Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
24369/16.6T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
FACTOS INSTRUMENTAIS
LEI PROCESSUAL
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
FACTOS ESSENCIAIS
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCILAMENTE A REVISTA E BAIXA DOS AUTOS
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
Doutrina:
- Fernando Pereira Rodrigues, A Prova em Direito Civil, Coimbra Editora, 2011, p. 16/18;
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11.ª ed., 2008, Almedina, p. 860-864;
- João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2.ª ed., Abril, 2008, p. 84.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, N.ºS 1 E 2, 607.º, N.º 4, 608.º, N.º 2 E 663.º, N.º 2.
Sumário :
I. Nos termos dos artigos 5.º, n.º 2, alínea a), e 607.º, n.º 4, este aplicável aos acórdãos da Relação por via do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, deve o tribunal extrair dos factos instrumentais resultantes da instrução da causa as ilações que se impuserem no sentido da comprovação dos factos essenciais.

II. A reapreciação da decisão de facto impugnada, por parte da Relação, não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica a reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de o tribunal de recurso formar a sua própria convicção em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa.

III. O exercício desse poder-dever cognitivo é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça em termos de verificar se foram observados os parâmetros formais ou balizadores da respetiva disciplina processual.

IV. Nesse domínio, compete ao tribunal de revista ajuizar se o Tribunal da Relação observou o método de análise crítica da prova prescrito no n.º 4 do indicado artigo 607.º, mas já não imiscuir-se na valoração da prova feita segundo o critério da livre e prudente convicção do julgador, genericamente editado no n.º 5 do artigo 607.ºdo CPC.

V. Em face da impugnação da decisão de facto configurada pelo recorrente, a Relação deve empreender a análise crítica dos concretos meios de prova por ele convocados, não se limitando a uma apreciação global ou sincrónica da factualidade envolvente.   

VI. O dever de pronúncia que incumbe ao juiz nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC, deve ser aferido em função da questão que tiver sido suscitada pelas partes, independentemente do respetivo mérito.

VII. Os factos alegados pelo réu em sede de contraprova não se traduzem em factos essenciais, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do CPC, consistindo em meros factos impugnativos com função instrumental em relação aos factos essenciais que incumbe ao autor provar.

VIII. É sobre ao factos constitutivos que incumbe ao autor provar que devem recair os juízos probatórios positivos ou negativos, não se exigindo, em regra, a formulação destacada de um juízo decisório factual sobre os respetivos factos impugnativos, bastando que estes sejam atendidos, como elementos resultantes da contraprova produzida, em sede da fundamentação dos factos essenciais a que se reportam.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I – Relatório

1. O Banco AA, S.A. (A.), instaurou, em 06/10/ 2016, ação de impugnação pauliana contra BB - Construção e Obras Públicas, S.A. (1.º R.), CC (2.º R.) e DD, S.A. (3.ª R.), alegando, no essencial, o seguinte:

. Em 27/10/2011, a 1.ª R. celebrou com o Banco A. um “Acordo de Liquidação Parcial e Reestruturação de Dívida” respeitante às diversas empresas que integram o Grupo “EE”, de que aquela R. fazia parte;

. No âmbito desse acordo, as responsabilidades da 1.ª R. para com o A. ficaram reduzidas a dois contratos de conta corrente caucionada no montante global de € 5.058.300,00;

. Com vista à liquidação integral deste capital, o Banco A. concedeu à 1.ª R. um empréstimo no referido montante, com a data-valor de 30/12/ 2011, pelo prazo de 120 meses, cuja última prestação de reembolso se venceria em 30/12/2021;

. O empréstimo foi realizado de uma só vez, com a mesma data-valor, através duma conta de depósito à ordem de que a 1.ª R. era titular junto do Banco A.;

. Para garantia do pagamento do capital mutuado, respetivos juros e demais encargos, a 1.ª R. entregou ao Banco A. uma livrança de caução por ela subscrita e avalizada pelo 2.º R., fixando-se como valor máximo do aval a quantia de € 2.700.000,00;

. O pagamento da quantia mutuada foi também garantido por hipotecas voluntárias constituídas pela 1.ª R., em primeiro grau, sobre três imóveis: um prédio urbano sito na freguesia de …, município de …, avaliado em € 2.327.300,00, um prédio rústico sito na freguesia do …, município de …, avaliado no valor de € 144.600,00, e um prédio misto sito na freguesia de …, município de …, no valor de 331.200,00, descritos, respetivamente sob n.º 3.668, n.º 607 e n.º 8264 das correspondentes conservatórias do registo predial;

. Foram ainda dados em garantia dois penhores sobre valores mobiliários; um constituído pela sociedade “EE, SGPS, S.A.” e outro pelo 2.º R.;

. Tendo a 1.ª R. deixado de cumprir o contrato em 30/04/2016, o A. procedeu, em 24/08/2016, à interpelação daquela e do seu avalista para efetuarem o pagamento da quantia então em dívida no total de € 4.857.647,42, incluindo o capital de € 4.507.117,69, juros e demais encargos, acabando por considerar resolvido o contrato, sendo que, à data da propositura da ação, a dívida ascende ao valor total de € 6.394.860,28;

. Sucede que a 1.ª R. vendeu à 3.ª R. os seguintes imóveis:

1 - Prédio rústico sito em …. ou …, Quinta ..., freguesia de …, concelho de …, descrito sob o n.º 257 na respetiva conservatória do registo predial;

2 - Prédio misto sito em Quinta …, freguesia de …, concelho de …, descrito sob o n.º 327 na respetiva conservatória do registo predial

3 - Prédio rústico sito na freguesia de ..., concelho de ..., descrito sob o 326 na respetiva conservatória do registo predial;

4 - Prédio misto sito na freguesia do …, concelho de …, descrito sob o n.º 1522 na respetiva conservatória do registo predial;

5 - Prédio misto Quinta da …, sito na freguesia de …, concelho de …, descrito sob o n.º 1526 na respetiva conservatória do registo predial;

6 - Prédio rústico sito na freguesia de …, concelho de … descrito sob o n.º 318 na respetiva conservatória do registo predial;

7 - Prédio misto sito na freguesia de …, concelho de …, descrito sob o n.º 1523 na respetiva conservatória do registo predial;

8 - Prédio rústico sito na freguesia do …, concelho de …, descrito sob o n.º 1524 na respetiva conservatória do registo predial;

9 - Prédio rústico sito na freguesia de …, concelho de …, descrito sob o n.º 319 na respetiva conservatória do registo predial.

. Os referidos contratos de compra e venda foram celebrados em 23/ 12/2011, 31/01/2012, 24/02/2012, e 04/05/2012 e 20/07/2012, portanto, à exceção do celebrado em 23/12/2011, em data posterior à constituição do crédito do Banco A.;

. Tal alienação teve em vista impedir a satisfação futura do crédito do A., tendo tanto a 1.ª R. como a 3.ª R. consciência desse prejuízo.

Concluiu o Banco A. a pedir que fossem declarados ineficazes, em relação a ele, as vendas dos referidos imóveis, realizadas pela 1.ª R. a favor da 3.ª R., com o consequente reconhecimento da possibilidade de executar estes bens no património da adquirente. 

