Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B839
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
FALTA DE MOTIVAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
CUMPRIMENTO IMPERFEITO
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: SJ200505050008397
Data do Acordão: 05/05/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 4907/04
Data: 11/15/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: PROVIDO PARCIAL.
Sumário : 1. A falta de motivação a que alude a alínea b) do nº 1 do art. 668º do Código de Processo Civil, motivo de nulidade da decisão, é a total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afecta o valor legal da sentença.
2. A nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do mesmo artigo 668, directamente relacionada com o comando do art. 660º, nº 2, servindo de cominação ao seu desrespeito, só existe quando a sentença deixa de conhecer de questões que devia decidir e não também quando apenas deixa de se pronunciar acerca de razões ou argumentos produzidos na defesa das teses em presença.
3. Quando a obrigação incumprida pelo devedor tem por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode exigir a restituição da sua prestação por inteiro.
4. No caso de incumprimento contratual (ao cumprimento defeituoso aplica-se o mesmo regime) a indemnização a pagar pelo devedor inadimplente visa ressarcir o denominado interesse contratual positivo, isto é, a colocar o credor na situação patrimonial em que estaria se o contrato houvesse sido cumprido.
5. O artigo 563º do Código Civil consagrou, quanto ao nexo de causalidade, a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa de Enneccerus-Lehman, nos termos da qual a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias.
6. Para a verificação do nexo, não é necessária uma causalidade directa (do tipo causa-efeito), bastando-se a nossa lei com uma causalidade indirecta (o autor da lesão é responsável por todos os danos ulteriores que eram de esperar segundo o curso normal das coisas, ou foram especialmente favorecidos pela conduta do agente quer na sua própria verificação quer na sua actuação concreta em relação ao dano de que se trata).
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" - Serviços Informáticos, L.da" intentou, no Tribunal Cível do Porto, acção declarativa de condenação com processo ordinário contra ""B", L.da", pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de 92.362,50 Euros, acrescida dos juros de mora; subsidiariamente pede a restituição da quantia de 90.000,00 Euros, a título de enriquecimento sem causa, também acrescida de juros de mora.

Alegou, em síntese, ter, na sequência de contrato celebrado, vendido à ré licenças de aplicações informáticas, não tendo esta pago a totalidade do preço e, relativamente à quantia parcial de 90.000 Euros que pagou, ter obtido ilegitimamente a respectiva devolução.

Citada a ré contestou, impugnando os factos vertidos pela autora.
Deduziu reconvenção pedindo a condenação da autora no pagamento de 20.596,02 Euros, com juros de mora, a título de indemnização por incumprimento do contrato acima referido; de 59.995,41 Euros, com juros de mora, por perda de incentivo financeiro; da quantia de 73.259,07 Euros pelo prejuízo causado com o investimento frustrado com hardware e sistemas operativos; e no pagamento de quantia, a liquidar em execução de sentença, por danos emergentes e lucros cessantes.

Findos os articulados foi exarado despacho saneador e seleccionada a matéria de facto assente e controvertida, procedendo-se depois, a julgamento, com decisão acerca da matéria constante da base instrutória.

Foi, posteriormente, proferida sentença que decidiu:
a) - julgar a acção improcedente e absolver a ré do pedido naquela formulado;
b) - julgar a reconvenção parcialmente procedente e condenar a autora a pagar à ré, a título de indemnização, a quantia de 76.193,14 Euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da notificação da reconvenção;
c) - condenar ainda a autora a pagar à ré, nos termos acima apontados, a quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença.

Inconformada apelou a autora, sem êxito, uma vez que o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão de 15 de Novembro de 2004, julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.

Interpôs, agora, a autora recurso de revista, pretendendo que:

a) julgadas procedentes as invocadas nulidades, deverá o STJ decretar a anulação do acórdão recorrido e a devolução do processo ao Tribunal da Relação, a fim de que este decida novamente, reformando a decisão primitiva sem as nulidades que a inquinam;

b) em virtude da alegada violação da lei substantiva, deve ser revogada a confirmação pela Relação da condenação da autora a indemnizar a ré pelos prejuízos decorrentes da não obtenção do financiamento SIPIE, decretando-se a correspondente absolvição da autora, ou, subsidiariamente, limitando-se a condenação da autora ao pagamento de 23.722,83 Euros, a título de indemnização total pela perda de subsídios do SIPIE.

Em contra-alegações pugna a recorrida pela manutenção do acórdão impugnado.

Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, corridos os vistos, cumpre decidir.
Nas alegações do recurso o recorrente formulou as conclusões seguintes (sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):

Violação da lei de processo

1. O não uso lato sensu pela Relação dos poderes de reapreciação da matéria de facto, a omissão de conhecer de facto, envolvendo postergação da lei processual e dos direitos da recorrente, é sindicável e censurável por este Supremo Tribunal.
2. Acontece que a Relação teceu considerações puramente abstractas acerca do princípio da livre apreciação da prova, foi antecipando a conclusão de que não há razões para alterar a decisão sobre a matéria de facto, e em 17 linhas, acenou ao de leve aos 9 concretos pontos de facto impugnados pela apelante, as únicas linhas que permitem identificar com esta causa a fundamentação da decisão do recurso sobre matéria de facto.

3. Girando sempre em volta de um axioma: o Juiz da 1ª instância é quem se encontra em melhor posição para avaliar e decidir quanto ao valor a atribuir a determinado depoimento, não sendo possível à Relação, através da gravação (ou transcrição), reapreciar o processo como o julgador formulou a sua convicção, pelo que, em princípio e salvo casos muito excepcionais (os previstos na redacção do art° 712° do CPC anterior a 1995), o Juiz de 1ª instância é soberano no seu julgamento em matéria de facto.

4. Sustentando uma visão arcaica da oralidade, da imediação e do princípio segundo o qual o tribunal aprecia livremente a prova, decidindo segundo a sua prudente convicção; uma visão que rói a exigência do uso da razão e do exame crítico e objectivo como critério e fundamento da apreciação da prova e da decisão sobre os factos, sobrevalorizando impressões de matriz sensorial na prova testemunhal, e desvalorizando a análise metódica da consistência intrínseca (verosimilhança) e extrínseca (por comparação com outras provas) do depoimento.

