Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2511/18.2T9LSB.L1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: LEONOR FURTADO
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
TRIBUNAL PLENO
PRESSUPOSTOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 03/13/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: REJEITADO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
Julgar não verificada a oposição de julgados, e em consequência, rejeitar o presente recurso extraordinário, nos termos do n.º 1, do art.º 441.º, do CPP.”
Decisão Texto Integral:

Recurso Extraordinário para Fixação de Jurisprudência


Processo: 2511/18.2T9LSB.L1-A.S1


Acordam no Pleno das Seções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:


I – RELATÓRIO

1. A Assistente IMPACTMELODY, LDA, (recorrente) interpôs recurso extraordinário de fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, ao abrigo do disposto no n.º 2, do art.º 437.º, do Código de Processo Penal (CPP), proferido em 13/11/2019, neste processo n.º 2511/18.2T9LSB.L1 (acórdão recorrido) com fundamento em que nele se decidiu uma questão de direito em sentido oposto ao decidido no acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, de 8/2/2018, no Proc. 5278/14.0TDLSB.L1-9, (acórdão fundamento), ambos transitados em julgado.


A questão de direito consistiria em saber se, não constando da decisão instrutória de não pronúncia, fundada na insuficiente indiciação da verificação do crime ou de quem foi o seu agente, a narração dos factos que fundamentam o juízo de suficiência ou insuficiência indiciária, padece tal despacho:


- De nulidade dependente de arguição, nos termos das disposições conjugadas do art.ºs 308.º, n.ºs 1 e 2 , 283.º, n.º 3, al. b), 118.º, n.º 1 e 120.º, n.º 1, todos do CPP, ficando sanada se não tiver sido invocada atempadamente perante o tribunal que proferiu o acto;


- Ou, diversamente, de nulidade insanável, nos termos dos art.ºs 308.º, n.ºs 1 e 2, 283.º, n.º 3, al. b) e 119.º, todos do CPP, não dependente de arguição e cognoscível, inclusivamente ex officio, directamente em recurso.


A oposição resultaria de o acórdão recorrido ter respondido nos termos da primeira proposição, considerando a nulidade sanada por não arguida perante o juiz de primeira instância, julgando por esse motivo e porque, de qualquer modo, considerou a decisão devidamente fundamentada, o recurso improcedente. Enquanto o acórdão fundamento, em caso de similar falta de fundamentação fáctica do despacho de não pronúncia, respondeu nos termos da segunda proposição, julgando verificada a nulidade da decisão de não pronúncia e procedente o recurso, mandando que fosse suprida a omissão consistente na falta de enumeração dos factos indiciados e dos não indiciados, ainda que por referência ao requerimento instrutório.

2. Por acórdão proferido em 23/06/2021, este Supremo Tribunal de Justiça (STJ) julgou verificada a oposição de julgados determinando-se o respetivo prosseguimento, conforme o disposto no art.º 441.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Penal (CPP).

3. Os sujeitos processuais foram notificados nos termos do art.º 442.º, n.º 1, do CPP, tendo apresentado alegações a recorrente, o arguido AA e o Ministério Público (MP), concluindo as suas motivações, respectivamente, como se transcreve:

1. A recorrente IMPACTMELODY, LDA:


I. O presente recurso de fixação de jurisprudência tem por objecto o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13/11/2019, proferido nos autos.


II. E assenta na contradição, já reconhecida nos autos, entre o Acórdão recorrido e o Acórdão-fundamento, proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 8/2/2018 no processo n.º 5278/14.0TDLSB.L1-9, no que diz respeito à consequência do proferimento de decisão instrutória de não pronúncia que não contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam o juízo de suficiência ou insuficiência indiciária, nos termos do disposto no artigo 283.º n.º 3, alínea b), (ex vi artigo 308.º n.º 2) do CPP.


III. O juiz de instrução tem o dever de fundamentar a decisão instrutória, nomeadamente, mediante a “narração, ainda que sintética, dos factos” julgados, concretamente, provados / indiciados e não indiciados que integram o silogismo judiciário aí presente, nos termos do disposto no artigo 283.º n.º 3, alínea b), ex vi do artigo 308.º n.º 2, ambos do CPP.


IV. O dever previsto no artigo 283.º n.º 3, alínea b), (ex vi artigo 308.º n.º 2) do CPP, que impõe a “narração, ainda que sintética, dos factos” julgados indiciados / provados e não indiciados aplica-se indistintamente às decisões instrutórias que se traduzam num despacho de pronúncia e àquelas que se traduzam num despacho de não pronúncia.


V. Entendimento contrário sempre incorreria em violação do princípio da igualdade, porquanto postularia um tratamento discriminatório do despacho de não pronúncia sem suporte no artigo 308.º n.º 2, bem como em violação do direito ao contraditório do Assistente, na medida em que o enunciado da matéria de facto que suporta a decisão instrutória é um pressuposto essencial para a reapreciação da mesma em sede de recurso.


VI. A motivação do despacho de não pronúncia sub judice não contém, sequer minimamente, uma narração dos factos julgados indiciados e não indiciados, e muito menos exara uma apreciação da prova produzida nos autos, antes se limitando a tecer considerações genéricas e conclusivas sem aparente respaldo em quaisquer premissas, concretas, de facto.


VII. O despacho de não pronúncia sub judice incorre, por isso, numa manifesta violação do comando legal previsto no artigo 283.º n.º 3, alínea b), (ex vi 308.º n.º 2) do CPP, o que desde já se invoca e se requer seja, para todos os efeitos, declarado.


VIII. O Acórdão recorrido incorreu num patente erro de apreciação ao considerar que o despacho de não pronúncia sub judice se encontra “cabalmente fundamentado”, devendo ser revogada e substituída por outra que declare que o dito despacho de não pronúncia omite a devida narração da matéria de facto e, por isso, incumpre a regra prevista no artigo 283.º n.º 3, alínea b), (ex vi 308.º n.º 2) do CPP.


