Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2188/15.7T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
ACTUALIZAÇÃO DE RENDA
ATUALIZAÇÃO DE RENDA
INCONSTITUCIONALIDADE
ABUSO DO DIREITO
DECLARAÇÃO DE RENDIMENTOS
PROVA
IDADE
Data do Acordão: 03/17/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL / ARRENDAMENTO URBANO.
Doutrina:
- Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo IV, 373.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 7.ª edição, 19.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 334.º.
LEI N.º 6/2006, DE 27-02 (NRAU), COM A REDAÇÃO ORIGINAL, NÃO ALTERADA PELA LEI N.º 31/2012, DE 14-08: - ARTIGO 35.º, N.º5.
LEI N.º 79/2014, DE 19-01: - ARTIGOS 6.ºE 9.º.
Sumário :
I - De acordo com o disposto no artigo 35.º, n.º 5, do NRAU (na redação da Lei n.º 31/2012, de 14-08, anterior à Lei n.º 79/2014, de 19-12), o arrendatário deve fazer prova anual dos seus rendimentos perante o senhorio, no mês correspondente àquele em que invocar as circunstâncias reguladas no referido normativo, sob pena de não se poder prevalecer das limitações relativas à atualização do valor da renda.

II - Tal imposição ao arrendatário não viola o mínimo de certeza e de segurança que os cidadãos devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito, nem se apresenta como destituída de fundamento ou obedece a um critério legislativo manifestamente desrazoável e inadequado.

III - Ao invocar, inicialmente e aquando da oposição ao montante da atualização da renda proposta pelo senhorio, a limitação proveniente do seu rendimento anual bruto corrigido (RABC), a arrendatária não podia organizar a sua vida confiando que, durante os cinco anos em que essa limitação poderia vigorar, ela se manteria, independentemente dos rendimentos que viesse a auferir no futuro.

IV - A norma em apreço – não sendo susceptível de criar qualquer confusão ou incerteza que origine a aparência de que a não apresentação periódica do comprovativo dos rendimentos dentro do prazo fixado na lei não terá quaisquer consequências – não padece de inconstitucionalidade.

V - Porém, é abusivo e, portanto, ilegítimo, nos termos do art. 334.º do CC, o exercício do direito invocado pelo senhorio de ver cessada a limitação da atualização da renda com base na falta de apresentação tempestiva, por parte da arrendatária, do documento comprovativo da impossibilidade de apresentação da declaração de rendimentos emitida pela Autoridade Tributária, quando aquele sabia que tal declaração já tinha sido pedida e que a arrendatária, de acordo com os seus rendimentos, estava em condições de poder continuar a ter aquele benefício.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Em 2015.01.24, no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, AA instaurou contra BB - Investimentos imobiliários, S.A.. a presente ação declarativa e de condenação.


Pediu

- que fosse declarado que a autora cumpriu todas as sua obrigações contratuais e prazos legais em relação a um contrato de arrendamento em vigor desde 1971.10.01 e que a autora havia celebrado com a ré, esta como senhoria e aquela como arrendatária;

- que fosse declarada a manutenção da renda mensal em € 155,04, a qual tem sido paga mensalmente pela autora, e que, por isso, a autora nada deve à ré.

- que fosse condenada como responsável pelos danos causados à ré, em indemnização equitativa, a fixar em liquidação de sentença.


Alegou

 em resumo, que

- tomou de arrendamento, para habitação, à ré, em 1071.10.01, um apartamento para fins habitacionais, na cidade do Porto;

- em 2013.01.31, a Ré enviou uma carta à autora, visando a atualização da renda, ao que a ré respondeu, invocando a sua idade superior a 65 anos e o RABC do seu agregado familiar;

- todavia, a Autoridade Tributária entendeu que a declaração relativa ao RABC só poderia ser emitida após liquidação do IRS de 2012;

- a ré vem entendendo a autora não fez prova do seu rendimento pela apresentação anual do RABC, pelo que vem exigindo da autora uma renda de € 610,44, desde Abril de 2014.