5. E ignorando, com a repetidamente proclamada impotência da Relação para alterar a decisão da 1ª instância sobre matéria de facto, por falta de imediação e de oralidade, a função e a configuração do recurso de apelação quanto à matéria de facto.

6. Em síntese, o acórdão recorrido chegou à conclusão sintética de que não podia modificar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto sem especificar os concretos meios de prova e as concretas razões que fundamentam a sua decisão de confirmar o julgamento sobre os pontos de facto impugnados.

7. Na realidade, não há no acórdão recorrido verdadeira decisão da Relação atinente à matéria de facto, que manifestamente não reapreciou, há uma omissão, uma abstenção de realmente conhecer de facto, como lhe compete como Tribunal de 2ª instância, "assim postergando, de modo ostensivo, a lei processual e os direitos da parte em ver reapreciados os indicados e concretos pontos controvertidos incluídos na base instrutória".

8. Essa postergação representa uma clara "irregularidade" com manifesta influência "no exame e decisão da causa", o que consubstancia uma nulidade processual de que o Supremo Tribunal de Justiça pode conhecer e censurar - e aqui expressamente arguida pela recorrente.

9. E, como consequência natural da sua abstenção de realmente conhecer de facto, de se ter esquivado a reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações da recorrente, corno lhe comete o art. 712°, n° 2, do CPC, nem se pronunciou concretamente sobre os pontos de facto impugnados pela recorrente e sobre as provas cuja reapreciação lhe era solicitada, nem especificou os fundamentos de facto da sua decisão, substituindo o cumprimento desses deveres por considerações genéricas e universais sem qualquer densidade ou individualidade que as reporte ao caso concreto.

10. Nessa medida, e sem prejuízo da nulidade já anteriormente apontada, o acórdão recorrido é igualmente nulo - art. 668°, n° 1, b) e d), aplicável por força do art. 716°, ambos do CPC.

11. Por outra parte, sob a ténue aparência duma singular decisão de improcedência do recurso sobre matéria de facto interposto na apelação, o que o acórdão recorrido verdadeiramente manifesta é a sua oposição ao regime legal vigente em matéria de recurso da decisão da 1ª instância sobre matéria de facto, à existência de um verdadeiro 2° grau de jurisdição no âmbito da matéria de facto e à atribuição ao Tribunal de Relação da natureza de 2ª instância em matéria de facto, é a sua recusa de aplicação desse regime.

12. Nessa medida, é inconstitucional, viola os princípios constitucionais, próprios do Estado de Direito, da separação de poderes e da sujeição do tribunal à lei - arts. 111º e 203° da CR, 8°, n° 2, do CC e 3° e 4°, n° 1, da LOTJ99, e atenta, inconscientemente, contra a sua própria independência e autoridade, como poder independente dos demais, pois a sujeição à lei é indissociável dessa independência.

13. Dado o exposto, o acórdão recorrido não reapreciou a matéria de facto impugnada, pelo que deverá o Supremo Tribunal de Justiça decretar a sua anulação e a devolução do processo ao Tribunal da Relação, a fim de que este decida novamente, reformando a decisão primitiva sem as nulidades que a inquinam.

Recurso sobre matéria de direito

14. Não foi dado como provado que, no âmbito das relações comerciais entre a autora e a ré, esta tivesse contratado com aquela o fornecimento de software para a obtenção de um financiamento, apenas está dado como provado que a ré fez uma encomenda de software à autora e que esse software estava incluído pela ré num projecto de investimentos.

15. O acórdão recorrido ignora, pura e simplesmente, o argumento da apelante, tratando como um dado adquirido, sem discussão, o que aquela, na alegação, punha em causa - nulidade que expressamente se invoca - art. 668°, n° 1, d), por remissão do art° 716°, ambos do CPC.

16. Acontece que o acórdão recorrido, ao imitar a sentença da 1ª instância, incorre ainda noutro vício em que já ela incorrera: o de criar factos que não deve tomar em consideração, pois nem foram admitidos por acordo, nem provados por documentos ou por confissão escrita, nem os que deu como provados no julgamento da matéria de facto - art. 659°, n° 3, do CPC.

17. Deste modo, a Relação, na esteira da 1ª Instância, suprindo com uma não permitida ampliação o facto de só estar dado como provado que a ré fez uma encomenda de software à autora e que esse software estava incluído pela ré num projecto de investimentos, aplicou erradamente os arts. 798° e 562° do CC, cuja aplicação pressupõe a prova da existência de um contrato entre as partes nos termos do qual a autora se tivesse obrigado a entregar à ré licenças totalmente traduzidas e localizadas em determinada data e para esta dar cumprimento às condições de concessão de incentivos financeiros no âmbito do SIPIE.

18. Sem conceder, a perda de um incentivo ao investimento é uma consequência fortuita e atípica daquela suposta falta da autora, pelo que esta não é responsável pela sua ocorrência.

19. À luz dos factos dados como provados, o efeito natural e adequado do alegado incumprimento pela autora do fornecimento do produto pretendido pela ré é o cancelamento da encomenda e a restituição do que a ré tiver pago.

20. O acórdão recorrido, esquecendo as suas próprias referências doutrinais e jurisprudenciais, conclui erradamente que, se o não fornecimento dos produtos encomendados à autora motivou a perda do incentivo ao investimento, então é causa adequada à produção desse dano.

21. Dado o exposto, ao confirmar a condenação da autora a indemnizar a ré pelos prejuízos decorrentes da não obtenção do financiamento SIPIE, o acórdão recorrido interpreta e aplica erradamente a regra relativa à responsabilidade contratual contida no art. 798° do CC, em conjugação com o disposto no art. 563° do CC, afrontando o princípio do nexo de causalidade da obrigação de indemnizar.

22. Subsidiariamente, alegou ainda a autora perante o Tribunal da Relação que, no quadro dos factos dados como provados e da condenação da autora a indemnizar a ré pela perda de financiamento para os investimentos que fez, a sentença recorrida deveria ter condenado a autora unicamente em 23.722,83 Euros (40% dos investimentos que efectuou em hardware e outras despesas elegíveis), e não em 59.995,41 Euros, pois atribuindo à ré uma indemnização de 59.995,41 Euros, em vez de reparar o dano causado, isto é, de reconstituir a situação que existiria se não tivesse havido o alegado incumprimento da autora, a sentença recorrida promove o enriquecimento da ré, coloca-a numa posição mais favorável do que a que existiria sem o alegado incumprimento da autora.

