Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
46/19.5GAOHP.C1-A.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PENA ACESSÓRIA
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Data do Acordão: 06/29/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Referência de Publicação: DRE N.º 184/2023, I SÉRIE DE 21-09-2023, P. 5-24 (ACÓRDÃO N.º 8/2023).
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

Nos termos do artigo 69.º, n.º 2, do Código Penal (na redação dada pela Lei n.º 77/2001, de 13 de julho), a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor abrange a condução de todas as categorias destes veículos.

Decisão Texto Integral:


Processo n.º 46/19.5GAOHP.C1-A. S1

Recurso extraordinário de

fixação de jurisprudência

Acordam no Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

I

Relatório

1.1. No âmbito do processo n.º 46/19.5GAOPH.C1, o arguido AA foi julgado e condenado, mediante sentença de 12.06.2019 (Juízo de Competência Genérica ...), pela prática, a 09.03.2019, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, nos termos dos arts. 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal (doravante CP), na pena de multa de 60 dias, à taxa diária de € 5,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 meses.

1.2. Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra da pena acessória que lhe foi aplicada, quer quanto à sua duração, quer quanto à sua abrangência relativa a todos as categorias de veículos com motor. Por acórdão de 22.01.2020 foi negado provimento ao recurso, e foi concluído que:

 “face ao disposto no artigo 69.º, n.º 2, do Código Penal, não cabe ao juiz a possibilidade de decidir se a pena acessória de inibição de conduzir pode abranger todas as categorias de veículos motorizados, ou se pode abranger apenas determinadas categorias de veículos. Assim é porque a proibição de conduzir veículo s motor vale para todos os veículos.

Nem mesmo as razões pessoais, sociais ou profissionais, fortes ou não, podem restringir ma inibição de conduzir a determinadas categorias de veículos (...)”.

1.3. Segundo a certidão junta aos autos, o Acórdão recorrido foi notificado ao Ministério Público, por termo nos autos, a 23.01.2020, e ao mandatário do recorrente, por via postal expedida na mesma data (23.01.2020); o acórdão recorrido transitou em julgado no dia 06.02.2020 (cf. certidão junta aos autos).

2. O Ministério Público, mediante requerimento apresentado a 20.02.2020 (cf. certidão junta aos autos), veio interpor o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos dos arts. 437.º, n.º 2 e 438.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (doravante CPP), com fundamento em oposição entre o acórdão referido e o acórdão de 21.10.2010, do Tribunal da Relação de Évora, prolatado no âmbito do processo n.º 157/10.2GTABF.E1, e transitado em julgado a 16.11.2010 (cf. certidão junta aos autos).

Em síntese, alega que os acórdãos em confronto estão em oposição sobre a mesma questão de direito relativa à possibilidade (ou não) de aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor abrangendo todas as categorias de veículo com motor, ou apenas alguma ou algumas dessas categorias, tendo por base o disposto no art. 69.º, n.º 2, do Código Penal.

           

3. Em conferência, por acórdão de 09.07.2020[1], foi decidido que o recurso devia prosseguir por se verificar a necessária oposição de julgados sobre a mesma questão fundamental de direito, em situações factuais idênticas, e no domínio da mesma legislação.

4. Após o cumprimento do disposto no art. 442.º, n.º 1, do CPP, o Ministério Público e o arguido apresentaram as alegações. 

4.1. O recorrente (Ministério Público) concluiu as suas alegações nos seguintes termos:

«1) Na proposta de Lei nº 69/VIII - que levou à alteração introduzida pela Lei nº 77/2001, de 13.07- afirmam-se como prioridades: alcançar a redução dos índices de sinistralidade e o aumento da segurança rodoviária.

2) Para alcançar tais objetivos essa Proposta refere expressamente como imprescindível o reforço da prevenção através de um "pronto e eficaz sancionamento dos prevaricadores".

3) O legislador apercebeu-se de que havia um desfasamento entre o Código da Estrada e o Código Penal e, em 2001, decidiu proceder à agravação dos limites mínimo e máximo da pena acessória já que é neste diploma que se punem comparativamente as condutas mais graves.

4) As alterações introduzidas pela Lei nº 77/2001, de 13.07, não tiveram, portanto, subjacente a ideia de uma maior complacência para com os infratores estradais e, muito menos, de enfraquecimento das medidas até aí existentes.

5) Analisando os trabalhos preparatórios da revisão de 2001, conclui-se que, em face da supressão do segmento "ou de uma categoria determinada", não é possível restringir a aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir a uma determinada categoria de veículos.

6) O artº 69º contém norma integrado num conjunto de preceitos cuja existência tem de ser coerente e fazer sentido no quadro legal de princípios vigentes em matéria de infrações rodoviárias.

7) E uma interpretação sistemática do artº 139º do CE e do artº 147.º nº 2 do CP leva a essa mesma conclusão de que a sanção acessória de proibição de conduzir não pode ser restrita a uma categoria de veículos.

8) Uma vez que, no domínio do ilícito de mera ordenação social, onde se punem condutas dignas de menor censura social, a inibição de conduzir abrange todos os veículos com motor, seria uma contradição manifesta do sistema admitir que, em situações mais graves e que constituem crime, a proibição pudesse ser restrita a uma determinada categoria de veículos.

9) A não ser que não se encontrasse uma interpretação plausível do preceito - o que não é o caso -, de acordo com a regra de que o intérprete deve presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, não se pode afirmar, como faz o acórdão fundamento, que a supressão da expressão "ou de uma categoria determinada" nada modificou o regime anteriormente vigente.

10) Se o nº 2 do artº 69º do CP, na redação de 95, estabelecia que a proibição de conduzir "pode abranger a condução de veículos motorizados de qualquer categoria de veículos ou de uma categoria determinada" e se a Lei nº 77/2001, de 13.07, retirou a parte "ou de uma categoria determinada", então, é porque o legislador quis dizer coisa diferente do que dizia.

11) A reforma introduzida pelo DL nº 48/95, de 15.03, na senda do que preconizava Figueiredo Dias, procedeu à reclamada "reconformação" das penas acessórias.

12) Neste novo quadro legal a pena acessória de proibição de conduzir passou a "ter como pressuposto formal a condenação do agente numa pena principal por crime no exercício da condução, ou com utilização de veículo, ou cuja execução tivesse sido por este facilitado de forma relevante; e por pressuposto material a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável", circunstância que eleva o limite da culpa pelo facto.

13) Neste novo contexto, à proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir‑se) um efeito de prevenção geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa. (...) Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano."

14) A proibição de conduzir desempenha "uma função preventiva adjuvante da pena principal (...) que não se esgota na intimidação da generalidade, mas que se dirige também, ao menos em alguma medida, à perigosidade do delinquente."

15) As finalidades da punição dirigem-se também à perigosidade do delinquente e, portanto, uma solução que passe por permitir a restrição da proibição a uma determinada categoria de veículos seria incompatível com tais finalidades.

16) A conceção que mais se harmoniza com a letra da lei e com o pensamento legislativo é a de que proibição de conduzir aplicada nos termos do Código Penal pode abarcar outra categoria, ou outras, diferente (s) daquela (s) a que pertence o veículo com o qual foi cometida a infração.

17) Outro tipo de solução permitiria que o arguido que cometesse um crime com uma determinada categoria de veículo pudesse continuar a conduzir livremente na via pública outras categorias de veículo de que fosse titular de título de condução, o que manifestamente comprometeria o efeito da pena acessória de proibição de conduzir, a cujo cumprimento está indelevelmente associado algum sacrifício para o arguido.

18) Em face do disposto no artº 69º nº 2 do Código Penal, a sanção acessória de proibição de conduzir não pode ser restringida a determinadas categorias de veículos a motor.»

4.2. O arguido veio igualmente apresentar alegações, que concluiu do seguinte modo:

1. O n.º 2 do artigo 69.º do Código Penal, atribui ao Juiz, aquele que aplica o direito, a possibilidade do mesmo decidir se a pena acessória de inibição de conduzir pode abranger todas as categorias de veículos motorizados, ou se pode abranger apenas determinadas categorias de veículos, pelo que só na análise ao caso concreto poderá o Aplicador decidir mediante os factos dados como provados.

2. Neste sentido, somos da opinião que se deve fixar a seguinte jurisprudência:

«O N.º 2 DO ART.º 69 DO CÓDIGO PENAL DEVE SER INTERPRETADO NO SENTIDO DE SER POSSÍVEL AO JULGADOR DECIDIR, EM CADA CASO CONCRETO, SE A PROIBIÇÃO ABRANGE, OU NÃO, A CONDUÇÃO DE VEÍCULOS COM MOTOR DE QUALQUER CATEGORIA OU RESTRINGIDA A UMA OU VÁRIAS CATEGORIAS.»”

5. Colhidos os vistos e reunido o Pleno dos Juízes Conselheiros das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, cumpre decidir.

II

Fundamentação

A. Da oposição de Julgados

1. A decisão, tomada na secção criminal por acórdão de 09.07.2020, sobre a oposição de julgados, não vincula o pleno das secções criminais. Por isso devemos reapreciar a questão.

2.1. No presente caso, o acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Coimbra, foi proferido a 22.01.2020 e transitou em julgado a 06.02.2020. O recurso foi interposto pelo Ministério Público a 20.02.2020. Entende-se, pois, que se encontra cumprido o prazo de 30 dias após o trânsito em julgado do acórdão recorrido, conforme o disposto no art. 438.º, n.º 1, do CPP.

O acórdão fundamento do Tribunal da Relação de Évora foi proferido a 21.10.2010 e transitou em julgado a 16.11.2010.

Considera-se tempestivo o recurso interposto.

Ambos os acórdãos proferem decisões ao abrigo do disposto no art. 69.º, n.º 2.º, do CP, assim se considerando que na base de ambas as decisões em confronto está a mesma legislação. O art. 69.º, n.º 2, do CP tem a seguinte redação desde o Decreto-Lei n.º 48/95, de 15.03: “A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria.”

Precisemos, agora, qual a questão em discussão.

2.2. Em ambos os acórdãos em oposição, a questão de direito controversa reside na possibilidade de aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor abrangendo ou todas as categorias de veículos motorizados ou apenas alguma ou algumas das categorias de veículos motorizados.

2.2.1. O acórdão recorrido decidiu nos seguintes termos:

«A primeira questão a apreciar é a de saber se o nº2 do artigo 69º do Código Penal atribui ao juiz a possibilidade de decidir se a pena acessória de inibição de conduzir pode abranger todas as categorias de veículos motorizados, ou se pode abranger apenas determinadas categorias de veículos.

Dispõe esta norma legal que “A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria”.

Esta é a redacção que lhe foi conferida pela Lei nº 77/2001, de 13 de Julho.

A redacção anterior da mesma norma dispunha que “A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos motorizados de qualquer categoria ou de uma categoria determinada”.