     2. Entretanto, o Banco A. desistiu do pedido quanto ao 2.º R., o que foi homologado a fls. 709-710.

     3. As 1.ª e 3.ª R.R. contestaram a impugnar a alegação da intenção que o Banco A. lhe imputa de impedirem a satisfação do respetivo crédito e a invocar que dos negócios em causa resultou o acréscimo patrimonial da 1.ª R., concluindo pela improcedência da ação.

    4. Realizada a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 727-745, datada de 15/03/2018, a julgar a ação procedente, declarando-se ineficazes, em relação ao A., na medida do seu crédito, os contratos de compra e venda dos prédios acima identificados.

    5. Inconformadas, as 1.ª e 3.ª R.R. recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, em sede impugnação da decisão facto e de direito, tendo sido proferido o acórdão de fls. 868-903, de 07/02/2019, a julgar, por unanimidade e sem fundamentação essencialmente diferente, a ação improcedente, mantendo a decisão recorrida.

    6. Novamente inconformadas, as mesmas R.R. vêm pedir revista, alegando que o acórdão recorrido não envolve dupla conforme no respeitante à requerida ampliação da decisão de facto, mas que, a não se entender assim, a mesma seja admitida como revista excecional ao abrigo do disposto no artigo 672.º, n.º 1, alínea a), do CPC, formulando as seguintes conclusões:

1.ª – O acórdão recorrido, ao julgar improcedente a apelação, desatendeu a pretendida modificação da decisão de facto, quanto aos Factos Provados 28 e 29, ao aditamento de determinados factos e a invocada nulidade por omissão de pronúncia;

2.ª - Em relação aos Factos Provados 28 e 29, as R.R. contestaram as presunções alcançadas pelo tribunal da 1.ª instância por desconformidade com as regras que regem a distribuição do ónus da prova e as presunções judiciais, constantes dos artigos 342.º e 349.º e seguintes do CC, o que configuraria uma inconstitucionalidade material por violação do artigo 20.º, n.º 4, da CRP; e requereram a modificação da decisão recorrida, no sentido de dar como não provada a matéria impugnada.

3.ª - Também pugnaram pela ampliação da decisão de facto, indicando, em cumprimento do ónus vertido no artigo 640.º do CPC, os concretos pontos da matéria de facto que deveriam ser dados como provados com expressa remissão para os meios probatórios.

4.ª - Defenderam tratar-se de factos essenciais para a boa decisão da causa que foram invocados nos articulados e provados no decurso da audiência final, que revelam o quadro circunstancial que envolveu o ato impugnado (i.e. a venda da Quinta da …), permitindo aferir da verificação “in casu” dos pressupostos da impugnação pauliana, nomeadamente do nexo de causalidade entre o ato impugnado e a impossibilidade de satisfação integral do crédito;

5.ª - E ilustram a evolução negativa, não imputável às R.R., das garantias dadas ao financiamento pelo A., mais concretamente das ações AA; facto que assume todo o protagonismo no julgamento da exceção do abuso de direito invocada pelas R.R..

6.ª - Foi ainda rejeitado o aditamento de um facto complementar revelado na instrução da causa - «Na altura em que a Quinta da … foi vendida, a 1.ª Apelante tinha conhecimento dos estudos realizados pelo Banco FF de Investimento que indicavam que o fluxo financeiro libertado pela atividade do Grupo EE, em particular a que estava a ser desenvolvida no …, seria suficiente para liquidar toda a sua dívida bancária, incluindo o financiamento do Banco Apelado.» -, do qual as R.R. pretendiam ver incluído à luz do dever judicial de tomar em consideração todas as provas produzidas (tenham ou não resultado da parte que as deveria apresentar) e de dar como provados ou não provados os factos relevantes para a decisão da causa que emana dos artigos 413.º e 607.º, n.º 3 e 4, do CPC;

7.ª – A Relação rejeitou a ampliação pretendida por considerar a matéria instrumental, conclusiva ou de direito e que não se inclui no objeto do litígio tal como foi fixado pelo tribunal de 1.ª instância - «O direito da A. satisfazer os seus créditos sobre a 1.º Ré à custa dos imóveis vendidos por esta à 3.ª Ré» (cf. p. 68).

8.ª - Em relação ao facto complementar, o tribunal superior entendeu ainda que a matéria havia sido objeto de análise em sede de fundamentação da sentença.

8.ª – Porém, a rejeição do recurso no tocante à ampliação do acervo fáctico com fundamento na natureza instrumental da matéria que foi alegada pelas partes, sendo esta essencial para a decisão de direito (pressupostos da impugnação pauliana e verificação da exceção do abuso de direito), contende contra os poderes de cognição impostos ao julgador pelos artigos 5.º, 413.º e 607.º, n.º 3 a 5, do CPC.

9.ª - Estando em causa matéria sobre a qual existe uma única decisão (o acórdão ora impugnado) e invocando as R.R. erro de aplicação ou interpretação da lei processual pela Relação, afigura-se não haver lugar à limitação da dupla conforme estabelecida no artigo 671.º, n.º 3, do CPC

10.ª - O recurso do tribunal de 2.ª instância sobre presunções judiciais fora do quadro legal dos artigos 342.º e 349.º e seguintes do CC constitui matéria de direito que cai na esfera de competência do STJ vertida no artigo 674.º, n.º 3, do CPC.

11.ª - Ademais, a decisão recorrida promove uma incorreta interpretação e aplicação da lei processual no julgamento da ampliação da matéria de facto e ofende lei substantiva, tornando lícita a intervenção do tribunal ad quem;

12.ª - Assiste, assim, às R.R. o direito de impugnar o acórdão na parte respeitante à decisão da matéria de facto com fundamento na inobservância das regras probatórias e na violação dos poderes de cognição resultantes dos artigos 342.º, 349.º e 612.º do CC e dos artigos 5.º, 413.º e 607.º, n.º 3 a 5 do CPC, pelo que deve ser admitido o presente recurso, ao abrigo do disposto no artigo 671.º, n.º 1, e 674.º, n.º 1, alíneas a) e b), do CPC, como revista normal.

13.ª - Caso venha, porém, a ser entendido que in casu se verificou a dupla conforme entre a sentença proferida pela 1.ª instância e o acórdão recorrido - o que apenas a título subsidiário aqui se equaciona - mostram-se, igualmente, preenchidos os pressupostos da excecional admissibilidade da presente revista, fixados no artigo 672.º, n.º 1, alínea a), do CPC.

14.ª - O acórdão recorrido, ao julgar improcedente a nulidade por omissão de pronúncia imputada à sentença recorrida no tocante à exceção do abuso de direito invocada na contestação, violou o disposto no artigo 608.º, n.º 2 do CPC.

15.ª - Na sua fundamentação, a Relação rejeitou, em abstrato, a verificação do instituto do abuso de direito no quadro do instituto da impugnação pauliana.

16.ª - Refira-se que a ação pauliana implica um juízo sobre o nexo de causalidade entre o ato impugnado e a impossibilidade ou agravamento da satisfação do crédito, que incumbe ao autor provar; nexo de causalidade que as R.R. consideram inquinado pelo abuso de direito do A..

17.ª - Com efeito, não poderiam as instâncias recorridas ignorar que a impossibilidade de satisfação integral do crédito do A. está diretamente relacionada com a desvalorização acentuada das participações sociais do A. que foram dadas em garantia do crédito. Não tendo as R.R. concorrido de nenhuma forma para esse resultado, o qual é imputável na íntegra ao A., é totalmente desfasado da realidade e abusivo que as R.R. sejam as únicas penalizadas pela evidente má gestão do A..