Contestando

e também em resumo, a ré alegou que

- a comprovação anual do RABC, no ano de 2014, não foi efetuada, no tempo devido, pela autora, nem apresentou ela, nesse prazo, declaração de ter requerido o RABC;

- a entrada em vigor da Lei n°79/2014 de 19.12, não se aplica a situações passadas;

- aceitando-se que o RABC foi apresentado em prazo, ainda assim a renda devida ascenderia a € 180,55.


Em reconvenção, pediu que

- fosse declarado que a renda mensal devida atinge € 610,44;

- a autora fosse condenada no pagamento da totalidade das rendas em falta, acrescida de indemnização de 50% do valor devido, no total de € 8.197,20.

E, subsidiariamente, para o caso de se aceitar o RABC apresentado pela Autora

- que fosse declarado que a renda mensal devida atinge € 180,55, desde Abril de 2014.

- que a Autora fosse condenada no pagamento da totalidade das rendas em falta, acrescida de indemnização de 50% do valor devido, no total de € 459,18.


Em 2015.06.08, no despacho saneador, foi proferida sentença, em que se julgou a ação improcedente, por não provada, e procedente o pedido reconvencional, condenando a autora no pagamento da totalidade das rendas em falta, no montante mensal de € 610,44, acrescidas de indemnização no valor de 50% do devido, num total de € 8.197,20.


A autora apelou, com parcial êxito, pois a Relação do Porto, por acórdão de 2015.11.10, alterou a decisão recorrida pelo seguinte modo:

“Julgar parcialmente procedente, por provado, o recurso de apelação interposto e, em consequência, face à inconstitucionalidade declarada da interpretação efetuada da norma do art° 35° n°5 NRAU, na sua redação de 2012, revogar em parte a douta sentença recorrida, declarando agora, na procedência do pedido reconvencional subsidiário, que a renda mensal devida pela Autora ascende ao valor de € 180,55, desde Abril de 2014.


Inconformada, a ré deduziu a presente revista, apresentando as respectivas alegações e conclusões.

A recorrida contra alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.

Cumpre decidir.


As questões


Tendo em conta que

- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3 e 690º do Código de Processo Civil;

- nos recursos se apreciam questões e não razões;

- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido

são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:

A) - Inconstitucionalidade

B) – Abuso de direito.


Os factos


São os seguintes os factos que foram dados como provados nas instâncias:

1. A Ré é uma pessoa coletiva.

2. A Autora nasceu em 10.02.1923, tendo, por isso, a idade de 92 anos e o seu agregado familiar tem parcos recursos económicos.

3. Com data de 01.10.1971, a Autora assinou com a Ré, esta, na qualidade de senhorio, um contrato de arrendamento urbano de apartamento para fins habitacionais, sito na Av. …, n.º …, 65 Esq., 4300, Porto.

4. Com data de 31 de Janeiro de 2013, a Ré enviou uma missiva para a Autora com o fim de proceder à atualização da renda, com a pretensão de atualizar a renda do valor de 155,046 para 600,00€.

5. A Autora enviou resposta por escrito, em l3.02.2013, invocando a idade, o RABC do seu agregado familiar inferior a cinco retribuições mínimas nacionais e a sua idade superior a 65 anos.

6. Isto foi expressamente admitido e aceite pela missiva de 12 de Março, da Ré.

7. Com data de 18.03.2013, a Autora apresentou à Ré um documento da Autoridade Tributária que o RABC só poderia emitido após a liquidação de IRS de 2012.

8. Tendo a Autora, em 26.07.2013, entregue à Ré a declaração do rendimento anual bruto corrigido (RABC), emitida pela Autoridade Tributária, em 26.07.2013.