23. Nos termos do contrato de concessão de incentivos, para receber o citado subsídio de 59.995,41 Euros, tinha de fazer uma despesa elegível de 149.998,50 Euros; nos termos da sentença do tribunal a quo recebe aqueles mesmos 59.995,41 Euros, fazendo uma despesa elegível de apenas 59.317,05 Euros.

24. A obrigação de indemnização destina-se a reconstituir a situação que existiria, se a autora não tivesse dado causa à perda do incentivo financeiro do SIPIE - art. 562° do CC.

25. Ora, a ré nunca estaria na situação de receber dinheiro sem realizar um investimento, não era candidata a ser financiada, no sentido de receber dinheiro para reforço dos seus capitais, era candidata a ser ajudada a realizar (suportar) um investimento, pelo que não estaria na situação de ter mais dinheiro em caixa, mas na situação de despender menos dinheiro com uma despesa de investimento.

26. Ao decidir assim, em vez de alterar a decisão da 1ª Instância e condenar a autora unicamente em 23.722,83 Euros, o acórdão recorrido prossegue na interpretação e na aplicação erradas do disposto no art. 798° do CC, desta vez em conjugação com o disposto nos arts. 562° e 566° do CC.

27. Ainda subsidiariamente, ao condenar a autora a indemnizar a ré pelo dano decorrente desta ter sido obrigada a cumprir com capital próprio as dívidas que constituiu para fazer face ao investimento, a sentença recorrida duplica a indemnização à ré pelo mesmo dano.

28. Com efeito, o alegado dano de diminuição de capitais próprios por ter perdido quantias que seriam atribuídas a título de subsídio já é reparado pelo pagamento à ré de tais quantias pela autora. O que esse pagamento já faz é reforçar os capitais da ré.

29. O acórdão recorrido, porém, ignora completamente os fundamentos invocados pela apelante, referindo-se sumariamente à condenação na quantia que vier a ser apurada em execução de sentença, pelo dano decorrente da ré ter sido obrigada a cumprir com capital próprio as dívidas que constituiu para fazer face ao investimento, como uma condenação relativa a lucros cessantes.

30. Assim, também nesta parte deve ser revogado o acórdão recorrido, pois esta decisão decorre novamente de uma errada interpretação e aplicação do disposto no art. 798° do CC, em conjugação com o disposto no art. 562° do CC.

31. Em síntese, a confirmação pela Relação da condenação da autora a indemnizar a ré pelos prejuízos decorrentes da não obtenção do financiamento SIPIE, afrontando o princípio do nexo de causalidade da obrigação de indemnizar, deve ser revogada.

32. Subsidiariamente, para a hipótese de se manter tal condenação, ela deve limitar-se ao pagamento de 23.722,83 Euros, a título de indemnização total pela perda de subsídios do STPIE.

O acórdão recorrido, negando a pretensão da então apelante de ver alterada a matéria de facto, deu como assente a seguinte factualidade:

i) - a autora tem como actividade a comercialização e o licenciamento em Portugal, directamente ou mediante acordos de distribuição com outras empresas, de aplicações informáticas produzidas ou distribuídas pela IFS EUROPE AB, e destinadas a utilizadores empresariais, incluindo a prestação de serviços de instalação e apoio aos utilizadores;
ii) - entre autora e ré foi celebrado um contrato de distribuição comercial através do qual ficou acordado a ré distribuir produtos fabricados ou distribuídos pela IFS EUROPE AB;
iii) - no âmbito de tal acordo a ré encomendou à autora as licenças de aplicações informáticas IFS e ORACLE identificadas nas facturas juntas a fls. 5 e 6, pelo preço global de 21.270.600$00 (106.097,31 Euros);
iv) - em Agosto de 2001 a ré entregou à autora a quantia de 3.090.600$00 correspondente ao IVA incluído no valor daquelas facturas;
v) - em 31/12/2001 a ré entregou à autora, mediante cheque, a quantia de 18.180.000$00, correspondente ao restante valor das facturas;
vi) - mediante cheque datado de 30/01/2002 a autora, através do seu gerente C, devolveu à ré, dos montantes referidos em iv) e v), a quantia de 90.000,00 Euros;
vii) - os produtos referidos em iii) destinavam-se a ser implementados pela ré como ferramentas de gestão administrativa e operacional da sua estrutura interna;
viii) - tal investimento destinava-se a dar cumprimento às condições de concessão de incentivos financeiros no âmbito do Sistema de Incentivos a Pequenas Iniciativas Empresariais (SIPIE), ao qual a ré se havia candidatado em 2000;
ix) - a autora não logrou localizar e traduzir os produtos encomendados, pelo que a ré pediu a devolução da quantia despendida, o que a autora cumpriu devolvendo a quantia referida em vi);
x) - no âmbito da candidatura referida em viii), foi atribuído à ré um incentivo no valor de 59.995,41 Euros, que aquela tomaria a fundo perdido;
xi) - o não fornecimento dos produtos encomendados à autora motivou a perda do direito a tal quantia;
xii) - com vista à utilização do software encomendado à autora, a ré fez um investimento em hardware e sistemas operativos no valor de 73.259,07 Euros;
xiii) - eram ainda condicionantes da aprovação da candidatura apresentada pela ré o reforço do capital social e a contratação de 4 trabalhadores sem termo;
xiv) - a perda da quantia atribuída a título de incentivo não reembolsável, que ascendia a 40% do investimento, obrigou a ré a cumprir com capital próprio as dívidas que constituiu para fazer face ao investimento;
xv) - o referido projecto tinha em vista todo o funcionamento da ré durante os 5 anos posteriores à celebração do contrato com o IAPMEI.

Sob a epígrafe "violação da lei de processo", tentada naturalmente a justificar a subsunção ao disposto no nº 2 do art. 722º do C.Proc.Civil, vem a recorrente - utilizando, aliás, larga e douta argumentação e aludindo, até, como vem sendo usual, à inconstitucionalidade - impugnar a decisão da Relação acerca da matéria de facto.

