Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
309/07.2TBLMG.C1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: NUNES RIBEIRO
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
PARTES COMUNS
OBRAS
DEMOLIÇÃO DE OBRAS
ABUSO DO DIREITO
BOA FÉ
BONS COSTUMES
FIM SOCIAL
LICENCIAMENTO DE OBRAS
INOVAÇÃO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - - DIREITOS REAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE HORIZONTAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA ( NULIDADES ).
Doutrina:
- CASTRO MENDES, Lições de Direito Civil ao 2º ano jurídico de 72/73, 77.
- JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Do Abuso do Direito, 55, 59 e 60.
- LEBRE DE FREITAS, A Acção Declarativa Comum, À Luz do Código Revisto, 299.
- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil” Anotado, 4.ª ed. Vol. I, . 298.
- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil” Anotado, Vol. I, 298/9.
- VAZ SERRA, Do Abuso do Direito, 265-266.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 829.º, N.º 1, 1425.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608.º, N.º 2, 615.º, N.º1, AL. D).
Sumário :
I - De acordo com o disposto no art. 334.º do CC, a existência ou não de abuso do direito afere-se a partir de três conceitos: (i) a boa fé; (ii) os bons costumes; e (iii) o fim social ou económico do direito; porém, o exercício do direito só é abusivo quando o excesso cometido for manifesto.

II - A boa fé comporta dois sentidos principais: no primeiro, é essencialmente um estado ou situação de espírito que se traduz no convencimento da licitude de certo comportamento ou na ignorância da sua ilicitude; no segundo, apresenta-se como princípio de actuação, significando que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto e leal, nomeadamente no exercício de direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros.

III - Os bons costumes constituem o conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente.

IV - O fim social e económico do direito é a função instrumental própria do direito, a justificação da respectiva atribuição pela lei ao seu titular.

V - A sanção natural para a execução pelo condómino de obras ilícitas nas partes comuns de edifício em regime de propriedade horizontal é a sua demolição (art. 829.º, n.º 1, do CC), não constituindo, por isso, abuso de direito, o pedido de demolição dessas obras já que é a própria lei que o determina e o condómino, requerendo-o, não está a exceder em nada os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do respectivo direito, mas antes a reagir contra o condómino que inovou, para que o edifício seja restituído ao estado anterior.

VI - O eventual licenciamento administrativo das referidas obras apenas significa que, do ponto de vista da entidade licenciadora, que se rege por critérios de prossecução de interesse público, nada obsta ao seu desenvolvimento, não derrogando as disposições legais que visam a tutela dos direitos de propriedade em que repousa a propriedade horizontal e daí que os condóminos lesados não fiquem impedidos de exercer os direitos que a lei lhes confere.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

AA, na qualidade de administrador do prédio urbano em propriedade horizontal, com a entrada “C”, sito na Quinta do BB, lote 2, freguesia de …, L…, instaurou acção declarativa ordinária contra CC e mulher, DD, residentes na C…, em L…, pedindo a condenação destes a:

“1. Procederem ao fechamento de todas as aberturas referidas na petição inicial, concretamente:

a) Uma abertura tipo janela com as dimensões de 60cm x 60cm;

b) Um buraco redondo, com 40cm de diâmetro, ambos na confinância da caixa (aqui dita de elevador) com a loja do r/c;

c) O buraco na placa de cobertura do edifício;  

2. Reporem todo o vigamento de suporte do telhado, tudo com materiais, consistência e segurança estrutural primitiva, sendo esta a que resulta do respectivo projecto de licenciamento da construção do edifício;

3. Procederem a estas obras no prazo de 15 dias; e

4. Indemnizarem os condóminos aqui autores pelos prejuízos que resultarem para o edifício por motivo daquelas obras, os quais, quanto ao respectivo montante, haverão de ser liquidados em execução de sentença”.

