Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4114/06.5YXLSB.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: DOCUMENTO AUTÊNTICO
ESCRITURA PÚBLICA
VALOR PROBATÓRIO
PAGAMENTO DO PREÇO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I- Como é Jurisprudência constante dos nossos Tribunais, designadamente deste Supremo Tribunal, a força probatória plena das escrituras não se estende à veracidade, realidade ou verosimilhança do conteúdo das declarações dos outorgantes nelas intervenientes, como inter alia decidiu o Acórdão deste Supremo, de 9-6-2005 (Pº 05B1417) de que foi Relator, o Exmº Conselheiro Ferreira de Almeida e onde se decidiu também que «o respectivo preço e pagamento só estarão cobertos pela força probatória plena do documento autêntico se o Notário tiver atestado esse facto através de percepção sua (directa), ou seja que tal pagamento haja sido feito na sua presença» (disponível em www.dgsi.pt).
II- Assim, apenas nos casos em que o valor do preço tenha sido pago ao vendedor na presença do Oficial dotado de fé pública (documentador), de modo a este aperceber-se dos actos praticados na sua presença ( ex propriis sensibus, visus et auditus, como diziam os antigos), é que o pagamento e o montante do preço são abrangidos pelo valor de prova plena da referida escritura.
Decisão Texto Integral:
RELATÓRIO

AA - Mediação Imobiliária, Lda. intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo sumário, contra BB e mulher CC, todos com os sinais dos autos, pedindo que os Réus fossem condenados a pagar-lhe a quantia de €12.780,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, a contar de 2/08/06 até integral pagamento, alegando, em síntese que, no exercício da sua actividade de mediação imobiliária, foi contactada pelos Réus para encontrarem um comprador para um prédio destes.
Que os adquirentes do prédio foram apresentados aos Réus por uma vendedora da Autora;
Que o Réu, após a concretização da venda, informou que o preço da mesma foi de €360.000, donde resultava uma remuneração para a Autora de €18.000, a que acresce o IVA; os Réus só pagaram a quantia de € 9.000.
Citados, os Réus contestaram, e deduziram reconvenção, alegando que a Autora não apresentou aos Réus quaisquer potenciais compradores e o imóvel foi vendido por € 250.000.
Que após a celebração do contrato promessa, o Réu entregou à Autora a quantia de €9.000, que se destinava ao pagamento da remuneração, e que se destinava a ser pago caso o negócio viesse a ser concretizado.
Esse pagamento foi feito nessa convicção.
Concluem pela absolvição do pedido e pela condenação da Autora a pagar-lhes a quantia de € 9.000, acrescida de juros.
Após a legal tramitação, procedeu-se à audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção e improcedente a reconvenção e, em consequência, condenou os Réus a pagarem à Autora a quantia de € 6.125,00, acrescida de juros vencidos desde 2/08/2006 até à data da sentença, às taxas sucessivas de 9,83%, 10,58%, 11,07% e 11,2% ao ano, e dos juros vincendos, até integral pagamento, à taxa de juros supletiva aos créditos de empresas comerciais.


Inconformados, recorreram ambas as partes, da sentença proferida, para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo os Réus interposto recurso principal e a Autora recurso subordinado da referida decisão.
A Relação julgou improcedente o recurso principal interposto pelos Réus e procedente o recurso subordinado da Autora, e, em consequência, revogou a sentença sob recurso, na parte recorrida, condenando os Réus a pagarem àquela, a quantia de € 12 780,00 ( doze mil, setecentos e oitenta euros), mantendo-se, no mais, a sentença recorrida ( condenação dos RR nos juros de mora, nas taxas e datas referidas, mas a calcular sobre o montante de € 12 780,00).
Irresignados, os Réus vieram interpor recurso de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as suas alegações, com as seguintes:

CONCLUSÕES

A) A A, interpôs recurso subordinado da sentença da 1a instância considerando o valor da sua remuneração deveria ser sobre € 360.000,00 e não sobre o valor de € 250.000,00.

B) Nos termos do preceituado nos art°s 660° n° 2, 684° n° 3 e 690° n° l do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição desse Tribunal.

C) Nas suas conclusões, a A. não pede a alteração da matéria de facto dada como provada, até porque entende que não logrou provar que o preço real do imóvel não fosse aquele foi declarado na escritura pública de compra e venda junta aos autos.