Ademais, e situando-se embora no mesmo âmbito da decisão de facto, imputa ao acórdão recorrido as nulidades de falta de especificação dos fundamentos de facto que justificam a decisão e de omissão de pronúncia (art. 668°, n° 1, b) e d), do C.Proc.Civil, ex vi do respectivo art. 716°).

Sustenta, para tal (sintetizamos) em primeiro lugar, que o acórdão recorrido chegou à conclusão simples de que não podia modificar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto sem especificar os concretos meios de prova e as concretas razões que fundamentam a sua decisão de confirmar o julgamento sobre os pontos de facto impugnados. Não há no acórdão recorrido verdadeira decisão da Relação atinente à matéria de facto, que manifestamente não reapreciou, assim postergando, de modo ostensivo, a lei processual e os direitos da parte em ver reapreciados os indicados e concretos pontos controvertidos incluídos na base instrutória.

Acrescenta, ainda, que, como consequência natural do facto de se ter abstido de reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações da recorrente, corno lhe cometia o art. 712°, n° 2, do C.Proc.Civil, bem como de se não ter pronunciado concretamente sobre os pontos de facto impugnados pela recorrente e sobre as provas cuja reapreciação lhe era solicitada, não especificou os fundamentos de facto da decisão, substituindo o cumprimento desses deveres por considerações genéricas e universais sem qualquer densidade ou individualidade que as reporte ao caso concreto.

Antes de entrarmos propriamente na análise da questão, impõe-se-nos esclarecer que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido (art. 729º, nº 1).

Aliás em termos explicitamente afirmados pelo art. 26º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro (1): "fora dos casos previstos na lei, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito".

E mais recentemente ainda pelo art. 712º, nº 6, segundo o qual "das decisões da Relação previstas nos números anteriores não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça".(2)

Com efeito, cabe às instâncias apurar a factualidade relevante, sendo que na definição da matéria fáctica necessária para a solução do litígio, cabe à Relação a última palavra.

Daí que, a tal propósito, a intervenção do Supremo Tribunal se apresente como residual e apenas destinada a averiguar da observância de regras de direito probatório material - artigo 722º, nº 2 - ou a mandar ampliar a decisão sobre matéria de facto - artigo 729º, nº 3. Aliás, não poderá esquecer-se que só à Relação compete censurar as respostas ao questionário através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 712º.(3)
Por isso, só excepcionalmente, no recurso de revista, havendo ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova, é que se admite que o STJ aprecie um eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido no acórdão da Relação de que se recorre (arts. 729º, nº 2 e 722º, nº 2).

Que o mesmo é dizer que "o STJ só conhece da matéria de facto em dois casos: o primeiro, para a hipótese de o tribunal recorrido ter dado como provado um facto sem que se tenha produzido a prova que, segundo a lei, é indispensável para demonstrar a sua existência; o segundo, quando se tenha desrespeitado as normas que regulam a força probatória dos diversos meios de prova admitidos no nosso sistema judicial".(4)

Sendo que, nesta situação excepcional figura, como unanimemente vem sendo entendido (5), o inadequado uso pela Relação da faculdade que lhe é conferida pelo nº 1 do art. 712º de alterar as respostas aos quesitos dadas pelo tribunal colectivo.

Mas não já, porque claramente contido nos poderes de apreciação definitiva da matéria de facto pela Relação, o não uso daquela faculdade, salvo na medida em que esse não uso possa traduzir a ofensa de disposição de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (art. 722º, nº 2). (6)
Em suma, não cabe a este STJ debruçar-se sobre o apuramento da matéria de facto quando tal tem lugar através do recurso a meios de prova livremente valoráveis pelo juiz de acordo com a convicção por ele formada.

E é certo que não estamos, in casu, perante nenhuma das situações em que o art. 722º, nº 2, permite ao STJ controlar a factualidade apurada, aliás sempre em função de meios de prova de valor legalmente determinado, pelo que, consequentemente, não existe a possibilidade de, neste momento, por este STJ, ser alterado o que, em sede de facto, foi decidido pela Relação.

Ademais, mau grado o esforço argumentativo da recorrente, não pode concluir-se, como pretende, que o acórdão recorrido enferma de qualquer nulidade.

Desde já se esclarece que "a falta de motivação a que alude a alínea b) do nº 1 do art. 668º é a total omissão dos fundamentos de facto ou de direito em que assenta a decisão; uma especificação dessa matéria apenas incompleta ou deficiente não afecta o valor legal da sentença". (7)

Por outro lado, a nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do mesmo artigo 668º, que é a nulidade mais frequentemente invocada nos tribunais pela confusão que constantemente se faz entre questões a decidir e argumentos produzidos na defesa das teses em presença "está directamente relacionada com o comando do art. 660º, nº 2 (o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação) servindo de cominação ao seu desrespeito".(8)

Ora, na (re)apreciação da matéria de facto o acórdão recorrido aludiu a todas as reais questões suscitadas pela apelante, fundamentando, aliás, com certa exaustão, a decisão que tomou de não alterar a matéria de facto tida como assente pela 1ª instância.

Claro que antecedeu a posição que veio a tomar de uma chamada especial para o significado da garantia de uma segunda jurisdição em sede de matéria de facto, citando até as próprias palavras do Preâmbulo do Dec.lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro. (9)

Mas concretizou, desde logo, os aspectos que constituíam a divergência da apelante, que teve a preocupação de enunciar ponto por ponto, se bem que haja entendido (sem dúvida justificadamente) que tendo a apelante praticamente impugnado toda a matéria de facto, pretendendo ver alteradas as respostas dos artigos 1º a 7º, 9º e 17º da Base Instrutória, o recurso por ela interposto se situava próximo e nos limites daquilo que a lei não permite, como seja a impugnação (genérica) de toda a matéria provada com a reapreciação (pura e simples) de toda a prova produzida. (10)

Não se limitou, todavia, a esta constatação: passou a analisar a decisão de facto da 1ª instância, aludindo, por vezes genericamente, à oposição da apelante, referindo mesmo que "ouvidos os depoimentos das testemunhas referidas na motivação do recurso bem como de todas as outras e ponderando os documentos juntos aos autos inclusive os apresentados nesta instância de recurso entendemos que não é possível alterar a matéria de facto dada como provada em 1ª instância. Não se vislumbram razões para que o depoimento das testemunhas indicadas pudesse conduzir a que se dessem como provados outros factos que não os que constam da decisão recorrida. Nem tais depoimentos ou os documentos invocados podem permitir que sejam dados como não provados os factos que foram dados como provados em primeira instância" (fls. 1857).