Alegou, para tanto, em resumo, que os R.R. são os donos de uma fracção no prédio identificado, na qual estão a proceder a obras de adaptação para que nela passe a funcionar um restaurante; que, no decurso dessas obras de adaptação, o réu-marido iniciou a instalação de um tubo de exaustão com as dimensões de 40x40 cm, tendo aproveitado, para o efeito, uma caixa existente no interior do prédio projectada para nela ser instalado um elevador, nela abrindo duas comunicações com a loja, sendo uma do tipo janela com 60x60cm, a outra um buraco redondo com 40cm de diâmetro; que, no desenvolvimento das obras, os operários a mando do réu-marido rebentaram ainda as placas de cimento que constituem a cobertura do edifício, nela tendo aberto um buraco, com o intuito de por ele fazerem passar o tubo de exaustão, e deram início a obras de rompimento do telhado, para o que cortaram as respectivas vigas de suporte; que as obras descritas foram executadas sem conhecimento nem consentimento dos condóminos, sendo violadoras dos direitos destes, nos termos dos art.ºs 1420.º e 1421.º, n.º 1, al.s a) e b) do C. Civil, dando lugar à sua demolição e consequente reposição do prédio no estado em que antes se encontrava; que, além disso, da execução das obras resultou depreciação do valor do prédio que só posteriormente à reposição poderá ser avaliada, impondo-se, assim, a condenação dos RR no montante que a este título se vier a liquidar.

Os R.R. contestaram nos termos constantes de fls. 40 a 44 dos autos, excepcionando a ilegitimidade do autor, a quem não reconhecem a arrogada qualidade de administrador do condomínio, e, em sede de impugnação, alegaram que, tanto o projecto, como o título constitutivo da propriedade horizontal, previam já a afectação da fracção de que são proprietários, e de outras, ao exercício de qualquer actividade comercial, afectação dada a conhecer aos restantes condóminos aquando da aquisição das respectivas fracções, encontrando-se igualmente prevista a execução das obras em causa, as quais obedeceram a projecto de construção aprovado e licenciado pela Câmara Municipal de L…; que tais obras teriam de ser, como foram, levadas a cabo pelo réu-marido na sua qualidade de construtor do edifício, sob pena deste não ficar concluído, resultando inviabilizada a utilização das fracções para os fins a que se destinam; que, além disso, o vão onde foi implantado o tubo exaustor percorre todo o edifício na vertical, desde a cave até ao telhado, tendo sido projectado, licenciado e construído precisamente com a finalidade de, após aspirados do exterior, serem por ali conduzidos fumos, gases e vapores emanados de todas as fracções do edifício, estando em causa, deste modo, trabalhos que, ao invés de prejudicarem os restantes condóminos, antes contribuem para a higiene e salubridade do edifício, e comodidade de todos, pelo que a pretensão do autor, tendo como resultado impedir os adquirentes das fracções carecidas de exaustor de as afectarem ao exercício das actividades comerciais pretendidas, sem que da aplicação do tubo de exaustão na parte comum do edifício resulte prejuízo para alguém, constitui verdadeiro abuso de direito.

O autor replicou, reafirmando a sua legitimidade e recusando qualquer abuso no exercício do direito que aqui pretende fazer valer.

Dispensada a realização da audiência preliminar, foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a invocada excepção de ilegitimidade, seleccionando-se, de seguida, a matéria de facto assente e a que passou a constituir a base instrutória, objecto de reclamação do autor, que obteve deferimento.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, em cujo decurso o Tribunal indeferiu a requerida realização de inspecção judicial ao local, foi proferida sentença que, no decretamento da improcedência da acção, absolveu os R.R. dos pedidos formulados.

Inconformado com o indeferimento do meio de prova requerido e também com a sentença a final proferida, o autor interpôs recurso de apelação que, na sua procedência, determinou a realização daquela diligência e decretou a anulação do processado subsequente (fls. 341/342).

Realizada a diligência de inspecção, foi lavrada decisão sobre a matéria de facto e proferida nova sentença que, mais uma vez, absolveu os R.R. dos pedidos formulados.

De novo inconformado, o A. apelou para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por Acórdão de 02 de Fevereiro de 2016, na parcial procedência do recurso, condenou os R.R. «a procederem ao fechamento de todas as aberturas executadas, a saber: a) uma abertura tipo janela com as dimensões de 60cm x 60cm; b) um buraco redondo, com 40cm de diâmetro, ambos na confinância da caixa (aqui dita de elevador) com a loja do r/c; c) o buraco na placa de cobertura do edifício; e c) a reporem todo o vigamento de suporte do telhado, tudo com materiais, consistência e segurança estrutural primitiva, sendo esta a que resulta do respectivo projecto de licenciamento da construção do edifício, no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado da decisão ora proferida».