9. Com data de 13.05.2014, a Ré enviou nove missiva na qual refere que não foi cumprido o artigo 35°, n.º 5, do diploma aplicável, nomeadamente a apresentação da prova anual do RABC, procedendo à atualização do valor da renda para 610,44€, desde o mês de Abril de 2014.

10.  …tendo a Autora respondido com a apresentação de declaração da Autoridade Tributária, na qual é expressamente referenciado que só é possível emitir o RABC aquando da liquidação de IRS, o que aconteceu em 30.06.2014, conforme foi comunicado à Ré.

11. A Ré, em 11 de Julho de 2014, voltou a enviar nova carta à Autora, insistindo e mantendo a sua posição contrária à Autora

12. Após várias comunicações trocadas entre as partes, a Ré, em 10.10.2014 enviou à Autora uma nova missiva, na qual refere que não foram cumpridos os artigos 32° e 35°, n.º 5, ambos do diploma referido, e que não tendo o comprovativo de RABC sido entregue em Março de 2014, mês em que deve ser feita a prova anual do RABC, não poderia esta beneficiarmos mais da redução de renda.

13. Segundo a Ré, se fixaria, então, a renda cm 610,44€, desde Abril de 2014, até 10 de Outubro de 2014, encontrando-se cm dívida, pela Autora, segundo a Ré, a quantia global de 5.479,38€.

14. Por último enviou nova missiva, assim como seu patrono nomeado, porém, de nada serviu, mantendo a Ré a mesma postura.

15. Consta da certidão de RABC emitida pela Autoridade Tributária, "A presente declaração tem validade de um ano, devendo ser requerida nova emissão do documento comprovativo do valor do RABC do seu agregado familiar dentro deste prazo".

16. A renda atualizada proposta pela aqui Ré à autora, por carta de 31.01.2013, no valor mensal de 600,00 Euros, atendeu ao valor patrimonial do imóvel de €109.880,00 que teria uma renda mensal mínima de €610,44 (1/15/VPT).

17. A Autora a 13.02.2013, dentro do prazo de 30 dias opôs-se à atualização da renda nos termos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 4 do artigo 31.° invocando que:

18. tinha idade superior a 65 anos;

19. 0 seu agregado familiar possuía um rendimento anual bruto corrigido (RABC) inferior a 5 retribuições mínimas nacionais (€ 2.425,00).

20. Assim, tendo a Autora enviado à aqui Ré documento comprovativo emitido pelo serviço de finanças competente, do qual conste o valor do RABC do seu agregado familiar esta procedeu ao cálculo do valor mensal da renda conforme os critérios previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 35.° da Lei 6/2006, de 27 Fevereiro (NRAU), na redação que lhe foi dada pela Lei 31/2012 de 14 de Agosto, tendo o valor da renda mensal sido fixado em 155,04 Euros conforme carta remetida à Autora.

21. Tendo desde logo a aqui Ré, naquela missiva, alertado a Autora para o facto de ter quer ser feita prova anual do RABC.

22. A atualização da renda teve como fundamento o RABC do agregado familiar apresentado pela Autora, no valor de 9.193,06 Euros.

23. Em fevereiro de 2014, isto é no mês em que invocou os baixos rendimentos, a Autora não fez prova anual do rendimento perante o senhorio, não tendo tal acontecido, nem nesse mês nem nos meses seguintes, nem tendo apresentado um comprovativo do pedido do mesmo junto do serviço de finanças.

24. Nessa sequência, e face à referida falta de comprovação, em maio de 2014 a aqui Ré enviou a carta à Autora, junta como Doc.º n.º 9 com a PI informando-a de que, face à ausência da prova anual do rendimento, a partir do mês de abril de 2014 o valor da renda devida ascenderia a 610,14 Euros.

25. Correspondendo a referida renda a 1/15 do valor do locado que ascende a €109.880,00.

26. Na sequência desta missiva, e apenas a 17 de Junho de 2014, a Autora informou a aqui Ré que havia requerido a emissão da declaração de RABC.