Naturalmente que o acórdão aludiu, aliás apoiado por prestigiada doutrina e jurisprudência, à profunda diferença entre a posição do juiz que, dirigindo a audiência, assiste à prestação dos depoimentos, ouvindo o que as testemunhas dizem e vendo como se comportam enquanto ouvem as perguntas que lhes são feitas e a elas respondem, e a outra, bem diversa, daquele que apenas tem perante si a transcrição, nas alegações, do teor dos depoimentos e a possibilidade de ouvir as respectivas gravações sonoras, concluindo, o que é inequívoco, que o juiz da 1ª instância é quem se encontra em melhor posição para avaliar e decidir quanto ao valor a atribuir a determinado depoimento (fls. 1858).

Mas tal significa, tão só, que não será qualquer simples indício que irá permitir ao tribunal superior alterar a decisão proferida por quem, directa e imediatamente, se apercebeu dos contornos da realidade por vezes complexa.

Está, pois, o acórdão recorrido, no que concerne à decisão de não alterar a matéria de facto, devidamente fundamentado, constatando-se claramente que se pronunciou sobre todas as questões suscitadas pela apelante.

Aliás, é isto mesmo que resulta da síntese que, após aturada análise do objecto do recurso, no âmbito da matéria de facto, se fez constar do acórdão em crise: "em resumo, a decisão recorrida está devidamente fundamentada e a factualidade provada e não provada não pode ser colocada em crise pelos depoimentos das invocadas testemunhas nem pelos documentos referidos, pelo que se impõe a improcedência da primeira questão arguida pela recorrente" (fls. 1859).

Em consequência, não enferma o acórdão de qualquer das nulidades que lhe vêm assacadas pela recorrente cujo recurso, nesta parte, manifestamente improcede.

Imputa, ainda, a recorrente, ao acórdão, agora já no âmbito do direito, a nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do art. 668º do C.Proc.Civil (desta vez supomos que por excesso de pronúncia) por ter dado como assente a existência de um contrato de fornecimento de software entre as partes nos termos do qual aquela se tivesse obrigado a entregar à ré licenças totalmente traduzidas e localizadas em determinada data e para esta dar cumprimento às condições de concessão de incentivos financeiros no âmbito do SIPIE, quando aquilo que, realmente, se provou foi apenas que a ré fez uma encomenda de software à autora e que esse software estava incluído pela ré num projecto de investimentos.

Mas tal nulidade, arguida com fundamento em raciocínio claramente viciado, não ocorre.

Se atentarmos na matéria de facto provada - sobretudo a enunciada sob os nºs ii) a v) - vemos que entre autora e ré foi celebrado um contrato de distribuição comercial através do qual ficou acordado a ré distribuir produtos fabricados ou distribuídos pela IFS EUROPE AB, acordo no âmbito do qual a ré encomendou à autora as licenças de aplicações informáticas IFS e ORACLE identificadas nas facturas juntas a fls. 5 e 6, pelo preço global de 21.270.600$00 (106.097,31 Euros).

Acresce que, em Agosto de 2001, a ré entregou à autora a quantia de 3.090.600$00 correspondente ao IVA incluído no valor daquelas facturas e que em 31/12/2001 a ré entregou à autora, mediante cheque, a quantia de 18.180.000$00, correspondente ao restante valor das facturas.

É óbvio que o contrato duradouro de distribuição comercial está patente, como de forma clara se mostra a existência de uma relação contratual concreta (compra e venda) relativamente às licenças de aplicações informáticas IFS e ORACLE, que a própria autora facturou em 29/06/2001, e cujo preço (embora mais tarde devolvido em parte, porque, porventura, a autora não procedeu à entrega devida ou porque o fez defeituosamente) recebeu em Dezembro de 2001.

Se qualquer dúvida houvesse, bastaria ler atentamente o contrato de distribuição celebrado (fls. 164 a 168, sobretudo no que respeita aos seus arts. 5º, nº 2, 6º, nº 1, 7º, nº 1 e 8º, nºs 1, 2 e 4).

Veja-se, aliás, que é a autora quem vem a juízo qualificar o negócio em causa, ao peticionar a condenação da ré a pagar-lhe, a título de parte por ela não paga do preço das licenças de aplicações informáticas que lhe comprou, a quantia de 92.362,50 Euros.

Se a ré encomendou e comprou à autora as licenças informáticas, se aquela as facturou e recebeu o preço, está demonstrada, de forma explícita, a existência de um verdadeiro negócio jurídico entre as partes, cuja clareza dispensava o tribunal de fazer referência à questão ora suscitada pela recorrente, tratando apenas, como efectivamente fez, dos efeitos desse contrato e das consequências do seu invocado incumprimento.

É, claramente, isto mesmo que o acórdão pretende referir quando pondera que é pacífica a existência de um contrato celebrado entre a autora e a ré que aquela não cumpriu (fls. 1860).

Nega, ainda, a recorrente, que exista entre a sua actuação e a perda pela ré de um incentivo ao investimento adequado nexo de causalidade, nos termos do art. 563º do C.Civil, tanto quanto é certo que aquela perda é uma consequência fortuita e atípica da suposta falta da autora, pelo que esta não é responsável pela sua ocorrência.