Irresignados agora os R.R., interpuseram recurso de revista para este Supremo Tribunal, conforme alegação de fls 467 e segs.

O A. recorrido na sua resposta, invocando dificuldade em contra-alegar, porque «não é claro quais sejam as normas legais que, na perspectiva dos recorrentes, tenham sido violadas no douto Acórdão», concluiu, de todo o modo, pela improcedência do recurso e pela confirmação do acórdão recorrido.

Afigurando-se ao Relator a pertinência da observação do recorrido no que à apontada deficiência da alegação dos recorrentes dizia respeito, mandou-se, por despacho de fls 535, que estes fossem convidados a suprir tal deficiência.

Acedendo ao convite, os recorrentes apresentaram novas conclusões, a fls 540 e segs, de compreensão difícil e teor algo confuso, nas quais aproveitam também para suscitar questões que nas primeiras não haviam colocado. E que, por isso, nessa parte, acarretam a sua rejeição, o que se decide.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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Objecto do recurso

Como é sabido, são as conclusões da alegação que delimitam o objecto do recurso [art.ºs 635º n.º 4, 639º n.ºs 1 e 3 e 641º nº 2 al. b) todos do novo C.P. Civil], não podendo o Tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

Assim, da conjugação do teor das primitivas conclusões da alegação com as resultantes do convite ao aperfeiçoamento, se bem apreendemos o seu perfeito sentido, as questões a conhecer consistem em saber se o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento ao julgar que não constituía abuso de direito, nos termos do artº 334º do C. Civil, a pretensão do A. de fechamento das aberturas efectuadas pelos R.R. recorrentes no edifício e a reposição deste no estado anterior às obras; e se o mesmo acórdão se pronunciou indevidamente sobre a «pretensa desconformidade dos atos que possam vir a ser praticados naquele espaço com o âmbito legal do respetivo título constitutivo da propriedade horizontal», enfermando, por isso, da nulidade da al. d) do nº 1 do artº 615º do C. P. Civil.

As demais questões colocadas nas conclusões aperfeiçoadas de fls 540 e segs porque extravasam - como acima já referimos - do âmbito inicial do recurso não poderão ser conhecidas.


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Fundamentação

1) De Facto:

As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1. O A., por deliberação de 17 de Fevereiro de 2007, foi eleito administrador do prédio sito na Urbanização Quinta do BB, Bloco 2, entrada “C” (respostas aos art.ºs 1º e 2º).

2. Os condóminos identificados e aqui representados pelo A. são proprietários de todas as fracções ("P" a "AC") que são servidas por aquela entrada "C" e todas estão sob a única administração do aqui A. (resposta ao art.º 3º).

3. Sob as fracções "P" a "AC", que são servidas pela entrada “C”, encontra-se uma loja propriedade dos RR (al. A).

4. O R. marido efectuou obras no aludido prédio, as quais romperam a parede que estabelece a separação entre aquela caixa e uma das fracções (al. B).

5. Na loja referida em 3. foram realizadas algumas obras para, na mesma fracção, funcionar um restaurante (resposta ao art.º 4.º).

6. Estas obras desenrolam-se sob a responsabilidade dos aqui RR e sob a direcção directa do Réu-marido no exercício da sua actividade de industrial da construção civil (resposta ao art.º 5.º).

7. No decurso delas, e durante a semana que se iniciou em 19.02.07, começou a ser instalado um tubo, com a dimensão aproximada de 40cm x 40cm, para exaustação de fumos, vapores e semelhantes (resposta ao art.º 6.º).

8. O R. marido aproveitou uma caixa existente no interior daquele prédio e os operários às suas ordens estabeleceram duas comunicações entre a loja e a caixa, sendo uma do tipo janela (60 cm x 60 cm) e outra um buraco redondo com 40 cm de diâmetro (respostas aos art.ºs 7.º e 8.º).

