugal, SIVA SA, se existiria algum Kit de bancos traseiros para montar na viatura do autor, e o representante da primeira sugeriu a BB que a colocação dos bancos rebatíveis fosse feita aquando da primeira revisão do veículo; j) no dia 22 de Novembro de 1999, BB apresentou-se com o referido automóvel nas instalações da ré a fim de, a pedido do próprio, se operar a respectiva revisão, conserto da avaria no comando de abertura da porta traseira e colocação de bancos rebatíveis, tendo-lhe então sido entregue o documento comprovativo do depósito e das reparações a realizar; k) uma semana depois, contactou telefonicamente a ré, havendo então sido informado da impossibilidade técnica - definitiva - de se proceder à montagem dos bancos rebatíveis, pelo que deveria proceder ao levantamento do veículo; l) em Maio de 2000, um representante da ré comunicou-lhe que a colocação de bancos rebatíveis só era possível aquando da produção do automóvel, e, por carta datada de 27 de Junho de 2000, Siva SA informou BBque o sistema de bancos rebatíveis é um equipamento cuja montagem só é possível durante a produção da viatura; m) por carta datada de 29 de Junho de 2000, a ré propôs-lhe a venda de uma outra viatura nova, com bancos rebatíveis, mediante o pagamento de mais 700 000$ - diferença entre 6 800 000$ - valor que atribuía ao veículo que anteriormente lhe vendera - e o preço especial para venda de um veículo novo com bancos rebatíveis, o que BB recusou; n) em Agosto de 2000, o representante da ré garantiu-lhe que iria colocar os bancos rebatíveis na viatura sem quaisquer custos adicionais para si; o) em Setembro de 2000, o valor comercial de um veículo com as mesmas características e cilindrada do adquirido pelo autor era de 8 810 000$. 4. Com base nos factos mencionados sob 3, foi declarado na referida sentença: a) condenar a ré a entregar ao autor, em substituição do veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula n.º 00-00-NN, que em 17 de Junho de 1999 lhe disponibilizou, um outro novo da mesma marca e modelo, de cor cinzento-prata metalizado, com tecto de abrir, auto-rádio incorporado, equipado com bancos traseiros rebatíveis total e parcialmente. b) resolver o contrato de compra e venda em questão, e, na eventualidade da impossibilidade objectiva - técnica e material - de tal substituição, mormente por cessação de fabrico do referido modelo, apenas nessa pressuposição e contingência, de que, consequentemente, decorre a obrigação de restituição do que em sua execução foi prestado, o veículo de matrícula n.º 00-00-NN pelo ora autor, e o respectivo preço de 8 189 104$, pela ré - artigos 432.º e 433.º, com referência aos normativos 289.º e 290.º; 434.º e 801.º, todos do Código Civil - e bem assim, de pagamento pela ré ao outorgante comprador, a título indemnizatório, de € 3.097,02, contravalor de 620 896 000$, equivalente à diferença entre o valor por aquele desembolsado, de 8 189 104$, e o preço de um veículo com as mesmas características e cilindrada do escolhido/negociado, reportado a Setembro de 2000, de 8 810 000$, acrescidos de juros moratórios, à taxa legal em vigor, desde a data da citação -19 de Outubro de 2000 - até integral pagamento, que do mesmo modo incidirão, serão calculados, e acrescerão à importância recebida do ora autor, de € 40 487,08 - contravalor de 8 189 104$ - artigos 798.º,799.º, n.º1, 804.º, 805.º, n.º1, 806.º n.ºs 1 e 2 e 559.º, n.º1 do Código Civil - prestações a que igualmente, e, naquele pressuposto, a condeno, bem como, por litigância de má fé, no pagamento de multa de montante correspondente a trinta unidades de conta. 5. A referida sentença transitou em julgado após ser confirmada pelo acórdão da Relação de Lisboa de 3 de Junho de 2003, este por sua vez confirmado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Março de 2004. 6. Foi impossível à autora, em 11 de Maio de 2004, por a fábrica ter deixado de o produzir, a entrega de veículo com as características acordadas em 23 de Março de 1999, veículo da marca AUDI, modelo A6 1.9 TDI de 110 cavalos, de côr conzento-prata metalizado, com tecto de abrir, auto-rádio incorporado, bancos traseiros rebatíveis total e parcialmente. 7. No dia 11 de Maio de 2004, a autora pagou ao réu, que a recebeu por cheque, a quantia de € 53 094,99, correspondente a € 40 487,08 e juros de mora vencidos sobre essa quantia à taxa legal de 7% entre 19 de Outubro de 2000 e 30 de Abril de 2003, no valor de € 7.166,77 e à taxa legal de 4% entre 1 de Maio de 2003 e 11 de Maio de 2004, no valor de € 1 668,29, e ainda a € 3 097,02 e juros de mora vencidos sobre essa quantia à taxa legal de 7% entre 19 de Outubro de 2000 e 30 de Abril de 2003, no valor de € 548,21 e à taxa legal de 4% entre 1 de Maio de 2003 e 11 de Maio de 2004, no valor de € 127,61. 8. No dia 11 de Maio de 2004, o réu restituiu à autora o veículo de marca AUDI modelo A6 1.9 TDI de 110 cavalos, com a matrícula 00-00-NN, que lhe havia sido entregue em 17 de Junho de 1999, e entre esta data da entrega e a data da sua restituição à autora o veículo fez 104 694 quilómetros. 9. Só em 11 de Maio de 2004 a autora tomou conhecimento, com a sua entrega, da utilização e do número de quilómetros que o réu fez com o veículo automóvel com a matrícula 00-00-NN. 10. Entre 13 de Outubro de 2000 e 11 de Maio de 2004, o preço diário de aluguer de um veículo automóvel AUDI A6 1.9 TDI, igual ou com as mesmas características do veículo de matrícula 00-00-NN, era, no mínimo, de € 50,00. 11. A preços de mercado, caso o réu alugasse, entre 13 de Outubro de 2000 e 11 de Maio de 2004, um veículo automóvel com as mesmas características do veículo com a matrícula nº 00-00-NN, pagaria, no mínimo, € 50,00 por dia. III A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrente tem ou não em relação ao recorrente o direito de crédito que invoca em relação a este no montante de € 32 650 e juros de mora. Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pelos recorrentes, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática: - delimitação negativa dos recursos de revista; - há ou não alguma situação de preclusão ou de ofensa de caso julgado? - ocorrem ou não na espécie os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito? - a pretensão da recorrente tem ou não fundamento substantivo no instituto do enriquecimento sem causa? - no caso afirmativo, qual o montante indemnizatório a que a recorrente tem direito no confronto do recorrente? - nessa hipótese tem ou não a recorrente direito a exigir do recorrente juros de mora a contar da citação? - síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados, da dinâmica processual envolvente e da lei. Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestões. 