Sem embargo de ser, neste momento, líquido, que a autora deve restituir à ré a parte do preço que pagou e lhe não foi devolvida (16.097,73 Euros) na medida em que, não tendo obtido a prestação devida pela autora, pode esta, nos termos do art. 801º, nº 2, do C.Civil, se já a tiver realizado, pedir a sua restituição por inteiro, vejamos como solucionar a questão da indemnização, tanto quanto é verdade que "não há que ressarcir todos os danos que sobrevenham ao facto ilícito, mas tão só os que ele tenha na realidade ocasionado, os que se possam considerar pelo mesmo produzidos". (11)

Sabe-se, com efeito, que a verificação de um nexo de causalidade entre o facto e o dano constitui pressuposto da obrigação de indemnizar (quer no domínio da responsabilidade contratual quer no da responsabilidade extracontratual).

Retomaremos, para apreciação da questão suscitada, a matéria de facto, que para o caso releva, provada na acção:
- entre autora e ré foi celebrado um contrato de distribuição comercial através do qual ficou acordado a ré distribuir produtos fabricados ou distribuídos pela IFS EUROPE AB;
- no âmbito desse contrato a ré encomendou à autora as licenças de aplicações informáticas IFS e ORACLE identificadas nas facturas juntas a fls. 5 e 6, pelo preço global de 21.270.600$00 (106.097,31 Euros), que pagou;
- esses produtos destinavam-se a ser implementados pela ré como ferramentas de gestão administrativa e operacional da sua estrutura interna;
- a autora não logrou localizar e traduzir os produtos encomendados (obrigação constante do artigo 6º, nº 1, do contrato de distribuição) pelo que a ré pediu a devolução da quantia despendida, o que a autora cumpriu devolvendo a quantia de 90.000 Euros;
- tal investimento destinava-se a dar cumprimento às condições de concessão de incentivos financeiros no âmbito do Sistema de Incentivos a Pequenas Iniciativas Empresariais (SIPIE), ao qual a ré se havia candidatado em 2000 e no âmbito da qual foi atribuído à ré um incentivo no valor de 59.995,41 Euros, que esta tomaria a fundo perdido;
- o não fornecimento dos produtos encomendados à autora motivou a perda do direito a tal quantia;
- com vista à utilização do software encomendado à autora, a ré fez um investimento em hardware e sistemas operativos no valor de 73.259,07 Euros;
- eram ainda condicionantes da aprovação da candidatura apresentada pela ré o reforço do capital social e a contratação de 4 trabalhadores sem termo;
- a perda da quantia atribuída a título de incentivo não reembolsável, que ascendia a 40% do investimento, obrigou a ré a cumprir com capital próprio as dívidas que constituiu para fazer face ao investimento.
- o referido projecto tinha em vista todo o funcionamento da ré durante os 5 anos posteriores à celebração do contrato com o IAPMEI.

Quanto a esta questão, que se reporta à existência ou não de uma relação de causa e efeito entre o incumprimento contratual da autora e os danos que, eventualmente, hajam advindo para a ré da perda do incentivo financeiro a que se candidatara, constituiu pressuposto da obrigação de indemnizar a existência de um nexo de causalidade entre o facto e o dano, nexo que o art. 563º do C.Civil define quando diz que "a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão".

Ora, desde logo, face à redacção daquele art. 563º, pode-se considerar doutrina assente que na obrigação de indemnizar - de regime comum à responsabilidade civil contratual e extracontratual - não cabem todos os danos sobrevindos ao facto constitutivo de responsabilidade, exigindo-se entre o facto e o dano indemnizável um nexo mais apertado do que a simples coincidência ou sucessão cronológica. (12)

E, nesse âmbito, "o problema pode ser visto sob uma dupla perspectiva. Num aspecto positivo, quando se diz que o lesado, para obter a indemnização, tem de alegar e provar o nexo de causalidade entre o prejuízo e o facto a que a lei liga certa responsabilidade. Num aspecto negativo, para significar que o réu pode afastar a relação de causalidade que parecia envolvê-lo, provando-se a existência de uma causa estranha que lhe não é imputável". (13)

Assim equacionada a questão, resta acrescentar que o citado art. 563º consagrou, quanto ao nexo de causalidade, a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa de Enneccerus-Lehman, nos termos da qual "a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias".(14)

Esta doutrina, nomeadamente no que concerne à responsabilidade por facto ilícito culposo - contratual ou extracontratual - deve interpretar-se, porém, de forma mais ampla, com o sentido de que "o facto que actua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais" e de que a citada doutrina da causalidade adequada "não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o dano". (15)

Na verdade, se o agente produziu a causa donde resultou o dano, sem dúvida que a sua conduta é adequada ao resultado, mesmo que, concomitantemente com a sua conduta, haja a conduta de terceiros a concorrer para esse resultado ou, pelo menos, a não o evitar. Assim, "desde que o devedor ou o lesante praticou um facto ilícito, e este actuou como condição de certo dano, compreende-se a inversão do estado normal das coisas. Já se justifica que o prejuízo (embora devido a caso fortuito ou, em certos termos, à conduta de terceiro) recaia, em princípio, não sobre o titular do interesse atingido, mas sobre quem, agindo ilicitamente, criou a condição do dano". (16)

A situação factual descrita é, a nosso ver, claramente justificativa da conclusão a que chegaram as instâncias ao entenderem que, perante esses factos, tidos como provados, ficou demonstrada a existência de um nexo de causalidade adequada entre o facto de a autora não ter fornecido à ré o equipamento que esta lhe comprara, devidamente localizado e traduzido (situação que traduz o cumprimento não atempado e defeituoso por parte da recorrente, gerador da obrigação de indemnizar - arts. 798º e 804º, nº 1, do C.Civil), e esta não ter conseguido obter o incentivo que pretendia e a que se candidatara.


Com efeito, provou-se que o não fornecimento dos produtos encomendados à autora motivou a perda do direito ao valor do financiamento a fundo perdido que à ré havia sido concedido no âmbito do SIPIE (59.995,41 Euros).

O que significa, obviamente, que foi devido ao incumprimento contratual por banda da autora (que não colocou ao dispor da ré o software encomendado nas condições acordadas) que a ré não recebeu o incentivo ao investimento no montante de 59.995,41 Euros que já lhe havia sido atribuído a fundo perdido.

Dano esse que surgiu como consequência normal ou típica do facto, in casu, o incumprimento contratual da autora, sem a ocorrência de qualquer obstáculo de percurso susceptível de quebrar o nexo estabelecido.