IX. O dever de fundamentação especificamente previsto no artigo 283.º n.º 3, alínea b), do CPP é uma concretização do dever geral de fundamentação previsto no artigo 97.º do mesmo código e promana, no plano constitucional, do artigo 205.º da CRP.


X. O dever de fundamentação tem por escopo principal possibilitar o exercício efectivo do direito ao contraditório, neste caso pelo Assistente, quanto ao conteúdo da decisão revidenda, pois só mediante um prévio conhecimento dos motivos de facmeto mesmos em sede de recurso.


XI. Acresce que a devida narração dos factos que suportam a decisão de não pronúncia é um pressuposto essencial para que a mesma possa adquirir efeito de caso julgado material, pois só desse modo se torna possível definir o âmbito de abrangência dos efeitos desse caso julgado.


XII. Assim, a violação do comando legal previsto no artigo 283.º n.º 3, alínea b), (ex vi 308.º n.º 2) do CPP pelo despacho de não pronúncia sub judice traduz-se, em última análise, numa violação do dever fundamental de motivação das decisões judiciais previsto no artigo 205.º da CRP, do direito fundamental ao contraditório que promana dos artigos 20.º n.º 4 e 32.º da CRP, e ainda da tutela constitucional do caso julgado, que resulta do disposto no artigo 282.º da CRP, bem como do princípio do Estado de Direito Democrático presente no artigo 2.º da CRP.


XIII. O incumprimento do disposto no artigo 283.º n.º 3, alínea b), do CPP reveste particular gravidade, bulindo com valores fundamentais do sistema jurídico e, em especial, do sistema processual-penal.


XIV. A melhor jurisprudência, na qual se inclui o Acórdão-fundamento, fazendo jus à gravidade da violação do dever de fundamentação especificamente previsto no artigo 283.º n.º 3, alínea b), (ex vi artigo 308.º n.º 2) do CPP, tem entendido que a cominação da mesma não é compatível com o regime das nulidades sanáveis (artigo 120.º do CPP) e, muito menos, das irregularidades (artigo 123.º do CPP), na medida em que os mesmos consentem, e de algum modo propiciam, a sanação do vício mediante o mero decurso de um prazo, geralmente curto.


XV. Nomeadamente, porque os regimes das nulidades sanáveis e das irregularidades se destinam a sancionar ilegalidades de menor gravidade, que afectem, primacialmente, os interesses dos sujeitos processuais, o que não é, manifestamente, aqui o caso.


XVI. De acordo com a mesma jurisprudência – que inclui o Acórdão-fundamento –, o interesse público que enforma o disposto no artigo 283.º n.º 3, alínea b), (ex vi artigo 308.º n.º 2) do CPP postula que a violação do mesmo em sede de decisão instrutória só pode ser adequadamente cominada pelo regime das nulidades insanáveis, que está justamente vocacionado para sancionar as ilegalidades mais gravosas em processo penal, nos termos do disposto no artigo 119.º do CPP.


XVII. Razão pela qual deverá ser fixada jurisprudência no sentido de que a violação do dever de fundamentação previsto no artigo 283.º n.º 3, alínea b), (ex vi artigo 308.º n.º 2) do CPP em sede de decisão instrutória, de pronúncia ou de não pronúncia, é sancionada com nulidade insanável, sendo, como tal, cognoscível oficiosamente pelo Tribunal de recurso, nos termos do artigo 119.º do CPP – o que se requer.


XVIII. Admitindo, por mera hipótese e sem conceder, que assim não se entenda, sempre haveria que relevar a já demonstrada ofensa a vectores fundamentais do sistema que decorre da violação do preceituado no artigo 283.º n.º 3, alínea b), do CPP em sede de decisão instrutória, que concitam o interesse público em que tal ilegalidade seja declarada e expurgada a título oficioso.


XIX. Daí sempre resultaria, ainda, a inadequação do regime das nulidades sanáveis – e, mais ainda, pelo regime das irregularidades – para sancionar a ilegalidade em causa, atenta a característica distintiva desses regimes, que é a sanação do vício quando a parte interessada não o invoque, por sua livre iniciativa, dentro de um curto prazo.


XX. As exigências do sistema nesta matéria postulam que a nulidade decorrente da violação do artigo 283.º n.º 3, alínea b), do CPP em sede de decisão instrutória, qualquer que seja a qualificação que se lhe atribua, deverá ser sempre de conhecimento oficioso em sede de recurso – entendimento que tem vindo a obter o suporte de uma parte substancial da jurisprudência (v. supra).


XXI. Pelo que, subsidiariamente, sempre deveria ser fixada jurisprudência no sentido de que a violação do dever de fundamentação previsto no artigo 283.º n.º 3, alínea b), (ex vi artigo 308.º n.º 2) do CPP em sede de decisão instrutória, seja de pronúncia ou de não pronúncia, é sancionada com nulidade de conhecimento oficioso em sede de recurso – o que desde já se requer a título subsidiário.


Nestes termos, requer-se a V. Exa. seja o presente recurso aceite, julgado totalmente procedente e, consequentemente:


i) seja fixada jurisprudência no sentido de que a violação do dever de fundamentação previsto no artigo 283.º n.º 3, alínea b), (ex vi artigo 308.º n.º 2) do CPP em sede de decisão instrutória, de pronúncia ou de não pronúncia, é sancionada com nulidade insanável, sendo, como tal, cognoscível oficiosamente pelo Tribunal de recurso, ao abrigo do disposto no artigo 119.º do CPP;


Ou, a título subsidiário, admitindo por mera hipótese, e sem conceder, que assim não se entenda,


ii) seja fixada jurisprudência no sentido de que a violação do dever de fundamentação previsto no artigo 283.º n.º 3, alínea b), (ex vi artigo 308.º n.º 2) do CPP em sede de decisão instrutória, seja de pronúncia ou de não pronúncia, é sancionada com nulidade de conhecimento oficioso em sede de recurso.”.

