Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05A963
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: REIS FIGUEIRA
Descritores: SENTENÇA
FUNDAMENTAÇÃO
PROVAS
EXAME
ÓNUS DA PROVA
EXAME LABORATORIAL
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: SJ200505100009631
Data do Acordão: 05/10/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 5233/04
Data: 06/08/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1) - Na fundamentação da sentença, o juiz deve fazer o exame crítico das provas de que lhe cabe conhecer: artigo 659, nº3 do CPC.
2) Essas provas, cujo exame crítico o juiz deve fazer na fundamentação da sentença, não são as mesmas provas de que fala o artigo 655 do CPC:
a) quando decide a matéria de facto nos termos do art. 655, o juiz aprecia as provas de livre apreciação;
b) quando fundamenta a sentença nos termos do art. 659, nº3, o juiz examina as provas que lhe cabe conhecer nesse momento, e que são as provas resultantes de presunções legais ou com valor legal fixado, se ainda não utilizadas, os ónus probatórios e os factos admitidos por acordo na audiência de julgamento.
3) Por isso, se as provas produzidas foram todas provas de livre apreciação, não há provas cujo exame crítico deva ser feito na sentença, visto que o juiz não pode reapreciar na sentença as provas de livre apreciação, cujo exame crítico foi já feito no momento do julgamento da matéria de facto.
4) Se a sociedade autora, titular de conta no banco réu, demanda este por ter indevidamente transferido da sua conta para conta de terceiro determinada quantia, cujo reembolso pede na acção, tem a autora o ónus de alegar e provar a transferência, pelo banco, de fundos da sua conta para a conta de terceiro, por se tratar de facto constitutivo do seu direito ao reembolso dessa quantia
5) Se essa transferência foi feita dela entidade bancária em cumprimento de ordem de transferência dada pela autora, sua cliente, tal é facto impeditivo do direito da autora, por isso a alegar e provar pelo réu.
6) É por isso o banco réu quem tem de provar que a transferência foi devidamente autorizada pelo sócio gerente da autora, sua cliente, e, para tanto, que a assinatura aposta na ordem de transferência era do gerente da autora e tinha poderes bastantes para isso.
7) No entanto, o exame pericial (exame grafológico) é prova de livre apreciação, a apreciar no conjunto de todas as provas.
8) Se a autora na acção nega que a assinatura aposta no documento de autorização para transferência seja do seu gerente, mas não nega que seja seu o carimbo aposto sob a assinatura, aquela alegação convence pouco, mas não constitui só por isso abuso de direito, na forma "venire contra factum proprium", pois em teoria é sempre possível conciliar as duas coisas.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Tramitação processual.

"A", Sociedade de Comercialização de Combustíveis e Lubrificantes, Limitada" demandou o "B, sociedade anónima", pedindo a sua condenação a pagar à Autora a quantia de 6.392.107 escudos, montante indevidamente debitado, em 31/12/98, na conta de depósitos à ordem aberta pela Autora no balcão da Ré no Barreiro, mais 780 escudos de valor de despesas de devolução do cheque, e ainda 5.000.000 escudos de indemnização por danos não patrimoniais resultantes da conduta ilícita do Banco (consistente em ter transferido fundos depositados na conta da Autora para conta de terceiro, sem autorização dela), valores estes acrescidos de juros à taxa legal de 15% e de 12%, respectivamente, contados desde 31/12/98 para o primeiro montante, desde 05/01/99 para o segundo e desde a citação para o terceiro (indemnização).

O Réu contestou a acção, alegando designadamente que a transferência foi feita de acordo com instruções escritas da própria Autora, representada pelo seu sócio gerente C, com poderes para o acto (documento nº4 junto com a contestação, primeiro a fls. 38, depois a fls. 72 e finalmente a fls. 142, assinado por C, na qualidade de sócio gerente da Autora), conforme documento "abertura de conta empresas" e ficha de assinaturas dele constante (que também juntou) (mas não explicou a razão de ser da ordem de transferência).

A Autora respondeu à matéria de excepção, nomeadamente dizendo que a assinatura aposta na invocada e junta "instrução de transferência" foi falsificada, não sendo do sócio gerente da Autora, dito C, nem de qualquer dos seus gerentes com poderes para movimentar a conta, pelo que, conclui, não há ordem de transferência válida.
O Réu ainda apresentou tréplica, mas foi mandada desentranhar, por inadmissível.