1. Comecemos pela delimitação negativa do objecto dos recursos em análise. O que está em causa nos dois recursos de revista é essencialmente a questão de saber se a recorrente tem ou não direito a exigir do recorrente indemnização por virtude de ele ter utilizado a viatura vendida pela recorrente e percorrido com ela 104 964 quilómetros não obstante a resolução do contrato de compra e venda e da reconstituição da esfera patrimonial do primeiro. Não pode ser objecto destes recursos qualquer juízo de facto ou de direito sobre o que foi decidido quanto à mencionada resolução e restituição, designadamente no que concerne a saber se o recorrente tinha ou não, no que concerne à respectiva relação jurídica, o estatuto de consumidor, certo que importa respeitar o caso julgado. Decorrentemente, não pode este Tribunal apreciar o modo como foi interpretado e aplicado o disposto no artigo 289º, nº 1, do Código Civil, ou como o deveria ter sido, no que concerne ao âmbito da restituição implicada pelo que se prescreve nos artigos 433º e 434º, nº 1, daquele diploma. O decidido na primeira acção e o respectivo quadro de facto e de direito apenas funciona aqui no confronto com o que foi decidido nas instâncias como realidade decorrente do caso julgado conexa com a situação que aqui está em causa e como elemento aferidor da ofensa ou não daquele caso julgado. Importa, porém, salientar que as instâncias não consideraram provada a recusa pela recorrente, no dia seguinte à entrega da viatura ao recorrente, da sua substituição. Com efeito, apenas está assente ter o recorrente sugerido à recorrente que o veículo ficasse à sua disposição de modo a serem inseridos bancos rebatíveis e que lhe foi dito, em resposta, que tal não seria necessário, pois tudo se resolveria com a instalação de um kit apropriado que ela iria de imediato solicitar à fábrica de origem. 2. Atentemos agora na análise da subquestão de saber se na espécie ocorre ou não preclusão ou ofensa do caso julgado. O princípio da preclusão, que se refere essencialmente às deduções das partes, visa evitar que elas as não façam tão cedo quanto possível para disso obter vantagens não razoáveis. Uma das concretizações deste princípio, que aqui releva essencialmente, tem a ver com a oportunidade de dedução da defesa, do que resulta, por um lado, que toda ela deve ser deduzida na contestação, exceptuados os incidentes que a lei manda deduzir em separado (artigo 489º, nº 1, do Código de Processo Civil). E, por outro, em limitação ao mencionado princípio, que depois da contestação podem ser deduzidas as excepções, os incidentes e os meios de defesa supervenientes ou que a lei expressamente admita passado esse momento ou de que se deva conhecer oficiosamente (artigo 489º, nº 2, do Código de Processo Civil). Assim, o que é atingido pela preclusão são os factos que podiam ter sido invocados em contestação e os conexos efeitos jurídicos não requeridos no quadro de defesa apresentada e apreciada pelo tribunal. O caso julgado, por seu turno, é a não susceptibilidade de impugnação de uma decisão judicial decorrente do seu trânsito em julgado, porque queda indiscutível a situação derivada da aplicação do direito ao caso concreto pelo tribunal (artigo 677º do Código de Processo Civil). Com efeito, transitada em julgado a sentença, a decisão sobre a relação material controvertida tem força obrigatória nos limites fixados pelos artigos 497º e 498º do Código de Processo Civil (artigo 671º, n.º 1, do Código de Processo Civil). A excepção do caso julgado depende da repetição de uma causa que foi decidida por sentença que não admita recurso ordinário (artigo 497º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Há, no fundo, acções idênticas se a decisão da segunda fizer correr o risco de o tribunal contradizer ou reproduzir a decisão da primeira (artigo 497º, n.º 2, do Código de Processo Civil). A referida repetição pressupõe, por seu turno, a proposição de uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (artigo 498º, n.º 1, do Código de Processo Civil). Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, e de pedido quando numa e noutra causa se pretenda obter o mesmo efeito jurídico (artigo 498º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Civil). Há, por seu turno, identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico, sendo que nas acções constitutivas ela se traduz no facto concreto invocado para se obter o pretendido efeito (artigo 498º, nº 4, do Código de Processo Civil). Resulta, assim, dos mencionados normativos que excepção de caso julgado, para evitar que o tribunal seja colocado em situação alternativa de reproduzir ou contrariar uma decisão anterior, pressupõe a identidade do objecto da decisão transitada em julgado e daquele que faz parte do processo posterior, ou seja, é necessário que em ambos haja sido formulado o mesmo pedido alicerçado na mesma causa de pedir. E a causa de pedir são essencialmente os factos jurídicos constitutivos do direito que o autor ou o réu reconvinte pretende fazer valer na acção no confronto um do outro. Volvamos ao caso em análise na perspectiva do princípio da preclusão invocado pelo recorrente. O núcleo essencial dos factos que a recorrente invocou nesta acção na posição de autora reporta-se à resolução do contrato de compra e venda, à restituição da esfera patrimonial do recorrente e à utilização por este do veículo automóvel objecto mediato daquele contrato no espaço de 104 694 quilómetros. Releva aqui a circunstância de a referida resolução, pedida subsidiária e condicionalmente pelo recorrente, haver sido declarada a título condicional, para o caso da futura verificação da impossibilidade objectiva, técnica e material, da substituição da viatura por outra, mormente por virtude da cessação do fabrico do modelo actual. Releva, por outro lado, a circunstância de a recorrente só em 15 de Maio de 2004, depois de o recorrente lhe ter devolvido o veículo automóvel em causa, verificada a condição decorrente da sentença, soube do número de quilómetros com ele percorridos por ele. Esse tardio conhecimento conforma-se com a circunstância de não ser para a recorrente certo ou previsível, tendo em conta que o recorrente também baseou a acção na circunstância de o veículo automóvel vendido não ter bancos traseiros rebatíveis, necessários para o exercício da sua actividade de pintor artístico, utilizasse a viatura nos termos em que o fez, sobretudo porque pediu a resolução do contrato. O conhecimento pela recorrente da mencionada utilização do veículo pelo recorrente no espaço de 104 694 quilómetros foi, assim, subjectivamente superveniente ao próprio trânsito em julgado da acção em que ela formulou a defesa a que se reporta o artigo 489º do Código de Processo Civil. Assim, não podia a recorrente, nesta parte, a título de defesa, operar deduções contra os fundamentos da acção ou deduzir algum pedido, designadamente de condenação na restituição do valor do gozo do veículo automóvel em causa. Nem o tribunal, por virtude de não haver factos provados – ou sequer alegados nesse sentido - podia