9. Começaram a preparar a caixa para nela instalarem o tubo de exaustão e demais elementos e peças necessárias e adequadas àquele fim, e, de seguida, instalaram mesmo o dito tubo (resposta ao art.º 9.º).

10. No desenvolvimento destas obras, operários às ordens do R. marido e dirigidos por um senhor de nome Rogério rebentaram com a placa de cimento que constitui a cobertura do edifício, na qual abriram um buraco com o intuito de por ele fazerem passar o tubo de exaustão, o que consumaram (respostas aos art.ºs 10.º e 11.º).

11. Logo iniciaram obras de rompimento de igual abertura no telhado (resposta ao art.º 12.º).

12. Em determinadas secções foram cortadas duas vigotas da cobertura (resposta ao art.º 13.º).

13. O buraco aberto na cobertura do edifício foi feito para fazer passar para o exterior o tubo de exaustão (resposta ao art.º 14.º).

14. Tanto o projecto como o título de constituição da propriedade horizontal do prédio previam a afectação da fracção referida em 3. ao exercício de qualquer actividade comercial (resposta ao art.º 18.º).

15. As obras levadas a cabo pelo R. marido permitem a exaustão de fumos e cheiros das fracções em causa (resposta aos art.ºs 20.º e 21.º).

16. O tubo do exaustor foi aplicado de forma hermética e isolado das paredes interiores das fracções habitacionais para impedir as infiltrações de cheiros e ruídos (resposta ao artº 22º)

17. Para a reposição do edifício no seu estado primitivo, fechando os buracos e rompimentos, serão necessários de 28 dias (resposta ao art.º 25.º).


2) De Direito:

O acórdão recorrido revogou a sentença de 1ª instância e decidiu condenar os R.R. a tapar, em síntese, todas as aberturas por eles levadas a cabo no edifício e a reporem-no no estado anterior às obras nele realizadas sem o consentimento dos demais condóminos, considerando, além do mais, que, face à factualidade apurada, não era de considerar abusivo o exercício desse direito.

Os recorrentes recusam tal entendimento, insistindo que a pretensão do A. ora recorrido constitui abuso de direito, nos termos do art.º 334º do C. Civil, ademais quando se provou que o tubo do exaustor foi aplicado de forma hermética e isolado das paredes interiores das fracções habitacionais para impedir as infiltrações de cheiros e ruídos, quando a sua instalação pode aproveitar a todo o condomínio, e quando essa instalação foi devidamente «aprovada e licenciada pela autarquia».

1. Vejamos, então, se se verifica ou não, no caso, abuso de direito.

Dispõe o artº 334º do Código Civil que:

“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Como ensina o Prof. ALMEIDA COSTA (in Direito das Obrigações, 7ª ed. pag 68 ) o princípio do abuso do direito constitui um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas situações particularmente clamorosas, às consequências da rígida estrutura das normas legais.

As concepções que procuram precisar o conteúdo do abuso do direito reduzem-se basicamente a duas directrizes opostas: uma subjectivista e outra objectivista.

A teoria subjectiva considera decisiva a atitude psicológica do titular do direito; ter ele agido com o único propósito de prejudicar o lesado (acto emulativo).

A teoria objectiva, pelo contrário, desliga-se da intenção do agente, dando antes relevância aos dados de facto, ao alcance objectivo da sua conduta, de acordo com o critério da consciência pública.

Segundo PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “a concepção adoptada de abuso de direito é a objectiva. Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites.”( Código Civil Anotado, 4ª ed. Vol. I, pag 298).

Da mesma opinião é o Prof. CASTRO MENDES (in Lições de Direito Civil ao 2º ano jurídico de 72/73, pag 77) que, depois de se referir aos sentidos subjectivo e objectivo da ideia de abuso de direito, diz: “a teoria objectiva tem sobre a subjectiva a vantagem de evitar o problema da relevância das finalidades psíquicas de loucos ou incapazes. Parece ser esta a aceite pelo art.º 334º do Código Civil na sua parte final que qualifica de ilegítimo o acto pelo qual o titular de um direito o exerce, quando exceda manifestamente os limites impostos pelo fim social ou económico desse direito.”