Após normal tramitação (de que avulta a realização de dois exames grafológicos), foi proferida sentença em que se julgou a acção parcialmente procedente e assim foi o Réu condenado a pagar à Autora as quantias de 31.764,06 Euros (montante levantado) e de 3,89 euros (despesas de devolução do cheque), correspondentes às duas primeiras quantias pedidas, com juros à taxa legal vigente, desde 31/12/08 e 05/01/99, respectivamente para a primeira e para a segunda quantias, e absolvida a Ré do restante pedido (indemnização).
De mais essencial, fundamentou-se a sentença em que ficou indemonstrado ter sido o sócio gerente da Autora a assinar a instrução de transferência, ónus da prova que cabia ao Réu.

Recorreu o Réu de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou improcedente o recurso e confirmou a sentença.

O recurso.

Recorre de novo a Ré, agora de revista para este STJ.
Alegando, concluiu:
1ª) No Acórdão recorrido não foram ponderados todos os factos essenciais para a boa decisão da presente causa.

2) Relativamente às questões suscitadas no recurso interposto pelo ora Recorrente o Acórdão recorrido fez "tábua - rasa" das mesmas não se pronunciando sequer sobre as mesmas, tendo-se limitado a transcrever as conclusões formuladas pelo Recorrente, sem fazer a competente análise crítica que a Lei manda que se faça e por via disso também o Acórdão ora recorrido é nulo nos termos da alínea d) do Artigo 668º do CPC.

3) Pelas razões supra invocadas o Acórdão recorrido decidiu em claro benefício do infractor ou seja admitiu que a Autora viesse contra facto próprio, pois o carimbo aposto no documento é seu mas a assinatura, que é em tudo semelhante com a ficha de assinaturas, convenientemente, já não é sua, num verdadeiro e claro abuso de direito (Artigo 334º do C.C.). O Acórdão recorrido permite assim que a Autora faça proveito desse Abuso de Direito e colha os frutos do mesmo.

4) Ainda pelas razões supra invocadas o Acórdão recorrido viola ainda o disposto no Artigo 236º do Código Civil e 659º do C.P.C
5) Se a Lei admitisse o "onus probandi", tal como o Acórdão recorrido o configura, estaria a Lei a admitir que no presente caso o Recorrente demonstrasse uma certeza que os próprios peritos consideram incerto e por via disso estaríamos perante uma solução vazia de certezas.
6) Pela deficiente interpretação da lei o acórdão recorrido viola ainda o Artigo 9º do Código Civil.

A recorrida contra-alegou em defesa do julgado.
Cabe conhecer.
Factos provados nas instâncias.

1 - A sociedade A, ora Autora, que se dedica à comercialização de combustíveis e lubrificantes de marca BP, em 06/03/1998 abriu na agência de Barreiro da instituição bancária ora Ré (B) uma conta de depósito à ordem (D.O.), sob o n.° 16514242.10.001, que poderia ser movimentada com a assinatura de C ou D, seus sócios gerentes, (A, B e U da Especificação).

2 - Em 31/12/1998 o saldo da referida conta oscilou entre 9.817.452$30 e 17.656.359$30, (C da Especificação).