18.ª - Não pode, pois, prevalecer a tese que considera o tribunal desvinculado da obrigação legal de apreciação de exceção invocada na contestação (em concreto, do abuso de direito) e que conduziu à exclusão dos respetivos factos concretizadores.

19.ª - Uma tal decisão afeta de forma intolerável o apuramento da verdade material, vedando às R.R. o direito de verem alterada a decisão do mérito da causa.

20.ª – No caso vertente, está em causa a determinação do correto sentido e alcance do artigo 608.º, n.º 2, do CPC, no quadro dos princípios fundamentais do processo civil. Não é, pois, legítima a total desconsideração de exceção alegada pela parte em articulado e a exclusão da aquisição processual dos respetivos factos concretizadores, sob pena de violação do princípio do processo justo e equitativo acolhido no artigo 20.º, n.º 4, da CRP;

21.ª - A interpretação do tribunal “a quo” branqueia o comportamento desleal de instituição bancária e afronta também o direito constitucional à propriedade privada consagrado no artigo 62.º, n.º 1, da C.R.P.

22.ª - A questão jurídica em causa prende-se com o âmbito dos poderes de cognição do julgador, encontrando-se investida de complexidade e pertinência jurídica. Trata-se de matéria cuja relevância extravasa os limites do litígio concreto no qual foi suscitada e que merece adequada orientação jurisprudencial.

23.ª - Em suma, constitui questão de significativo relevo jurídico, que justifica a intervenção do STJ para uma melhor aplicação do direito, fundamentando a admissibilidade do presente recurso como revista excecional, nos termos e para efeitos do disposto do artigo 672.º, n.º 1, do CPC;

24.ª – As R.R. requerem ainda a reforma do acórdão recorrido, com vista a retificar a omissão no tocante à dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente em sede recursiva requerida na p. 17 da alegação e conclusão 18 (cf. artigo 616.º, n.º 3 “ex vi” do art.º 666.º, n.º 1, ambos do CPC).

25.ª - As R.R. assacam ao Tribunal da Relação a violação de lei substantiva na parte que contende com o julgamento das presunções judiciais.

26.ª - Alegam que, embora as regras de distribuição do ónus da prova exigiam do A. a alegação e prova de que a R. BB tinha o «[…] propósito de impedir que tais imóveis pudessem vir a responder pelas dívidas da 1ª Ré […]» (Facto Provado 28) e a R. DD tinha a «[…] consciência que a transmissão da propriedade dos referidos imóveis poderia ter como consequência o agravamento, para o Autor, da possibilidade da satisfação integral do seu crédito.» (Facto Provado 29), esta materialidade foi dada como provada com base em presunção judicial.

27.ª - As presunções judiciais consubstanciam ilações que o julgador tira de um facto conhecido, cuja prova incumbe à parte que a presunção favorece para firmar um facto desconhecido (art.º 349.º CC).

28.ª - Deste modo, não se pode suprir por via da presunção judicial a carência de prova de um facto sujeito a julgamento, uma vez que, se tal acontecesse, se estaria a violar o princípio do dispositivo.

29.ª - O acórdão recorrido denota que a convicção judicial se funda em matéria que não consta do elenco factual, concretamente a falta de autorização expressa do A. para a prática do ato impugnado e a autorização dada ao negócio pelo credor FF;

30.ª - Tal fundamentação, reconhecendo que as vendas projetadas eram do conhecimento dos credores das R.R., incluindo o A., contraria as regras da lógica. Caso a transmissão não tivesse ocorrido, o FF (com um crédito de € 188.038.941,33) teria tanta legitimidade como o Recorrido para disputar o património alienado. Então onde reside a má fé das Recorrentes?

31.ª - Acresce que, o tribunal “a quo” reforça a fundamentação do tribunal de 1.ª instância, também ela assente na falta de demonstração de «[…] qualquer outra lógica na transferência do património de uma para a outra  […]» e num acervo de considerações (não provadas) relativas às sociedades «da Família Varela». Não é demais lembrar que não consta do rol dos factos provados que: (i) «[…] a única Sociedade da “Família Varela” que não tinha dívidas era a 3.ª Ré […]»; (ii) «[…] todas as Sociedades do “grupo” são, na verdade, encabeçadas pelo Engenheiro António Varela […]»; e (iii) «[…] sendo a “sobrevivência” das empresas assegurada por este [António Varela]». Nem a sentença cuida, aliás, de esclarecer quais os meios de prova que lhe permitiram alcançar tais conclusões.

32.ª - A legitimidade das presunções judiciais pressupõe que não alterem os factos que a prova haja fixado. É precisamente o caso dos autos, porquanto as ilações impugnadas partem de factos que não integram a matéria dada como provada.

33.ª - A impugnação pauliana consiste na faculdade que a lei concede aos credores de atacarem judicialmente certos atos válidos ou mesmo nulos celebrados pelos devedores em seu prejuízo (art.º 610.º do CC). Essa impugnação depende da verificação simultânea de vários requisitos, exigindo-se, designadamente, se se tratar de ato oneroso, que tenha havido má fé, tanto da parte do devedor como do terceiro. Entende-se por má fé a consciência do prejuízo que o ato causa ao credor (art.º 612.º, n.º 2, do CC).

34.ª - O ónus da prova cabe ao credor impugnante, como facto constitutivo do direito, em face do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do CC, não contrariado pela regra especial do artigo 611.º do mesmo diploma.

35.ª - Dúvidas não restam de que a parte a quem a presunção favorecia, ou seja, o A. não provou os factos que estão na base da presunção judicial. Assim, o uso da presunção judicial ocorreu fora do condicionalismo legal, que exige que a ilação do facto legal presumido assente na prova de um facto de base ou instrumental. De outra forma, estaria a desautorizar-se a exigência de prova concreta e não presumida para se dar por demonstrada a má fé do devedor e do terceiro.

36.ª - Neste contexto, conclui-se que o acórdão recorrido contém um errado juízo dedutivo e presuntivo sobre os factos, fazendo uma incorreta aplicação dos artigos 341.º, 342.º, 349.º, 351.º e 612.º do CC.

37.ª - Pelo exposto, deverá a decisão da Relação sobre a matéria de facto ser anulada, por ofensa às regras do direito probatório, e suprimidos dos factos presumidos (i.e. Factos Provados 28 e 29). Em consequência, e uma vez que a subsunção do caso sub judice no instituto da impugnação pauliana teve como pressuposto os factos declarados provados com base em presunções judiciais que ultrapassaram os limites legalmente impostos - ou seja, o propósito de impedir a satisfação do crédito e a consciência do prejuízo - deverá a ação ser julgada improcedente.