Segundo o legislador, a determinação da legitimidade ou ilegitimidade do exercício do direito, ou seja da existência ou não de abuso do direito, afere-se a partir de três conceitos: a boa fé, os bons costumes e o fim social ou económico do direito.

A doutrina distingue dois sentidos principais da boa fé. “No primeiro, ela é essencialmente um estado ou situação de espírito que se traduz no convencimento da licitude de certo comportamento ou na ignorância da sua ilicitude, resultando de tal estado consequências favoráveis para o sujeito do comportamento. Neste sentido, a boa fé insere-se nas normas jurídicas como elemento constitutivo da sua previsão, da hipótese. No segundo sentido, já se apresenta como princípio (normativo e/ou geral de direito) de actuação. A boa fé significa agora que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros” [JORGE MANUEL COUTINHO DE ABREU, Do Abuso do Direito, pag. 55].

“Contudo, dizer-se que a boa fé, neste segundo sentido, exige um comportamento «honesto, correcto e leal» é dizer ainda muito pouco, é confirmar o carácter indeterminado, de «norma em branco», desta cláusula geral - o que acontece, aliás, com quase todas as outras… Por isso, a doutrina moderna, sobretudo a alemã, tem elaborado, com base na jurisprudência dos tribunais, uma série de «hipóteses típicas» ou «figuras sintomáticas» concretizadoras da cláusula geral da boa fé. Podemos assim destacar a proibição de venire contra factum proprium, impedindo-se uma pretensão incompatível ou contraditória com a conduta anterior do pretendente; aquilo que os alemães designam por Verwirkung, com que se veta o exercício de um direito subjectivo ou duma pretensão quando o seu titular, por não os ter exercido durante muito tempo, criou na contraparte uma fundada expectativa de que já não seriam exercidos (revelando-se, portanto, um posterior exercício manifestamente desleal ou intolerável); o abuso da nulidade por vícios formais - é inadmissível a impugnação da validade dum negócio por vício de forma por quem, apesar disso, o cumpre ou aceita o cumprimento realizado pela outra parte; a proibição de o credor recusar a prestação apta a satisfazer o seu interesse, apesar de não estar inteiramente de acordo com as estipulações contratuais (v.g., ligeira ou insignificante ultrapassagem do prazo ou falta de entrega de diminuta importância em dinheiro numa vultosa obrigação pecuniária - cfr. artº 802, nº 2 do Código Civil); a interdição de se invocar a «excepção de não cumprimento do contrato» (artº 428), quando a falta do inadimplente não seja de tal modo grave que justifique a recusa em cumprir da outra parte” ( Idem, ob. cit., pag. 59 e 60)

Em suma, os conceitos de boa fé e de abuso de direito têm conteúdo e extensão diferentes, sendo que a ideia de abuso de direito pode muitas vezes estar incluída na violação da boa fé. “É o que se dará, em regra, no domínio contratual, onde as partes devem proceder segundo a boa fé: aí, o abuso do direito será frequentemente uma ofensa da boa fé devida”.( cfr. Prof. VAZ SERRA, Do Abuso do Direito, págs. 265-266) .

Por bons costumes há-de entender-se um conjunto de regras de convivência que, num dado ambiente e em certo momento, as pessoas honestas e correctas aceitam comummente.

O fim social e económico do direito é a função instrumental própria do direito, a justificação da respectiva atribuição pela lei ao seu titular.

“Para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade.

Pelo que respeita, porém, ao fim social ou económico do direito, deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados (como sucede no poder paternal, no poder tutelar, etc.), a par de outros em que se reconhece maior liberdade de actuação ou decisão ao titular (direitos potestativos, direito de propriedade, dentro de certos limites, etc.)” [ Pires DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. I, pag 299 ].

De qualquer forma, o exercício do direito só é abusivo quando o excesso cometido for manifesto. É isso que resulta expressamente do art.º 334º e é também essa a lição de todos os autores e de todas as legislações [PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, ob. cit., pag 298/299].