3 - Na mesma data, com base no conteúdo do documento que ora faz fls. 142 (1) - que insere, no essencial, a data de 20/08/1998 e o seguinte texto: "Pela presente solicito(amos) que procedam em 31.12.98 à transferência por débito da nossa conta D.O. n.º 16514242.10.001, junto de V. Excias., para a conta D.O. n.º 16447673.10.001, das quantias que se mostrem necessárias, em 31.12.98, à regularização do saldo devedor da conta D.O. n.º 16447673.10.001, junto de V. Excias." - onde, sob o carimbo da sociedade ora Autora (A, LDA.) consta o nome manuscrito de "C/e/o", c/aposição pela ora Ré da expressão preposicional "assinaturas conferidas", B operou a transferência da mesma, para a conta n.° 16447673.10.001, titulada por (em nome de) E, pai de C, falecido em 15 de Setembro de 1998, da importância pecuniária de 6.932.107$30, (D, E e S da Especificação e referido documento de fls. 142).
4 - Em 15/09/1998 e 31/12/1998 a referida conta de E apresentava saldo negativo, pelos valores respectivos de 4.924.327$50 e 6.268.107$30, (F e G da Especificação).
5 - Em 30/12/1998, A emitiu o cheque n.° 5787184, sobre a conta identificada sob o antecedente item 1, pelo valor de 22.332.532$00, a favor de BP Portuguesa que, apresentado a pagamento em 04/01/1999, foi devolvido no dia imediato por insuficiência de provisão, de 9.486.418$30, (H, I e L da Especificação).
6 - No mesmo dia (05/01/1999), B comunicou tal devolução a A e debitou na referida conta as somas de 750$00 e 30$00, relativas às despesas de devolução do cheque e imposto de selo, (N e O da Especificação).
7 - A quantia titulada pelo referido cheque foi inscrita inicialmente a débito e depois a crédito, fazendo tais operações alterar o saldo da conta para valor negativo e positivo, respectivamente de 12.846.113$70 e 16.983.351$00, (J e M da Especificação).
8 - O mesmo cheque foi novamente apresentado em 07/01/1999, quando a conta sacada apresentava um saldo credor de 18.121.499$10, sendo então pago, ficando por tal efeito o saldo reduzido ao valor negativo de 4.211.032$90, (P, Q e R da Especificação).
9 - C assina este preciso nome nos documentos dados aos autos, designadamente a fls. 148 (agora 143), 29, 39, 41 (agora 145), 43 v.º (agora 146), 44 (agora 147) e 71 (agora 144), (T da Especificação).
10 - B caucionou o cumprimento de todas as obrigações assumidas por A junto da BP, até ao limite de 10.000.000$00, pela garantia bancária n.° 16514242.90.004, (V da Especificação).

Pela sua importância fulcral, destaca-se o teor do documento "instruções de transferência", datado de 20/08/98, agora a fls. 142:
"Pela presente solicito(amos) que procedam em 31.12.98 à transferência por débito da nossa conta D.O. n.º 16514242.10.001, junto de V. Excias., para a conta D.O. n.º 16447673.10.001, das quantias que se mostrem necessárias, em 31.12.98, à regularização do saldo devedor da conta D.O. n.º 16447673.10.001, junto de V. Excias."

Questões postas.

As questões postas no recurso são, por ordem lógica:
a) nulidade por omissão de pronúncia, por o acórdão não ter apreciado as questões postas, nem ter feito o exame crítico das provas;
b) ónus da prova de que a assinatura aposta nas "instruções de transferência" era da pessoa a quem é atribuída: o sócio gerente da Autora, dito C;
c) abuso de direito por parte da Autora, na forme de venire contra factum proprium, por ter impugnado a assinatura mas não o carimbo a óleo sobre ela aposto.

Apreciando.

Todas as questões postas têm a ver com a matéria de facto.
Formularam-se seis quesitos, a saber:
1) O nome manuscrito no documento de fls. 73 ("instruções do cliente ao B", que, rigorosamente era de fls. 72 e se encontra agora a fls. 142) foi efectuado por C?
2) A Autora autorizou a operação referida em D) (isto é, a transferência operada em 31/12/98)?
3) A devolução do cheque gerou quebra de confiança da BP para com a Autora?
4) Afectou a sua reputação junto a fornecedores e outros bancos?
5) E forçou a Autora a recorrer ao crédito de terceiros para efectuar o pagamento do cheque?
6) A Autora, por via do facto referido em 3) ficou impossibilitada de cumprir atempadamente as suas obrigações?
Todos os quesitos foram respondidos não provados.
Obviamente, cruciais foram as respostas aos quesitos 1º e 2º.
Em relação ao quesito 1º, procedeu-se a duas perícias grafológicas, onde se concluiu: "admite-se como provável que a escrita da assinatura suspeita aposta na ordem de transferência não seja da autoria de C". Na fundamentação da matéria de facto (respostas aos quesitos), escreveu-se, nomeadamente, que nem a perícia grafológica nem qualquer das testemunhas inquiridas permitiu esclarecer.
Vejamos agora as questões postas.

a) Nulidade.

A omissão de pronúncia referir-se-ia ao seguinte: a Relação não teria apreciado as questões postas, limitando-se a transcrever as conclusões apresentadas, mas não fazendo a análise crítica que a lei exige (art. 659, nº2 do CPC).
Vejamos.
Nas conclusões do recurso de apelação para a Relação, o Réu disse que a primeira instância não apreciou devidamente, como lhe competia, toda a prova produzida, e em especial não tomou em conta todos os elementos que constam da ordem de transferência (como a aposição do carimbo reconhecidamente da Autora sobre a assinatura atribuída ao sócio gerente da Autora, no documento "ordem de transferência"), nem os diversos documentos em que a assinatura "suspeita" aparece, nem as declarações prestadas pelas testemunhas. Disse violados por isso os art. 9 do CC e 659 do CPC [a referência ao art. 9 mostra-se totalmente inapropriada, porque do que ali se trata é da interpretação da lei; fica-nos portanto a alusão ao art. 659 do CPC].