38.ª - Na sua alegação, as R.R. requereram a correção da omissão do tribunal de 1.ª instância, dando-se por provados os seguintes factos (atinentes à defesa por si apresentada e relevantes para a decisão do mérito da ação):

(i) O produto da venda da Quinta da … foi utilizado, por via da cessão de créditos, na assunção liberatória das dívidas de suprimentos da 1.ª Ré e, por sua vez, da sociedade mãe «EE SGPS, S.A.» ao acionista;

(ii) A carteira de projetos da 1.ª Ré estava orientada para a comercialização de terrenos de grande superfície, localizados sobretudo na zona de …. (i.e. …., … e …) e no …;

(iii) Apesar dos esforços comerciais desenvolvidos pela 1.ª Ré, não surgiram interessados nestes imóveis;

(iv) Parte dos terrenos da 1.ª Ré encontravam-se localizados nas áreas abrangidas pelas Medidas Preventivas destinadas a garantir a programação e execução do empreendimento público do novo aeroporto da OTA e da ligação ferroviária de alta velocidade (TGV), o que impediu a 1.ª Ré, durante vários anos, de conseguir a aprovação dos projetos que tinha para os terrenos afetados;

(v) A situação económica e financeira da 1.ª Ré foi ainda agravada por fatores como o estrangulamento do crédito bancário (que agravou a contração do mercado), o aumento expressivo do spread e do indexante e a depreciação sustentada do valor do património imobiliário;

(vi) No dia 03-07-2009, foi celebrado entre várias sociedades do Grupo EE (em que se enquadra a 1.ª Ré) e o BANCO FF, S.A., um «Contrato de Financiamento» pelo montante de € 188.038.941,33, que previa a alienação da Quinta da … para a assunção liberatória das dívidas de suprimentos;

(vii) No âmbito do referido financiamento, foi realizada uma auditoria independente às demonstrações financeiras, na qual os auditores concluíram que a Quinta da ... foi vendida pelo seu valor de mercado;

(viii) As 1.868.800 ações AA dadas em garantia do crédito do Autor foram adquiridas pela sociedade mãe da 1.ª Ré, pelo montante de € 1.840.973,83, no âmbito da operação de aumento de capital do primeiro implementada em 2003 e fortemente encorajada por este;

(ix) Em alguns anos, as cotações degradaram-se e o valor comercial das participações no A. ficou reduzido a menos de 1% do seu valor de compra;

(x) Este negócio resultou numa perda patrimonial na ordem dos quatro milhões (incluindo o valor mutuado para aquisição das participações financeiras e respetivos encargos financeiros);

(xi) Na altura em que a Quinta da ... foi vendida, a 1.ª Apelante tinha conhecimento dos estudos realizados pelo Banco FF de Investimento que indicavam que o fluxo financeiro libertado pela atividade do Grupo EE, em particular a que estava a ser desenvolvida no …, seria suficiente para liquidar toda a sua dívida bancária, incluindo o financiamento do Banco A..

39.ª - Indicaram desenvolvidamente, como impõe o artigo 640.º, n.º 1, do CPC, os meios probatórios que legitimavam o referido aditamento e qual a decisão probatória que, no seu entendimento, deveria ter sido proferida. E defenderam que a matéria que se pretendia ver incluída punha em causa a verificação do pressuposto contido no artigo 610.º, alínea b), do CC - i.e. «Resultar do ato a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.»;

40.ª - As R.R. explicaram ainda que as 1.868.800 ações AA - adquiridas, em 1.04.2003, pelo montante de € 1.840.973,83 - foram consideradas, em 30.12.2011, garantias idóneas pelo A.. Recordaram que, apenas por incúria do mesmo, o valor destas garantias se depreciou para menos de 1% (um por cento) do respetivo preço de compra, o que resultou numa perda patrimonial superior a quatro milhões de euros (incluindo encargos e comissões). Está em causa um facto que as R.R. não podiam prever no momento da contratualiação do empréstimo e que o A. também não anteviu. Neste contexto, concluiu-se que as R.R. não deveriam ser penalizadas pela redução de valor de garantias que, não fora a gestão ruinosa do A., teriam sido suficientes para satisfazer o crédito.

41.ª - Com a sua atuação, o A. frustrou o legítimo investimento de confiança que lhe foi depositado, arremetendo judicialmente contra uma situação à qual deu causa. Trata-se, na perspetiva das R.R., de um evidente abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium” que não poderia ter sido desconsiderado pelo tribunal “a quo”.

42.ª - A ordem jurídica preocupa-se em proteger a expetativa de que a outra parte atue com retidão e autenticidade. Os princípios da boa-fé e da confiança são, do ponto de vista ético-jurídico, fundamentais. Como manifestação da teoria do abuso do direito, no segmento conexo com os limites impostos pela boa-fé, tem-se envolvido o princípio da proibição do “venire contra factum proprium”. Trata-se de um princípio que tutela, em primeira linha, a confiança inter-pessoal, bem como a expetativa que se tem relativamente ao comportamento alheio devido à convicção que, de algum modo, foi criada pelo sujeito do mesmo comportamento. A proibição da conduta contraditória em face da convicção criada implica que o exercício do direito seja abusivo por ilegítimo.

43.ª - Como refere VAZ SERRA, o princípio da proibição do “venire contra factum proprium” impede «que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha confiado» in RLJ, ano 105.º, p. 28. É a consagração da responsabilidade pela confiança.

44.ª - Não se conformam as R.R. com a posição assumida pela Relação, que concluiu estarmos perante factualidade «[…] instrumental, conclusivo ou consubstancia matéria de direito […]» e, nessa medida, abrangida pela fundamentação da sentença e ainda que não se inclui no objeto do litígio.

45.ª - Cumprido o ónus de alegação e de prova, impunha-se ao tribunal “a quo” que, perante a impugnação da matéria de facto, procedesse à aquisição processual da materialidade impugnada.

46.ª - Estando o tribunal obrigado, ao abrigo do artigo 5.º, n.º 2, do CPC, a levar em linha de conta os factos não alegados e não essenciais, desde que complementem ou concretizem os factos alegados e resultem da instrução da causa, por maioria de razão, não poderia desconsiderar os factos essenciais que foram alegados.

47.ª - E nem se diga que os factos em causa carecem de eficácia para a apreciação da situação jurídica controvertida.

48.ª - Os factos (i) e (vii) versam sobre as condições em que ocorreu a venda da Quinta da … e o impacto que teve na tesouraria da R. BB. Esta factualidade é ilustrativa da intenção das R.R., derrotando a conclusão do julgador pela sua má fé, encontrando acolhimento no primeiro tema de prova, a saber «Intenção de impedir a satisfação dos créditos».

49.ª - Em casos análogos, tem-se entendido que o cumprimento pelo devedor de uma obrigação, de entre uma pluralidade a que está adstrito, mesmo que em favorecimento de um dos seus credores, está a coberto da ação pauliana quando representar a satisfação de obrigação cujo cumprimento já devia ter ocorrido. Assim, não poderiam as R.R. ser atacadas por terem procedido à assunção liberatória das dívidas de suprimentos (como estava projetado, com a anuência do seu maior credor, desde 2009, em detrimento da satisfação dos créditos do A..

50.ª - Salienta-se que o valor comercial da Quinta da Alegria é manifestamente inferior à dívida que a R. BB tem, desde 2009, junto do FF (e que, posteriormente, foi transferida para a titularidade do BANCO GG, S.A.). De modo que, caso a transmissão impugnada não tivesse ocorrido, tais bens responderiam, em primeiro lugar (ou, pelo menos, proporcionalmente), por esta responsabilidade. Donde se conclui que, num cenário em que a R. BB não tivesse vendido a Quinta da … à R. DD, não estaria garantida a satisfação integral do crédito do A..

51.ª - Tais factos demonstram também que o ato impugnado não foi a causa do agravamento da satisfação integral do crédito do A., o que se enquadra no segundo tema da prova referente à «Impossibilidade de satisfação ou agravamento da satisfação integral dos créditos decorrente das vendas / do acréscimo patrimonial».