D) O Tribunal da 1a instância deu como não provado o quesito 23 a saber: «Os RR. venderam a moradia dos autos a DD pelo preço de 360.000.00 €»?

E) O Venerando Tribunal da Relação não alterou a matéria de facto dada como provada ao abrigo do artigo 712° do C.P.C.

F) Ignorando a matéria de facto dada como provada, o acórdão recorrido considerou que a A. alegou e provou que o valor real do imóvel era de € 360.000,00.

G) Condenando os RR. no pagamento da quantia de € 12.780,00 ( 5% sobre € 360.000,00) acrescida de juros.

H) Nos termos da al. b) do n.° 2 do art° 669° do C.P.C, os recorrentes podem requerer a reforma do acórdão, quando do processo constem elementos que por si só impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.

I) Pelas razões atrás expostas, os recorrentes requerem ao abrigo do n° 3 do art. 669° do C.P.C, a reforma do acórdão requerido.

J) Em qualquer caso, e na hipótese de se entender que não se verificam os pressupostos de que depende a possibilidade de reforma do acórdão, deve o mesmo ser revogado e o recurso subordinado interposto pelo A. ser julgado improcedente.

I) Pois, ao decidir conforme o fez no acórdão ora recorrido, o Venerando Tribunal da Relação violou as normas previstas nos art°s 342° e 363° e seguintes do Código Civil.

Não foram apresentadas contra-alegações no presente recurso.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal


FUNDAMENTOS

Das instâncias, vem dada, como provada, a seguinte factualidade:

A) A Autora é uma empresa que se dedica à actividade de mediação imobiliária, sendo detentora da licença AMI n° 5177, emitida pelo Instituto dos Mercados de Obras Publicas e Particulares e do Imobiliário (IMQPPI), estando integrada como agência no grupo RE/MAX (alínea A) dos Factos Provados).

B) Os Réus eram donos de uma moradia sita na Rua .................., n° ...., no Bairro de Santa II, em Benfica, cidade de Lisboa (alínea B) dos Factos Provados).

C) Os Réus procuraram os serviços da Autora para conseguirem encontrar comprador para a moradia de que eram donos e que pretendiam vender (alínea C) dos Factos Provados).

D) Em 6 de Janeiro de 2005, os gerentes da Autora, EE e FF, e os Réus, celebraram o acordo escrito de fls. 8/9, nos termos do qual, além do mais, a Autora se comprometeu, como mediadora e através dos seus agentes imobiliários (vendedores), a diligenciar pela venda da moradia dos Réus, em regime de exclusividade, pelo prazo, automaticamente renovável, de seis meses, a contar de 6 de Janeiro de 2005 (alínea D) dos Factos Provados)

E) Os Réus, por seu turno, obrigaram-se a pagar à Autora, no caso de os serviços desta conseguirem um interessado no negócio, uma remuneração dos serviços prestados, a quantia de 5% (cinco por cento), calculada sobre o preço de venda, acrescida de IVA (alínea E) dos Factos Provados).

F) A Autora, através dos seus vendedores, elaborou uma descrição completa das características da moradia e efectuou um levantamento fotográfico do respectivo interior e exterior, tendo publicitado o negócio através da colocação de todos esses elementos na rede de produtos disponíveis para venda no sitio informático da cadeia RE/MAX, de que a Autora faz parte, tendo uma das suas vendedoras, HH, passado a mostrar e divulgar a moradia aos potenciais compradores que foram surgindo (alínea F) dos Factos Provados).

G) Não foi possível proceder à venda da moradia até 06/07/2005, mas nenhuma das partes comunicou à outra a vontade de terminar o acordo a que se alude em D) (alínea G) dos Factos Provados).

H) Após 6/7/2005, os serviços da Autora prosseguiram as diligências para conseguir encontrar um interessado no negócio, tendo a moradia continuado a ser mostrada a vários possíveis compradores (alínea H) dos Factos Provados).

I) Em Agosto de 2005, os Réus vieram a fechar negócio com DD e esposa, GG (alínea I) dos Factos Provados).

J) O Réu marido entregou à Autora, em Agosto de 2005, a quantia de € 9.000,00
(nove mil euros) (alínea J) dos Factos Provados).