2. O arguido AA:


“A) O objeto do recurso é saber se o despacho de não pronúncia fundada na insuficiente indiciação da verificação de crime e, ou, de quem foi o seu agente, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam o juízo de suficiência ou insuficiência indiciária, padece de nulidade sanável ou insanável.


B) Cumpre desde já referir que, na eventualidade do presente recurso ser procedente, não terá qualquer efeito na decisão objeto de recurso e que originou o acórdão recorrido, uma vez que o acórdão recorrido deixou expressamente definido que o despacho de não pronúncia recorrido foi devida e cabalmente fundamentado.


C) Além do mais se diga que antes de se proceder à análise do eventual regime da nulidade aqui aplicável, convém que seja determinado se um despacho de não pronúncia fundada na insuficiente indiciação da verificação de crime e, ou, de quem foi o seu agente, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam o juízo de suficiência ou insuficiência indiciária, efetivamente consubstancia uma nulidade – isto porque tal consequência não decorre da lei, tal consequência gera discórdia na jurisprudência e na doutrina e fixar jurisprudência sobre uma situação que não é certa nem liquida poderá motivar a que os tribunais profiram decisões muito diversas entre si, com consequências igualmente desajustadas.


D) Também se refira que, de facto, os acórdãos em confronto não estão em contradição visto que um entende que o nem sequer concebe a possibilidade de estarmos perante uma nulidade por falta de fundamentação nos termos do artigo 283.º, n.º 3, al. b) ao despacho de não pronúncia (e apenas no plano hipotético refere que a ser uma nulidade seria sanável) e o outro, o acórdão fundamento, refere que existe nulidade e que é uma nulidade insanável – mas materialmente não versam sobre o mesmo.


E) Por fim, e de forma a cumprir o principio da legalidade previsto no artigo 118.º do CPP, a letra da lei e a intenção do legislador, não consentem outra solução que não a de que a verificar-se uma nulidade do despacho de não pronúncia fundada na insuficiente indiciação da verificação de crime e, ou, de quem foi o seu agente, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam o juízo de suficiência ou insuficiência indiciária, tal circunstância reporta-se a uma nulidade sanável, dependente de arguição sujeita ao regime do artigo 120.º e 121.º do CPP.


F) E, deverá ser este o sentido no qual a jurisprudência venha a ser fixada.”.

3. O Ministério Público:


1. A questão que se coloca nos presentes autos radica em saber se, em sede de despacho de não pronúncia, a falta de narração, ainda que sintética, dos factos não indiciados, constitui nulidade sanável ou insanável;


2. (Narração que - ao menos no presente recurso para fixação de jurisprudência respeita -, não se confunde com a também debatida matéria referente à necessidade, ou não, de ali serem relacionados todos os factos indiciados e todos os não indiciados);


3. A questão aqui em análise decorre da circunstância de o artº 308º, nº 1, parte final, do Código de Processo Penal, bem como o nº 2 do mesmo preceito, determinar a aplicação ao despacho de não pronúncia das exigências contidas no artº 283º, nºs. 2, 3 e 4, do mesmo diploma;


4. Norma esta que exige, sob pena de nulidade, a indicação dos factos (no caso, não indiciados), mesmo que sinteticamente feita;


5. Ou seja, que o despacho se mostre fundamentado.


6. Entendemos que tal nulidade terá de ser entendida como sanável, dependente de arguição, caindo na previsão do artº 120º do Código de Processo Penal;


7. Inexistindo qualquer fundamento para a qualificar como insanável, como defendido no acórdão fundamento (e nos demais que seguiram tal entendimento);


8. Pois que a lei prevê diversos tipos de nulidades e irregularidades consoante os reflexos das decisões judiciais em questão, não integrando o despacho de não pronúncia um daqueles em que a violação das exigências de conteúdo conduzem à nulidade insanável.


9. Não se encontrando prevista tal consequência no artº 119º do CPP, não é legítimo ao intérprete alargar o âmbito de tal disposição legal.


- Assim sendo, formula-se a seguinte conclusão, em conformidade com o disposto no artº 442º, nº 2, do Código de Processo Penal:


- Não constando da decisão instrutória de não pronúncia a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam o juízo de suficiência ou insuficiência indiciária, padece tal despacho de nulidade dependente de arguição, nos termos das disposições conjugadas dos artºs. 308º nºs 1 e 2, 283º n.º 3 al. b), 118º n.º 1 e 120º n.º 1, todos do CPP, ficando assim tal vício sanado se não invocado, atempadamente, perante o tribunal que proferiu o ato.”.

3. Colhidos os vistos cumpre decidir.


II – FUNDAMENTAÇÃO


A. Oposição de julgados


1. De acordo com a jurisprudência corrente deste Supremo Tribunal, há que prioritariamente revisitar a existência da oposição declarada no acórdão que ordenou o prosseguimento do recurso, até porque o arguido continua a defender que ela não ocorre.


O art.º 437.º, do CPP dispõe que, neste género de recursos, os dois arestos em confronto devem, relativamente à mesma questão de direito, assentar em soluções opostas. E, embora a letra do preceito não qualifique expressis verbis – como é tradicional no nosso direito adjectivo e persiste no art.º 688.º, n.º 1, do CPC – essa questão de direito como fundamental, é inquestionável que ela deve sê-lo.