52.ª - Os factos (ii) a (v) supra são ilustrativos das vicissitudes que a R. BB enfrentou, nomeadamente as repercussões da crise económico-financeira mundial. E os factos (vi) e (xi) demonstram que a venda posta em crise estava projetada mais de 3 anos antes da renegociação do crédito com o Recorrente e nada fazia crer, nessa altura, que a venda poderia prejudicar o cumprimento do serviço da dívida.

53.ª - Nessa medida, contendem com o primeiro tema de prova (i.e. «Intenção de impedir a satisfação dos créditos»).

54.ª - Por último, os factos (viii) a (x) evidenciam o abuso do direito que o A. pretende exercer pela via judicial e em que se baseia a exceção invocada pelas R.R., contendendo com o segundo tema da prova (i.e. «Impossibilidade de satisfação ou agravamento da satisfação integral dos créditos decorrente das vendas do acréscimo patrimonial»).

55.ª - A ampliação da decisão de facto objeto da apelação versa matéria que se integra no objeto do litígio e que poderia ter influência efetiva na decisão de mérito. A materialidade em causa inquina a conclusão alcançada pelas instâncias judiciais de que o não pagamento integral do financiamento ao Recorrido é um resultado da venda da Quinta da … .

56.ª - Está, assim, diretamente relacionada com os fundamentos que levaram a instância recorrida a concluir pela verificação dos pressupostos da impugnação pauliana, ou seja, o nexo de causalidade entre a venda e o agravamento de situação do Recorrido e a existência de má fé bilateral, na modalidade de dolo eventual.

57.ª - Com a exclusão de tais factos, o acórdão recorrido violou o princípio da aquisição processual consagrado no artigo 413.º do CPC e fez uma errada aplicação dos artigos 5.º e 607.º, n.º 3 e 4, do mesmo diploma.

58.ª - Neste contexto, pode e deve a decisão de facto ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para uma decisão de direito, pelo que requer que, nos termos do disposto no artigo 682.º, n.º 3, do CPC, volte o processo à Relação para ampliar a matéria de facto no respeitante aos pontos objeto da apelação, os quais, face ao resultado da atividade probatória, devem ser acolhidos como factos provados.

59.ª - Finalmente, afigura-se que a Relação, ao julgar improcedente a nulidade imputada à sentença da 1.ª instância por omissão de pronúncia sobre a exceção do abuso de direito invocada na contestação, perfilha uma interpretação normativa do artigo 608.º, n.º 2, do CPC que atenta conta o direito à tutela jurisdicional efetiva e a um processo justo e equitativo que emana do artigo 20.º da CRP.

60.ª - No caso vertente, as R.R. alegaram que o abuso de direito configura uma exceção perentória, que importa a absolvição do pedido (art.º 576.º, n.º 1 e 3, do CPC), donde resulta a sua relevância para a composição da lide. Por essas razões, defenderam que, nos termos do art.º 608.º, n.º 2, do CPC, o tribunal de 1.ª instância estava obrigado a conhecer da exceção especificadamente alegada em articulado e que, não o tendo feito, a sentença ficou, ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, ferida de nulidade.

61.ª – A Relação entendeu não estar o tribunal recorrido vinculado a conhecer da mencionada exceção, dado que a matéria de facto que consubstancia a exceção, no tocante à depreciação das garantias do crédito do A. (a qual foi alegada na contestação), não tem qualquer relevância no quadro jurídico da impugnação pauliana.

62.ª - Tal interpretação normativa não pode prevalecer. Não poderia a 1.ª instância ignorar em absoluto uma exceção invocada pelas partes, sob pena de defraudar o princípio da proibição de non liquet, consagrado no art.º 8.º, n.º 1, do CC e no artigo 608.º, n.º 2, do CPC.

63.ª - O julgador deve atentar à configuração que as partes deram ao litígio. Impõe-se que leve em linha de conta a causa de pedir e que resolva todas as questões concretas que emerjam do pedido deduzido pelo autor, das exceções invocadas pelo réu e, bem assim, de todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer.

64.ª - Não colhe a tese do acórdão recorrido de que a exceção do abuso de direito constitui um mero argumento/motivação, carecendo da dignidade de questão que deva ser resolvida pelo tribunal. Parece indubitável que a exceção em causa colide com a questão de fundo do litígio e que, tendo em conta a pretensão que a parte visa obter, deve integrar a matéria decisória.

65.ª - A pronúncia inequívoca da 1.ª instância sobre a exceção do abuso de direito era essencial. A interpretação normativa sufragada pela Relação esvazia de relevância a figura jurídica do abuso de di-reito arguida e premeia incompreensivelmente o comportamento desleal do A.. Deveria, pelo contrário, o tribunal “a quo” ter revogado a sentença e, lançando mão da faculdade conferida pelo artigo 665.º, n.º 2, do CPC, julgado procedente a exceção perentória do abuso do direito e absolvido as R.R. do pedido.

66.ª - Importa referir que, aquando da renegociação do crédito, o A. exigiu as garantias que entendeu necessárias para assegurar o pagamento do seu crédito e tinha perfeito conhecimento da intenção da R. BB de vender a Quinta da …; venda que estava projetada desde 2009. No entanto, vem, volvidos quatro anos, pôr em causa o direito constitucional à propriedade das R.R., arrogando-se o direito a ser pago às custas de uma garantia que oportunamente não obteve. Bem sabendo que, se o crédito não foi integralmente ressarcido, tal se ficou a dever em larga medida à desvalorização acentuada das garantias prestadas. E quem é que deu causa a essa desvalorização? O próprio A.. Na realidade, se as suas ações não tivessem perdido 90% do seu valor, o crédito estaria hoje totalmente pago.

67.ª - Pergunta-se: é irrelevante que, não fora a desvalorização das ações do A. (das ações do capital do mutuário) dadas em garantia, o crédito poderia ter sido integralmente pago sem que a alienação da Quinta da … tivesse qualquer impacto no cumprimento do mesmo?

68.ª - Custa a entender e, ainda mais, a aceitar que o A. possa prevalecer-se de uma situação que ele próprio criou.

69.ª - Não pode ignorar-se que o A. já teve de entrar em processos de mediação, sob os auspícios da CMVM, para indemnizar pequenos acionistas pela venda/subscrição de ações com crédito do banco;

70.ª - Estas práticas foram, inclusivamente, objeto de condenação pela CMVM;

71.ª - No caso concreto, ao contrário do que aconteceu com estes pequenos acionistas, não só não se indemniza o acionista lesado, como o mesmo ainda é penalizado.

72.ª - É evidente que estamos perante uma situação materialmente injusta, à qual o artigo 334.º do CC visa colocar um travão.

73.ª - Quando negociaram o financiamento, as R.R. tinham legítima convicção de que o A. se comportaria coerentemente no futuro. Com efeito, o A. teve acesso às contas da R. BB e a oportunidade de exigir todas as garantias que entendeu serem boas e suficientes para assegurar o reembolso do crédito, entre as quais o penhor sobre as suas próprias ações. A sua anterior conduta, quando objetivamente considerada, foi de molde a despertar nas R.R. uma situação de confiança, com base na qual - e de boa fé - tomaram disposições e organizaram planos (mormente, a venda da Quinta da …), cuja frustração lhes causará danos - vide Ac. do STJ de 11.01.2011 (proc. n.º 2226/07.7TJVNF.P1.S1).