Esta redacção anterior não deixava dúvidas ao referir “ou de uma categoria determinada”. A inibição podia abranger a condução de veículos de qualquer categoria ou apenas os de uma determinada categoria.

E não se diga agora que esta norma tinha uma redacção redundante. A norma explicitava os veículos que a inibição podia abranger: todos ou apenas alguns veículos a motor.

Ora, se o legislador quis retirar da norma a expressão “ou de uma categoria determinada”, quis, naturalmente, que a inibição se aplicasse a todos os veículos motorizados; isto é, aos veículos motorizados de qualquer categoria.

Não se tratou de corrigir a redacção da norma mas sim de alterar o seu sentido.

A palavra pode, que significava na redacção anterior a alternativa entre aplicar a inibição a todos os veículos ou a alguns, manteve-se na redacção actual. No entanto, agora a norma não comtempla nenhuma alternativa. A inibição aplica-se a todos os veículos motorizados.

É, aliás, o que está de acordo com a Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 69/VIII que propõe a alteração do artigo 69º do Código Penal, entre outros, quando afirma que “a redução dos índices de sinistralidade constitui uma das prioridades do XIV Governo Constitucional em matéria de segurança rodoviária. Neste sentido, o Governo pretende aumentar a segurança rodoviária, adoptando medidas ajustadas à realidade social, à situação das infra-estruturas e à evolução dos comportamentos dos intervenientes no sistema de trânsito, em especial os condutores. A condução perigosa constitui uma das principais causas da sinistralidade rodoviária e está normalmente associada ao excesso de velocidade, à prática de manobras perigosas, à condução sob influência do álcool ou em estado de embriaguez e, em menor grau, à condução sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas. Deste modo, e atendendo à importância dos bens jurídicos postos em causa por estas condutas, como a vida, a integridade física e bens patrimoniais de valor elevado, torna-se imprescindível reforçar a prevenção, o que requer o pronto e eficaz sancionamento dos prevaricadores”.

Refere-se ainda no mesmo diploma que “Uma vez que a sanção acessória de inibição de conduzir está prevista nos dois Códigos (artigo 139.º do Código da Estrada e artigo 69.º do Código Penal), e porque se regista um desfasamento entre ambos relativamente à sanção aplicável, procedeu-se à agravação dos limites mínimo e máximo da pena acessória prevista no n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal. Desta forma, a pena estatuída no Código Penal passa a ser mais gravosa do que a sanção acessória cominada no Código da Estrada para condutas comparativamente menos graves”.

Ora, se o pretendido era acabar com o desfasamento entre os dois Códigos (da Estrada e Penal) relativamente à inibição de conduzir, mais uma razão para acabar com tal desfasamento no que respeita aos veículos por ela abrangidos, já que no Código da Estrada tal sanção aplica-se a todos os veículos, nos termos do artigo 147º, nº 2.

Na supra mencionada Exposição de Motivos refere-se ainda que “atendendo aos especiais deveres de cuidado que impendem sobre certas categorias de condutores, designadamente condutores de veículos de transporte escolar, ligeiros de transporte público de aluguer, pesados de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas, procede-se à agravação da pena que ao caso caberia, em um terço nos seus limites mínimo e máximo, no caso de aqueles condutores praticarem crimes de condução perigosa ou de condução em estado de embriaguez. O agravamento da sanção dos crimes referidos nos artigos 291.º, nºs 1, alínea a), 2 e 3, e 292.º aplica-se igualmente aos condutores de veículos de socorro ou de emergência”.

Neste contexto, não se vê que a norma em causa possa ser interpretada como defende o recorrente.

Frisa-se que a Lei nº 71/2001, de 13 de Julho, agravou a responsabilidade de certos condutores, nomeadamente a dos condutores de transportes pesados de mercadorias ou de produtos perigosos, nos termos da nova redacção que foi conferida ao artigo 294º do Código Penal.

Estipula esta norma legal que “quando os crimes previstos nos artigos 291º e 292º forem cometidos no exercício da respectiva actividade por condutores de veículos ... pesados de passageiros ou de mercadorias ou de mercadorias perigosas, o agente é punido com a pena que ao caso caberia, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo”.

Foi, pois, neste contexto político-criminal que a redacção da norma do artigo 69º, nº 2, do Código Penal sofreu a alteração supra referida. Alteração que se traduz no facto da proibição de conduzir ter um efeito universal; isto é, vale para todas as categorias de veículos. (...)

E, desta interpretação não resulta qualquer violação de princípios constitucionais. Violação do princípio constitucional da igualdade haveria no caso de se decidir no sentido do pretendido pelo recorrente. O recorrente pretende ser beneficiado, não inibido, pelo facto de ser motorista profissional, sendo que esse benefício traduziria desigualdade perante todos os condutores alcoolizados mas não motoristas de profissão. O recorrente pretende um tratamento desigual para o que é igual.

O facto de o recorrente não poder exercer a condução de veículos motorizados, não o impede de exercer qualquer outro tipo de actividade. Pelo que inexiste qualquer violação ao direito ao trabalho. A proporcionalidade há-de verificar-se em função do facto cometido, e não em função da actividade exercida pelo recorrente, fora das circunstâncias em que os factos ocorrerem” – cfr. aresto da RC supra mencionado. (...)

Pelo que fica dito, conclui-se que, face ao disposto no artigo 69º, nº 2, do Código Penal, não cabe ao juiz a possibilidade de decidir se a pena acessória de inibição de conduzir pode abranger todas as categorias de veículos motorizados, ou se pode abranger apenas determinadas categorias de veículos. Assim é porque a proibição de conduzir veículos a motor vale para todos os veículos.

Nem mesmo as razões pessoais, sociais ou profissionais, fortes ou não, podem restringir a inibição de conduzir a determinadas categorias de veículos, pelas razões supra apontadas.

O direito ao trabalho, constitucionalmente consagrado, não é um direito absoluto, não se podendo sobrepor ao interesse público subjacente aos fins das penas. De qualquer forma, neste caso o arguido não fica impedido de trabalhar mas apenas de conduzir veículos motorizados, seja no exercício da actividade profissional ou fora dela.

Assim, o tribunal a quo não violou o disposto no artigo 69º, nº 2, do Código Penal e bem andou ao decidir da forma como o fez.»

2.4.2. Em situação idêntica, o acórdão fundamento considerou que:

«2.1. - Da admissibilidade legal de restrição da pena acessória de proibição de conduzir a certa categoria de veículos.

– Em primeiro lugar, importa deixar claro uma vez mais o nosso entendimento, segundo o qual o nº 2 do art. 69º do C. Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei 77/2001 de 13.07, continua a prever a faculdade de o tribunal restringir a proibição de conduzir a certa ou certas categorias de veículos, ao dispor que “ A proibição ... pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria”, entendimento já expresso em vários acórdãos desta Relação do mesmo relator. (...)

Quanto à questão de direito em causa, embora a Lei 77/2001 tenha eliminado a locução, “ou de uma categoria determinada”, que constava da versão originária (1995) do nº 2 do art. 69º do C. Penal (A proibição pode abranger a condução de veículos motorizados de qualquer categoria ou de uma categoria determinada), tal eliminação apenas põe termo à redundância antes presente no texto legal, sem que o seu significado se altere minimamente, pois a actual formulação compreende, gramaticalmente, tanto a proibição relativa a todas as categorias de veículos, como de alguma ou algumas delas, ganhando em simplicidade e correcção gramatical. (...)

Mantém-se, pois, a possibilidade de restringir a proibição de conduzir a alguma ou algumas categorias de veículos que – contrariamente ao que parece suposto na sentença recorrida – era a interpretação corrente do art. 69º nº2 do C.Penal antes das alterações introduzidas pela Lei 77/2001 e foi mesmo mantida depois daquela alteração.

Por outro lado, ainda do ponto de vista literal, só a consideração pelo legislador de que a proibição pode abranger ou não a condução de veículos de qualquer categoria explica a redacção do nº 2 do art. 62º («A proibição...pode abranger ...»), pois trata-se de norma dirigida ao intérprete, ao juiz, a quem cabe a aplicação da lei e não a qualquer outra entidade (v.g. como sucede com lei de autorização legislativa). Se o legislador pretendesse que o juiz tivesse que aplicar sempre a proibição de conduzir de quaisquer veículos a motor, bastava-lhe ter dito, “A proibição.. abrange a condução de veículos com motor de qualquer veículo.”.

Por último, não se diga que o legislador não ponderou bem a questão pois não podia deixar de tê-la presente, visto que uma das diferenças bem marcadas desde sempre entre a pena acessória de proibição de conduzir e a sanção acessória administrativa de inibição de conduzir prevista no C. Estrada, encontra-se precisamente no âmbito da proibição: contrariamente ao art. 69º do C. Penal, o C. Estrada sempre impôs que a inibição de conduzir abranja, necessariamente, todos os veículos a motor. – Cfr o nº 3 do art. 139º do C. Estrada, em vigor à data do início de vigência da Lei 77/2001, e o art. 147º nº 3 da sua actual versão, que é do seguinte teor, “ A sanção de inibição de conduzir ... refere-se a todos os veículos a motor ”.

Também do elemento histórico próximo e remoto, nomeadamente a partir dos trabalhos preparatórios da Lei de 2001, não se conclui que o legislador tenha querido pôr fim à possibilidade de restringir a proibição a certa categoria de veículos claramente afirmada na discussão original (vd actas da revisão de 1995).

Não é, portanto, a fidelidade à vontade do legislador (nas posições mais assumidamente subjectivistas em matéria de interpretação da lei) ou ao pensamento legislativo a que se refere o nº 2 do art. 9º do C. Civil que justificam a posição maioritária na jurisprudência, mas sim - em nosso modesto entender e com todo o respeito pelo entendimento contrário – uma compreensão da norma desviada dos fundamentos e finalidades da pena acessória que a afasta da sua matriz e dos objectivos de política criminal que legitimamente pode prosseguir, conforme procuramos demonstrar.

b) Na verdade, temos visto afastada a possibilidade de restrição da proibição de conduzir a certa categoria de veículos, com base no argumento (assumido na sentença recorrida) de que aquela pena acessória tem a sua razão de ser no perigo do condutor alcoolizado, pelo que, residindo o perigo no indivíduo e não no veículo, não faria sentido permitir-se – pela via da restrição da proibição a certa categoria de veículos – que o arguido continuasse a conduzir certa categoria de veículos e não outras.

Temos entendido, porém, e cada vez mais convictos de que é esta a conclusão a retirar do nosso C. Penal, que neste Diploma (como noutros ordenamentos jurídicos,) não é a perigosidade do condutor, mas sim a culpa, que constitui a razão determinante ou fundamento da pena acessória de proibição de conduzir, independentemente do tipo de crime que em concreto fundamenta a sua aplicação, pelo que nada obsta à restrição da proibição a certa categoria de veículos. (...)

c) A pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor constitui uma verdadeira pena, indissoluvelmente ligada ao facto praticado e à culpa do agente que, como a generalidade das penas acessórias no nosso ordenamento jurídico-penal, constitui uma sanção adjuvante ou acessória da função da pena principal, que permite o reforço e diversificação do conteúdo penal da condenação. (...)