condenar o recorrente a restituir à recorrente o valor da usufruição da viatura automóvel em causa sob aplicação do disposto no artigo 289º, nº 1, do Código Civil. Dir-se-á que tudo se passa como se situação de facto relativa à desvalorização da viatura automóvel, em virtude da sua utilização pelo recorrente, fosse objectivamente superveniente à própria decisão que operou a resolução do contrato de compra e venda em causa. Com efeito, foi a aludida decisão, envolvendo a resolução condicional do contrato, ou seja, subordinndo-o à impossibilidade técnica e material da substituição da viatura em causa por outra nova, que destruiu retroactivamente os seus efeitos, que objectivou o circunstancialismo revelador do seu estado de utilização. Em consequência, no caso vertente, ao invés do que o recorrente afirmou, não pode funcionar contra a recorrente o princípio da preclusão por ele invocado. Considerando as considerações de ordem jurídica acima referidas, passemos à problemática do caso julgado nas vertentes de excepção e de ofensa que o recorrente suscita no recurso. Entre a primeira e a segunda acção, as partes são as mesmas do ponto de vista físico, embora em posição processual diversa por virtude de na primeira o recorrente ter a posição de autor e na última a posição de réu, e a recorrente naquela ter a posição de ré e nesta a posição de autora. Todavia, ocorre identidade de sujeitos porque as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, certo que a tal não obsta a diversidade de posição processual. Ocorre, por isso, o requisito do caso julgado relativo à identidade de sujeitos a que se reporta o artigo 498º, nº 2, do Código de Processo Civil. E enquanto na primeira acção a causa de pedir foi integrada por factos relativos ao incumprimento de um contrato de compra e venda de um veículo automóvel e do dano dele decorrente, na última a causa de pedir é integrada por factos relativos à utilização do aludido veículo automóvel, à resolução daquele contrato e à restituição da esfera patrimonial do recorrente. A conclusão é, por isso, no sentido de que nas acções em confronto se não verifica a identidade de causa de pedir a que se reporta o nº 4 do artigo 498º do Código de Processo Civil. O conceito de pedido a que acima se fez referência, que abstrai da respectiva vertente material, envolve a formulação pelo autor, ou pelo réu reconvinte, de determinada pretensão ou efeito jurídico. Ora, o efeito jurídico pretendido pelo recorrente na primeira acção foi, por um lado, a título principal, o de condenação da recorrente na substituição do veículo automóvel em causa por outro em estado novo com determinadas qualidades e no pagamento do equivalente a € 3 990,38. E, por outro, a título subsidiário, a declaração de resolução do contrato de compra e venda, a condenação da recorrente a restituir-lhe o equivalente a € 40 847,07 e a pagar-lhe juros legais sobre essa quantia e o equivalente a € 7 087, 39. Trata-se em ambos os casos de pedidos múltiplos cumulativos formulados pelo ora recorrente em que estão envolvidas uma prestação de facto, prestações pecuniárias e uma potestativa alteração da situação jurídica envolvente (artigo 470º, nº 1, do Código de Processo Civil). Ora, nesta última acção, o pedido é de condenação na realização de uma prestação pecuniária formulado por sujeito diverso daquele que formulou os supracitados pedidos na anterior acção. A ora recorrente, ré na primeira das mencionadas acções, não formulou qualquer pedido no confronto do recorrente, pelo que se não pode colocar, pela natureza das coisas, a hipótese da identidade do pedido a que se reporta o artigo 498º, nº 3, do Código de Processo Civil. A conclusão é, por isso, no sentido de que não ocorrem na espécie os pressupostos da excepção dilatória do caso julgado a que se reportam os artigos 493º, nº 2, e 494º, alínea i), do Código de Processo Civil. Ademais, tendo em conta o que decidido foi na primitiva acção com base nos factos disponíveis e nas normas jurídicas aplicadas - que aqui não cabe sindicar - e o decidido pelas instâncias nesta acção, a conclusão é no sentido de que este último conteúdo é susceptível de contrariar o primeiramente enunciado. Com efeito, as acções que se sucederam têm por objecto situações jurídicas diversas, porque assentes em pressupostos de facto e de direito essencialmente diferentes, pelo que, ao invés do que o recorrente alegou, a indemnização arbitrada na segunda é insusceptível de anular ou reduzir a indemnização atribuída na primeira. A conclusão é, pois, no sentido de que se não verifica a alegada contradição prática e de que não há ofensa de caso julgado que, como excepção dilatória, inviabilize o conhecimento do mérito da causa. 3. Vejamos agora se ocorrem ou não na espécie os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito. A Relação considerou que a recorrente tem direito a ser indemnizada pelo recorrente por virtude da resolução do contrato de compra e venda do veículo automóvel e da sua utilização nos termos em que esta ocorreu, durante quatro anos, dez meses e vinte e quatro dias, no espaço de 104 694 quilómetros, não com base no enriquecimento sem causa, mas com fundamento no instituto da responsabilidade civil por facto ilícito. Para tanto considerou ter existido até ao trânsito em julgado da sentença proferida na anterior acção causa jurídica de deslocação do veículo automóvel para o recorrente concernente ao respectivo contrato de compra e venda, e que a lei relativa à responsabilidade civil confere à recorrente a indemnização pelos prejuízos que esta sofreu. Mas relegou para execução de sentença a quantificação do dano ou prejuízo reparável sofrido pela recorrente. A admitir-se a quantificação do dano imposta pela Relação, como a sentença foi proferida no tribunal da primeira instância depois de 15 de Setembro de 2003, o regime aplicável é o decorrente da alteração da lei processual pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março. Em consequência, a liquidação que eventualmente devesse ocorrer já não o poderia ser em execução de sentença, mas no incidente a implementar no próprio processo da acção declarativa (artigos 378º, nº 2 e 661º, nº 2, do Código de Processo Civil). Visa o instituto da responsabilidade civil, para o caso de afectação de bens materiais, a reconstituição da situação que existiria se não tivesse ocorrido o evento causador do prejuízo, ou seja, indemnizar os prejuízos sofridos por uma pessoa (artigo 562º do Código Civil). É certo que, em regra, por um lado, gozar o proprietário de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (artigo 1305º do Código Civil). E, por outro, dever o agente que, ilicitamente, com dolo ou mera culpa, violar aquele direito, indemnizá-lo dos danos que lhe causar (artigo 483º, nº 1, do Código Civil). Os factos assentes disponíveis revelam que o recorrente entregou à recorrente, no dia 11 de Maio de 