74.ª - O A. pretende exercer o seu direito de crédito, desresponsabilizando-se na íntegra pela perda de valor das suas próprias ações. Com este comportamento, trai o investimento de confiança consubstanciado na venda/subscrição de ações com recurso ao crédito do banco e, renegociada a dívida, na conformação dos seus outros negócios, incluindo a venda da Quinta da … .

75.ª - Não pode um Estado de Direito tolerar que as R.R. vejam o seu direito de propriedade violentado por ação exclusivamente imputável ao A., o que obviamente ultrapassa os limites da ética social e da boa fé.

76.ª - O artigo 608.º, n.º 2, do CPC impõe ao juiz o ónus de conhecer de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação. À luz da letra e razão de ser da norma, não se vislumbra que possa prevalecer o entendimento de que, no âmbito de uma impugnação pauliana, não há lugar à apreciação da exceção do abuso de direito oportunamente alegada pelo réu. E, por idêntica ordem de razões, não pode ser vedado ao recorrente o direito de impugnar a decisão de facto quanto aos factos essenciais (alegados em articulado) para o julgamento da exceção.

77.ª- Assim, a sentença de 1.ª instância é, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC, nula por omissão de pronúncia sobre exceção arguida pelas R.R..

78.ª - Apresenta-se como materialmente inconstitucional a interpretação normativa do artigo 608.º, n.º 2, do CPC sufragada no acórdão recorrido por ofensa ao princípio da confiança e ao direito constitucional a um processo justo e equitativo consagrado no art.º 20.º, n.º 4, da CRP. E afronta também o direito constitucional à propriedade privada consagrado no artigo 62.º, n.º 1, da CRP.

79.ª - Deveria a Relação ter reforçado na ordem jurídica a obrigação de o julgador analisar a matéria de facto relacionada com a exceção do abuso de direito invocada em articulado e apreciar os seus efeitos jurídicos. E, em consequência, ter declarado a sentença nula por omissão de pronúncia.

80.ª- A decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para uma decisão de direito. Assim, requerem que, nos termos do disposto no artigo 682.º, n.º 3, do CPC, volte o processo à Relação para ampliar a matéria de facto no que respeita aos pontos objeto da apelação, os quais, face ao resultado da atividade probatória, devem ser acolhidos como factos provados.

81.ª - Em resultado, deverá ser anulado o aresto recorrido e ordenado o novo julgamento da causa, em conformidade com o disposto nos artigos 682.º, n.º 3, e 683.º do CPC, ficando desde logo fixada, no quadro jurídico, a relevância da exceção perentória do abuso de direito e a correspondente procedência, verificando-se a factualidade invocada, com a consequente absolvição das R.R. do pedido.

82.ª - Por todo o exposto, deverá ser concedida a presente revista e, em consequência, anulado o acórdão recorrido, devendo declarar-se suprimidos os Factos Provados 28 e 29 e, no demais, serem os autos reenviados à Relação para ampliar a decisão de facto e julgamento da exceção do abuso de direito.

7. O Banco Recorrido apresentou contra-alegações a sustentar, em primeira linha, a inadmissibilidade da revista, por considerar verificada a dupla conforme e não caber ao STJ a apreciação livre das provas e a fixação dos factos; subsidiariamente, pugna pelo não provimento do recurso.

 

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – Quanto à questão prévia respeitante à admissibilidade da revista

      Das conclusões das Recorrentes acima transcritas colhe-se que a presente revista tem por objeto o seguinte:

i) – A impugnação da apreciação dos factos dados como provados nos pontos 28 e 29 da sentença da 1.ª instância com fundamento em inobservâncias das regras probatórias em sede da repartição do ónus da prova e do uso de presunções judiciais, constantes dos artigos 341.º, 342.º, 349.º, 351.º e 612.º do CC, conjugados com os artigos 671.º, n.º 1, e 674.º, n.º 1, alínea a), do CPC;

ii) – A alegada violação da lei processual, no respeitante ao poder de cognição, por parte da Relação, na apreciação dessa matéria com inobservância do preceituado nos artigos 5.º, 413.º, 607.º, n.º 3 a 5, conjugados com o 674.º, n.º 1, alínea b), do CPC;

iii) – A invocada omissão do pretendido aditamento dos factos descritos em (i) e (vii), (ii) a (v) e (vi) e (xi) da conclusão 38.ª das R.R.  acima transcrita para ajuizar, respetivamente, sobre a intenção de impedir a satisfação do crédito do A. e sobre a impossibilidade ou agravamento da satisfação integral desse crédito, fundada na violação dos artigos 5.º, 413.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC;

iv) – A questão respeitante à apreciação pela Relação da alegada omissão de pronúncia sobre o abuso de direito;

v) – A questão do pretendido aditamento dos factos descritos em (viii) a (x) da sobredita conclusão 38.ª para efeitos de apreciação da referida questão de abuso de direito;

vi) – A questão da reforma do acórdão recorrido quanto à omissão sobre a invocada dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente em sede recursiva.  

     Relativamente à alegada violação da disciplina processual enunciada em ii), trata-se de questão que vem imputada à própria Relação em sede do exercício do seu poder de reapreciação dos factos dados por provados nos pontos 28 e 29 da sentença da 1.ª instância e que foram impugnados na apelação interposta pelas R.R..

       Nessa medida, conforme jurisprudência deste Supremo Tribunal, tal questão não se tem por alcançada pela dupla conforme nos termos e para os efeitos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, cabendo, por isso, revista normal nessa parte.

      Quanto à apreciação referida em iv) feita pela Relação sobre a alegada omissão de pronúncia cometida pela 1.ª instância sobre a questão do abuso de direito, estamos também perante uma questão de natureza processual conhecida em 1.º grau pela Relação, não podendo, portanto, considerar-se coberta pela dupla conforme.

       Por sua vez, as questões enunciadas em iii) e v) relativas ao pretendido aditamento de factos vêm equacionadas na perspetiva de que o não atendimento desses factos pelas instâncias, mas tidos pelas Recorrentes como essenciais no sentido da não verificação dos pressupostos da impugnação pauliana e da verificação do abuso de direito, constitui violação dos disposto nos artigos 5.º, 413.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC.

       Desse modo, tais questões respeitam ao âmbito da decisão de facto e, nessa medida, à indispensabilidade ou não da sua ampliação.

       Sucede que a Relação concluiu não se justificar tal ampliação por considerar que tais factos se encontram abrangidos no segmento da fundamentação da sentença da 1.ª instância, quando ali se refere que “o demais alegado mostra-se instrumental, conclusivo ou consubstancia matéria de direito”, e que, ademais, não se incluem no objeto do litígio tal como foi fixado em sede dos temas da prova. 

       É certo que, segundo o preceituado no artigo 662.º, n.º 4, do CPC, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões da Relação, nomeadamente, sobre a indispensabilidade da ampliação da decisão de facto prevista na alínea c), parte final, do n.º 2 do mesmo artigo.

Não obstante isso, o atendimento de factos, tanto dos que se encontrem já provados como dos que permaneçam ainda controvertidos, desde que relevantes para a solução de direito em causa, pode ser oficiosamente determinado, mesmo em sede de revista, respetivamente, quer por via de incorporação dos primeiros nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável por força dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.ºdo CPC, quer mediante ampliação da decisão de facto nos termos do artigo 682.º, n.º 3, do mesmo Código.