L) No dia 9 de Novembro de 2005, os Réus e DD, celebraram a escritura pública de compra e venda de fls. 61 a 64, através da qual os primeiros declararam vender ao segundo a moradia a que se alude em B), pelo preço de 250.000,00€ {duzentos e cinquenta mil euros}, que declararam ter já recebido (alínea L) dos Factos Provados).

M) Em 24/5/2005, DD e a esposa foram atendidos na loja da Autora pela vendedora HH (resposta ao quesito 1°).

N) Como manifestaram interesse na moradia em causa, foi de imediato marcada uma visita para o dia seguinte (resposta ao quesito 2°).

O) DD e a esposa visitaram a moradia no dia 25/5/2005, acompanhados pela referida vendedora e por outra vendedora da Autora, de nome II (resposta ao quesito 3°).


P) Após a concretização da venda, o Réu marido esteve por duas vezes nas instalações da Autora, para fazer contas, tendo informado que o preço de venda fora de 360.000,00€ (trezentos e sessenta mil euros) (resposta ao quesito 4°).

Q) A Autora remeteu ao Réu marido a factura de fls. 10, no valor total de 21.780€ (vinte e um mil, setecentos e oitenta euros) (resposta ao quesito 5°).

R) Nem a vendedora HH, nem qualquer outra vendedora da Autora mencionaram o nome ou quaisquer outros dados relativos a pessoas que se tenham mostrado interessadas na aquisição da moradia até Março/Abril de 2005 (resposta ao quesito 7°).

S) O Réu marido alertou o sócio-gerente da Autora, FF, para o facto de não estar a ter "feed-back" das visitas efectuadas à moradia na altura referida na alínea R) (resposta ao quesito 8°).

T) Em Agosto de 2005, os Réus foram contactados telefonicamente por DD e a esposa GG, que se mostraram interessados na aquisição da referida moradia (resposta ao quesito 9°).

U) DD dirigiu-se à comissão de moradores do bairro onde se situa o imóvel, a fim de indagar da situação da moradia, designadamente quanto à problemática da passagem da CRIL junto ao Bairro de Santa II, com eventuais processos de expropriação (resposta ao quesito 10°).

V) A redacção do contrato-promessa e a deslocação ao cartório notarial para reconhecimento das assinaturas foram realizadas pelos Réus sem a participação ou suporte da Autora ou de qualquer vendedora ao seu serviço (resposta ao quesito 13°).

X) Uma das vendedoras da Autora alertou para o facto de o Réu ter dívidas e de estar prevista a passagem de um troço de estrada mesmo por detrás da referida moradia (resposta ao quesito 16°).

Z) Os compradores tiveram dúvidas sobre o negócio em causa e desistiram uns tempos do mesmo (resposta ao quesito 17°).

AA) Algum tempo mais tarde, no princípio de Agosto de 2005, ao tomar conhecimento de que a casa se encontrava à venda, DD entrou em contacto com o Réu marido para se informar sobre todos os aspectos do negócio (resposta ao quesito 18°).

BB) O Réu marido deslocou-se às instalações da Autora para informar a vendedora HH da venda da casa {resposta ao quesito 20°).

CC) E nessa altura entregou a quantia de 9.000,00 € referida em E) (resposta ao quesito 21°).

DD) A quantia de € 9.000,00 destinava-se ao pagamento de uma remuneração pelos serviços prestados pela Autora quanto às diligências que fez para venda da moradia (resposta ao quesito 22°).