Como verdadeira pena acessória que é, a proibição de conduzir não se confunde com as medidas de segurança, nomeadamente de natureza penal, como é o caso da Cassação do título e interdição da concessão do título de veículo com motor (actual art. 101º do C. Penal).

Sem que sejam substancialmente diversos os fins que as penas e as medidas de segurança procuram satisfazer, ou seja, finalidades de prevenção, [5 — Roxin, Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Civitas-Madrid, reimpressão de 1997, p. 104.] diferentes são os pressupostos de que depende a sua aplicação e os respectivos limites. Como melhor veremos infra, a pena tem como pressuposto e limite a culpa do agente pelo cometimento do facto, enquanto a medida de segurança pressupõe que a perigosidade do agente, demonstrada na prática de facto ilícito grave, continue a existir no futuro, pois como estabelece o art. 40º nº 3 do C. Penal a sua aplicação depende sempre da gravidade do facto e da perigosidade do agente.

d) Por outro lado, afigura-se-nos que o legislador pretende aproveitar sobretudo as virtualidades preventivas da pena acessória, que radicam essencialmente na dissuasão inerente à privação de direito especialmente valorizado pela generalidade dos cidadãos, o direito de conduzir, e não atingir fins, residuais no nosso direito penal, de mera inocuização ou prevenção especial negativa, privando o agente da condução de veículo com fundamento no receio do seu comportamento estradal futuro, ou seja, na sua perigosidade. (...)

É a caracterização da proibição de conduzir como uma verdadeira pena, cujas virtualidades preventivas radicam essencialmente no especial valor que a generalidade dos cidadãos atribui ao direito de conduzir e não no efectivo afastamento do agente das estradas, que permite compreender, de lege data, face ao direito vigente, que o art. 69º nº1 b) C. Penal preveja a sua aplicação a condenado por crime cometido com utilização de veículo, em que não está em causa a conduta estradal do arguido, passada ou futura, a qual pode ser mesmo irrepreensível, tal como se pode compreender, de iure condendo, que sector relevante da doutrina penal preconize a sua consagração futura como pena principal, aplicável mesmo a crimes que nada tenham a ver com a circulação rodoviária.(....)

e) Também a aludida distinção entre a pena acessória, por um lado, e as medidas de segurança, por outro, ao nível dos pressupostos e finalidades de ordem geral, permitem compreender melhor que a pena acessória não visa especificamente responder à perigosidade do agente.

Na verdade, como escreve Jescheck [7 — Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4aed - -Trd. De José Luís Manzanares Samaniego, Editorial Comares-Granada, 1993, p. 716.] a propósito dos §§ 44 e 69º, do Código Penal Alemão (que correspondem aos arts. 69º e 101o, do C.P. Português), enquanto as medidas de segurança criminais de cassação e interdição da licença de conduzir, respondem à perigosidade futura e deficiente aptidão do arguido para conduzir veículos motorizados,[8 — Assim, expressamente, o art. 101o no1 do C. Penal Português, que faz depender a aplicação das medidas de segurança de Cassação e de Interdição a condutor condenado ou absolvido só por falta de imputabilidade, de(a) fundado receio de que possa vir a praticar outros factos da mesma espécie ou (b) de ser considerado inapto para a condução de veículos com motor.] a proibição de conduzir constitui uma advertência, atendendo a razões de prevenção geral e especial, por um comportamento culposo e consideravelmente defeituoso no tráfico rodoviário [em regra] sem que, todavia, o arguido surja, no que se refere à sua personalidade, como inapto ou perigoso para conduzir veículos motorizados.

Para responder à perigosidade (al.a)) ou inaptidão (al. b)) para a condução de veículo com motor ou ao especial risco de repetição da conduta típica no futuro, prevê o Código Penal a referida medida de segurança de Cassação do título de condução (cfr art. 101º nº 1), com a qual se impede o arguido de conduzir veículos de qualquer categoria, estabelecendo-se ainda (cfr nº3), de forma lógica e coerente face ao prognóstico de perigosidade do condutor, que não possa ser concedido novo título de condução de veículos com motor, de qualquer categoria, durante o período de duração da cassação.

Diferentemente sucede com a pena acessória de proibição de conduzir, cujas finalidades de prevenção, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização, bem podem justificar que se limite a proibição a dada categoria de veículos ou se exclua da proibição alguma dessas categorias, designadamente por razões de ordem laboral, de assistência à família ou de saúde, como o permite desde 1995 o C. Penal Português.

Deste modo, a restrição da proibição de conduzir a certa categoria de veículos pode constituir uma forma de promover a reintegração social do arguido, evitando a sua dessocialização. (...)

Por outro lado, a restrição da proibição de conduzir a certa categoria de veículos satisfaz melhor o aludido princípio constitucional da proporcionalidade em matéria de penas e mesmo o princípio constitucional da igualdade, ao tratar de forma desigual o que não é igual. Isto é, permite atenuar o rigor da pena acessória, que é insusceptível de dispensa, substituição ou suspensão, como aludido, e atenuar as desigualdades materiais que podem resultar de tratar de forma igual o que é desigual.(...)

2.4.2. – Da limitação da proibição de conduzir no caso sub judice.

(...)

Do ponto de vista da prevenção geral positiva, é particularmente relevante que a TAS verificada (1,26 g/l) se encontre no limiar da punibilidade penal ou seja, 1.2 gr/l e não 0,5 gr/l como considerado na sentença recorrida, pois trata-se da relevância do grau de alcoolemia para a consideração do maior ou menor grau de ilicitude penal e esta só tem lugar partir de 1.20gr/l (cfr art. 71º nº2 a) do C. Penal) (...).

A proibição de conduzir quaisquer outras categorias de veículos, à excepção dos veículos pesados de mercadorias, não deixa de confrontá-lo com as desvantagens inerentes à proibição de conduzir e permite-lhe valorizar a habilitação legal para conduzir, não só em geral, como sobretudo para exercer a sua profissão. A proibição de conduzir pode, deste modo, constituir melhor instrumento de prevenção do crime que a pura e dura proibição de conduzir em resposta inflexível à prática do crime, mais própria de uma perspectiva retributiva da pena que da sua instrumentalização a finalidades utilitaristas de prevenção acolhidas no nosso ordenamento jurídico-penal.

Concluímos, pois, pela procedência do recurso, pelo que excepcionar-se-á a condução de veículos pesados de mercadorias como pretendido pelo arguido.»

2.5. Tendo em conta o exposto, entende-se que quer os requisitos formais, quer os requisitos substanciais de admissibilidade do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência estão preenchidos, nomeadamente, a necessária oposição de julgados dado que têm soluções contrárias para a mesma questão de direito: de acordo com o disposto no art. 69.º, n.º 2, do Código Penal, a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor abrange a condução de veículos com motor de qualquer categoria ou abrange apenas alguma ou algumas das categorias de veículos com motor?

Analisemos o problema.

3. Cada tipo legal de crime consagrado no Código Penal português prevê, como sanção, a possibilidade de aplicação de uma privativa de liberdade — pena de prisão — ou de uma pena pecuniária— pena de multa —, constituindo estas as penas principais[2]. São estas as penas que podem ser fixadas por um juiz numa qualquer sentença quando se conclua pela prática de um tipo legal de crime. Havendo a aplicação de uma pena principal, poderá ainda aplicar-se uma pena acessória; assim designada dado que a sua aplicação depende da aplicação de uma pena principal[3]. A pena acessória, como pena que é, necessariamente se encontra ligada à culpa[4] do agente pelo facto.

Na verdade, o “CP de 1982 terminou (...) com o carácter necessário da produção de efeitos das penas (art. 65.º; v. também CRP, art. 30.º-4) e chamou aos efeitos não necessários «penas acessórias», dando a estas um sentido e um conteúdo não apenas de intimidação da generalidade, mas de defesa contra a perigosidade individual”[5]. E também quanto à pena acessória da proibição de conduzir veículos com motor se deve assinalar este “efeito de prevenção geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa”[6]. Sendo o quantum de uma pena acessória determinado pelo juiz em função do caso concreto, tendo como limite o imposto pela culpa do agente pelo facto cometido, e como finalidades as exigências de prevenção (de acordo com o disposto, no art. 40.º, n.º 1, do CP), em ordem a determinar a pena de acordo com os critérios estabelecidos no art. 71.º, do CP, e em conjunto com uma pena principal. E dada esta conexão com o crime praticado, há quem considere que se pretende “proteger de forma imediata o interesse público”[7].

4. A pena acessória de proibição de conduzir surge pela primeira vez no nosso Código Penal com a reforma introduzida pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março. E constitui uma resposta ao que então a doutrina proclamava:

«deve, no plano de lege ferenda, enfatizar-se a necessidade e a urgência  político-criminais de que o sistema sancionatório português passe a dispor — em termos de direito penal geral e não somente de direito penal da circulação rodoviária — de uma verdadeira pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, Uma tal pena deveria ter como pressuposto formal a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução, ou com utilização de veículo, ou cuja execução tivesse sido por este facilitada de forma relevante; e por pressuposto material a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável. Uma tal pena — possuidora de uma moldura penal específica — só não teria lugar quando o agente devesse sofrer, pelo mesmo facto, uma medida de segurança de interdição da faculdade de conduzir, sob a forma de cessação da licença de condução ou de interdição da sua concessão»[8].

A pena acessória que acabou consagrada no art. 69.º, do CP, pressupõe que o agente tenha sido punido por um dos crimes previstos nas alíneas do n.º 1[9] — “a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º;  b) Por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante; ou  c) Por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção de condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.”

Atento o disposto neste artigo, que determina a condenação nesta pena acessória a quem for punido por um destes crimes[10], parece que se passou a prescindir de um outro requisito (para além daquele que impõe que estas penas apenas possam ser aplicadas conjuntamente com uma pena principal) característico deste tipo de penas que é o de ser “sempre necessário (...) que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação em espécie da pena acessória”[11].