Nessa medida, tal questão de atendimento factual deverá ser aferida em função da dupla conforme que recair sobre a decisão de direito a que respeitem e da possibilidade de se conhecer dela em termos de revista excecional.

Quanto à impugnação referida em i) fundada em pretensa violação das regras de repartição do ónus da prova e do uso de presunções judiciais, trata-se de questões respeitantes a erro de julgamento, aqui perspetivado como erro de direito, sobre o que a decisão da Relação coincidiu, de forma unânime e sem fundamentação essencialmente diferente, com a sentença da 1.ª instância, verificando-se, nesta parte, dupla conforme nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC.

Todavia, para o caso de se entender como verificada a dupla conforme, a Recorrentes interpuseram, subsidiariamente, revista excecional ao abrigo do artigo 672.º, n.º 1, alínea a), do CPC, ainda que de forma não totalmente clara sobre o seu campo de incidência, como se depreende do capítulo IV das respetivas alegações (fls. 915-916/v.º), mas que se pode ter como extensível ao alegado erro de direito quanto à repartição do ónus da prova e ao uso indevido de presunções judiciais equacionado no capítulo VIII da mesmas alegações (fls. 916/v.º-918).      

Por fim, a questão enunciada em vi) referente à pretendida reforma do acórdão recorrido, no tocante à invocada dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente em sede recursiva, respeita a matéria imputada exclusivamente à Relação, pelo que não se tem por abrangida pela dupla conforme.

Posto isto, a presente revista mostra-se, desde já, admissível, em termos normais, sobre as questões supra enunciadas:

 - em ii) – quanto à alegada violação da lei processual, no respeitante ao poder de cognição por parte da Relação, com inobservância do preceituado nos artigos 5.º, 413.º, 607.º, n.º 3 a 5, e 674.º, n.º 1, alínea b), do CPC;

- em iv – quanto à apreciação pela Relação da alegada omissão de pronúncia sobre o abuso de direito;

- em v) – quanto ao pretendido aditamento dos factos descritos em (viii) a (x) da conclusão 38.ª para efeitos de apreciação da referida questão de abuso de direito;

- em vi) – se for caso disso, quanto à questão da reforma do acórdão recorrido relativamente à invocada dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente em sede recursiva. 

     E ainda, atendendo à interposição de revista excecional sobre o alegado erro de julgamento, para a eventualidade de vir a ser oportunamente admitida pela formação dos três juízes deste Supremo a que se refere o n.º 3 do artigo 672.º do CPC, cumpre desde já tomar conhecimento da questão iii), respeitante ao pretendido aditamento dos factos descritos em (i) e (vii), (ii) a (v) e (vi) e (xi) da conclusão 38.ª com vista a ajuizar, respetivamente, sobre a “intenção de impedir a satisfação dos créditos” e a impossibilidade ou agravamento da satisfação integral do crédito do A., fundada na violação dos artigos 5.º, 413.º e 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC.  

      Só a questão enunciada em i), se for caso disso, é que ficará, por ora, dependente da oportuna admissibilidade da revista excecional.

III – Fundamentação  

1. Factualidade dada por provada pelas instâncias

Vem dada como provada pelas instâncias a seguinte factualidade:

1.1. A 1.ª R. celebrou com o Autor (A.), em 27/10/2011 um “Acordo de Liquidação Parcial e Reestruturação de Dívida” das diversas empresas que integram o Grupo “EE”, o qual faz parte integrante do Contrato de Mútuo - CLS 216771731.

1.2. Nos termos do referido acordo, foi convencionado que seria afeta à liquidação parcial das responsabilidades das empresas que integram o referido grupo "EE", uma parte do montante da indemnização que, ao abrigo do processo n.º 2674/06.0TVLSB, que correu termos na … Vara, … Secção das Varas Cíveis de Tribunal Judicial da Comarca de …, a Seguradora HH pagou, em sede de Transação Judicial homologada em30 de outubro de 2011.

1.3. Na sequência do referido “Acordo de Liquidação parcial e restruturação de dívida”, as responsabilidades da 1.ª R. perante o A. ficaram reduzidas a dois contratos de “Contra Corrente Caucionada”, contabilizados no Banco com os n.º 2…22 e n.º 4…12, no montante global de capital de € 5.058.300,00;

1.4. Ainda no âmbito do aludido acordo a 1.ª R. e o A. acordaram as condições de contratação de um financiamento com vista à liquidação integral pelo montante de capital dos “Contratos de Contra Corrente Caucionada” referidos anteriormente.

1.5. Nestes termos, o A. concedeu à 1.ª R., a seu pedido, um empréstimo no montante de capital de € 5.058.300,00, com data valor de 30 de dezembro de 2011 - CLS 216771731.

1.6. O empréstimo concedido destinou-se a titular as responsabilidades resultantes do “Acordo de Liquidação Parcial e Reestruturação de Dívida” supra referido.

1.7. O empréstimo foi concedido pelo prazo de 120 meses, a contar da data-valor de utilização do crédito, vencendo-se a última prestação em 30 dezembro de 2021.

1.8. A utilização do empréstimo foi efetuada de uma só vez pelo montante de € 5.058.300,00, com data-valor de 30 de dezembro de 2011, através da conta de depósitos à ordem n.º 6…80, de que a 1ã Ré é titular junto do A..

1.9. O capital mutuado e em dívida venceria juros, calculados dia a dia, à taxa a que correspondesse a EURIBOR a 1 ano, em vigor na data do primeiro dia de cada período de contagem de juros, com arredondamento à milésima, sendo tal arredondamento feito por excesso quando a quarta casa decimal for igual ou superior a cinco e por defeito quanto a quarta casa decimal for inferior a cinco, e depois acrescida de uma margem (spread) de 3 pontos percentuais.

1.10. Em cada período de contagem de juros, a taxa de juro aplicada manter-se-ia inalterada, sendo que a taxa nominal aplicável seria atualizada no início de cada período de contagem de juros, incluindo o primeiro, de acordo com a taxa indexante supra referida.

1.11. Na data de celebração do contrato, à taxa indexante e margem referidas correspondia a taxa nominal de 4,967 % e a Taxa Anual Efetiva (TAE) de 5,0360% calculada nos termos do artigo 4.º do Dec-Lei n.º 220/94, de 23 de agosto.

1.12. Os juros seriam contados diariamente sobre todo o capital mutuado e não reembolsado, tomando por base um ano de 360 dias e um referencial de 30dias/mês e seriam debitados anual e postecipadamente, acrescendo-lhe os encargos exigíveis nos termos da lei e regulamentos em vigor, tendo início o primeiro período de contagem, na data-valor de desembolso do A. do valor mutuado.

1.13. Em caso de mora no pagamento dos juros remuneratórios, o A. poderia capitalizar os juros que corresponderiam ao período mínimo de 3 meses.

1.14. Em caso de incumprimento do pagamento de qualquer prestação de capital incidiria sobre o respetivo valor e durante o tempo em que o incumprimento se verificasse, a taxa de juro moratória correspondente à taxa de juro remuneratória fixada na cláusula 5.ª do contrato, acrescida da sobretaxa de 4%, a título de cláusula penal, ou a mais elevada que estiver em vigor na data do incumprimento.

1.15. O reembolso do capital beneficiava de um período de carência de 36 meses, contado da data da utilização do crédito e seria efetuado em 7 prestações anuais constantes e postecipadas de capital, tendo-se vencido a primeira em 30 de dezembro de 2015.