Diz-se no Acórdão recorrido: «sendo que o montante da indemnização era fixado sobre o valor da venda do imóvel, a Autora veio impugnar a decisão sob recurso referindo que o cálculo deveria ser sobre o valor de € 360 000,00 (valor que o Réu comunicou que havia sido o preço e sobre o qual foi emitida a factura) e não sobre o valor de € 250 000,00, como foi decidido na decisão recorrida»
Com base em tal perspectiva, a Relação entendeu que o preço da venda do imóvel foi, efectivamente, de € 360 000,00, e não o que consta da escritura pública do contrato de compra e venda que é de € 250 000,00.
Para tanto, louvou-se no facto provado de o Réu ter dito que era por aquele preço que tinha vendido a moradia de que tratam os autos.
Desta forma, como afirmam os próprios Recorrentes «o presente recurso está circunscrito à parte do acórdão que considerou que a A. tem a receber dos RR, a título de comissão, o valor equivalente à percentagem de 5% calculado sobre € 360.000,00», isto porque, os Recorrentes sustentam que o preço a considerar, como base da incidência da aludida percentagem de comissão, é o que consta da escritura de compra e venda do imóvel (250 000 euros) e não o que foi considerado pela Relação ( 360 000 euros).
Convém ainda dizer que os Recorrentes, nas alegações do presente recurso de Revista, pedem a reforma do Acórdão recorrido, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 2 e nº 3 do artº 669º do CPC.
Nessa conformidade e de harmonia com o disposto nos nºs 3 do falado artº 669º, 4 do artº 668º e ainda artº 744º do CPP, foi proferido, em conferência, acórdão que manteve a decisão.
Dito isto, passemos, então, a conhecer do objecto do presente recurso!

Desde logo, salientemos que a solução da questão levantada emergirá necessariamente da análise da factualidade provada e, neste caso, importa relembrar que ao Supremo Tribunal de Justiça está, por via de regra, vedado, alterar a matéria de facto fixada pelas Instâncias, designadamente sindicando o eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, nos termos do artº 722º nº 2 do CPC.
Porém, como qualquer regra, também esta comporta excepções, que são, justamente, as assinaladas na parte final do referido preceito legal, ou seja, os casos em que haja ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
No caso vertente, o acórdão recorrido, pondo em dúvida a veracidade do preço declarado na escritura de compra e venda, que foi de 250 mil euros, fixou tal valor em 360.000 euros, que foi o que o ora Recorrente marido declarou nas instalações da Autora/ ora Recorrida, conforme a 1ª Instância deu como provado no facto sob a letra P) do seguinte teor:

«P) Após a concretização da venda, o Réu marido esteve por duas vezes nas instalações da Autora, para fazer contas, tendo informado que o preço de venda fora de € 360.000,00 (trezentos e sessenta mil euros) (resposta ao quesito 4°)»

Estribam-se os Recorrentes na circunstância de a escritura pública de compra e venda ser um documento autêntico e, como tal, ser dotado de força probatória plena, nos termos do artº 371º, nº 1 do C.Civil, pelo que faz prova plena das declarações dele constantes.
Ora é Jurisprudência constante dos nossos Tribunais, designadamente deste Supremo Tribunal, que a força probatória plena das escrituras não se estende à veracidade, realidade ou verosimilhança das declarações dos outorgantes intervenientes, como inter alia decidiu o Acórdão deste Supremo, de 9-6-2005 (Pº 05B1417) de que foi Relator, o Exmº Conselheiro Ferreira de Almeida e onde se decidiu também que «o respectivo preço e pagamento só estarão cobertos pela força probatória plena do documento autêntico se o Notário tiver atestado esse facto através de percepção sua (directa), ou seja que tal pagamento haja sido feito na sua presença» (disponível em www.dgsi.pt).
Também no Acórdão da Relação de Coimbra de 2-2-1993 se considerou que «as escrituras, como documentos autênticos, fazem prova plena dos factos nelas referidos como praticados pela autoridade e quanto aos factos mencionados com base nas percepções da entidade documentadora, mas essa força probatória não abrange o conteúdo das declarações dos outorgantes ( se o terreno é de cultura ou para construção, se o preço consignado é ou não real, qual a área do prédio, etc.)» ( BMJ, 424º, 661).
Não vemos razões válidas suficientes para divergir de tal rumo jurisprudencial, pelo que, não sendo caso de aplicação, no presente recurso, do disposto na parte final do artº 722º do CPC, não cabe nos poderes do Supremo Tribunal de Justiça, censurar a modificação da decisão de facto operada pela Relação, ao abrigo da 1ª parte da alínea a) do nº 1 do artº 712º do CPC, nem sobre a fixação dos factos materiais ou sobre os juízos de apreciação formulados sobre os mesmos.
Nesta conformidade, fatalmente improcede o recurso interposto.


DECISÃO

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando o Acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes.

Processado e revisto pelo Relator.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 4 de Fevereiro de 2010

Álvaro Rodrigues (Relator)
Santos Bernardino
Bettencourt de Faria