Normalmente, as decisões judiciais têm de enfrentar várias questões de direito; e têm de fazê-lo por uma certa ordem, já que cada questão se soluciona mediante uma proposição jurídica que suscita e antecede a quaestio juris seguinte ou, não havendo mais questões, a pronúncia final. Ora, as questões de direito assim encadeadas, sejam elas intercalares ou a última, são fundamentais – e só elas o são – na medida em que mediata ou imediatamente fundam e suportam a decisão a proferir a final. É que a resolução de cada uma condiciona os raciocínios seguintes, até se emitir o comando derradeiro, de modo que uma resposta diferente a qualquer delas alteraria a decisão do caso.


2. Todavia, por vezes sucede que as decisões judiciais não abordam os assuntos pela ordem devida ou fazem apreciações excrescentes relativamente ao programa decisório (ou à linha argumentativa) a observar, resolvendo questões que não vinham a propósito ou produzindo considerações que verdadeiramente não integram a “ratio decidendi”.


Neste segundo tipo de erros, a decisão judicial desvia-se ou descaminha-se do seu trajecto e, en passant, coloca e resolve questões que não vinham a propósito. Ora, estas questões – e, a seguir, os enunciados jurídicos que as solucionam – não passam de obiter dicta que, por não serem fundamentais (na economia da decisão), são insusceptíveis de fundarem uma oposição de julgados que justifique o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência que, embora tendo também uma função nomofilática (n.º 3, do art.º 445.º e 446.º, do CPP), é estruturado em função da eficácia no caso concreto (n.ºs 1 e 2, do art.º 445.º, do CPP).


E essa insusceptibilidade é compreensível: o recurso que apreciasse a solução dada a essas questões laterais, fortuitas e excrescentes nunca poderia alterar a decisão final tomada – que delas não dependia e que lhes era completamente imune. De modo que tal recurso não resolveria um caso judicial, como o direito adjectivo exige, e limitar-se-ia a tratar e explicar a questão segundo uma perspectiva doutrinária ou académica. No máximo, a resolver uma divergência jurisprudencial no interesse da unidade do direito, mas para isso existe um meio próprio com diferentes legitimidade e finalidade (art.º 447.º, do CPP).


3. As anteriores considerações são relevantes para o caso, como se verá. Entretanto, importa transcrever a fundamentação dos acórdãos em confronto, na parte pertinente.

1. Disse-se no acórdão recorrido:


Ainda que uma decisão instrutória possa em sede de recurso ser avaliada sob diversos pontos de vista, nomeadamente (e a mais comum) averiguar se os indícios carreados para os autos são ou não suficientes para pronunciar um arguido, a verdade é que no caso concreto, embora essa possa ser a razão fundamental subjacente ao recurso, a verdade é que a recorrente não apresenta nas suas conclusões quaisquer elementos que ponham em causa a prova indiciária ou que houve erro do tribunal recorrido na apreciação da mesma, mas tão só, o alegado vício de omissão de pronúncia, por entender que no despacho impugnado, o tribunal não indicou os factos indiciados e não indiciados, alegando que, "o Tribunal a quo limitou-se a gizar uma súmula dos actos processuais antecedentes e a mencionar certos pontos do depoimento prestado pelo Arguido em audiência, tal como por si apreendidos, "saltando" de seguida para a formulação de certas conclusões genéricas e desprovidas de um suporte concreto nos elementos de facto e nas provas ao dispor dos autos", (cls. 5).


"A decisão recorrida, ao omitir a devida fundamentação de facto veio, ademais, inviabilizar a sua sindicância em sede de recurso", (cls. 6).


Conclui depois a recorrente, pedindo que:


a) "Seja declarada a nulidade da decisão recorrida, por falta de enunciação da matéria de facto dada como indiciada/provada e não indiciada, nos termos do artigo 283º nº 3, alínea b), por remissão do artigo 308º nº 2, e 122º, todos do cód. proc. penal;


Ou, caso assim não se entenda, o que se admite por mera hipótese e sem conceder,


b) Seja declarada a irregularidade da mesma decisão, com o mesmo fundamento, nos termos do disposto no artigo 283º nº 3, alínea b), por remissão do artigo 308º nº 2, e 123º, todos do cód. proc, penal".


Analisado apenas sob este ponto de vista, o recurso está manifestamente votado ao fracasso, porquanto à decisão instrutória de não pronúncia não é aplicável a nulidade prevista no art. 283° n° 3, alínea b), do cód. proc. penal, dado que a previsão normativa em causa, reporta-se à acusação e à pronúncia, esta por força do disposto no art. 308° n°2 do Cód. Proc.Penal e não sobre o despacho de não pronúncia.


Por outro lado, o vício que aponta, não integra o elenco de nulidades insanáveis, de conhecimento oficioso, contempladas, no art. 119°, do cód. Proc.º penal.


A nulidade do despacho de não pronúncia, caso existisse, constituiria uma nulidade sanável dependente de arguição, no prazo legal, junto do tribunal recorrido, nos termos, do art. 120°, do cód. proc. penal e sobre a decisão que recaísse sobre a sua arguição, caberia eventualmente recurso para este tribunal.


Não tendo a assistente suscitado nos termos descritos a alegada nulidade, no prazo legal e junto do tribunal recorrido, (que proferiu o aludido despacho), em conformidade com o disposto no artº 120° nº 3 al. c) do Cód. Proc Penal, ficou a mesma sanada.


Acresce que, não tendo a Recorrente suscitado atempadamente a nulidade ou irregularidade do despacho de não pronúncia perante o tribunal recorrido, questionando as suas dúvidas e sendo certo que em sede de recurso interposto se limita basicamente àquela questão, parece-nos evidente que o mesmo não tem viabilidade.