2004, a aludida viatura automóvel, mas não revelam que ele a tenha utilizado depois do trânsito em julgado, no dia 18 de Março de 2004, da sentença que declarou a resolução do contrato de compra e venda. O recorrente foi o titular do direito de propriedade sobre o veículo automóvel em causa até que transitou em julgado, no dia 18 de Março de 2004, a sentença proferida no tribunal da primeira instância que declarou a resolução do contrato de compra e venda por via do qual ele adquiriu aquele direito (artigos 289º, nº 1, 408º, nº 1, 433º, 434º, nº 1 e 1316º do Código Civil). Conforme resulta do artigo 1305º do Código Civil, o direito de propriedade do recorrente sobre a mencionada viatura automóvel facultava-lhe a sua utilização, naturalmente por via da respectiva circulação. Por isso, ao fazer circular a mencionada viatura automóvel, ao invés do que foi entendido no acórdão recorrido, não há intromissão ilegal do recorrente na esfera jurídico- patrimonial da recorrente. Em consequência, por via da mencionada utilização da viatura automóvel, não cometeu o recorrente algum facto envolvido de ilicitude do ponto de vista formal ou material, ou seja, não infringiu alguma disposição legal nem violou algum interesse civilmente protegido. Não se verifica, por isso, um dos pressupostos essenciais do funcionamento do direito de indemnização a que alude o artigo 483º, nº 1, do Código Civil, pelo que não pode subsistir o conteúdo do acórdão recorrido. 4. Atentemos agora na subquestão de saber se a pretensão da recorrente tem ou não fundamento no instituto do enriquecimento sem causa. Importa salientar que a pretensão da recorrente no confronto do recorrente neste processo não visa a restituição de algo que a primeira tenha pago ao último, e que, por via da declaração judicial de resolução do contrato de compra e venda, apenas houve restituição à esfera patrimonial do recorrente. O princípio geral do enriquecimento sem causa consta no artigo 473º do Código Civil, segundo o qual, por um lado, é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem (n.º 1). E, por outro, ter a obrigação de restituir por enriquecimento sem causa por objecto, de modo especial, aquilo que foi indevidamente recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito não verificado (n.º 2). São, assim, em regra, elementos do instituto em análise o enriquecimento de um património e o correlativo empobrecimento de outro decorrentes do mesmo facto e a ausência de causa justificativa para a concernente deslocação patrimonial por ele envolvida. O referido enriquecimento é susceptível de se traduzir na obtenção de uma vantagem por via do aumento do activo patrimonial do agente, que pode consistir no mero uso ou consumo de coisa alheia. Trata-se, não raro, de situações conformes aos preceitos da lei, à luz de negócios jurídicos celebrados, mas que geram resultados de enriquecimento injusto, isto é, que o próprio ordenamento jurídico reprova e impõe adequada restituição. Até ao trânsito em julgado da sentença que declarou a resolução do contrato de compra e venda do veículo automóvel em causa existiu causa jurídica justificativa da sua utilização por parte do recorrente. Mas com o aludido trânsito em julgado, no dia 18 de Março de 2004, mudou, com efeitos retroactivos, a titularidade do direito de propriedade sobre o mencionado veículo automóvel. Com efeito, por virtude da mencionada sentença, o recorrente reembolsou o preço pago pela viatura acrescido dos juros de mora relativos ao tempo que decorreu entre 19 de Outubro de 2000, data da citação da recorrente para a acção, e 11 de Maio de 2004, data em que a restituição ocorreu. Assim, os referidos juros só não cobriram o período compreendido entre 17 de Junho de 1999 e 18 de Outubro de 2000 - durante um ano, quatro meses e um dia - em conformidade com o que foi pedido na acção pelo recorrente no confronto da recorrente. Acresce que o recorrente também foi indemnizado pela recorrente pelo montante equivalente a € 3 097, correspondente à diferença entre o valor do veículo à data do contrato e o seu preço no mês de Setembro de 2000, também com juros de mora desde 19 de Dezembro de 2000 até 11 de Maio de 2004. Isso significa que o recorrente, por um lado, adquiriu o veículo automóvel em causa pela quantia equivalente a € 40 874,07 e recebeu dela, na sequência do trânsito em julgado da mencionada sentença, a quantia equivalente a € 53 094,99. E, por outro, que apesar da viatura em causa lhe não servir para o transporte de telas, por falta de bancos rebatíveis, dispôs dela quatro anos e nove meses, com ela percorrendo 104 964 quilómetros. Assim, enquanto a recorrente restituiu ao recorrente o preço da viatura, os juros de mora durante a maior parte do tempo em que dele dispôs e o indemnizou nos termos acima referidos, ele usufruiu do gozo da viatura nos termos em que o fez, devolvendo-lha severamente desvalorizada, não só pelo tempo da sua duração como também por virtude da quilometragem percorrida. O recorrente utilizou assim a mencionada viatura, não por virtude do incumprimento pela recorrente do contrato de compra e venda, mas porque assim o quis, não obstante haver pedido em juízo, cerca de um ano e dois meses depois da celebração daquele contrato, a sua resolução. Ele sabia que a resolução do contrato de compra e venda do veículo automóvel que pediu em juízo implicava a destruição dos seus efeitos retroactivamente e que ficava sem causa a usufruição da viatura que empreendera e a que viesse depois disso a empreender. Ao invés do afirmado pelo recorrente, a recorrente não podia invocar na primitiva acção, por excepção ou reconvenção, o seu direito à restituição do valor da utilização da mencionada viatura, porque dela só conheceu aquando da respectiva entrega, depois do trânsito em julgado da sentença que declarou a resolução do contrato de compra e venda. A causa da desvalorização da mencionada viatura não decorreu da circunstância de a recorrente se defender em juízo, na primitiva acção e nos recursos concernentes, nos termos que a lei lhe facultava, mas da utilização da mesma operada pelo recorrente. Ao invés do que o recorrente afirmou, os factos provados não revelam que a recorrente se tenha recusado a resolver extrajudicialmente o contrato nem que tenha recusado o recebimento viatura com esse fim. Todavia, ainda que os factos disponíveis revelassem o mencionado circunstancialismo, a causa da mencionada desvalorização da viatura neles não assentaria, mas na sua utilização pelo recorrente. A responsabilidade indemnizatória no âmbito do enriquecimento sem causa não é excluída em absoluto nos casos de resolução contratual, por exemplo, quando ela não envolve tudo o que uma das partes recebeu da outra. Ora, no caso vertente, tal envolvência não ocorre, porque o veículo automóvel em causa foi entregue ao recorrente no estado de novo e este devolveu-o à recorrente severamente