Estas eram as questões postas à Relação, que se analisam assim em erro de julgamento sobre a matéria de facto, por incorrecta apreciação da prova produzida.
Não há nulidade por omissão de pronúncia, porque a Relação disse quais os factos que tinha por provados - e acrescentou, reproduzindo a sentença: "...a instituição bancária, depositária, só se eximirá da obrigação de garantia da disponibilidade ou restituição do montante depositado (...) se lograr demonstrar a ocorrência de qualquer evento de tal impeditivo, de culposa responsabilidade do depositante (...) e da correspondente presunção de culpa própria (cf. art. 1142, 1144, 796, nº1, 799, nº1, 342, nº2, 344, nº1 e 350 do CC). Assim, no caso em análise, indemonstrado que foi haver sido o próprio gerente da sociedade depositante quem subscreveu a instrução de transferência (...) haverá naturalmente que se concluir pela sua (da Ré) responsabilização para com a Autora, depositante".

Quer dizer: a Relação continuou a basear-se apenas nos factos dados como provados na primeira instância, não tendo, de facto, analisado de novo (reapreciado) a prova, designadamente avaliando e confrontando a resultante das perícias e a dos documentos juntos, nomeadamente quanto ao carimbo aposto. O que terá feito, decerto, por considerar que, respondidos os quesitos 1º e 2º da forma que o foram, nada mais havia a discutir.

Retornando aos factos, é coincidência demais que a ordem de transferência tenha sido dada para uma conta de terceiro, mas que pertencia ao pai do sócio gerente da Autora, sócio gerente esse a quem precisamente é atribuía a autoria da assinatura; pai esse que faleceu menos de um mês depois, não deixando bens, mas deixando dívidas. Não se cogitou sobre o móbil da transferência ou da eventual falsificação da assinatura. Não foi ponderado que, depois de na contestação o Réu, para justificar a transferência, ter juntado a ordem de transferência (fls. 72, agora a 142), donde consta uma assinatura atribuída ao sócio gerente da Autora, sob (ou sobre) um carimbo a óleo da mesma Autora, a Ré, na resposta, tenha impugnado que a assinatura fosse do seu sócio gerente, mas nada disse sobre o carimbo, que bem nítido se vê sobre ela. Porque não foi questionado que o carimbo aposto fosse da Autora, isso foi logo dado como provado por acordo. Ora, como explica a Autora que o carimbo aposto sobre a assinatura era da sociedade, mas a assinatura feita sob ele não era do gerente da sociedade? Porque, além de não negar que o carimbo fosse seu, também nunca a Autora disse que foi indevidamente utilizado por pessoa estranha (o que também a obrigaria a dizer por que razão e por quem foi utilizado e como saiu o carimbo do seu alcance e controlo).
As respostas negativas aos dois primeiros quesitos deixam-nos algumas perplexidades...

Ao que parece, o Tribunal de primeira instância, para responder aos dois primeiros quesitos, baseou-se sobretudo (apenas?) no exame grafológico, o qual, além de ser uma prova de livre apreciação (art. 389 do CC e 655, nº1 do CPC), a conjugar com as demais provas, em si mesmo não é concludente: em termos peremptórios, ele não afirma nem nega: apenas admite como provável que a assinatura não seja do C.
Podia o Tribunal concluir, com base nas demais provas, conjugadas com a pericial, que era, ou que não era, do referido C.
Não o fez a primeira instância, nem a Relação (a quem a alteração das respostas não foi pedida) o fez depois - o que sai do âmbito em que este STJ pode censurar a matéria de facto fixada nas instâncias, por não se verificar nenhuma das hipóteses dos art. 722, nº2 e 729, nº2 do CPC.
Portanto, em termos de matéria de facto, partimos daquela que as instâncias fixaram, por não nos ser lícito alterá-la.