27. A partir de Abril de 2014 a continuou apenas a proceder ao pagamento mensal de 155,04 Euros.


Os factos, o direito e o recurso


Na sentença recorrida julgou-se a ação improcedente porque se entendeu que a autora não tinha logrado demonstrar “tempestivamente, perante a ré, o seu rendimento, para os efeitos previstos no artigo 35º do NRAU, pelo que deixou de poder prevalecer-se de tal circunstância como fundamento de oposição ao aumento de renda, a partir de Abril de 2014 (data pretendida pela ré)”.

E julgou-se o pedido reconvencional procedente “ dado que a renda a considerar vigente, a partir de Abril de 2014 é, como pretende a ré, no valor de 610,44 € (…)”


No acórdão recorrido entendeu-se que “nada havia a opor à construção jurídica efetuada na douta sentença recorrida, fazendo apelo apenas à normas jus civilísticas atinentes”, mas que a interpretação dada ao disposto na alínea c) do nº2 do artigo 35º do Novo Regime de Arrendamento Urbano, com a redação inicial aprovada pela Lei 6/2006, de 27.02, e não alterada pela Lei 31/2012, de 14.08, era inconstitucional, pelo que a “face à citada inconstitucionalidade, a renda devida desde Abril de 2014 ascendia a € 180,55, atendendo ao valor do RABC de 2014 - € 12 744,35, e considerando um máximo de 17%, nos termos do art° 35° nº2 al.c-ii) NRAU,” sendo que “tal renda não deverá ser acrescida da indemnização de 50%, peticionada no pedido reconvencional subsidiário, por aplicação do disposto no art° 1041° n°1 do Código Civil, já que a autora/arrendatária não se encontrava nem encontra em mora, face ao montante que lhe foi exigido pela ré senhoria como renda (€ 610,44)”.


A ré recorrente entende que a disposição em causa não viola qualquer princípio constitucional, pelo que deve ser aplicada ao caso concreto em apreço e assim, condenada a autora nos termos peticionados na reconvenção.


Cremos que não tem razão, embora por motivos diferentes dos invocados no acórdão recorrido.


A) Inconstitucionalidade


Antes de mais, atentemos num resumo dos factos a ter em conta para a resolução da questão.

Em 1971, a autora, como arrendatária e a ré, como senhoria, celebraram um contrato de arrendamento de um apartamento para fins habitacionais daquela.

Em 2013.01.31, a ré comunicou à autora a sua pretensão de atualizar a renda de 155,46 € para 600,00 €, ao que a autora, em 2013.02.13, se opôs, invocando a sua idade e o seu Rendimento Anual Bruto Corrigido (RABC), tendo entregado, como comprovativo deste último facto, uma declaração do mesmo RABC, emitida em 2013.07.26 pela Autoridade Tributária, declaração esta válida por um ano.

Em 2014.05.13, a ré comunicou à autora que, não tendo ela feito a prova anual do seu rendimento, procedia à atualização da renda para 610,44 €, desde o mês de Abril de 2014, tendo a autora respondido com a apresentação de declaração da Autoridade Tributária.

Em 2014.06.17, a autora apresentou esta declaração da referida Autoridade Tributária, na qual era referenciado que só era possível emitir o RABC aquando da liquidação do IRS, o qual aconteceu em 2014.06.30.

Nesta mesma data, a autora comunicou à ré a declaração sobre o RABC emitida por aquela autoridade.

A autora nasceu em 10.02.1923, tendo, por isso, a idade de 92 anos e o seu agregado familiar tem parcos recursos económicos.