Ainda que este tribunal pudesse avaliar o conteúdo indiciário e das provas apresentadas, a verdade é que o recurso não questionou sequer esta vertente. Também não veio alegar factos que permitam a este tribunal por em causa a valoração probatória feita, [que em termos formais, até nos parece ajustada ao quadro apresentado], situação que se mostraria essencial para este Tribunal da Relação analisar melhor e verificar os indícios em que assentou a decisão e lhe permitiria tomar posição quanto à alegada omissão.” – sublinhado e negrito, nossos.


E, apesar de a Relação ter enunciado que não conhecia da nulidade, a verdade é que, acabou por dela conhecer pronunciando-se como se transcreve: “Ainda assim, quanto ao despacho recorrido, sempre diremos que o mesmo se nos afigura cabalmente fundamentado, tendo o sr. Juiz a quo, expressado de forma clara as razões porque considerou não haver indícios suficientes para pronunciar o arguido.


A questão prende-se desde logo com os próprios fundamentos da instrução requerida, em que se torna claro que a versão da assistente, ainda que aparentemente possa ter razão quando alega a falta de transparência nas operações de venda do património imobiliário em causa, a verdade é que não passa disso mesmo, pois nenhuma prova carreada para os autos, permite ir mais longe, nomeadamente, imputar os crimes de participação económica em negócio e de abuso de poder ao arguido.


É a própria Assistente que reconhece que propôs a aquisição do conjunto de imóveis apreendidos no processo da T... que compõe a referida unidade hoteleira pelo preço de € 820.000,00, acompanhada de caução, mas que esta "foi recusada por votos das sociedades cessionárias dos créditos que não eram à data sequer credores reconhecidos nos autos", para concluir daqui que "houve um conluio prévio entre o arguido e as gerências das sociedades cessionárias de créditos". Todavia, nenhuma prova existe sobre esta conclusão da assistente, que não passa de uma presunção sem qualquer prova sólida que a sustente.


É um facto, que os créditos foram cedidos sem que nenhum dos membros da respetiva comissão de credores se tenha efectivamente manifestado.


Ainda que, como refere, não exista prova de que "a Assembleia de Credores tenha aprovado com maioria legalmente exigida a cessão de créditos", a verdade é que os credores em causa nada fizeram, acatando as deliberações, que eram livres de impugnar. Este ponto retira em grande parte a suspeição de fortes indícios que teria de existir sobre o eventual comportamento de conluio do arguido com terceiros.


Parece-nos acertado concluir como o fez o Ministério Público em sede de inquérito e posteriormente o sr. Juiz de Instrução que:


a)As cessões foram decididas, não pelo arguido que não detinha poder para tal, mas por comissões de credores ou por credores de que fazem parte empresas e indivíduos e que nada indiciam estar mancomunadas para prejudicar os interesses da assistente (denunciante) ou da insolvente.


b)A proposta de aquisição dos imóveis da T... e da A... apresentada pela assistente foi rejeitada não pelo administrador de insolvência nomeado, mas pelos membros das comissões de credores constituídas nos processos nºs 121/17.0... e 31662/16.6..., das quais fazem parte sociedades detidas pelo Grupo S..., mas também, outras com interesses não subordinados aos desses grupos.


O Ministério Público foi mesmo mais longe ao concluir que, "foi recolhida prova suficiente de que os ilícitos denunciados não se verificam".


A Assistente põe em causa a actuação do arguido enquanto administrador da insolvência, todavia, como bem se referiu na decisão recorrida, a própria assistente juntou aos autos um despacho proferido no âmbito do processo nº 121/17.0... (fls. 1212) onde se decidiu que não se verifica qualquer impedimento na nomeação do Drº AA como administrador de insolvência naqueles autos.


Alega a recorrente que o arguido violou os deveres de cuidado que o obrigavam como administrador de insolvência e teve clara intenção de atribuir benefícios a terceiros. Mas não há prova indiciária minimamente segura de tal presunção. E a pronúncia, assenta num juízo indiciário de forte probabilidade de condenação do visado, o que não se verifica no caso concreto.


Acolhemos o entendimento do tribunal recorrido de que não existem nos autos indícios fortes em como o arguido, ao aceitar as propostas de cessão dos créditos o fez em prejuízo dos credores; nem que tivesse preterido a liquidação judicial do património em favor das cessões de créditos, tendo agido no interesse da massa insolvente e no interesse dos credores.


Também se aceita que não existem indícios nos autos de que o arguido tenha violado os deveres de conduta que especificamente o vinculam na sua atividade enquanto Administrador Judicial e da insolvência em causa, nem que este quisesse prejudicar os interesses dos credores das referidas sociedades insolventes, favorecendo as sociedades cessionárias dos créditos.


O bem jurídico protegido no crime de participação económica em negócio previsto e punido pelo artº 377º cód. penal é o património alheio (público ou privado) e, simultaneamente a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário, neste caso o arguido AA, que agiu como administrador de insolvência.


Já o bem jurídico protegido pelo crime de abuso de poder previsto e punido pelo artº 382º cód. penal, é a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário, consistindo elemento objetivo no abuso dos poderes ou violação dos deveres inerentes às funções do funcionário e o elemento subjectivo no conhecer e querer a prática daquela conduta sabendo que a mesma é proibida por lei.


Em conclusão, entendemos que o arguido ao receber as várias propostas para as cessões de crédito e ter dado, de imediato, conhecimento às respetivas comissões de credores, conforme se verifica pelo teor dos e-mails que foram junto aos autos, agiu dentro do expectável comportamento que lhe era exigido no caso concreto. As suspeições da assistente, se existiam, teriam que ser suportadas por algum tipo de prova concreta, que no caso não foi apresentada.


Considerando o tipo de crimes acima referidos e os elementos probatórios apresentados, nenhuma censura há que apontar à decisão recorrida, uma vez que se mostra cabalmente fundamentada.”.