Será que a falta de análise crítica da prova, de que fala o art. 659, nº2 do CPC, configura vício de nulidade por falta de fundamentação sobre a matéria de facto, nos termos do art. 668, nº1, b) do CPC? Porque, embora o não diga expressamente, parece que é disso que o Recorrente fala. Entende-se que não houve falta de análise crítica da prova, nos termos em que tal análise deve ser feita na sentença. Na fundamentação da sentença, deve o Juiz, além do mais, fazer o exame crítico das provas de que lhe cabe conhecer: art. 659, nº3 do CPC. Ora, quais são as provas cujo exame crítico deve o Juiz fazer na sentença? As provas de que fala o art. 659, nº3, cujo exame crítico deve ser feito na sentença, não são as mesmas provas de que fala o art. 655 do CPC: quando decide a matéria de facto (art. 655), o julgador aprecia as provas de livre apreciação; quando fundamenta a sentença, o Juiz deve examinar as provas de que lhe cabe conhecer nesse momento, e que são as provas por presunção, as provas legais ainda não utilizadas (como as resultantes de documento autêntico, por exemplo junto posteriormente à elaboração da base instrutória), os factos admitidos por acordo na audiência de julgamento e os ónus probatórios.

Neste sentido, Lebre de Freitas, CPCAnotado, vol. 2, 2001, 643, Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 1984, 647 (nota 1), Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. III, 1969, 226 e Castro Mendes, Direito Processual Civil, vol. III, 354/355. e, na jurisprudência, RC, 22/03/94, no BMJ, 435-917, RC, 23/01/96, no BMJ, 453-569 e STJ, 29/02/00, em Sumários do STJ, nº38, 29 e RE, 13/12/01, em CJ, ano XXVI, tomo V, 290.

Ora, esse exame crítico da prova a sentença não fez, porque não tinha que fazer, visto que as provas eram todas de livre apreciação. E o acórdão da Relação também não, pela mesma razão. De facto, no âmbito do art. 659, nº3 do CPC, o exame crítico das provas não abrange as provas de livre apreciação, cujo exame crítico (em conjunto) já foi feito aquando da fundamentação da matéria de facto: art. 655, nº1 do CPC.

Como não havia meios de prova de valor legalmente fixado, nem presunções legais, nem documentos autênticos posteriores, etc., a sentença em primeira instância limitou-se a elencar os factos provados (os especificados, visto que os quesitos foram todos respondidos negativamente). E a Relação de Lisboa - a quem não foi pedida a alteração das respostas, mas só, e indevidamente, a análise crítica - fez a mesma coisa.

Quer dizer: ao abrigo do art. 659, nº3 do CPC, não pode o Juiz reapreciar na sentença as provas de livre apreciação, cujo exame foi feito e cujo valor foi fixado pelo Juiz que decidiu a matéria de facto.
Os fundamentos de facto existem: são os factos dados como provados na sentença, portanto, com exclusão do factos quesitados, nomeadamente dos quesitos 1º e 2º.
Não há no acórdão (nem na sentença) falta de fundamentação de facto.
O exame crítico das provas é um dever do juiz na prolação da sentença, mas reportado apenas às provas de que lhe cabe então conhecer, nos termos acima delineados. Por isso, não vemos que tenha sido omitido tal dever.

Poderá tratar-se de omissão de pronúncia sobre questão posta, de que o Recorrente expressamente fala, no quadro do art. 668, nº1, d) do CPC? Também nos não parece, por a falta de análise crítica da prova não ser a verdadeira questão posta (a verdadeira questão seria a de deverem as respostas aos quesitos 1º e 2º ser alteradas para provados, alteração que não foi pedida à Relação: na Relação, o Réu não pediu que as respostas fossem alteradas para provadas, caso em que devia invocar o art. 712, nº1, a) e b) e nº2 do CPC). O apelante queixou-se muito da falta de apreciação das provas em conjunto e de análise crítica das provas, mas não pediu a alteração das respostas, coisa que, nos termos do art. 712, só podia ter lugar na Relação. Mas nunca no recurso para a Relação o Réu invocou, uma só vez que fosse, o art. 712 do CPC. A Relação limitou-se a dar como provada a matéria de facto dada como provada na primeira instância, não a reapreciando. Mas também é certo que o apelante não pediu a alteração das respostas - e só para tal fim tinha sentido reapreciar a prova.

Portanto, continuamos a entender que não há nulidade por omissão de pronúncia, visto que a convicção probatória, quando se trata de provas de livre apreciação, é do foro pessoal e íntimo do julgador da matéria de facto (art. 655, nº1 do CC) (e função dos princípios da imediação, da oralidade e da concentração) - além de que foram produzidas provas cujo sentido ou teor é desconhecido pelas instâncias de recurso (depoimentos orais não registados).