Resumindo a fundamentação, escreveu-se no acórdão o seguinte:

A norma do art° 35° n°5 NRAU, na redação original da Lei n° 31/2012 de 14/8, é inconstitucional, por violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança dos cidadãos, enquanto interpretada como estabelecendo a obrigação do inquilino de apresentar um comprovativo de RABC ou até um mero comprovativo de requerimento de RABC, junto da Autoridade Tributária, em momento em que seja facto notório que o referido rendimento ainda se não encontra em condições de ser calculado, por estabelecer efeitos cominatórios desproporcionados e desajustados aos fins legais de proteção de ambas as partes contratantes, senhorio e arrendatário, no cálculo das rendas devidas, potenciando nas relações inter-partes no contrato de arrendamento urbano que seja favorecido o segredo e a ausência de cooperação intersubjetiva.”


Com todo o respeito por tal entendimento, não concordamos que o preceito em causa viole qualquer princípio constitucional, nomeadamente os enunciados no acórdão recorrido.


Nos termos do disposto no nº5 do artigo 35º da Lei 6/2006, de 27.02, com a redação original, não alterada pela Lei 31/2012, de 14.08, redação esta aplicável ao caso concreto em apreço, face ao disposto nos artigos 6ºe 9º da Lei 79/2014, de 19.1, “no mês correspondente àquele em que foi feita a invocação das circunstâncias regulada no presente artigo e pela mesma forma, o arrendatário faz prova anual dos rendimentos perante o senhorio, sob pena de não pode prevalecer-se da mesma.


O que está em causa, no caso concreto ema apreço, é a obrigatoriedade de um arrendatário demonstrar, num determinado prazo, que se mantêm as condições pelas quais lhe foi concedida uma determinada limitação ao montante da atualização da renda.

Melhor dizendo, o que está em causa é a sanção para o facto de o arrendatário não fazer essa demonstração ou não juntar comprovativo de que não a pode fazer naquele prazo.


“A segurança necessária ao normal desenvolvimento do exercício jurídico exige que as aparências fundadas sejam respeitadas.

Assim, a confiança depositada na titularidade aparente de certa coisa, com base na posse ou no registo, ou a titularidade aparente de poderes de gerência ou de representação, ou de um título de crédito, são atendidas no Direito em certas condições, ainda que não correspondam à verdade

Também a confiança na realidade ou na estabilidade de certas circunstâncias que tenham fundado uma atuação jurídica é digna de proteção jurídica.

 Se assim não fosse, haveria uma tal insegurança na vida jurídica que necessariamente a viria a paralisar ou a dificultar extremamente” – Pedro Pais de Vasconcelos “in” Teoria Geral do Direito Civil, 7ª edição, página 19.


Ora, não vemos em como se possa considerar que o legislador ao impor ao arrendatário a obrigação de demonstrar ou apresentar comprovativo da impossibilidade imediata dessa demonstração, num determinado prazo, o seu rendimento para o efeito de aferição da manutenção ou não da limitação à atualização da renda que beneficiava, tenha violado aquele mínimo de certeza e de segurança que os cidadãos devem poder depositar na ordem jurídica de um Estado de Direito e que essa imposição se apresente como destituída de fundamento ou obedeça a um critério legislativo manifestamente desrazoável e inadequado.


O citado dispositivo não podia criar no arrendatário a aparência – muito menos fundada – de que se não fizesse a demonstração ou não apresentasse o comprovativo, a situação, quanto à limitação do montante da atualização da renda, se manteria.


Ao invocar inicialmente, aquando da oposição ao montante da atualização proposta pelo senhorio, a limitação proveniente de seu RABC, a autora arrendatária não podia organizar a sua vida confiando que durante os cinco anos que essa limitação podia vigorar, ela se mantinha, independentemente dos rendimentos que viesse a auferir no futuro.


Parece-nos, pois, razoável o entendimento do legislador que tais rendimentos teriam que ser comprovados periodicamente e consideramos que não era manifestamente inadequado que tal comprovação fosse feita pelo arrendatário, não se afigurando que esse entendimento plasmado na norma pudesse criar nele qualquer confusão ou incerteza, que originasse uma aparência que a não apresentação dessa comprovação ou comprovativo dentro do prazo fixado na lei não teriam quaisquer consequências.