Porém, a omissão deste pressuposto material é apenas aparente[12]. Na verdade, implicitamente este pressuposto material aparece referido quando, na alínea a), se determina que a aplicação da pena acessória depende da prática de um crime de homicídio ou de ofensa à integridade física quando ocorra a violação de regras de trânsito rodoviário, violação esta que igualmente ocorre quando se pratica um dos crimes previstos no art. 291.º, ou 292.º, do CP[13]; ou quando na alínea b) se exige que tenha sido de forma relevante facilitada a execução do crime pela utilização de veículo, dado que a simples utilização de um veículo como “arma” para o cometimento do crime revela uma ilicitude agravada pela utilização de um meio especialmente perigoso[14], ou quando na alínea c) se faz depender a aplicação desta pena de uma recusa de submissão a provas legalmente estabelecidas. Ou seja, subjacente estão condutas que revelam uma condução de veículos motorizados especialmente censurável, ou uma violação ostensiva de regras rodoviárias impostas em ordem a assegurar a segurança do tráfego rodoviário (como é a necessidade de submissão a testes para deteção de substâncias que aumentam significativamente a perigosidade de uma condução de um veículo motorizado). O legislador fez depender a aplicação desta pena acessória da condenação por certos crimes — o que revela o particular conteúdo do ilícito que determinou a sua aplicação —, ou seja, o legislador considerou, abstratamente, que o particular conteúdo de ilícito subjacente aos crimes elencados determina a aplicação da pena[15], sendo que caberá ao juiz determinar em concreto, em função do pressuposto e limite da pena e dos fundamentos de aplicação das penas, o período durante o qual deve ser aplicada a pena acessória. A ilicitude do comportamento aumenta o limite da culpa pelo facto[16].

Assim, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção será determinado o quantum da pena, a partir de uma moldura que oscila entre os 3 meses e os 3 anos — ou seja, o juiz pode individualizar a pena e determinar a sua duração de acordo com o limite imposto pela culpa e de acordo com as exigências de prevenção, assim cumprindo os critérios gerais de determinação da pena (nos termos do art. 71.º, do CP). Na verdade, ainda que se possa dizer que o legislador impôs a aplicação desta pena aquando da prática de certos crimes, certo é que a determinação do período de aplicação da pena imporá ainda ao juiz que avalie em concreto o particular conteúdo do ilícito praticado, assim justificando materialmente o quantum a aplicar. E assim se mantendo o respeito pelo princípio da culpa e pelo princípio da proporcionalidade da pena, em cumprimento do disposto no art. 30.º, n.º 4, da CRP. Além disto, a aplicação de uma pena acessória, como a de proibição de conduzir veículos com motor, corresponde a uma certa exigência da doutrina que entende que se deveria “passar a prever a aplicação de penas acessórias a título principal. Isto é: passar a prever expressamente uma pena principal (de prisão ou de multa) e uma pena acessória para sancionamento de determinados tipos de crime”[17].

Acresce referir que a pena acessória, tal como se encontra prevista, constitui um efeito do crime e não um efeito de uma pena, dado que a sua aplicação não depende da aplicação de uma qualquer pena determinada[18].

E, desde há muito o Tribunal Constitucional tem considerado que a pena acessória prevista no art. 69.º, do CP, não constitui um efeito automático de uma pena:

Admitindo que a faculdade de conduzir veículos automóveis é um direito civil, é certo que a perda desse direito é uma medida que o juiz aplica e gradua dentro dos limites mínimo e máximo previstos, em função das circunstâncias do caso concreto e da culpa do agente, segundo os critérios do artigo 71º do Código Penal. Poder-se-á, assim, dizer que o juiz não se limita a declarar a inibição como medida decorrente de forma automática da aplicação da pena, com mero fundamento na lei (...).

A circunstância de ter sempre de ser aplicada essa medida, ainda que pelo mínimo da medida legal da pena, desde que seja aplicada a pena principal de prisão ou multa, não implica, ainda assim, neste caso, colisão com a proibição de automaticidade. A adequação da inibição de conduzir a este tipo de ilícitos revela que a medida de inibição de conduzir se configura como uma parte de uma pena compósita, como se de uma pena principal associada à pena de prisão se tratasse, em relação à qual valem os mesmos critérios de graduação previstos para esta última.

Com efeito, a aplicação da inibição de conduzir fundamenta-se, tal como a aplicação da pena de prisão ou multa, na prova da prática do facto típico e ilícito e da respectiva culpa, sem necessidade de se provarem quaisquer factos adicionais.» (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 53/97, de 23.01.1997, Relatora: Cons. Maria Fernanda Palma[19]).

As penas acessórias, enquanto penas, e ainda que se possa considerar ter igualmente um efeito de intimidação, enquanto este se ativer aos estritos limites impostos pela culpa (assim se cumprindo o disposto no art. 40.º, n.º 2, do CP), deve prosseguir as finalidades das penas nos termos do art. 40.º, do CP, enquanto finalidades de prevenção geral de integração (da norma violada no ordenamento jurídico) e de prevenção especial de socialização do delinquente. Como em qualquer pena, dirige-se ao passado (uma vez que reage a um facto já praticado) visando primordialmente a finalidade de prevenção geral[20]; diferentemente das medidas de segurança que se dirigem primordialmente ao futuro, tendo uma “finalidade genérica de prevenção do perigo de cometimento, no futuro, de factos ilícito-típicos pelo agente. Elas são por isso orientadas, primordialmente, por uma finalidade de prevenção especial ou individual da repetição da prática de factos ilícitos-típicos”[21], sem prejuízo de uma finalidade de proteção de bens jurídicos, dado que a sua aplicação depende da prática de um ilícito-típico[22]. Todavia, aquilo que justifica a aplicação de uma medida de segurança “é sempre e só a necessidade de prevenção da prática futura de factos ilícitos-típicos”[23], sendo indispensável concluir-se pela perigosidade do agente[24] enquanto “probabilidade de repetição pelo agente, no futuro, de crimes de certa espécie”[25] impondo-se ao tribunal, no momento da decisão sobre a consequência jurídica[26], um juízo de prognose.

O nosso sistema jurídico, paralelamente à pena acessória que vimos referindo, prevê uma medida de segurança de cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor (art. 101.º, do CP) — esta, enquanto medida de segurança, depende da perigosidade do agente[27] e enquanto medida não privativa da liberdade, é aplicável a delinquentes imputáveis e inimputáveis[28]. Nos termos do art. 69.º, n.º 7, do CP, a aplicação desta medida de segurança tem prevalência sobre a aplicação da pena acessória[29]. A medida de segurança é muito mais gravosa do que a pena acessória, dado que implica uma cassação do título de condução, impondo-se que seja obtido novo título (se assim for possível), sendo esta obtenção dependente de exame especial (cf. art. 101.º, n.º 7, do CP[30]).

Dito de outro modo, diferentemente da pena acessória que proíbe o exercício do direito de conduzir, “a medida de segurança (...) consiste, pois, na invalidação da licença de que o agente seja titular e na proibição de obtenção de nova licença de qualquer categoria ou de categoria determinada por um determinado período”[31]. Trata-se de uma medida que se aplica a pessoas que demonstraram uma deficiente aptidão para a condução, não constituindo uma simples “incapacidade técnica para a condução, mas sobretudo a inidoneidade moral para se comportar de acordo com os deveres que a um condutor incumbem”[32]. Assim se pretendendo reagir contra a perigosidade para a coletividade que a condução de veículos por aquele agente provoca, contrariamente ao que ocorre nos casos de aplicação da pena acessória que constitui uma advertência a indivíduos com capacidade para conduzirem veículos[33].

Diferente de tudo isto é a sanção prevista no Código da Estrada[34] (cf. arts 138.º, n.º 1[35] e 147.º[36]). Aquando da condenação em contraordenações graves e muito graves, cumulativamente com a coima é aplicada a sanção acessória, e a sanção acessória aplicada aos condutores que tenham cometido estas contraordenações é, nos termos do art. 147.º, a sanção de inibição de conduzir[37]. Trata-se de uma sanção que impede a condução de quaisquer veículos[38].

Das considerações expostas facilmente se percebe que a aplicação de uma pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor não depende de uma avaliação da perigosidade do agente resultante do exercício da condução e que determinaria uma fundada suspeita de que viesse a praticar futuros crimes a impor necessidade de reação contra aquela perigosidade; trata-se antes de uma reação decorrente da gravidade do facto a graduar em função das exigências de prevenção e da culpa do agente[39]

5. A redação atual resulta das alterações introduzidas pela Lei n.º 77/2001, de 13.07, na base das quais está a proposta de lei n.º 69/VIII[40], e pela Lei n.º 19/2013, de 21.02[41]. Na base das alterações legislativas estava a pretensão do Governo de pretender “aumentar a segurança rodoviária”:

 “A condução perigosa constitui uma das principais causas da sinistralidade rodoviária e está normalmente associada ao excesso de velocidade, à prática de manobras perigosas, à condução sob influência do álcool ou em estado de embriaguez e, em menor grau, à condução sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas.

Deste modo, e atendendo à importância dos bens jurídicos postos em causa por estas condutas, como a vida, a integridade física e bens patrimoniais de valor elevado, torna-se imprescindível reforçar a prevenção, o que requer o pronto e eficaz sancionamento dos prevaricadores.

Uma vez que a sanção acessória de inibição de conduzir está prevista nos dois Códigos (artigo 139.º do Código da Estrada e artigo 69.º do Código Penal), e porque se regista um desfasamento entre ambos relativamente à sanção aplicável, procedeu-se à agravação dos limites mínimo e máximo da pena acessória prevista no n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal.

Desta forma, a pena estatuída no Código Penal passa a ser mais gravosa do que a sanção acessória cominada no Código da Estrada para condutas comparativamente menos graves. “ [42]

Foi então proposta uma alteração ao disposto no art. 69.º, n.º 2. Onde anteriormente se estabelecia que:

“A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria ou de uma categoria determinada”[43], passou a constar:

“A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria.”.

Verifica-se, pois, que houve um propósito legislativo de compatibilizar as diferentes reações existentes no sistema jurídico, em particular, uma tentativa de articulação entre a sanção acessória consagrada no Código da Estrada e a pena acessória consagrada no Código Penal; e se nada é referido de forma expressa quanto às categoria de veículos motorizados abarcados por cada reação, certo é que a preocupação em articular as sanções ao nível da sua duração eliminando o desfasamento que existia (e agravando os limites mínimos e máximos da pena acessória), nos permite verificar que o legislador pretendeu articular os diferentes regimes, e pretendeu demostrar que a pena acessória é aplicada a factos mais graves, pelo que não se poderá conceber que a sanção acessória tenha um regime mais grave, por abarcar todos os veículos motorizados, do que a pena acessória, caso se admitisse a possibilidade da sua aplicação apenas a alguma(s) categoria(s) de veículo(s) com motor.