danificado, com 104 964 quilómetros percorridos. A manutenção pela recorrente do preço do veículo automóvel pago pelo recorrente não tem equivalência à desvalorização do mesmo por virtude da utilização que aquele lhe deu, além do mais porque a primeira pagou-lhe juros de mora relativos àquela quantia e ainda o indemnizou nos termos acima referidos. Na realidade, a causa justificativa da utilização pelo recorrente da mencionada viatura automóvel cessou com o trânsito em julgado da sentença que operou a resolução do contrato de compra e venda, ficando então sem causa jurídica o enriquecimento daquele à custa da recorrente. A recorrente destinou a mencionada viatura automóvel ao comércio que constituía a sua actividade e o recorrente afectou negativamente essa negociação por via do aproveitamento do respectivo gozo. Resulta, pois, dos factos provados que, por força das vicissitudes do contrato de compra e venda em causa, designadamente da sua fase patológica - que aqui não cabe reapreciar em obediência ao caso julgado - que o recorrente enriqueceu à custa do empobrecimento da recorrente. A recorrente tem, por isso, direito a ser restituída pelo recorrente com fundamento no enriquecimento sem causa, por virtude de este utilizado a viatura automóvel no período de tempo acima referido. 5. Vejamos agora qual o montante indemnizatório a que a recorrente tem direito no confronto do recorrente. A obrigação de restituição fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (artigo 479º, nº 1, do Código Civil). O cômputo do valor do enriquecimento é referenciado à data da citação judicial para a acção ou do conhecimento da falta de causa ou do efeito visado (artigo 479º, nº 2, do Código Civil). No caso vertente, como a restituição em espécie, ou seja, o próprio gozo da viatura automóvel durante 104 964 quilómetros, pela própria natureza das coisas não é possível, ela deve ser aferida pelo valor que lhe corresponde. Não se coloca aqui a problemática do limite de restituição a que alude o normativo do nº 2 do artigo 479º do Código Civil. A recorrente entende que a medida do enriquecimento do recorrente à sua custa deve ser aferida como o foi na sentença proferida no tribunal da primeira instância, do que o último discorda. O tribunal da primeira instância, baseado no valor de metade do custo do aluguer de uma viatura idêntica à que foi utilizada pelo recorrente, apenas entre a data da instauração da acção e a da entrega da viatura, conforme o pretendido pela recorrente, fixou a indemnização no montante de € 32 650. Mas nem a recorrente se dedica à indústria de aluguer de veículos automóveis, nem há elementos que permitam inferir que o recorrente, se não tivesse utilizado a viatura automóvel em causa do modo em que o fez, recorreria, para sua utilidade, a esse mercado de aluguer. Acresce que, tal como o recorrente referiu, na determinação do aluguer de viaturas automóveis entram várias vertentes, além do mais, de amortização de investimento, de custos e de lucro. Por isso, não pode o custo do aluguer de uma viatura automóvel idêntica àquela que o recorrente usou servir de critério absoluto de determinação da medida da restituição que o último deve operar a favor da recorrente. Sabe-se o preço por que a recorrente transaccionou a viatura automóvel em causa – o equivalente a € 40 847,08 -, mas ignora-se o destino que ela lhe deu após a ter recebido do recorrente severamente desvalorizada. Ignora-se o rendimento que a recorrente extraiu da quantia pecuniária que o recorrente lhe entregou a título de preço da viatura automóvel, mas sabe-se que a primeira lho devolveu, acrescido de indemnização por via juros de mora desde a citação para a acção e que ainda o indemnizou pelo diferencial entre esse preço e o de um veículo idêntico no mês de Setembro de 2000. Sabe-se, finalmente que o recorrente utilizou aquela viatura durante quatro anos e dez meses, percorrendo com ela 104 964 quilómetros, do que lhe resultou a severa desvalorização a que acima se fez referência. Perante este quadro de facto, dada a similitude de situações, justifica-se que ao calculo da restituição em causa se aplique o regime do cálculo da indemnização em dinheiro a que se reporta o artigo 566º do Código Civil (artigo 10º, nºs 1 e 2, do Código Civil). Assim, a mencionada restituição deve ter por medida a diferença entre a situação patrimonial da recorrente no momento da decisão da matéria de facto e a que ela teria se não tivesse ocorrido a mencionada utilização da viatura automóvel em causa (artigo 566º, nº 2, do Código Civil). E como não pode ser averiguado o valor exacto da restituição, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (artigo 566º, nº 3, do Código Civil) Perante este quadro de facto, à luz da equidade, julga-se adequada a fixação da mencionada restituição no montante de € 20 000. 6. Atentemos agora sobre se a recorrente tem ou direito a exigir do recorrente juros de mora a contar da citação. A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, sendo que ele se considera nessa situação quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação ainda possível não foi efectuada no tempo devido (artigo 804º do Código Civil). O tribunal da primeira instância, operando a liquidação da restituição por referência ao momento da sentença, condenou o recorrente a pagar à recorrente juros de mora à taxa supletiva legal desde a data da citação. O recorrente discorda desse segmento condenatório, entendendo que os juros só são devidos desde a data da sentença. Na Relação, porém, com enquadramento na responsabilidade civil por facto ilícito, foi a quantificação do dano relegada para liquidação em execução de sentença. Não estamos, no caso espécie, perante uma situação de responsabilidade por facto ilícito, pelo que não é aqui aplicável a parte final do nº 3 do artigo 805º do Código Civil, e a regra, nos termos do nº 1 daquele normativo, é no sentido de que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir. Acresce não ser aplicável na espécie o que se prescreve no nº 2 do mencionado artigo, mas sim a primeira parte do seu nº 3, segundo o qual, se o crédito foi ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor. Ora, no caso vertente, o direito de crédito da titularidade da recorrente no confronto do recorrente era ilíquido, só se tornando líquido depois do trânsito em julgada da sentença do tribunal da primeira instância. Por isso, o recorrente apenas se constituirá em mora quanto ao pagamento, se for caso disso, após o trânsito em julgado da mencionada sentença. 7. Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados, da dinâmica processual envolvente e da lei. Os recursos de revista em causa não podem ter por objecto a reapreciação da matéria de facto e de direito já apreciada na sentença proferida na primeira acção que transitou em julgado no dia 18 de Março de 2004. Entre o objecto do primeiro referido processo e o do que está ora em análise não decorre alguma situação de preclusão ou de ofensa de caso julgado. Não ocorrem na espécie os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito que a Relação considerou. A pretensão da recorrente tem fundamento no instituto do enriquecimento sem causa e os elementos de facto disponíveis, à luz de juízos de equidade, justificam a quantificação em € 20 000 a restituição devida àquela pelo recorrente. Como o direito de crédito da recorrente só se considera liquidado com o trânsito em julgado da sentença proferida no tribunal da primeira instância, não são devidos juros de mora deste a citação do recorrente para a acção, mas da data do trânsito em julgado daquela sentença. IV Pelo exposto, dá-se parcial provimento aos recursos interpostos por AA-Comércio de Viaturas SA e BB, revogam-se parcialmente o acórdão recorrido e a sentença proferida pelo tribunal da primeira instância, e condena-se o último a pagar à primeira vinte mil euros, acrescidos de juros de mora considerados na sentença proferida no tribunal da primeira instância, desde o seu trânsito em julgado, se for caso disso, e ambos no pagamento das custas de ambos os recursos na proporção do vencimento, que também se estende à acção e aos recursos de apelação. Lisboa, 10 de Julho de 2007. Salvador da Costa (relator) Ferreira de Sousa Armindo Luis Pires da Rosa com voto de vencido que se segue (1) Gil Roque com voto de vencido que se segue (2) (1) Voto com o Relator original, Conselheiro Gil Roque, pela improcedência da acção, em resumo pelas seguintes razões: aceito que se não verifica a excepção do caso julgado porquanto a autora J... - COMÉRCIO DE VIATURAS, S.A. deslocaliza a causa de pedir para fora do contrato de compra e venda de coisa defeituosa. A causa de pedir é, na alegação da autora, o enriquecimento sem causa. Só que essa deslocalização é exactamente o expediente usado para não tratar ( e por isso subtrair ao caso julgado) dentro da causa o que causa tem - o contrato de compra e venda defeituosa. Não é sem causa que o réu entrou no uso do automóvel 00-00-NN; esse uso foi-lhe "atribuído" no âmbito do contrato celebrado. Dentro deste e das suas vicissitudes, seja o cumprimento seja a resolução, é que deveria ter-se discutido ( ou discutir) da razão ou sem-razão da devolução do 00-00-NN com uso ou sem uso ( no estado em que se encontrava, com 104694 quilómetros, ou como se estivesse quilómetro zero, através da reposição a posteriori do valor do uso, como pretende a autora ). De modo que a acção, com o enriquecimento sem causa como causa de pedir, tem necessariamente que improceder porque, a ter havido enriquecimento, esse enriquecimento teria ... causa. Se o enriquecimento tivesse ( tiver ) existido, dentro do contrato e das suas incidências, a autora havia (haveria ) que ter procurado a indemnização ou restituição. É o que diz o art.474° do CCivil- não há lugar à restituição por enriquecimento quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído. Ainda que assim não fosse ... ... não está demonstrado, em meu entender, qualquer enriquecimento por parte do réu. Vejamos: o réu( comprador) contrata a compra e venda de um detenninada coisa, um automóvel com bancos traseiros rebatíveis, total e parcialmente ( características que, na estrutura do contrato, eram essenciais ); essa coisa foi-lhe vendida com defeito; o que o vendedor deveria ter feito era corrigir ou eliminar esse defeito; não o fez, haverá que suportar os prejuízos sofridos pelo comprador com o cumprimento defeituoso por parte da autora; o comprador quis devolver o automóvel com defeito, para receber um outro com as características "vendidas"; o vendedor não aceitou essa devolução; ao comprador restavam duas alternativas, qualquer delas a suportar pelo vendedor: ou pura e simplesmente parar o automóvel defeituoso e alugar um sem defeito; ou, como aconteceu, usar o defeituoso ... nos mesmos termos e pelo mesmo período de tempo em que o vendedor continuava a usar o seu dinheiro, dele, comprador. De qualquer forma, o preço do dinheiro do comprador usado pelo vendedor há-de equivaler-se ao valor do uso do automóvel pelo comprador (ou ao valor do aluguer, se outra tivesse sido a via seguida pelo comprador ). Se algum enriquecimento aqui há, é do vendedor, a autora, que em vez de ser responsabilizada pelo preço do aluguer de um automóvel sem defeito a que o comprador tinha contratualmente direito, paga apenas o "preço" correspondente ao desvalor do uso do automóvel com defeito que o comprador, malgré lui, suportou. (Pires da Rosa) (2) Voto de vencido: Discordo da decisão pelas razões que passo a expor: Pretende a recorrente/J..., que lhe seja pago o valor do uso da viatura que vendeu desconforme com o contrato de compra e venda que celebrou com o réu Cruz, apesar deste ter pretendido devolvê-la logo no dia seguinte à entrega e ela ter recusado recebe-la. Foi entregue ao recorrente/consumidor, um “audi” sem os bancos traseiros rebatíveis, quando o contrato de compra e venda era de uma viatura dessa marca modelo e cor, com os bancos traseiros rebatíveis, questão que só não será relevante para quem não viaje de automóvel ou quando viaja não transporta no veículo mercadorias. Os bancos rebatíveis permitem a transformação do veículo ligeiro de passageiro em veículo misto, podendo transportar-se nele, à frente pessoas e no lugar dos bancos traseiros mercadorias. O comprador, logo no dia seguinte àquele em que lhe foi entregue a viatura, em 19.6.1999, ao tomar conhecimento que a viatura não tinha os assentos rebatíveis, pretendeu restitui-la à vendedora. Foi esta que se recusou a aceitar a devolução, com a promessa de que “ tudo se resolveria com a instalação de um Kit apropriado, que a própria empresa vendedora iria, de imediato, solicitar à fábrica de origem” e depois colocaria na referida viatura “audi” os bancos traseiros rebatíveis quando efectuasse a primeira revisão. Chegou a primeira revisão e os bancos rebatíveis não foram colocados. Foram-lhe entretanto feitas promessas sucessivas de colocação dos referidos bancos e só “por carta datada de 27 de Junho de 2000, a "SIVA SA", informou Cruz que o sistema de bancos rebatíveis é um equipamento cuja montagem só é possível durante a produção da viatura”. Foi na sequência dessa informação que, “por carta datada de 29 de Junho de 2000, a "J..., SA" lhe propôs a venda de uma outra viatura nova, com bancos rebatíveis, mediante o pagamento de mais 700.000$00 [diferença entre 6.800.000$00 - valor que atribuía ao veículo que anteriormente lhe vendera "AUDI A.6, 1.9 TDI", de matrícula n.