Em conclusão, entendemos que a referida norma constante do transcrito nº5 do artigo 35º da Lei 6/2006 não padece que qualquer inconstitucionalidade, pelo que podia ser aplicada ao caso concreto em apreço.


E fazendo essa aplicação, não pode deixar de se concluir, como concluíram as instâncias, que” a autora não logrou demonstrar, tempestivamente, perante a ré, o seu rendimento, para os efeitos previstos no art.° 35° n° 5 do NRAU” daí advindo o direito para a ré reconvinte de atualizar a renda sem os limites provenientes do RABC da autora arrendatária.


B) - Abuso de direito


Mas entendemos que a invocação desse direito por parte da ré se revela abusiva.


Como vem sendo entendido – ver, por todos, Menezes Cordeiro “in” Tratado de Direito Civil, I, Parte Geral, Tomo IV, página 373 - a questão sobre o abuso do direito pode ser conhecida oficiosamente, mesmo quando o interessado não a tenha expressamente mencionado, uma vez que o Tribunal pode, por si e em qualquer momento, ponderar os valores fundamentais do sistema, não estando vinculado às alegações jurídicas das partes.


Encarando o caso concreto em apreço verificamos que está demonstrado que a autora não apresentou até Fevereiro de 2014 - mês durante o qual, de acordo com o disposto no transcrito nº5 do artigo 35º da Lei 6/2006, teria que apresentar a declaração dos seus rendimentos ou o comprovativo da impossibilidade dessa apresentação - aquela declaração ou este comprovativo, mas veio a apresentar o comprovativo em 2014.06.17 e a declaração em 2014.06.30.

Ou seja, quando deduziu pedidos reconvencionais – em 2015.03.03 – a ré reconvinte sabia que a autora tinha pedido a declaração da Autoridade Tributária e sabia também do conteúdo dessa declaração.


Atendendo que ficou demonstrado que em Fevereiro de 2014 a autora não podia apesentar a declaração sobre os seus rendimentos emitida pela Autoridade Tributária, concluímos que a única falta que aqui está em causa é a não apresentação tempestiva do comprovativo dessa impossibilidade.


Ora, entendemos que esta falta é insignificante, na medida em que, como se disse, o que estava em causa não era a não apresentação da declaração – impossível na altura – mas tão só a não apresentação de documento comprovativo dessa impossibilidade.


A sanção para esta pequena falta seria a autora deixar de continuar a beneficiar da limitação do montante da atualização da renda, apesar de, eventualmente e com base na declaração entretanto apresentada, estar em condições de poder continuar a ter esse benefício.


Parece aqui evidente a desproporção entre a falta cometida pela autora e as consequências daí advindas para ela, criadora de um desequilíbrio no exercício do direito por parte da ré, sem especial justificação para tal, permitindo uma grande vantagem para esta à custa da autora.


Impor-se-ia à autora uma lesão de tal modo intolerável que afetaria gravemente os limites impostos pelos princípios da boa-fé, na medida em que ela ficaria obrigada a suportar o exercício de um direito com as caraterísticas acima referidas.


Desta forma, temos que considerar abusivo e, portanto, ilegítimo, nos termos do disposto no artigo 334º do Código Civil, o exercício do direito invocado pela ré, de ver cessada a limitação da atualização da renda por não apresentação do comprovativo e declaração por parte da autora.


Nesta conformidade, constituindo este exercício um abuso de direito, não pode aquele direito ser reconhecido à ré reconvinte.

Assim e embora com base em diferente fundamento, não merece censura a decisão contida no acórdão recorrido.


A decisão


Nesta conformidade, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 17 de Março de 2016


Oliveira Vasconcelos (Relator)

Fernando Bento

João Trindade