2. Por seu turno, no acórdão fundamento, julgou-se que se verificava a nulidade insanável, nos termos dos artigos 308.º, n.ºs 1 e 2, 283.º, n.º 3, al. b), e 119.º, todos do CPP, por isso não dependente de arguição e cognoscível, inclusivamente ex officio, diretamente em recurso, com os seguintes fundamentos:


Considera a Assistente que a decisão se apresenta nula por falta de fundamentos factuais, ou seja, não descreve os factos que considerou indiciados e os que o não foram, por forma a poder entender-se porque não deve a causa ser submetida para a fase do julgamento,


Vejamos.


(...)


Ora, pelas duas apontadas razões, entendemos que é fundamental que a decisão instrutória de não pronúncia, tal como a de pronúncia, descreva os factos que em concreto foram determinantes da não pronúncia, para que desse modo o conjunto de factos que se consideraram indiciados e os não indiciados, possam garantir os direitos de defesa do arguido, mormente para que o tribunal de recurso possa avaliar se efetivamente existem ou não os necessários pressupostos para submeter o agente a julgamento,


No caso em análise, conforme se lê no despacho recorrido, foi praticamente omitida a componente fáctica, não se descrevendo nem especificando quais os factos do requerimento instrutório que se consideram suficientemente indiciados, nem os que como tal se não consideram. A referência concreta a parte desses factos existe, mas de forma abrangente, isto é, por referência às declarações do arguido e testemunhas, inserindo-se tão só na sua apreciação crítica, sem que descreva esses mesmos factos,


Ora, salvo o devido respeito, entendemos que só depois de fixada a matéria factual se poderia, de acordo com a lógica, concluir pela suficiência ou insuficiência da matéria para submeter ou não o arguido à fase do julgamento. A apreciação critica (que consta da decisão recorrida) será já uma fundamentação da convicção formada pelo Sr. Juiz para a não submissão da causa â fase do julgamento, nos termos a que se reporta o nº. 5 do artigo 97 do C.P.P. fase posterior à seleção dos factos apurados e não apurados.


Vejamos agora as consequências da omissão factual (reportada ao requerimento da Instrução)".


"Conhecendo que é controversa a questão, plasmamos o nosso entendimento no entendimento do então Desembargador Orlando Afonso expresso no Ac. Rel. Évora de 1-3-2005 e também no Ac. da Relação de Guimarães, de 15/12/2012.


"... Para que este Tribunal da Relação possa fazer uma valoração lógica da gravidade, precisão e concordância dos indícios por forma a tê-los como suficientes ou insuficientes à aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e desta forma optar pela necessidade da pronúncia ou não pronúncia, necessita saber quais os indícios tidos por assentes pela 1ª instância, para, em operação posterior, confrontando a prova carreada à instrução, se pronunciar num ou noutro sentido. Por isso, o despacho de pronúncia ou de não pronúncia há-de conter, ainda que resumidamente, os factos que possibilitaram chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência da prova indiciária. No caso em apreço, nenhum facto indiciário, em termos objetivos, foi carreado ao despacho de pronúncia (nem foi afirmado que nenhum facto se provou) tendo, apenas, sido retiradas conclusões pela Mmª JIC, da prova que analisou sem dar por assente qualquer facto.


Não compete ao Tribunal da Relação concatenar os factos apurados e substituir-se à Mmª Juiz de Instrução na prolação de despacho de pronúncia ou não pronúncia, mas tão somente, por força do recurso, em vista de factos indiciários descritos, corroborados ou não por outros elementos dos autos, decidir se todos eles são suficientes ou insuficientes para o proferimento de um despacho de pronúncia ou não pronúncia a levar a efeito sempre em primeira instância. A ausência de factos descritos impede a análise pelo Tribunal "ad quem" da bondade da solução encontrada em sede de instrução). (...) A não descrição dos factos acarreta a nulidade do despacho (art. 308º, nº 2, com referência ao art. 283.º, nº 3, b) do CPP). E constitui esta falta, nulidade cognoscível por este Tribunal da Relação. Não fazendo, embora, parte do elenco de nulidades descritas nas alíneas a) a f) do art,119º do CPP, não pode deixar de ter-se como insanável a nulidade consistente na falta de narração, ainda que sintética, dos factos que constituem fundamento da decisão de pronúncia ou não pronúncia, tendo em atenção que as disposições do art. 119º do CPP não são taxativas: constituem nulidades insanáveis, para atém das que estão descritas nas alíneas daquele dispositivo, todas as que como tal forem cominadas noutras disposições legais, dentro ou fora daquele diploma legal. Se é certo que o art. 283. °, nº. 3, do CPP, a que se refere o art. 308.°, do mesmo código, não diz que se trata de uma nulidade insanável (o que, primo conspectu, poderia numa interpretação declarativa restrita conduzir à sua classificação como nulidade sanável, e nessa medida, dependente de arguição), a lógica do sistema, em matéria de tão fundamentai importância, porque pressuposto da subsunção, necessariamente nos tem de conduzir a interpretação diferente. Se a falta de narração dos factos na acusação conduz, nos termos do art.311.º, n.º 2, a), do CPP à rejeição desta, não faz sentido que o Tribunal de recurso deva apreciar um despacho de pronúncia ou não pronúncia se o mesmo for omisso quanto à narração dos factos indiciários. E, se nenhum facto resulta provado o Juiz deve dizê-lo expressamente. Dispõe o art. 308°, nº 2, do CPP que é correspondentemente aplicável ao despacho de pronúncia (ou de não pronúncia) o disposto no art. 283.º, n.ºs 2, 3 e 4 do mesmo código, ou seja, para o que ao caso interessa, a necessidade de narração ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena. Poder-se-ia argumentar que tal imposição apenas respeitaria ao despacho de pronúncia e não ao de não pronúncia já que, colocados os artigos em similitude, não existe para o despacho de arquivamento a exigência semelhante ao de acusação. Duas ordens de razões levam-nos a concluir o contrário. Em primeiro lugar, o art.308.º, n.º 2, do CPP não distingue. Diz, apenas, que "é correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior", sendo certo que o despacho referido no número anterior é tanto o de pronúncia como o de não pronúncia. E, "ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus". Em segundo lugar há uma razão de orgânica judiciária. Do despacho de arquivamento (proferido pelo Mº Pº), se não tiver sido requerida a instrução, pode-se reclamar, nos termos do art.278° do CPP, para o superior hierárquico competente o qual se pode substituir ao magistrado de grau hierárquico inferior, nomeadamente avocando o processo (art.79º n°4 do Estatuto do Ministério Público), o que não implica a necessidade estrita de descrição de factos que podem e devem ser superiormente compulsados. O mesmo não se passa com o despacho de não pronúncia. Deste despacho pode-se recorrer e o Tribunal superior ao apreciar o recurso não se substitui ao Tribunal "a quo", ou seja, não pode aquele proferir um despacho de pronúncia ou de não pronúncia. Apenas pode, em face dos elementos constantes da decisão instrutória, (o recurso não é do conjunto processual é de uma decisão específica) decidir se o Tribunal recorrido deve ou não modificar o seu despacho.