º "00-00-NN") - e o "preço especial" para venda de um veículo novo com bancos rebatíveis], o que Cruz recusou. Depois, em Agosto de 2000, o representante da mesma sociedade garantiu-Ihe que iria colocar os bancos rebatíveis na viatura sem quaisquer custos adicionais para si”. Resulta dos factos provados que, a vendedora podia entregar ao consumidor Cruz uma viatura em conformidade com o contrato, mas não o fez porque não quis. Foi-lhe proposto, a entrega de novo veículo mediante o pagamento adicional de mais 700.000$00, implicando uma alteração unilateral do contrato de compra e venda que lhe era imposta, e um encargo não previsto no contrato, pelo que continuou por cumprir por culpa exclusiva da recorrente. Posteriormente, a J... voltou a garantir ao recorrente Cruz a entrega da viatura com os bancos rebatíveis sem quaisquer encargos adicionais. A recorrente tinha conhecimento que o Cruz estava a usar a viatura, apesar de não ter os bancos rebatíveis em conformidade com o contrato, tanto mais que ia fazendo as revisões periódicas, pelo que não é verdade que só soubesse do uso dela depois de ele a ter restituído. Apesar das várias promessas, não procedeu à entrega da viatura com os bancos traseiros rebatíveis, e o consumidor teve de esperar quatro anos e oito meses que fosse proferida sentença, confirmada pelo STJ, condenando, a vendedora “J...” a entregar ao Cruz, em substituição o veículo “AUDI”, modelo “A.6, 1.9 TDI, de 110 cv”, por outro NOVO, da mesma marca e modelo, ou em alternativa o respectivo preço de 8.189.104$00, nos termos já referidos. O Cruz foi assim proprietário forçado do veículo desde 17 de Junho de 1999, até 10.05.2004, até ao transito em julgado do acórdão deste Tribunal e fez a entrega da viatura. O recorrido como qualquer proprietário usou normalmente a viatura de que era proprietário, e fê-lo no exercício de um direito legítimo, como reconhece a recorrente J..., mas apesar disso, sustenta que houve por parte do “Recorrido Cruz a intromissão em coisa alheia, uma intromissão em vantagens decorrentes do uso e fruição do veículo, entre 17/06/1999 e 11/05/2004, num total de 1306 dias, vantagens apenas reservadas ao proprietário, de acordo com boa ordenação do Direito” Reconhece que o recorrido/Cruz era o proprietário da viatura durante o referido período, mas diz que usando-a houve intromissão em coisa alheia. O recorrido utilizou o seu automóvel cujo preço pagou à recorrente no acto da entrega em 17 de Junho de 1999, no montante de 8.189.104$00, valor de que a compradora tirou o proveito que quis até ao trânsito em julgado da sentença que a condenou a entregar ao recorrido/Cruz um carro novo, ou em alternativa lhe restituiu o preço recebido, anos antes. Fez-se prova da ilicitude, (culpa da recorrente) da venda de coisa defeituosa e dos danos, e repete-se, este STJ condenou a recorrente a entregar-lhe uma viatura nova ou em alternativa o valor duma viatura nova e ainda uma indemnização pelos prejuízos sofridos por lhe ter sido entregue uma viatura sem as valências acordadas no contrato e foi condenada, como litigante de má fé, pela sua conduta. No contrato de compra e venda da viatura “AUDI” , o recorrido Cruz é consumidor final, sendo-lhe por isso aplicáveis as disposições legais relativas à venda de bens ao consumidor e como tal devia a meu ver, ser apreciado o pedido da J... - “ 1- Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestado serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios” (art.º 2.º da Lei n.º 24/96 de 31 de Julho). “Os consumidores têm direito à qualidade dos bens e serviços consumidos, à formação e à informação, à protecção da saúde e dos seus interesses económicos, bem como à reparação de danos” (art.º 60.º n.º1 da Constituição da República Portuguesa) . O recorrido como consumidor, mesmo que não tivesse provado a culpa da recorrente na venda do automóvel em desconformidade com o contrato de compra e venda, sempre teria direito à substituição por outra viatura da mesma marca modelo e características acordadas, sem que tivesse de suportar quaisquer despesas (art.º 12.º n.º 1 da Lei n.º 24/96 de 31 de Julho e art.ºs 3.º, n.º1 e 4.º n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 67/2003 de 8 de Abril). Por outro lado, mesmo que se entendesse que os Acórdãos da Relação de Lisboa de 3.06.2003 e deste STJ de 18.03.2004 se tinham ficado pelo espartilho do Código Civil e nos cingíssemos ao preceituado no art.º 289.º, n.º1 e 290.º do Código Civil, o recorrido/Cruz, não estava obrigado a pagar à recorrente a desvalorização da viatura consequente do decurso do tempo entre a data do recebimento e a da restituição consequente da resolução do contrato. Se os tribunais demoraram mais de quatro anos a decidir, o dano resultante da mora da justiça, deve ser suportado pela lesante J.... Esta, como se decidiu neste Supremo Tribunal foi culpada pela venda da viatura em desconformidade com o contrato de compra e venda, pelo que não é o lesado que deve suportar o dano pela mora da justiça, nem pelo uso da mesma durante o período em que foi forçado a ser seu proprietário. O Cruz/lesado no contrato, estava apenas obrigado a restituir a viatura sem danos. Não a podia entregar sem uso por entretanto terem decorrido 1306 dias, sem que de algum modo haja contribuído para que tal tivesse acontecido, sendo certo que a quis restituir à recorrente logo do dia a seguir aquele em que lhe foi entregue, e ela recusou-se a recebê-la. O presente acórdão conduz a meu ver ao seguinte resultado: - a vencedora/recorrente recebeu uma viatura no valor estimado de cerca de € 25.000,00 (valor da viatura AUDI com 4 anos e 8 meses), que acrescido dos € 20.000,00 (valor da indemnização arbitrada) perfaz o valor de € 45.000,00; - a viatura havia sido vendida por cerca de € 40.000,00 e com defeito; - recebe assim mais € 5.000,00 do que se o automóvel tivesse sido vendido sem defeito. Aqui sim, existe em meu entender, enriquecimento sem causa. A autora actuou com má fé que se enquadra na figura do abuso de direito na modalidade de “venire contra factum próprium”. Criou um facto ilícito para depois se vir locupletar através dele à custas do comprador. Entendo assim que a decisão conduz, à anulação das garantias legalmente impostas, através de directivas comunitárias transpostas para a ordem jurídica portuguesa pelo Decreto-Lei 67/2003 de 8 de Abril e também se tornaria ineficaz a aplicação da lei do consumidor (Lei 24/96 de 31 de Julho) e a protecção do consumidor pela Constituição da República. Nessa perspectiva, o comprador que adquirisse um computador para nele executar projectos, que após a compra verificasse que a máquina não dispunha da memória acordada no contrato de compra e venda, ou a dona de casa que adquirisse uma máquina de lavar roupa ou loiça que ao contrário do que havia acordado no contrato de compra e venda lhe faltasse o programa de pré-secagem, porque só se apercebeu dessa falta decorridos alguns meses e não obstante tivesse denunciado ao vendedor o vício, se este não se dispusesse a cumprir o contrato tal como o havia firmado, teriam estes consumidores que pagar o aluguer ou o uso do bem vendido com defeitos, pelo tempo em que os tiveram em sua casa. Apesar de terem sofrido danos pela não utilização plena da coisa durante algum tempo, por ser defeituosa, ou não ser apta à realização dos fins para que foi adquirida, estava obrigada a pagar aluguer daquilo que comprara, com defeito pelo período em que a tinha utilizado. A interpretação correcta que se tem feito do art.