6. Como já referimos, e tendo em conta o disposto no art. 69.º, n.º 1, do CP, que prevê de forma expressa certos tipos legais de crime de que depende a aplicação da pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, a aplicação desta pena pressupõe a prática apenas dos factos ilícitos-típicos ali previstos.  Dada a ilicitude dos comportamentos de que depende a aplicação desta pena acessória, comportamentos estes que pressupõem a condução de veículo motorizado, é praticamente unânime o entendimento de que a aplicação desta pena acessória deve estender-se a todas as categorias de veículos motorizados[44], não sendo admissível a restrição desta proibição a certa categoria de veículos. Entendimento semelhante foi exposto pelo Tribunal Constitucional no acórdão n.º 742/2021 (de 23.09.2021, Relatora: Cons. Joana Fernandes Costa):

 “Tal como a impossibilidade de restringir a proibição de condução acessoriamente aplicável a certa categoria de veículos motorizados ou de excluir dessa proibição a condução da categoria de veículos habitualmente utilizada pelo arguido no exercício da sua atividade profissional, também a execução necessariamente integral, contínua e efetiva da referida pena acessória se justifica pela necessidade de imprimir maior eficácia político-criminal aos instrumentos de reação à criminalidade rodoviária, tendo em conta os elevados índices de sinistralidade que lhe estão associados, não podendo dizer-se que constitua uma medida inidónea, desnecessária ou excessiva em face de tal desiderato.”[45]. E assim se compreende, dada a finalidade básica que preside a esta pena acessória — “o fim de proteção do artigo 69.º relaciona-se unicamente com a segurança do tráfico rodoviário, sem estar ligado a uma futura perigosidade do agente”[46].

Diferentemente, já se entendeu[47] que a proibição de conduzir pode abranger “todas ou apenas algumas destas categorias de veículos motorizados”. Neste entendimento considerou-se que, antes mesmo de o juiz determinar o quantum da pena acessória deverá, em atenção às exigências de prevenção geral “nomeadamente de prevenção geral positiva” e das exigências de prevenção especial e tendo em conta a culpa do agente e a gravidade do facto e demais critérios de determinação da pena consagrados no art. 71.º, do CP, decidir se proíbe a condução de veículos de uma categoria de veículos, de algumas ou de todas as categorias de veículos motorizados.

E, se a possibilidade de aplicação desta pena acessória, circunscrita (ou não) a certa categoria de veículos motorizados, poderia constituir mais um elemento que caberia ao juiz decidir em ordem ao cumprimento das finalidades das penas, como se refere, certo é que, pelo simples facto de se considerar que a proibição de condução de veículos deve sempre abranger todas as categorias de veículos motorizados, não fica o juiz impedido de estabelecer o quantum em função das finalidades das penas, tendo com o limite o limite imposto pela culpa e de acordo com os demais critérios estabelecidos no art. 71.º, do CP.

Na verdade, em qualquer tipo legal de crime o legislador diz que o agente é punido com uma pena de prisão concedendo ao decisor apenas uma moldura para, em atenção aos requisitos referidos, determinar a pena.

Ora, o facto de a pena ser aplicada abrangendo todas as categorias de veículos motorizados não impede que o seu quantum se possa adaptar em função do específico agente, sabendo que o título de condução poderá constituir (ou não) um elemento fundamental para o dia-a-dia do agente. Porém, as finalidades de aplicação desta pena, nomeadamente até de prevenção geral negativa como vimos, impõem que se considere que deve abranger todas as categorias de veículos, pois de outra forma pareceria que aqueles a quem mais a sociedade exige cuidado na condução automóvel, por exemplo os motoristas profissionais, poderiam ver o âmbito da pena diminuído (porque não aplicado a todas as categorias de veículos) em clara contradição com a finalidade da pena. Se o condutor de pesados conduziu o automóvel familiar num domingo com uma taxa de álcool no sangue elevada, porque deve ver a sua carta apreendida apenas relativamente à categoria de veículos ligeiros? O comportamento típico, ilícito e culposo, impõe uma pena acessória menos gravosa limitada à proibição de condução de veículos apenas de certa categoria? Não nos parece.  Pelo contrário, as especiais características do agente, nomeadamente, a “falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena” [art. 71.º, n.º 2, al. f), do CP], impõem, em abstrato, a aplicação de uma pena mais gravosa.

Além do mais, sendo a pena acessória de proibição de condução de veículos com motor uma consequência da prática de certos crimes na base dos quais está uma conduta ilícita e típica que foi tida pelo legislador como especialmente censurável, não podemos deixar de considerar que, por um lado, a ilicitude da conduta é idêntica qualquer que seja a categoria de veículos motorizados que o agente tenha conduzido; e, por outro lado, a censurabilidade do comportamento do agente deve ser aferida em função das especiais exigências que se impõem ao agente, nomeadamente, quando, por exemplo, estamos perante um motorista profissional, ainda que a conduta não tenha sido exercida aquando do exercício das suas funções. Pelo que a limitação da proibição de condução de veículos com motor a certa categoria de veículos quando esteja em causa um certo tipo de agente contraria a finalidade fundamental da pena, enquanto advertência, dirigida ao agente, de que não pode conduzir veículos com motor nas condições ou circunstâncias elencadas no art. 69.º, n.º 1, do CP. Ou seja, a especial ilicitude da conduta subjacente à criação desta pena acessória deriva do comportamento do agente enquanto comportamento que violou as regras de trânsito, usando um veículo como instrumento, ou impedindo a verificação de condicionantes que tornam a condução de veículos especialmente perigosa; a especial ilicitude da conduta não deriva do tipo de veículo que é conduzido, pelo que limitar a pena acessória somente a algumas categorias de veículos motorizados frustraria as finalidades de prevenção geral subjacentes a esta pena acessória, assim como a finalidade de “advertência, atendendo a razões de prevenção especial e geral, por um comportamento culposo e consideravelmente defeituoso no tráfico rodoviário[48].

Outro entendimento — permitindo que a pena acessória de proibição de veículos motorizados pudesse ficar restringida a uma certa categoria de veículos —, quando a sanção acessória de inibição de condução  (aplicável em caso de contraordenações estradais graves) é extensiva, por força da lei, a todas as categorias de veículos motorizados, introduziria uma incoerência no sistema jurídico, tornando incompreensível o propósito do legislador de harmonizar as diferentes sanções aplicadas às diferentes condutas antijurídicas, umas crimes, outras contraordenações.

Por fim, cumpre referir que o entendimento segundo o qual não se deve restringir a aplicação da pena acessória a certas categorias de veículos foi já acolhida pelo Tribunal Constitucional, quando decidiu “Não julgar inconstitucional a norma prevista no artigo 69.º, n.º 2, do Código Penal, na interpretação segunda a qual, em caso de condenação pela prática do crime de desobediência a que alude a alínea c) do respetivo n.º 1, não é permitido restringir a proibição de condução a uma determinada categoria de veículos motorizados, ou excluir dessa proibição a condução da categoria de veículos utilizada pelo arguido no exercício da sua atividade profissional de motorista.”[49]. Na base desta decisão está o entendimento de que:

«No âmbito da reação à chamada criminalidade rodoviária, o legislador encontra-se constitucionalmente habilitado a optar por uma solução que, tendo em vista assegurar uma maior eficácia político-criminal à pena acessória aplicável, integre no âmbito da proibição o exercício da faculdade de condução de veículos motorizados de qualquer categoria, excluindo a possibilidade de tal proibição ser positiva ou negativamente delimitada de modo a não comprometer a faculdade de condução de categorias específicas de veículos, para as quais o condenado se encontre igualmente habilitado.

É certo que a atribuição à pena acessória de proibição de condução de um conteúdo fixo, não modelável em função das necessidades concretas de cada agente, poderá originar, em determinadas situações, uma afetação, em maior ou menos grau, da liberdade de exercício da profissão. É o que tenderá a suceder não apenas na hipótese de o condenado exercer a profissão de motorista - esta será só a mais evidente -, como ainda com a generalidade das atividades profissionais itinerantes cuja efetiva possibilidade de desempenho pressuponha a conservação do nível de mobilidade só proporcionado pelo ato de condução.

Simplesmente, impor nestes casos à pena acessória a contração necessária (ou na extensão necessária) a permitir a acomodação, durante o período temporal correspondente à sua medida, dos pressupostos necessários ao exercício sem interrupções das tarefas que integram a profissão livremente escolhida pelo condenado é resultado que se não retira, nem dos princípios da necessidade e da proporcionalidade das sanções penais - que, como vimos, apenas permitem censurar sanções criminais manifestamente arbitrárias ou excessivas  -,  nem, em geral, dos limites a que, por força do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição, se encontram sujeitas as quaisquer leis restritivas de direitos, liberdades e garantias.

Ainda que por referência ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez, tal conclusão foi expressa no Acórdão n.º 440/2002 nos termos que se seguem:

«Mas, ainda que fosse demostrada aquela factualidade (ou seja, que o recorrente inelutavelmente necessitava de conduzir veículos automóveis para o exercício da sua profissão), adianta-se desde já que a objetiva «constrição» que porventura resultaria da aplicação da medida sancionatória em causa se apresenta, de um ponto de vista constitucional, como justificada.

Efetivamente, uma tal justificação resulta das circunstâncias de a sanção de inibição temporária da faculdade de conduzir se apresentar como um meio de salvaguarda de outros interesses constitucionalmente protegidos, nomeadamente, quer, por um lado, na perspetiva do arguido recorrente a quem é imposta e destinada a pena aplicada, quer, por outro lado, na perspetiva da sociedade – a quem, reflexamente, se dirige também aquela medida, - na medida em que se visa proteger essa sociedade e, simultaneamente, compensá-la do risco a que os seus membros foram sujeitos com a prática de uma condução sob o efeito do álcool.»

Tal juízo merece ser aqui reafirmado.»[50]

E se dúvidas houvesse quanto a uma eventual violação do direito ao trabalho, o mesmo Tribunal já nos esclareceu:

«Assim, e no que diz respeito à primeira vertente assinalada, contrariamente ao que alega o recorrente, o conteúdo essencial do direito ao trabalho que aquele vê ofendido com a aplicação da sanção acessória da inibição de condução (posto que é apenas esta sanção que o recorrente questiona e não já a pena de multa que lhe foi aplicada em alternativa à pena de prisão, a título principal) não é atingido, na medida em que a ponderação que resulte do confronto deste direito ao trabalho com a protecção de outros bens - que fundamentam a sua limitação, através da aplicação das penas principal e acessória infligidas - não redunda na aniquilação ou, sequer, na violação desproporcionada de qualquer direito fundamental ao trabalho.

E assim é, sobretudo, se atentarmos no facto de que o que se visa proteger, também, com a aplicação desta sanção (pena de multa cumulativamente aplicada com a sanção acessória de inibição da condução) - a punição da condução de veículo por quem apresenta uma taxa de alcoolémia superior à permitida por lei - são bens ou interesses (a segurança e a vida das pessoas) constitucionalmente protegidos, sobretudo em face da dimensão do risco que para esses valores uma tal conduta comporta, pondo em causa a vida de todos os que circulam nas estradas.

Daí que a alegada violação do direito a trabalhar sem restrições, tal como é sustentado pelo recorrente, não possa, sem mais, ser valorada em termos absolutos, pois que a limitação que a este direito é imposta com a aplicação da sanção inibitória o é na medida em que o sacrifício parcial que daí resulta não é arbitrário, gratuito ou carente de motivação, mas sim justificado para salvaguarda de outros bens ou interesses constitucionalmente protegidos pela Lei Fundamental. (...)