Para tanto tem a decisão recorrida de fornecer ao Tribunal "ad quem" todos os elementos fácticos que lhe permitam apreciar o recurso. Daí que o art. 308°, nº2, não tenha e bem feito distinção entre um ou outro dos despachos impondo a ambos as mesmas exigências de narração factual...".


Assim se entendendo, pela verificação de nulidade (artºs. 308º-2 e 283-3, do C.P.P.) do despacho de não pronúncia, nos termos acabados de expor, damos provimento ao recurso.


O conhecimento desta nulidade obsta ao das restantes questões colocadas."

4. Isto posto, cumpre agora avaliar se os arestos se articulam em recíproca oposição quanto a uma mesma questão fundamental de direito. O que obriga a interpretá-los.

1. O acórdão fundamento começou por afirmar que o despacho de não pronúncia deve descrever os factos indiciados e os não indiciados – o que, no fundo, levaria a incluí-los em dois elencos. Essa primeira afirmação do acórdão sugeria, pois, uma imediata exigência formal: a de dividir os factos constitutivos das infracções por esses dois elencos – tornando logo claríssimo o que indiciariamente faltava para que as infracções pudessem ser imputadas ao arguido. Mas, logo a seguir – mediante remissão para um outro aresto – o acórdão fundamento temperou aquela sua aparente posição, admitindo que o despacho de não pronúncia se limite a indicar resumidamente os factos (indiciados e não indiciados), cuja narração poderá ser apenas sintética.


Portanto, o acórdão fundamento emitiu a seguinte proposição jurídica: o despacho de não pronúncia deve descrever os factos, indiciados e não indiciados, mesmo que de maneira resumida ou sintética. Para além disso, o aresto referiu que o grau admissível desse resumo ou síntese se afere pelo seu fim: o de permitir “que o tribunal de recurso possa avaliar se efectivamente existem ou não os necessários pressupostos para submeter o agente a julgamento”. Seria este, portanto, o critério de avaliação da suficiência factual a discernir no despacho de não pronúncia.

2. Depois – e só depois, se se tiver em conta a ordenação lógica do problema – o acórdão fundamento emitiu duas outras proposições jurídicas: i) a de que o incumprimento daquele dever (de descrição dos factos) gera nulidade, e ii) a de que esta é insuprível.


E, constatando que o tribunal a quo não descrevera, sequer, resumidamente, os factos indiciados e não indiciados justificativos da não pronúncia, o aresto disse ocorrer a referida nulidade insuprível. Assim, o acórdão fundamento disse três sucessivas coisas, e sucessivas porque a terceira depende da segunda e esta da primeira: i) que o despacho de não pronúncia tem o dever de indicar factos; ii) que o incumprimento deste dever gera nulidade; e iii) que esta é insuprível.

3. Por sua vez, o acórdão recorrido começou por negar que a falta de indicação, completa ou resumida, de factos – os indiciados e os não indiciados – no despacho de não pronúncia gere nulidade e que esta, a existir, seja insuprível. Estas duas proposições jurídicas opõem-se com nitidez às correspectivamente enunciadas no acórdão fundamento – o que logo explica que este STJ, no seu pretérito acórdão, julgasse verificada a oposição.


Porém, a análise do aresto recorrido mostra que ele emitiu tais proposições à margem da realidade colocada no seu processo; e este decisivo pormenor veda que se considerem fundamentais as questões jurídicas respectivas, porque não foi nelas, mas em ser essencialmente diversa a realidade factual considerada, que assentou a diversidade de soluções dos casos sujeitos.


Com efeito, o acórdão recorrido asseverou que as razões factuais da não pronúncia constavam da decisão sob recurso, a qual se encontrava cabalmente fundamentada, pondo em evidência os factos essenciais que a decisão instrutória considerou não indiciados para afastar o preenchimento dos ilícitos típicos imputados no requerimento instrutório. Se assim era, a primeira daquelas proposições jurídicas – a de que a falta dessas razões não gerava nulidade – não se aplicava deveras ao despacho de não pronúncia que o acórdão recorrido avaliava; de modo que, essa proposição constituía um obiter dictum e só poderia valer para uma hipótese diferente da verificada no caso em apreciação.


E assim se constata que a questão jurídica solucionada por essa primeira proposição era meramente hipotética. Com efeito, o que o acórdão recorrido expendeu foi o seguinte: mesmo que se considerasse a hipótese de o despacho de não pronúncia em apreço não conter factos os factos não indiciados – hipótese que não correspondia à realidade, pois o aresto recorrido logo disse que ele os continha e estava fundamentado – não haveria a nulidade arguida.