Sendo que a esta conclusão não obsta o afirmar-se (e ter-se provado) que os produtos encomendados pela ré se destinavam a ser implementados como ferramentas de gestão administrativa e operacional da sua estrutura interna (sem prejuízo de também se destinarem ao projecto de investimento) tanto mais quanto é certo que, "para a verificação do nexo, não é necessária uma causalidade directa (do tipo causa-efeito), bastando-se a nossa lei com uma causalidade indirecta (o autor da lesão é responsável por todos os danos ulteriores que eram de esperar segundo o curso normal das coisas, ou foram especialmente favorecidos pela conduta do agente quer na sua própria verificação quer na sua actuação concreta em relação ao dano de que se trata)". (17)
Cremos, portanto, estar suficientemente demonstrada a existência de nexo de causalidade entre o facto da autora e os danos sofridos pela ré, pelo que, em consequência, improcede, neste aspecto, a pretensão da recorrente, restando confirmar, nomeadamente porque fez uma aplicação inteiramente correcta do disposto no art. 563º do C.Civil, a decisão recorrida.

Entende, ainda, a recorrente, agora quanto ao montante concreto da indemnização, que, constando do contrato de concessão de incentivos financeiros que a ré tinha, para receber o montante a fundo perdido de 59.995,41 Euros, de fazer uma despesa elegível de 149.998,50 Euros, lógico seria que, tendo feito apenas uma despesa elegível de 59.317,05 Euros, tão só poderia a autora ter sido condenada a pagar o montante de 23.722,83 Euros (40% dos investimentos que efectuou em hardware e outras despesas elegíveis), sob pena de injusto enriquecimento da ré, colocada numa posição mais favorável do que a que existiria sem o incumprimento da autora.

No entanto, independentemente da douta argumentação expendida nas alegações do recurso, é nosso entender que, também nesta parte, não é razoável a sua pretensão.


Já acima constatamos não ser necessária para verificação do nexo de causalidade uma causalidade directa (do tipo causa-efeito), bastando-se a nossa lei com uma causalidade indirecta (o autor da lesão é responsável por todos os danos ulteriores que eram de esperar segundo o curso normal das coisas, ou foram especialmente favorecidos pela conduta do agente quer na sua própria verificação quer na sua actuação concreta em relação ao dano de que se trata).

Doutro passo, estabelecendo genericamente o art. 798º do C.Civil que "o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor", refere já o art. 801º, nº 2, do mesmo diploma, que "tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro".

Ora, como a própria recorrente admite, em sede de incumprimento contratual (ao cumprimento defeituoso aplica-se o mesmo regime) a indemnização a pagar pelo devedor inadimplente tenderá a ressarcir o denominado interesse contratual positivo, isto é, a colocar o credor na situação patrimonial em que estaria se o contrato houvesse sido cumprido.

Ressalvados estes aspectos, há que atender aos princípios por que se rege a obrigação de indemnizar, sobretudo no que respeita à reconstituição natural e à denominada teoria da diferença.

Refere, com efeito, o art. 562º do C.Civil, que "quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação".

Sendo certo que, sempre que a reconstituição natural não é possível (o que acontece in casu) a indemnização é fixada em dinheiro e tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (art. 564º, nºs 1 e 2).

"A indemnização pecuniária deve manifestamente medir-se por uma diferença (por id quod interest, como diziam os glosadores) - pela diferença entre a situação (real) em que o facto deixou o lesado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria sem o dano sofrido". (18)
Ora, é bom de ver que - e não pode, nesta sede hipotizar-se novo pedido de entrega de material de software pela autora à ré (que, na devida altura, não foi correctamente fornecido) - a situação em que a ré se encontraria, neste momento, seria a de ver o seu património acrescido no montante do financiamento atribuído a fundo perdido pelo SIPIE, para cuja concessão fizera até já um investimento em hardware e sistemas operativos no valor de 73.259,07 Euros.

Revelam-se, por isso, indiferentes para a verificação do dano correspondente à perda do benefício de 59.995,41 Euros as demais condições estipuladas para a atribuição do subsídio à ré, porquanto, à partida, foi por força da actuação inadimplente da autora que ela ficou impossibilitada de satisfazer os requisitos necessários à concessão do financiamento a que se candidatara.

E assim - considerando o princípio da restauração natural e a teoria da diferença - foi aquele mesmo o dano sofrido pela ré, mau grado a argumentação artificiosa da recorrente que, apelando às percentagens do software e outras despesas elegíveis, é fruto de mero cálculo aritmético (abstracto) insusceptível de ser considerado na determinação do montante concreto da indemnização a arbitrar.

Não há, aliás, da parte da ré qualquer enriquecimento injusto na exacta medida em que, não fora a actuação inadimplente da autora, sempre teria recebido aquele financiamento de 59.995,41 Euros.

Situação que apenas revela o pagamento da autora à ré do equivalente ao que esta receberia (o incentivo ao investimento) se o contrato celebrado tivesse sido cumprido por aquela.

Alega, ainda, a recorrente que o acórdão recorrido, ao condená-la a indemnizar a ré (na quantia que vier a ser apurada em execução de sentença) pelo dano decorrente desta ter sido obrigada a cumprir com capital próprio as dívidas que constituiu para fazer face ao investimento, duplica a indemnização à ré pelo mesmo dano, uma vez que o dano de diminuição de capitais próprios por a ré ter perdido quantias que seriam atribuídas a título de subsídio já é reparado pelo pagamento à ré de tais quantias pela autora que, dessa forma, já vai reforçar os capitais da ré.

Afigura-se-nos, se não inteiramente pelos fundamentos que invoca, que lhe assiste razão.

Teve esta indemnização, segundo se afere do acórdão recorrido - que, neste âmbito não é muito claro - o objectivo de ressarcir o facto de a ré ter tido que cumprir com capital próprio as dívidas que constituiu para fazer face ao investimento (presumimos que aquele investimento de 73.259,07 Euros) que tinha em vista o financiamento da ré durante os cinco anos posteriores à elaboração do contrato com o IAPMEI.

Ora, se bem que de acordo com o artigo 564, nº 1 do Código Civil, o dever de indemnizar compreende tanto o prejuízo causado (danos emergentes) como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (lucros cessantes), certo é que constitui princípio da obrigação de indemnizar o de que o mesmo dano concreto não é passível de mais do que uma indemnização.