Se assim não fosse, e no limite, poder-se-ia ser chegado à conclusão de quem quer abraçar uma profissão para a qual o único meio de a prosseguir é o exercício da condução, nem sequer se haveria de sujeitar às condições necessárias para poder ter acesso à condução, ou nem sequer teria de respeitar uma reprovação nas provas prévias exigidas para a condução de veículos automóveis, pois essas condições constituiriam um atentado ao direito ao trabalho.»[51]

7. De tudo o exposto, concluímos que a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, dada a sua finalidade de assegurar o interesse público de segurança rodoviária, e estando a sua aplicação dependente da prática de específicos crimes, com um particular conteúdo de ilícito criminal decorrente de uma condução de veículos motorizados especialmente censurável ou uma violação ostensiva de regras rodoviárias impostas em ordem a asseguar o interesse referido, só se torna efetivamente eficaz quando aplicada a um certo agente (em função das exigências de prevenção e tendo em conta a sua culpa) quando abrange todas as categorias de veículos motorizados. A aplicação desta pena a um certo agente, restrita a certas categorias de veículos motorizados, permitindo a condução de veículos motorizados de outra categoria, inviabilizaria a finalidade que esteve subjacente à criação desta pena acessória, tal como se encontra prevista no Código Penal.  

Esta tem sido, aliás, a posição dominante na jurisprudência — no Tribunal da Relação de Lisboa, acórdãos de 06-01-2010, Proc. n.º 6/09.4GAMFR.L1-3, Relatora Maria José Machado, de 09-10-2007, Proc. n.º 5088/2007-5, Relator Emídio Santos, de 27-09-2007, Proc. n.º 6529/07-9, Relator Carlos Benido, de 27-03-2007, Proc. n.º 6188/06-5, Relator Simões de Carvalho, de 01-03-2007, Proc. n.º 128/07-9, Relator Carlos Benido, de 18-01-2007, Proc. n.º 9093/06-9, Relatora Laura Maurício, de 20-09-2006, Proc. n.º 7210/2006-3, Relatora Conceição Gomes, de 31-01-2006, Proc. n.º 1031/05-9, Relator José Adriano, de 30-03-2005, Proc. n.º 1942/05 - 3 ª Secção, Relator Clemente Lima; no Tribunal da Relação do Porto, acórdãos de 13-07-2022, Proc. n.º 7/22.7GDVFR.P1, Relator Moreira Ramos, de 14-02-2022, Proc. n.º 209/22.6GEVNG.P1, Relator Luís Coimbra, de 08-01-2020, Proc. n.º 17/17.6GTMAI.P1, Relator Moreira Ramos, de 07-12-2018, Proc. n.º 39/15.1GTAVR.P1, Relator António Luís Carvalhão, de 27-01-2016, Proc. nº 229/13.1PDPRT.P1, Relator Renato Barroso, de 30-01-2013, Proc. n.º 38/12.5PTBGC.P1, Relator Castela Rio, de 06-10-2010, Proc. n.º 137/09.0GACDR.P1, Relator Moisés Silva, de 25-03-2009, Proc. n.º 0814506, Relatora Élia São Pedro, de 16-12-2009, Proc. n.º 51/09.0GNPRT.P1, Relator Artur Oliveira, de 17-12-2008, Proc. n.º 0846482, Relator Ernesto Nascimento, de 03-12-2008, Proc. n.º 0845883, Relator Pinto Monteiro, de16-04-2008, Proc. n.º 5665/07-4.ª Secção, Relator Abílio Ramalho, de 19-07-2006, Proc. n.º 0613241, Relator Manuel Braz, de 29-11-2006, Proc. n.º 4064/06, Relator Luís Gominho, de 16-03-2005 Proc. n.º 0446194, Relatora Conceição Gomes, de 09-03-2005, Proc. n.º 0416716, Relator André da Silva, de 16-02-2005, Proc. n.º 0445028, Relator Luís Gominho, de 18-02-2004, Proc. n.º 6394/03, Relator Manuel Braz, de 04-02-2004, Proc. n.º 0316412, Relator Manuel Braz, de 19-03-2003 no Proc. n.º 696/03, Relator Manuel Braz, de 14-06-2000, Proc. n.º 504/00 - 1.ª Secção, Relator Manuel Braz; no Tribunal da Relação de Coimbra, acórdãos de de 16-11-2016, Proc. n.º 13/16.0GAPNI.C1, Relator Luís Teixeira, de 12-10-2016, Proc. n.º 34/15.0GANLS-A.C1, Relator Luís Teixeira, de 01-02-2012, Proc. n.º 52/11.8GCAGD.C1, Relator Luís Teixeira, de 27-04-2011, Proc. n.º 72/10.0GAFCR.C1, Relator Orlando Gonçalves, de 10-11-2010, Proc. n.º 98/10.3GTCBR.C1, Relator Jorge Dias, de 28-04-2009, Proc. n.º 217/08.0GAOBR.C1, Relator Belmiro Andrade, de 05-11-2008, Proc. n.º 487/07.0GTLRA.C1, Relator Jorge Dias, de 31-10-2007, Proc. n.º 47/07.0GTCTB.C1, Relator Belmiro de Andrade, de 04-05-2005, Proc. n.º 1053/05, Relator Belmiro de Andrade; no Tribunal da Relação de Guimarães, acórdãos de 25-09-2017, Proc. n.º 605/11.4GAVNF.G1, Relator Laura Maurício, 14-05-2007, Proc. n.º 486/07-2, Relator Anselmo Lopes; no Tribunal da Relação de Évora, acórdãos de 13-07-2022, Proc. n.º 90/20.0PTSTR.E1, Relator Edgar Valente, de 08-03-2018, Proc. 15/17.0GCORQ.E1, Relator Sérgio Corvacho, de 29-03-2016, Proc. 108/14.5GTEVR.E1, Relator Martinho Cardoso, de 17-06-2014, Proc. n.º 2/13.7GCBJA.E1, Relator Gilberto Cunha, de 18-02-2014, Proc. n.º 61/13.2PTFAR.E1, Relator João Amaro, de 19-03-2013, Proc. n.º 241/12.8GAOLH.E1, Relator José Martins Simão, de 20-12-2012, Proc. n.º 623/12.5GDPTM.E1, Relator Sénio Alves, de 04-11-2010, Proc. n.º 259/10.5GCSTR.E1, Relator João Luís Nunes, de 27-04-2010, Proc. n.º 27/09.7PFEVR.E1, Relator João Amaro, de 24-06-2010, Proc. n.º 2447/09.8PAPTM.E1, Relatora Maria da Graça Santos Silva, de 11-03-2010, Proc. n.º 528/09.7PBEVR.E1, Relator Gilberto Cunha[52].

III

Conclusão

Com base no exposto, o Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, mantendo o acórdão recorrido, decide fixar a seguinte jurisprudência:

Nos termos do artigo 69.º, n.º 2, do Código Penal (na redação dada pela Lei n.º 77/2001, de 13 de julho), a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor abrange a condução de todas as categorias destes veículos.

Cumpra-se, oportunamente, o disposto no art. 444.º, n.º 1, do CPP.

Sem custas, nos termos do art. 522.º, n.º 1, do CPP.

Supremo Tribunal de Justiça, 29 de junho de 2023

Helena Moniz (Relatora)

Lopes da Mota

Maria Teresa Féria de Almeida

Eduardo Loureiro

António Gama

Sénio Alves

Ana Brito

Maria do Carmo Silva Dias

Pedro Branquinho Ferreira Dias

Leonor Furtado

Teresa Almeida

Ernesto Vaz Pereira

Agostinho Soares Torres

José Eduardo Miranda Santos Sapateiro

António Latas (c/ voto de vencido)

***

Voto de vencido

1.Tendo sido relator do acórdão fundamento, proferido em 21.10.2010 pelo TRE e publicado em www.dgsi.pt, votaria  em sentido contrário à fixação de jurisprudência ora decidida, pois entendo que o  nº 2 do art. 69º do C. Penal, na redação que lhe foi dada pela Lei 77/2001 de 13.07, ao estabelecer que “A proibição …pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria”, continua a prever, tal como sucede desde a redação originária de  1995, a faculdade de o tribunal restringir a proibição de conduzir a certa ou certas categorias de veículos motorizados tal como resultam dosart.s 121º a 124º, do C. Estrada, em função das quais é legalmente definida a habilitação para conduzir.

2.Desde logo  porque,  qualquer que seja o peso do elemento literal na interpretação das normas penais, parece não poder deixar de entender-se que a letra do art. 69º nº2 do C. Penal tal como foi introduzida pela Lei 77/2001 de 13.07 (que se mantém atualmente),   é claramente consentânea com a interpretação seguida no acórdão fundamento e, antes, no Ac TRE de 9.7.2002, subscrito pelos então Desembargadores AA (relator), BB e CC, em termos que retomámos no acórdão fundamento.

3. Ou seja, no entendimento de que   « …limitou-se a Lei nº 77/2001 de 13 julho (…) a eliminar a expressão “ou de uma categoria determinada”, por desnecessária, pois que implícita na proposição que imediatamente a antecede” pode abranger a condução de veículos motorizados de qualquer categoria”. » - cf. o citado ac TRE de 2002 (negrito no original)

4. Mas é sobretudo em atenção aos princípios penais da culpa e da prevenção, que norteiam  o nosso regime legal quanto às  finalidades das penas, e às  diferenças de regime entre a pena de proibição de conduzir  e a  medida administrativa de inibição de conduzir prevista no C Estrada que -  na ausência de qualquer referência nos trabalhos preparatórios às supostas razões que justificariam  pôr fim à possibilidade de limitar a proibição de conduzir a alguma ou algumas categorias de veículos -, entendo continuar a prever-se que o tribunal possa decidir-se pela  limitação da proibição a alguma ou algumas categorias legais de veículos, quando tal se justifique.

5. Por um lado, como se dizia no citado  Ac TRE de 9.7.2002, «I- Porque de uma verdadeira pena (acessória) se trata, a proibição de conduzir veículos motorizados, prevista no artº 69º do CP, há de constituir um sacrifício real para o condenado sem que, todavia, da sua aplicação resultem consequências gravosas - desnecessárias - para o condenado ou terceiros dele dependentes, uma vez que as restrições dos direitos deve limitar-se ao estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, devendo ainda a restrição ser apta para o efeito. II- Só perante um quadro circunstancial de especial relevo, a proibição de conduzir veículos motorizados pode abranger, não todas, mas apenas uma determinada categoria de veículos motorizados» -  acessível em www.dgsi.pt e  também, com sumário restrito ao ponto II, na CJ Ano XXVII, T IV.

Quadro circunstancial, em que sobrelevem fortes razões profissionais, de saúde ou diferente natureza, mas igualmente ponderosas, que possam justificar a restrição da proibição de conduzir apenas a alguma ou algumas categorias de veículos, para cuja condução o arguido se encontre habilitado.