Ora, no caso sub judice, ficou demonstrado que os R.R. ora recorrentes, tendo em vista a adaptação a restaurante de uma loja de que são proprietários no acima referido prédio constituído em regime de propriedade horizontal, procederam à instalação de um sistema de exaustão destinado a extracção de fumos, cheiros e vapores, com cuja instalação ocuparam parcialmente uma caixa que constitui parte comum do edifício, tendo ademais, para a respectiva execução, procedido à perfuração de uma parede, da cobertura e do telhado do mesmo edifício, onde abriram buracos, um com o formato de janela, de 60cm x 60cm, e outro com o diâmetro de 40cm, sem que, para tanto, tivessem procurado obter o prévio consentimento ou aprovação da maioria dos condóminos representativos de dois terços do valor total do prédio, em violação, portanto, do estatuído no n.º 1 do art.º 1425.º do C. Civil.

Ora, como se refere no acórdão recorrido, a sanção natural para a execução pelo(s) condómino(s) de obras ilícitas nas partes comuns de edifício em regime de propriedade horizontal é a sua demolição.

Com efeito, de harmonia com o nº 1 do artº 829º do C. Civil «se o devedor estiver obrigado a não praticar algum acto e vier a praticá-lo, tem o credor o direito de exigir que a obra, se obra feita houver, seja demolida à custa do que se obrigou a não a fazer».

E o pedido de demolição - como também ali se afirma, citando Aragão Seia - não constitui, por si, abuso de direito «porque é a própria lei que o determina e o condómino, requerendo-o, não está a exceder em nada o seu direito. Apenas reage contra o abuso do condómino que inovou, para que o edifício seja restituído ao seu estado anterior».

E não venham os recorrentes argumentar que o tubo do exaustor foi aplicado de forma hermética e isolado das paredes interiores das fracções habitacionais para impedir as infiltrações de cheiros e ruídos; que essa instalação pode aproveitar a todo o condomínio; e que foi devidamente licenciada pela autarquia.

Desde logo, porque o facto de o exaustor ter sido aplicado de forma hermética e isolado das paredes interiores das fracções autónomas habitacionais impedindo infiltrações de cheiros e ruídos, não releva para o caso; o importante é que ele se encontra instalado em parte comum do edifício, parte esta que a maioria dos condóminos poderá pretender destinar ou ter até já predestinado a outro fim.

Depois, porque está por demonstrar, atenta a matéria fáctica apurada, por um lado, que da instalação desse sistema de exaustão o condomínio possa beneficiar, como vêm afirmar os recorrentes (e não se antevê que utilidade, um sistema de exaustão concebido para canalização dos fumos, cheiros e vapores decorrentes do funcionamento de um restaurante, pode ter para as outras fracções sejam elas destinadas à habitação ou ao mero comércio, sabido até que o título constitutivo da propriedade horizontal respectivo apenas consente o exercício do comércio e não também a actividade industrial de restauração). E está igualmente por demonstrar, por outro lado, que a instalação desse sistema de exaustão tenha sido devidamente aprovado e licenciada pela autarquia, sendo certo que, ainda que o tivesse sido, não seria por isso que os condóminos lesados ficavam impedidos de exercerem os direitos que a lei lhe confere.

Não se vê, portanto, que a interposição da presente acção pelo ora recorrido, peticionando, além do mais, a condenação dos ora recorrentes a fecharem aquelas referidas aberturas e a reporem o edifício no estado em que se encontrava antes das obras por eles levadas a cabo, configure qualquer excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do respectivo direito.

Consequentemente não se verifica, como bem se concluiu e decidiu no acórdão recorrido, abuso de direito.

Improcedem, assim, nesta parte, as conclusões do recurso.   


2. Sustentam depois os apelantes que o acórdão padece da nulidade da al. d) do n.º 1 do art.º 615º do novo C. P. Civil, por excesso de pronúncia.

Na tese dos recorrentes, se bem compreendemos a sua pouco clara alegação, tal vício decorrerá do facto de o tribunal recorrido se ter pronunciado sobre «a pretensa desconformidade dos atos que possam vir a ser praticados naquele espaço com o âmbito legal do respectivo título constitutivo da propriedade horizontal», fundamento este que não teria sido aduzido pelo autor na petição inicial.

Ora, a al. d) - 2ª parte - do n.º 1 do citado art.º 615º do C. P. Civil prescreve a nulidade da sentença em que o juiz «conheça de questões de que não podia tomar conhecimento».