Na realidade, como a apreciação das provas deve ser feita em conjunto e o teor de um dos meios de prova (o depoimento das testemunhas, inquiridas sem que tivesse sido feito o registo dos depoimentos) não consta dos autos, o Tribunal da Relação não tinha margem para alterar as respostas sobre a matéria de facto (art. 712), mesmo que tal lhe tivesse sido pedido - e não foi.

Nas alegações de recurso para este STJ diz o Réu-recorrente que foi o falecido E quem propôs ao mesmo Réu que fosse a Autora (de que o seu filho é sócio gerente) a prestar garantia às suas dívidas perante o Banco réu; deste modo, a "ordem de transferência", da conta da sociedade de que o filho era sócio gerente para a conta do pai, teria sido a garantia que o E deu ao Banco para os "descobertos" da sua conta. Pode ser assim e tem lógica, mas como isto não é matéria de facto alegada nos articulados, nunca poderia ser submetida a prova e não se poderia nunca dar como provada. Importante teria sido saber o móbil da ordem de transferência e da assinatura aposta, havendo várias hipóteses: uma a que acabou de se dizer, posta nas alegações de recurso mas não nos articulados; outras duas, muito pouco recomendáveis: a aventada pela Autora, ao que parece com pouca intenção de provar (de que o Banco pretendeu pagar-se do saldo negativo da conta do pai do sócio gerente da Autora através de dinheiro da sociedade autora); e a de que a Autora pretenderia liquidar a dívida do pai do sócio gerente através do Banco réu, razão por que teria impugnado a assinatura. Diga-se que, como mais lógica (e mais decente) nos parece a primeira, mas não foi alegada onde o deveria ser, pelo que nem pode este Tribunal mandar ampliar a matéria de facto nos termos do art. 729, nº3 do CPC.

b) Abuso de direito por parte da Autora.

Pretende o Recorrente que a Autora abusou de direito (art. 334 do CC) porque, não negando que o carimbo aposto sobre a assinatura fosse seu, negou que fosse do seu gerente a assinatura aposta sob o carimbo.
Não há qualquer venire contra factum proprium, visto que o reconhecimento (apenas tácito) de que o carimbo era seu não implica de forma necessária o reconhecimento da assinatura. O que há é uma alegação da Autora que, no conjunto das circunstâncias, convence pouco - mas isso é matéria de facto fora do alcance censório deste STJ, como já se disse.
Não se patenteia que a Autora esteja a abusar de um direito que tem: art. 334 do CC.

c) Ónus da prova.

Pretende o Réu que o ónus da prova de que a assinatura é do C não pode ser seu, visto que não se lhe pode exigir uma prova (a prova de uma certeza) que nem ao alcance dos peritos esteve.
A alegação é interessante e entronca em coisas já ditas acima. Mas não é como o Recorrente diz. O ónus da prova está regulado na lei: art. 342 e 343 do CC.
A Autora tem o ónus de alegar e provar a transferência de fundos da sua conta para a conta de terceiro, por se tratar de factos constitutivos do direito que se alega (art. 342, nº1 do CC). Se a transferência foi feita pelo Réu em cumprimento de instruções da Autora, tal é facto impeditivo do direito da Autora, como tal a alegar e provar pelo Réu (art. 342, nº2 do CC). O Réu tinha de provar que a ordem de transferência foi devidamente autorizada pelo sócio gerente da Autora, por se tratar de facto impeditivo do direito da Autora: art. 342, nº2 do CC (STJ, 30/01/86, BMJ, 353-388).

Noutro plano, o segundo facto (que a transferência não foi autorizada) é um facto negativo, por isso é (continua a ser) o Réu quem, nesta nova perspectiva, tem o ónus de provar o correspondente facto positivo (que a transferência foi autorizada): art. 343, nº1 do mesmo CC.
Na realidade, toda a questão é de facto: saber se, com os elementos constantes dos autos, os quesitos 1º e 2º mereciam resposta afirmativa.
Já dissemos que é questão que sai do âmbito de conhecimento deste STJ.

Decisão.

Pelo exposto, acordam em negar a revista, condenando o Recorrente nas custas.

Lisboa, 12 de Maio de 2005
Reis Figueira,
Barros Caldeira,
Faria Antunes.
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(1) E à época da elaboração do despacho de condensação, fls. 72.