6. O artigo 69º nº2 continua, pois,  a permitir ao tribunal o poder/dever de limitar a proibição de conduzir a determinada categoria de veículo quando a punição do ilícito criminal em causa se baste com esta limitação, cumprindo-se melhor em cada caso concreto o princípio da proporcionalidade mas também  a necessária  ligação da pena acessória à concreta culpa do agente e, mesmo,  aos fins de ressocialização do agente, o que se verificará nos casos contados  em que a restrição a determinada categoria de veículos se mostre suficiente e ajustada ao caso concreto, verdadeira matéria prima sobre a qual trabalham os tribunais.

7. Se, máxime na pequena criminalidade,  a socialização do arguido – e também  a sua não dessocialização -, procurada pela pena criminal visa numa certa medida “o respeito e a aceitação por parte do delinquente das normas jurídico-penais a fim de evitar o cometimento de novos crimes no futuro”, a pena aplicada logrará atingir tal objetivo tanto mais quanto – sem pôr em causa finalidades de prevenção geral positiva - mantenha o agente inserido num quadro pessoal, familiar e profissional que promova o respeito pela generalidade das normas penais e, sobretudo, dos bens jurídicos que aquelas visam proteger.

8. Por outro lado,  a comparação entre o regime da sanção administrativa de inibição de conduzir (menos grave) e o regime da pena de proibição de conduzir, que parece ser argumento determinante na posição claramente maioritária da jurisprudência das relações e na fixação de jurisprudência ora em causa, parece assentar numa perspetiva atomística, centrada em determinada particularidade do regime legal, que deriva de um raciocínio essencialmente lógico-formal,  formado sobre parte limitada da realidade normativa em causa: se a contraordenação é menos grave que o crime,  não pode admitir-se que a inibição de conduzir abranja necessariamente  todas as categorias de veículos  e a proibição de conduzir possa ser   limitada  a algumas dessas categorias.

9. Ao invés, a comparação global dos regimes legais,  permite constatar diferenças significativas. Com efeito, para além de ser menor a duração máxima da inibição de conduzir (art. 147º nº2 C.Estrada), verificam-se as seguintes particularidades:

-  A sanção acessória prevista no CE, aplicável às contraordenações muito graves, pode ser especialmente atenuada nos termos do  artº 140º do C. Estrada;

- A inibição de conduzir pode ser suspensa na sua execução, condicionada, em regra, à prestação de caução de boa conduta, sejam graves ou muito graves as contraordenações (artº 141º).

Na redação introduzida pelo DL 2/98 de 3.01 a inibição aplicável   às contra-ordenações graves podia mesmo  ser dispensada (n.º 1 do  artº 141º), o que se manteve  em vigor até ao início de vigência da Lei 72/2013 de 3.09, abrangendo, portanto, o período em que a Lei 77/2001 alterou a redação do nº2 do art. 69º C.P.  aqui em causa e muito tempo depois disso.

10.  Por seu lado, a pena de proibição de conduzir não pode ser dispensada em caso algum, não admite atenuação especial ou suspensão, não admite substituição por caução de boa conduta  e é de cumprimento contínuo, constituindo a possibilidade de limitação a algumas categorias de veículos, de acordo com a respetiva classificação para efeitos de atribuição de carta de condução, verdadeira válvula de escape do sistema.

11.Válvula de escape que, ao permitir a limitação da proibição de conduzir a certa categoria de veículos,  satisfaz melhor o princípio constitucional da proporcionalidade em matéria de penas e mesmo o princípio constitucional da igualdade, ao permitir tratar de forma desigual o que   não é igual (sem que esteja em causa a inconstitucionalidade do regime legal sempre afastado pelo T. Constitucional), pois é um dado da vida que, como diz Jescheck referindo-se à determinação da pena acessória de proibição de conduzir prevista no §44º do do Código Penal Alemão  (similar à prevista no art. 69º do nosso C. Penal): - ” A proibição de conduzir pode originar resultados injustos, na medida em que afeta com desigual gravidade o condenado que depende profissionalmente do seu veículo e o condutor domingueiro.”. – cf. Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4ªed - -Trd. De José Luís Manzanares Samaniego, Editorial Comares-Granada, 1993, p. 717 n. 5.

12.  Evitando rigidez excessiva  no regime legal, a possibilidade de limitação da  proibição de conduzir a certa  categoria de veículos – sempre mediante cuidada ponderação do tribunal no caso concreto -, afasta-se de uma certa  lógica de law and order que rejeita qualquer hipótese de limitar a incidência da proibição de condução independentemente da culpa concreta pelo facto e das concretas exigências  de prevenção geral e prevenção especial, que em casos contados podem ser mais bem prosseguidas com a limitação da pena a certa categoria de veículos que o artigo 69º sempre se previu desde 1995, sem que em passo algum dos trabalhos preparatórios  da Lei 77/2001 o legislador  declare pretender pôr termo a tal possibilidade.

13. Conclui-se com o resumo do caso a que se reporta o acórdão fundamento, por considerá-lo  exemplo ilustrativo de situação que pode justificar a limitação da proibição de conduzir a certa ou certas categorias de veículos,  ainda que possam conceber-se facilmente outras  hipóteses bem mais impressivas:

- O arguido conduzia o motociclo com a matrícula ..-FM-..  pelas 22h18m pela Rotunda ..., ..., com uma  TAS de 1.26g/1 sangue;

- Antes de iniciar a condução, o arguido ingeriu, de forma livre e voluntária, oito a nove cervejas antes de assistir ao Jogo de futebol entre o S... e o F... relativo à final da Taça da Liga,

-  Exerce a profissão de motoristas de pesados, auferindo um vencimento mensal líquido  de € 750 (setecentos e cinquenta euros), necessitando da carta para o exercício da sua  profissão;

- Manifestou arrependimento

- Não regista antecedentes criminais.
 Em recurso, decidiu-se no acórdão fundamento condenar o arguido na proibição de conduzir quaisquer veículos motorizados pelo período de três meses, à exceção da condução de veículo pesado de mercadorias.
14. São estas, no essencial,  as  considerações de direito penal substantivo  relativas às finalidades das penas que  nos levam a manter o entendimento jurídico   sustentado no acórdão fundamento, afastando-nos  do efeito anestesiante (crê-se) do  argumento de distorção no sistema jurídico,  que resultaria de o agente de contraordenação ficar sempre inibido de conduzir todos os veículos com motor enquanto o  agente de ilícito criminal (mais grave) poderia ser concretamente  punido pelo tribunal com proibição de conduzir apenas determinada categoria de veículo. Interpretando, pois, a norma do nº2 do artigo 69º do C.Penal em sentido oposto ao da presente fixação de jurisprudência.