Todavia, a indemnização arbitrada à ré a este título reveste-se, a nosso ver, de uma ilegítima duplicação (por um lado, a devolução do preço do software defeituosamente fornecido e, por outro, a consideração de que, tendo sido pago, não foi fornecido).

Com efeito, através da decisão exarada nestes autos, foi considerado incumprido pela autora o contrato de fornecimento de software (cumprido defeituosamente) e determinado que esta devolvesse à ré o respectivo preço (apenas os 16.097,73 Euros restantes uma vez que 90.000 já tinham sido antes devolvidos).

Todavia, e concomitantemente, porque por falta do equipamento a ré perdeu o financiamento a fundo perdido a que se candidatara (59.995,41 Euros) foi também considerado o dano daí resultante e foi-lhe atribuída a correspondente indemnização.

Mostra-se, assim, a recorrida inteiramente ressarcida dos prejuízos que directamente e indirectamente (atento o dano do interesse contratual positivo) advieram do incumprimento do contrato celebrado com a recorrente.

É óbvio que ela recorreu, como teria que recorrer, a capitais próprios para cumprir as demais condições do acordo de financiamento com o SIPIE. Mas fê-lo, a começar com o investimento em hardware e sistemas operativos no valor de 73.259,07 Euros, naturalmente sem poder pretender que fosse a autora a suportar tal pagamento.

E não foi por causa da falta do software (de cujo preço já havia recebido 90.000 Euros) que ela fez tal investimento. Fê-lo porque era condição da atribuição do financiamento pelo IAPMEI.

E assim, com ou sem o acordo de fornecimento de software, sempre aquele investimento teria de ser feito pela ré, sob pena de não poder receber o financiamento concedido.

Consequentemente, colocar a ré na situação patrimonial hipotética em que se encontraria se o contrato tivesse sido cumprido pela autora, não suporta a indemnização de um custo (investimento) que, em qualquer caso, aquela teria feito.

Não existe, pois, adequado nexo de causalidade entre a inadimplência da autora e este investimento da ré, que sempre lhe seria necessário.

Cremos, portanto, que neste aspecto não pode manter-se o acórdão recorrido, porquanto, no contexto do incumprimento, se nos afigura não constituir dano ressarcível o simples facto de a recorrida ter utilizado capitais próprios para investir em hardware e sistemas operativos sem os quais o financiamento a que se candidatara lhe não seria concedido (a que acresce, com evidente relevo, o facto de ver o preço do software que pagara à autora ser-lhe totalmente restituído).

Pelo exposto, decide-se:
a) - julgar parcialmente procedente o recurso de revista interposto pela autora/reconvinda "A - Serviços Informáticos, L.da";
b) - revogar o acórdão recorrido, apenas na parte em que condenou a recorrente a pagar à ré "B, L.da", pelos danos advindos do investimento de capitais próprios, a quantia que se liquidar em execução de sentença, mantendo-o no demais;
c) - condenar ambas as partes nas custas da revista, na proporção de 5/6 pela autora e de 1/6 pela ré, bem como a suportarem, em igual percentagem as custas devidas nas instâncias.

Lisboa, 5 de Maio de 2005
Araújo Barros
Oliveira Barros
Salvador da Costa
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(1) Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.

(2) Aplicável já ao caso em apreço porquanto, aditada tal disposição pelo Dec.lei nº 375-A/99, de 20 de Setembro, a presente acção foi instaurada em 8 de Abril de 2003 (cfr. art. 8º, nº 2, daquele diploma).

(3) Acs. STJ de 22/11/94, no Proc. 85752, da 1ª secção (relator César Marques); de 30/01/97, no Proc. 751/96, da 2ª secção (relator Miranda Gusmão); de 31/03/98, no Proc. 265/98 da 1ª secção (relator Silva Paixão); e de 19/09/2002, no Proc. 2047/02, da 7ª secção (relator Miranda Gusmão).

(4) Ac. STJ de 03/03/98, no Processo 1008/97, da 2ª secção (relator Miranda Gusmão).

(5) Cfr. Acs. STJ de 22/11/90, no Processo 79631 (relator Cura Mariano); de 02/02/93, in CJSTJ Ano I, 1, pag. 117 (relator Fernando Fabião); de 15/03/94, in BMJ 435, pag. 750 (relator Fernando Fabião); e de 11/03/99, no Processo 89/99, da 1ª secção (relator Tomé de Carvalho).

(6) Acs. STJ de 29/02/2000, no Proc. 52/00 da 1ª secção (relator Machado Soares); de 11/10/2001, no Proc. 2492/01 da 7ª secção (relator Neves Ribeiro); e de 05/07/2001, no Proc. 1751/01 da 7ª secção (relator Miranda Gusmão).
(7) Rodrigues Bastos, "Notas ao Código de Processo Civil", vol. III, Lisboa, 1972, pag. 226.

(8) Rodrigues Bastos, obra e volume citados, pag. 227.

(9) Diploma que introduziu no Código de Processo Civil a norma do art. 690º-A.

(10) Cfr. fls. 1856.
(11) Almeida Costa, "Direito das Obrigações", 5ª edição, Coimbra, 1991, pag. 487.
(12) Cfr. Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1989, pag. 849.

(13) Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1989, pag. 851.

(14) Jorge Ribeiro de Faria, in "Direito das Obrigações", vol. I, Coimbra, 1987, pag. 502. Cfr. Ac. STJ de 08/02/2000, no Proc. 19/00 da 1ª secção (relator Afonso de Melo).

(15) Almeida Costa, ob. cit., pags. 632 e 633. Refere, a este propósito, Antunes Varela (obra e volume citados, pag. 865) que "do conceito de causalidade adequada pode extrair-se, desde logo, como corolário, que para que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano. Essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que, como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano".

(16) Antunes Varela, ob. e vol. cits., pag. 864.
(17) Pereira Coelho, in "Obrigações", Coimbra, 1967, pag. 166.

(18) Antunes Varela, "Das Obrigações em Geral", vol. I, 6ª edição, Coimbra, 1989, pag. 878.