º 289.º, n.º1 do Código Civil vai no sentido de que a restituição da coisa em caso de nulidade, ou anulabilidade, no caso por força da resolução, consiste na entrega da coisa como ela se encontra depois de um uso normal. Só haverá lugar ao pagamento de qualquer quantia que acrescerá à restituição da coisa se esta tiver sido usada de modo irregular e for restituída com danos, mas não é o que se verifica com a restituição da viatura pelo recorrido à recorrente/J.... Entende a J... que o recorrido/Cruz, e no presente acórdão aceita-se como juridicamente certo o recorrido, por ter usado a viatura ao longo dos 4 anos e oito meses em que foi seu proprietário e por ter percorrido 104.000 km houve enriquecimento sem causa. Não entendo que assim seja. Entendo que, só aquele que sem causa justificativa enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou (art.º473.º, n.º1 do Código Civil). Resulta deste preceito legal que é necessário para que se verifique o enriquecimento sem causa que exista uma obrigação em que é devedor o enriquecido e credor aquele que suporta o enriquecimento. Terão assim de se verificar três requisitos cumulativos essenciais: - A existência de um enriquecimento; - Que esse enriquecimento se obtenha à custa de outrem e, - A falta de causa justificativa. No caso em apreciação não se verifica qualquer dos referidos requisitos. Não se pode entender que pelo facto do recorrido Cruz ter usado a sua própria viatura durante o período em que foi seu proprietário, constitui enriquecimento com ou sem causa. Quem compra um bem é para o usar regularmente e não para o ter parado ou armazenado. Ele pagou o preço da viatura, cumpriu a sua prestação, mesmo sem que ela reunisse os requisitos acordados no contrato de compra e venda. O uso que fez da viatura não foi à custa de outrem mas por sua própria conta pois a viatura era sua propriedade sua. Pagou o preço e a recorrente usou esse dinheiro na sua actividade comercial durante os 4 anos e oito meses que durou o contrato. Não há falta de causa de justificação para o dono ter usado a sua viatura, até que o tribunal decidisse condenar a recorrente a entregar-lhe uma nova ou o preço que havia pago. O dono do”Audi”, foi obrigado a ficar com ele até que o STJ proferiu a decisão. Houve uma causa legítima e devidamente justificada para ter usado a viatura. Só se não a tivesse usado regularmente, haveria lugar ao pagamento do dano. As viaturas avaliam-se pela idade, não apenas ao ano, mas ao mês. É para isso, que as chapas de matrícula contêm o ano e o mês de fabrico. Quem já trocou ou presenciou um negócio de automóveis não desconhece que o valor dos automóveis não se afere pelo número de quilómetros percorridos, mas pela idade. Nem se diga que a causa, o contrato de compra e venda que deixou de existir, e que daí resulta o benefício auferido pelo recorrido. Essa asserção não corresponde aos factos provados. É verdade que o contrato de compra e venda deixou de existir, mas também é certo que o uso decorreu apenas durante o período em que vigorou o contrato. Quando foi resolvido o recorrente entregou o preço, e recebeu de volta a viatura que lhe foi entregue sem dano, apenas com o uso normal que lhe foi imposto pela recorrente (art.ºs 289º e 290.º do CC). O enriquecimento resultante de uma causa que deixou de existir, verifica-se em situações bem deferentes. É o caso do segurado de uma viatura contra o roubo, que recebe o prémio correspondente ao valor segurado e entretanto aparece a viatura ou o caso da antecipação da prestação em relação a um contrato que se extinguiu antes do cumprimento - Prof.º Almeida e Costa - Direito das Obrigações, pgs. 441e segs., 7.ª Edição – Almedina - Coimbra. É a vendedora que deve suportar a desvalorização da viatura, uma vez que se recusou a recebê-la logo no dia seguinte à entrega dela ao recorrido, pelo que o dano daí resultante deve ser suportado pela lesante e não pelo lesado. No enriquecimento sem causa tem de haver um enriquecido e não se vê que o recorrido por ter utilizado a sua viatura desconforme com o contrato, sem as características de que necessitava para o uso pleno, cujo preço pagou à recorrente, se possa considerar enriquecido. Quanto ao empobrecimento da recorrente, consequente da desvalorização da viatura que lhe foi restituída, resulta da prática de um acto ilícito culposo, por ela provocado e mantido até à decisão final, pelo que, deve suportar os danos dele decorrentes. A desvalorização da viatura pelo uso de 4 anos e oito meses, em consequência do incumprimento do contrato pelo vendedor, que levou à resolução do contrato por acórdão deste Tribunal, não é da responsabilidade do consumidor, mas do vendedor-lesante. Enquadra-se no âmbito da responsabilidade do produtor pela venda de coisas defeituosas ou se não se entender desse modo, no âmbito dos riscos inerentes ao comércio jurídico, que corre por conta do vendedor. Por tudo o que se deixa dito, não existe no caso em apreciação qualquer enriquecimento sem causa por parte do recorrido/Cruz. Por outro lado, o recorrente/Cruz, não praticou nenhum facto ilícito, por usar a sua viatura, enquanto esperava que a vendedora lha substituísse por outra em conformidade. Não comete facto ilícito o dono dos bens quando os usa em termos normais, mesmo que o contrato venha a ser resolvido mais tarde por se ter reconhecido que os bens vendidos têm defeito, ou são desconformes com o contrato de compra e venda celebrado. Só existiria facto ilícito se o dono da viatura a tivesse usado de forma irregular, produzindo nela danos consequentes do mau uso. Concluindo: - O Cruz não cometeu qualquer facto ilícito, apenas usou regularmente a viatura enquanto seu proprietário, não tendo por isso, responsabilidade pela desvalorização dela; - Os danos consequentes da desvalorização pelo uso do veículo que não satisfaz os fins para que foi adquirido pelo comprador, devem ser suportados pela vendedora, porque vendeu um bem defeituoso, desconforme com o contrato que não quis substituir por outro forçando o comprador a mantê-la até que as instâncias e este Tribunal a condenou a entregar uma viatura nova ou o valor correspondente, sem dedução do valor do uso e antiguidade; - Não houve enriquecimento sem causa pelo uso da viatura com defeito (desconforme com o contrato); - Deve ser a recorrente/J... a suportar o enriquecimento decorrente do uso. Revogava o acórdão recorrido, julgava improcedente a acção, e em consequência, negava revista ao recurso da J...-Comércio de Veículos SA e concedia revista a Á...de L... F.... Cruz. José Gil de Jesus Roque |