António Latas

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[1] O acórdão referido foi prolatado por Juiz(a) Conselheiro(a) entretanto jubilado; seguiu-se, após esta jubilação, nova distribuição dos autos, tendo mais tarde o novo Juiz(a) Conselheiro(a) (a quem os autos foram distribuídos) passado, igualmente, à condição de jubilado. Seguidamente procedeu-se a outra distribuição, sendo a aqui Relatora a Juiz Conselheira a quem os autos foram distribuídos a 08.02.2023 e conclusos a 09.02.2023.
[2] Considerando não se integrar neste conceito de penas principais as penas de suspensão da execução da pena de prisão, ou de prestação de trabalho a favor da comunidade, por exemplo, embora sem que se abdique do seu entendimento como verdadeiras penas e não como formas de execução da pena de prisão, cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português — As consequências jurídicas do crime, Lisboa: Æquitas/Ed. Notícias, 1993, § 79, p. 90
[3] Esta dependência é demonstrada, desde logo, pelo regime de prescrição da pena acessória estabelecido no art. 123.º, do CP.
[4] Assim também, Figueiredo Dias — ob. cit., § 89, p. 96.
[5] Figueiredo Dias — ob. cit., § 90, p. 97.
[6] Figueiredo Dias — ob. cit., § 205, p. 165.
[7] Francisco Borges, ob. cit., p. 890.
[8] Figueiredo Dias — ob. cit., § 205, p. 164-165.
[9] Não podemos, pois, considerar que no nosso sistema se tenha pretendido elevar a proibição de condução de veículos a pena principal, como nos dá conta Figueiredo Dias — ob. cit., § 83, p. 92-93.
[10] E por isso considerada como uma “pena cumulativa” por Germano Marques da silva, Direito Penal Português, Vol. III (Teoria das penas e medidas de segurança), Lisboa: Verbo, 2.ª ed., 2008, p. 82.
[11] Figueiredo Dias — ob. cit., § 196, p. 158.
[12] Já assim se dizia, referindo-se ao art. 69.º, do projeto de 1991 alteração do Código Penal, que “não aparece, de forma expressa, o pressuposto material mencionado; mas este não deixa de poder (e dever) concluir-se de qualificativos vários que pesam sobre o pressuposto formal” (Figueiredo Dias — ob. cit., § 205, nota 24, p. 165). Nos n.ºs 1 e 2 do art. 69.º, do projeto, estabelecia-se: ! : “1 – É condenado na proibição de conduzir veículos motorizados por um período fixado entre 1 mês e 1 ano que for punido: a) Por crime cometido no exercício daquela condução com grave violação das regras do trânsito rodoviário; ou b) Por crime praticado com utilização de veículo ou cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante. 2 — A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos motorizados de qualquer categoria ou de uma categoria determinada”. (Código Penal — Actas e projecto da Comissão de revisão, Ministério da Justiça, Lisboa: Rei dos Livros, 1993, p. 565).
[13] O crime de condução perigosa de veículo rodoviário abrange a conduta daquele que conduz sem que tenha as condições para o fazer em segurança, ou violando grosseiramente as regras de condução rodoviárias, constituindo igualmente violação grave das regras de segurança rodoviária a condução em estado de embriaguez com uma taxa de álcool no sangue igual superior a 1,2g/l, ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas.
[14] Acentuando que neste caso se pressupõe um “especial desvalor de acção do agente ao utilizar um veículo, de forma particularmente relevante, na execução do crime. Na verdade, é na utilização do veículo que se afirma a relação entre o cometimento do crime e o abuso ou mau uso do direito ou faculdade que a ele se liga, de modo a fundamentar a censura suplementar contida na pena acessória”, cf. António Latas, ob. cit, p. 81; assim também, Pedro Caeiro, Qualificação da sanção de inibição da faculdade de conduzir prevista no artigo 61.º, n.º 2, al. d), do Código da Estrada, RPCC, 1993, n.ºs 2-4, p. 566. Em sentido semelhante, Germano Marques da Silva entende que se exige que a utilização do veículo “tenha contribuído de modo importante para a sua [do crime] prática” — Germano Marques da Silva, Crimes Rodoviários. Penas acessória e medidas de segurança, Lisboa: ECP, 1996, p. 31.
[15] Também no sentido de que esta pena acessória está associada “a um determinado tipo de crimes, a um determinado conteúdo do ilícito criminal” cf. Maria da Conceição Cunha, ob. cit., p. 285.
[16] Também no sentido de que a culpa é pressuposto e limite da pena acessória, cf. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, Coimbra: Almedina, 2.ª ed., 2022, p. 43; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Lisboa: UCP, 4.ª ed., 2021, art. 69.º/ nm. 1, p. 378. Maria João Antunes entende igualmente que havendo uma referência, aquando da aplicação da pena, ao “conteúdo do ilícito” e “à censura do facto praticado”, estas penas “constituem a forma atual de os efeitos do crime poderem ter relevo, sem qualquer quebra da proibição da sua automaticidade” (idem). 
[17] Maria João Antunes, ob. cit., p. 28 (itálicos da Autora)
[18] Já assim se considerou aquando da revisão do CP que deu origem à introdução desta pena no elenco das penas acessórias constantes do CP “frisou-se que não há qualquer menção a uma pena” (Actas cit, p. 474); também no sentido de que a pena se liga a um crime, não podendo assim considerar-se um “efeito automático inadmissível”, cf. Francisco Borges, Efeitos automáticos das penas: uma reflexão, Estudos em homenagem ao Conselheiro Presidente Manuel da Costa Andrade, Vol. I, Coimbra: Almedina, 2023, p. 887; em sentido crítico, embora concluindo que as penas acessórias previstas no CP não foram assumidas como verdadeiras penas, mas como “medidas de segurança atípicas” cf. Faria Costa, Penas acessórias: cúmulo jurídico ou cúmulo material (a resposta que a lei (não) dá), RLJ, ano 136.º, p. 324-325. Questionando a opção legislativa, cf. Maria da Conceição Cunha, As reações criminais no direito português, Porto: UCE, 2022, p. 285 e ss.
[19] In http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19970053.html; no mesmo sentido, cf. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 149/01, de 28.01.2001, Relatora: Cons. Maria Fernanda Palma, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20010149.html, e acórdão do Tribunal Constitucional n.º 53/2011, de 01.02.2011, Relator: Cons. João Cura Mariano, http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110053.html (neste aresto são citados vários outros no mesmo sentido).
[20] Assim, cf. Figueiredo Dias ob. cit., § 675, p. 428-429.
[21] Cf. Figueiredo Dias ob. cit., § 668, p. 424
[22] Isto sem prejuízo de também se poder considerar um certo “efeito de prevenção geral” aquando da aplicação de uma medida de segurança, e desde logo, um efeito de prevenção geral “mesmo sob a forma da (admissível) prevenção geral negativa ou de intimidação. (...) uma medida de segurança como a da inibição da faculdade de conduzir «actua sobre a generalidade de uma forma mais intimidante do que a pena cabida ao delito de circulação»” (cf. Figueiredo Dias ob. cit., § 672, p. 426). Considerando que a finalidade última das penas acessórias “não será nunca a da prevenção geral negativa", cf. Faria Costa, ob. cit., p. 324.
[23] Cf. Figueiredo Dias ob. cit., § 670, p. 425.
[24] Também no sentido de que a medida de segurança visa reagir a perigosidade criminal do agente, não constituindo um efeito do crime, como no caso das penas acessórias — cf. Maria João Antunes, ob. cit., p.47; também neste sentido quanto à medida de segurança prevista no art. 101.º, do CP, cf.ΩΩΩ, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit, art. 101.º/nm. 6, p. 479.
[25] cf. Figueiredo Dias ob. cit., § 696, p. 441.
[26] cf. Figueiredo Dias ob. cit., § 704 e ss, p. 445 e ss.
[27] Assim expressamente quanto à medida prevista no art. 101.º, do CP, cf. M. Miguez Garcia/ J.M Castela Rio, ob. cit., art. 101.º, n.º 2, p. 496.
[28] Sem que com isto se possa afirmar que está em causa o sistema monista de reações criminais — cf. Maria João Antunes, ob. cit., p. 47. Em sentido idêntico, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit, art. 101.º/ nm. 4, p. 478.
[29] Assim, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit, art. 69.º/nm. 19, p. 381; . M. Miguez Garcia/ J.M Castela Rio, Código Penal — Parte Geral e especial, 2018, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, art. 69.º/ n.º16, p. 417 e art. 101.º, n.º 9, p. 497.
[30] Este número apenas foi aditado pela lei n.º 65/98, de 02 de Setembro.
[31] Germano Marques da Silva, Crimes rodoviários...cit., p. 33.
[32] Germano Marques da Silva, Crimes rodoviários...cit., p. 34.
[33] Neste sentido Jescheck/Weigend, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Granada: Comares, 2002, p. 843.
[34] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 03.05 e alterações posteriores.
[35]  As contraordenações graves e muito graves são sancionáveis com coima e com sanção acessória.
[36] 1 - A sanção acessória aplicável aos condutores pela prática de contraordenações graves ou muito graves previstas no Código da Estrada e legislação complementar consiste na inibição de conduzir.
2 - A sanção de inibição de conduzir tem a duração mínima de um mês e máxima de um ano, ou mínima de dois meses e máxima de dois anos, consoante seja aplicável às contraordenações graves ou muito graves, respetivamente, e refere-se a todos os veículos a motor.
3 - Se a responsabilidade for imputada a pessoa singular não habilitada com título de condução ou a pessoa coletiva, a sanção de inibição de conduzir é substituída por apreensão do veículo por período idêntico de tempo que àquela caberia.
[37] Se estivermos perante um comportamento que integre simultaneamente uma contraordenação e um crime deverá ser aplicada a pena acessória e não a sanção acessória sob pena de violação do princípio do ne bis in idem — Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit, art. 69.º/nm. 3 e 12, p. 378 e 380.
[38] Sobre uma distinção destas três reações sancionatórias, à luz da legislação então vigente, cf. António Latas, A pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis, Sub Judice, n.º 17 (jan.-mar. 2009), p. 75 e ss.
[39] Com raciocínio idêntico mas referente à sanção de inibição de condução prevista no Código da Estrada, na redação anterior a 1994, cf. Pedro Caeiro, ob. cit., p. 568.
[40] Diário da Assembleia da República, II série-A, 04.052001 (também consultável aqui: https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679626d56304c334e706447567a4c315a4a53556c4d5a5763765247396a6457316c626e527663306c7561574e7059585270646d4576595752694d7a67774d4441744d5449324d7930304f444e6d4c54686d596a45744d4749784e7a557a4f446c6a4e6a45314c6d527659773d3d&fich=adb38000-1263-483f-8fb1-0b175389c615.doc&Inline=true).
[41] As alterações que decorreram desta lei referem-se apenas à redação da al. a), do n.º 1, do artigo que deixou de se referir apenas ao disposto nos arts. 291.º e 292.º, para introduzir os “crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário” e à redação do n.º 7, onde se manteve a disposição de que cessa a aplicação do n.º 1 quando tiver lugar a aplicação da cessação ou interdição da concessão de título de condução, mas com remissão atualizada apenas para o art. 101.º.
[42] Proposta de lei citada.
[43] Este dispositivo permitindo que a proibição de conduzir veículos motorizados abrange todas as categorias ou apenas categoria determinada acolhe o que já então estava previsto no Código Penal alemão e que ainda hoje se mantém no § 44 — pode ser consultável, em versão inglesa, aqui https://www.gesetze-im-internet.de/englisch_stgb/englisch_stgb.html#p0228.
[44] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit, art. 69.º/ nm. 9, p. 379, considerando ainda que se deve estender a todos os veículos motorizados “mesmo para os que não necessitam de licença para conduzir”. Considera-se ainda que pode ser aplicada, mesmo a quem não possui habilitação para conduzir, caso em que a proibição impede a obtenção de tal habilitação durante o período em que vigora a pena acessória — cf. Código penal — Actas e projecto da comissão de revisão, Ministério da Justiça, Lisboa: Rei dos Livros, 1003, 76: justificando a necessidade de aplicação da pena a quem não é titular de licença de condução “para obviar a um tratamento desigual que adviria da sua não punição” (também neste sentido, António Latas,  ob. cit., p. 85-86; Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit, art. 69.º/ nm. 9, p. 380; Germano Marques da Silva, Crimes rodoviários... cit., p. 32).
Também no sentido de que abrange qualquer categoria de veículos motorizados, cf. M. Miguez Garcia/ J.M Castela Rio, ob. cit., art. 69.º/ n.º 5, p. 414; Simas Santos/Leal-Henriques, Código Penal Anotado, vol. I, Lisboa: Rei dos Livros, 4.ª ed., 2014, p. 927.
[45] In http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210742.html
[46] Assim, M. Miguez Garcia/ J.M Castela Rio, ob. cit., art. 101.º/ n.º 1, p. 495.
[47] Cf. António Latas, ob. cit., p. 93 e ss; o Autor é o relator do acórdão fundamento em oposição ao acórdão aqui recorrido.
[48] António Latas, ob. cit., p. 76.; o Autor socorre-se da ideia de Jescheck apresentada na 4.ª edição do seu tratado, na versão ali citada Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Granada: Comares. 1993, p. 716; na 5.ª ed. do Tratado, Jescheck/Weigend (ob. cit., p. 843) referem que a pena acessória de proibição de condução de veículos com  motor pressupõe a condenação pela prática culposa de um crime, assim como a aplicação de uma pena principal pelo crime cometido; e tem como objetivo desenvolver uma ação pedagógica sobre quem é um condutor capacitado para intervir na circulação rodoviária, através da suspensão, durante um curto período de tempo,  da autorização de condução
[49] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 145/2021, de 10.03.2021, Relatora: Cons. Joana Fernandes Costa, in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20210145.html.
[50] Idem.
[51] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 440/02, de 23.10.2002, Relator: Cons. Bravo Serra, in  http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020440.html 
[52] Em sentido contrário — no Tribunal da Relação de Lisboa, acórdão de 21-09-2006, Proc. n.º 5786/06-9ª Secção, Relator Francisco Caramelo; no Tribunal da Relação do Porto, acórdãos de 11-05-2005, Proc. n.º 051137, Relator Fernando Monterroso, de 12-05-2004, Proc. n.º 0345778, Relator Torres Vouga; no Tribunal da Relação de Évora, acórdãos de 19-03-2013, Proc. n.º 430/11.2GTABF.E1, Relator António Latas,  de 11-07-2013, Proc. n.º 41/13.8PACTX.E1, Relator António Latas, de 10-12-2009, Proc. n.º 60/09.9GCBJA.E1, Relator Carlos Berguete Coelho, de 12-02-2008, Proc. n.º 2213/07-1, Relator António Latas, de 12-09-2006, Proc. n.º 943/06, Relator Martins Simão, de 20-09-2005, Proc. n.º 280/05-1, Relator Pires da Graça, de 11-01-2005, Proc. n.º 2175/04-1, Relator Manuel Nabais, de 22-09-2004, Proc. n.º 840/04-1, Relator Alberto Borges, de 09-07-2002, Proc. n.º 946/02-1, Relator Manuel Nabais.