Esta nulidade, consistente, portanto, em pronúncia indevida, está em correlação com o disposto na última parte do n.º 2 do art.º 608º do C. P. Civil, que proíbe ao juiz de se ocupar de questões que as partes não tenham suscitado, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso.

Não é fácil definir com precisão o que sejam «questões» que o tribunal possa ou deva apreciar. Poderá dizer-se, no entanto, que isso se prende essencialmente com o conhecimento de todos os pedidos deduzidos, de todas as causas de pedir, e de todas as excepções, sejam elas invocadas pelas partes, sejam elas de conhecimento oficioso (vide LEBRE DE FREITAS, in A Acção Declarativa Comum, À Luz do Código Revisto, pag. 299).

Analisando, todavia, o acórdão recorrido, podemos adiantar, desde já, que esse vício não ocorre, porquanto, contrariamente ao sustentado pelos recorrentes, o aresto se limitou, a esse propósito, a refutar o argumento desenvolvido em 1ª instância para arredar a procedência da acção: «que não assiste razão aos moradores quando se insurgem contra as obras realizadas, que mais não fazem do que permitir o exercício da actividade para a qual foi licenciada a fração».

Com efeito, o que ali se declara, a esse respeito, textualmente, é o seguinte:

«Salvo o respeito devido, não podemos concordar com a argumentação expendida, desde logo porque não encontra suporte na matéria de facto apurada. E assim é porque, conforme se fez já menção, não ficou a constar do projecto aprovado que o espaço comum da “caixa” se destinasse a futura instalação de sistema de exaustão da fracção em causa ou de quaisquer outras que do mesmo viessem a carecer; depois, e decisivamente, porque o que consta do título constitutivo da propriedade horizontal é a afectação da fracção a qualquer actividade comercial (cf. o referido ponto 14.) e não à actividade de restauração, a qual não poderá, em nosso entender, considerar-se compreendida na destinação que ficou a constar do título.

Vejamos: Assente que é o título constitutivo da propriedade horizontal que estabelece o fim a que se destina a fracção, por maior latitude que se queira conferir ao conceito de actividade comercial, a verdade é que a restauração, sendo uma actividade transformadora, deve ser qualificada como industrial (…).

Faz-se finalmente notar, ainda a este respeito, que eventual licenciamento administrativo para o exercício de determinada actividade não compreendida no fim previsto no título apenas significa que, do ponto de vista da entidade licenciadora, que se rege por critérios de prossecução de interesse público, nada obsta ao seu desenvolvimento, sem que, todavia, resultem derrogadas as disposições legais que visam a tutela dos direitos de propriedade em que repousa a propriedade horizontal.

Tudo em suma para concluir que, não estando embora aqui directamente em causa a afectação a dar à fracção, a verdade é que, tendo o fim sido invocado na sentença apelada como fundamento legitimador das obras executadas pelos RR, é o mesmo de afastar, subsistindo a ilicitude das inovações introduzidas sem a prévia autorização legalmente exigida. E sendo a sanção a reposição natural, nos termos do art.º 562.º, implicando a destruição das obras e reposição do edifício no estado anterior, é de concluir pela razão do autor no que respeita ao pedido formulado em 1».

Consequentemente, concluir do conteúdo da precedente transcrição, como pretendem os recorrentes, que o acórdão recorrido conheceu de questão que não devia conhecer e cometeu a assinalada nulidade de sentença é absolutamente descabido ou despropositado.

Não houve, pois, pronúncia indevida, não enfermando o acórdão recorrido da invocada nulidade da al. d) - 2ª parte - do n.º 1 do referido art.º 615º do C. P. Civil.

Daí que improcedam, também nesta parte, as conclusões do recurso.

Decisão

Nos termos expostos, acordam em negar a revista e confirmar o douto acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 17 de Maio de 2017

Nunes Ribeiro (Relator)

Maria dos Prazeres Beleza

Salazar Casanova

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[1] Relator: Nunes Ribeiro
Conselheiros Adjuntos: Dra Maria dos Prazeres Beleza e Dr. Salazar Casanova