E a segunda proposição jurídica, a de que a nulidade, a existir, seria suprível, é também hipotética por maioria de razão, para além de o ser à luz dos seus próprios termos. O exposto evidencia que o acórdão recorrido incorreu nos desvios acima referidos, ambos indutores de que este STJ, num primeiro momento, afirmasse a oposição. Por um lado, o acórdão recorrido colocou e resolveu duas questões jurídicas, atinentes à nulidade, puramente hipotéticas, porque derivadas de um antecedente – a ausência de factos no despacho de não pronúncia – que não ocorria in casu; por outro lado, o mesmo aresto abriu o seu discurso argumentativo com essas duas questões hipotéticas, como se elas – que já se viu serem marginais relativamente ao assunto a resolver – detivessem uma real primazia.


E obtém-se um esclarecimento máximo se se corrigir a ordem do discurso do acórdão recorrido. Este deveria ter começado por dizer o seguinte: o despacho de não pronúncia contém os factos bastantes e, por isso, a nulidade arguida não existe. E só depois, a título coadjuvante, poderia o aresto tecer as considerações hipotéticas que emitiu: ainda que tais factos faltassem não haveria a nulidade e esta, mesmo que existisse, não seria insuprível.

4. Assim sendo, verifica-se que, agora, se está em condições de perceber que as decisões dos dois acórdãos em confronto não assentaram em soluções opostas relativamente à mesma questão de direito – art.º 437º, n.º 1, do CPP. Para que isso sucedesse, não bastava que eles emitissem proposições jurídicas contrárias ou contraditórias sobre a mesma questão jurídica – o que já se viu ter sucedido quanto às duas enunciações ou fórmulas supra referidas. Era ainda necessário que essas questões jurídicas fossem fundamentais, isto é, determinantes das decisões proferidas afinal pelos acórdãos.


E facilmente se vê que tal não sucedeu. Mesmo que o aresto recorrido adoptasse, quanto às causas e ao âmbito da nulidade, as posições jurídicas do acórdão fundamento, continuaria a decidir exactamente como decidiu; pois, ao considerar que o despacho de não pronúncia continha as, então, tidas por indispensáveis razões de facto e que estava cabalmente fundamentado, nenhum espaço lógico e discursivo se abria para a problemática da nulidade.


Com efeito, o Ac. do STJ de 31-01-2024, Proc. n.º 75/19.9EAPRT.P1-A.S1, e, também por referência ao nele citado Ac. do STJ de 30/10/2019, Proc. n.º 324/14.0TELSB-N.L1-D.S1, ambos em www.dgsi.pt, disse: “Do carácter excepcional deste recurso extraordinário decorre necessariamente um reforçado grau de exigência na apreciação da respectiva admissibilidade, compatível com tal incomum forma de impugnação, em ordem a evitar a vulgarização, a banalização dos recursos extraordinários. E é entendimento comum do STJ que a interpretação das regras jurídicas disciplinadoras de tal recurso se deve fazer com as restrições e o rigor inerentes e exigidas a essa excepcionalidade evitando que se transmute em mais um recurso ordinário.”.


Assim, os dois acórdãos em confronto não decidiram ao invés – um, negando a nulidade e, o outro, reconhecendo-a – devido às posições jurídicas opostas que perfilhavam nessa temática; mas, somente o fizeram devido ao conteúdo díspar dos despachos com que se confrontaram – num caso, havia factos e, no outro, não os havia. De modo que os juízos diferentes dos arestos radicam na diversidade – no fundo, factual – do teor das decisões recorridas, e não na enunciação de proposições jurídicas susceptíveis de fundamentarem e causarem a divergência decisória.

5. Tanto basta para que se rejeite o recurso, nos termos do disposto no art.º 441.º, n.º 1, do CPP, não obstante o decidido em contrário no acórdão preliminar, conforme o disposto no artigo 692.º, n.º 4, do CPC, aplicável ex vi do disposto no art.º 4.º, do CPP.


III – DECISÃO


Termos em que se decide:

a. Julgar não verificada a oposição de julgados, e

b. Em consequência, rejeitar o presente recurso extraordinário, nos termos do n.º 1, do art.º 441.º, do CPP;

c. Condenar o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta (UCs) – art.ºs 515.º n.º 1, al. b), e 448.º, ambos do CPP, e art.º 8.º e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais.


Lisboa, 13 de Março de 2024 (processado e revisto pelo relator)


LEONOR DO ROSÁRIO MESQUITA FURTADO (Relatora)


TERESA DE JESUS OLIVEIRA DE ALMEIDA


ERNESTO CARLOS DOS REIS VAZ PEREIRA


AGOSTINHO SOARES TORRES


ANTÓNIO JOÃO CASEBRE LATAS


JORGE MANUEL BAPTISTA GONÇALVES


JOÃO ANTÓNIO GONÇALVES FERNANDES RATO


HEITOR BERNARDO CARDOSO VASQUES OSÓRIO


JORGE MANUEL ALMEIDA DOS REIS BRAVO


CELSO JOSÉ DAS NEVES MANATA


ANTERO LUÍS


HELENA ISABEL GONÇALVES MONIZ FALCÃO DE OLIVEIRA


JOSÉ LUÍS LOPES DA MOTA


NUNO ANTÓNIO GONÇALVES


MARIA TERESA FÉRIA GONÇALVES DE ALMEIDA


ANA MARIA BARATA DE BRITO


ORLANDO MANUEL JORGE GONÇALVES


MARIA DO CARMO SARAIVA DE MENEZES DA SILVA DIAS


PEDRO MANUEL BRANQUINHO FERREIRA DIAS