1.16. Os juros seriam debitados anual e postecipadamente, com o primeiro vencimento a ocorrer em 30/12/2012, a que acresceriam os encargos exigíveis nos termos da lei e regulamentos em vigor.

1.17. O reembolso do capital mutuado, bem como o pagamento dos juros devidos seria efetuado por débito, autorizado, na conta de depósitos à ordem da 1- Ré que aquela se obrigou a manter provisionada com fundos imediatamente disponíveis e suficientes para suportar tais débitos nas datas de vencimento, de capital, juros e encargos.

1.18. Para garantia do bom e pontual pagamento do capital financiado, respetivos juros e encargos, a 1.ª R. entregou ao A. uma livrança de caução por si subscrita e avalizada pelo 2.º R., ficando o A. expressa e irrevogavelmente autorizado, em caso de não cumprimento de quaisquer responsabilidades emergentes da aludida operação de financiamento, a preencher livremente a livrança, através de qualquer um dos seus funcionários, designadamente no que se refere às datas de emissão e do vencimento, ao local de pagamento e aos valores assumidos, incluindo capital e juros, qualquer que seja a sua natureza, impostos, comissões e outros encargos que sejam devidos.

1.19. O bom e pontual pagamento da quantia mutuada ficou igualmente garantido por hipoteca voluntária, específica e acessória, constituída pela 1.ª R., em primeiro grau sobre os seguintes imóveis:

a) - Prédio urbano, sito na Rua …, freguesia …, concelho de …, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 3668 da freguesia de … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo número 4322 da dita freguesia, sobre o qual incide uma hipoteca voluntária constituída a favor da Fazenda Nacional (Direção Geral de Impostos) pelo montante máximo assegurado de € 858.538,89 e registada pela apresentação n.º 89 de 07/05/2009, o qual foi objeto de uma avaliação efetuada pelo A. em 30 de dezembro de 2010, e aceite pela 1.ª R., que atribuiu a este imóvel o valor de € 2.327.300,00, desde que cumpridos determinados requisitos, designadamente, encontrar-se livre de ónus e encargos;

b) - Prédio rústico denominado “Quinta da P… e Quinta do …” ou “Quinta de …” sito no sítio da "Quinta da P…. e Quinta do …" ou "Quinta de …" freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 607 da referida freguesia e inscrito na matriz predial rústica sob o número 9, Secção AJ da freguesia de … (…), o qual foi objeto de uma avaliação efetuada pelo A. em 29 de novembro de 2010 e aceite pela 1.ª R., que atribuiu a este imóvel, livre de ónus e encargos, o valor de € 144.600,00.

c) - Prédio misto sito em …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número 8264 da freguesia de … e inscrito na matriz predial urbana sob os artigos quatro da freguesia de … e inscrito na matriz predial urbana sob os artigos números 10038 e 10039 e matriz predial rústica sob o artigo 2426, o qual foi objeto de uma avaliação efetuada pelo A. em 5 de janeiro de 2011, e aceite pela 1.ª R., que atribuiu a este imóvel, livre de ónus e encargos, o valor de € 331.200,00.

1.20. As responsabilidades decorrentes do contrato ficaram, ainda, garantidas, com o acordo da 1.ª R., por dois penhores sobre valores mobiliários constituídos na data de celebração do Contrato, a saber:

a) - Penhor em primeiro grau constituído pela sociedade “EE, SGPS, S.A.”, pessoa coletiva número 5…2, sobre 1.000.000 de ações AA que se encontram depositadas na conta títulos n.º 4…75 de que é titular junto do A.;

b) - Penhor em primeiro grau constituído pelo 2.º R. sobre 2.329 Unidades de Participação representativas do capital do Fundo de Investimento Imobiliário fechado designado por “CITATION - FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO”.

1.21. As partes acordaram ainda que o não cumprimento pela 1.ª R. de qualquer das obrigações emergentes do contrato, designadamente o não pagamento pontual de qualquer prestação de capital ou de juros na data do seu vencimento, conferiria ao A. o direito de considerar, independentemente de interpelação, imediatamente vencida e exigível toda a dívida, bem como o direito de resolver o contrato com efeitos imediatos.

1.22. O contrato foi sucessivamente modificado, mediante distintos aditamentos no que respeita às respetivas condições contratuais celebradas e ao plano prestacional, através das alterações convencionadas, por documento particular, nas seguintes datas: 18/12/2014, 01/04/2015, 01/05/2015 e 23/12/2015.

1.23. Em 30 de abril de 2016, a 1.ª R. deixou de cumprir o contrato.

1.24. Motivo pelo qual o A., em 24/08/2016, interpelou a 1.ª R. e o avalista para proceder ao pagamento da quantia em dívida, no prazo de dez dias, sob pena de o A. considerar o contrato resolvido, exigindo, de imediato, todo o capital em dívida, no valor de € 4.597.117,69, acrescido dos respetivos juros e demais encargos legais: € 250.509,36 a título de juros calculados desde 30.04.2016 a 05.10.2016 e € 10.020,37, a título de imposto do selo, perfazendo o montante total de € 4.857.647,42.

1.25. Por carta datada de 24/08/2016, o A. solicitou à 1.ª R. o pagamento dos montantes em dívida.

1.26. Através de diversos contratos de compra e venda, a 1.ª R. transmitiu à 3.ª R. o direito de propriedade de que era titular sobre os seguintes imóveis:

a) - Prédio rústico, sito em … ou …, Quinta do …, freguesia de …, concelho de …, inscrito na matriz sob o artigo 4 da secção P-P1, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 257;

b) - Prédio misto, sito em Quinta do …, freguesia de …, concelho de …, inscrito na matriz rústica sob o artigo rústico 3, secção P, e urbana sob o n.º 994, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 327;

c) - Prédio rústico, sito em Cerrado … ou …, na freguesia de …, concelho de …, inscrito na matriz sob o artigo rústico 9 da secção O, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 326;

d) - Prédio misto, Quinta da …, da freguesia do …, concelho de …, inscrito na matriz com o artigo rústico 2, secção AR e com os artigos urbanos P 1971, 3993, 3994, 3995, 3996, 3997, 3998, 3992 e 3991, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 1522;

e) - Prédio misto, sito na … e Quinta do C…, freguesia de …, concelho de …, inscrito na matriz sob os artigos: artigo 20 - secção AQ, artigo 3 - secção AS, artigo 3 - secção AR e artigo 3999, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 1526 (anterior 2605);

f) - Prédio rústico, sito na Baixa …, …, freguesia de …, inscrito na matriz sob o artigo 42, secção G, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 318;

g) - Prédio misto, sito em Barrada … ou …., freguesia de …, inscrito na matriz sob artigo 4000 e sob o artigo 19, Secção AQ, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 1523 (anterior 2676);

h) - Prédio rústico, sito na Barrada … freguesia do …, inscrito na matriz sob artigo 14, secção AQ, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 1524 (anterior 2677);

i) - Prédio rústico, sito na baixa … e Barrada …, freguesia de …, inscrito na matriz sob art.º rústico 7, secção G, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 319.

1.27. Os referidos contratos de compra e venda foram realizados em 20/07/2012, 23/12/2011, 24/02/2012, 31/01/2012 e 04/05/2012.

1.28. Tais negócios foram concretizados com o propósito de impedir que tais imóveis pudessem vir a responder pelas dívidas da 1.ª R., nomeadamente perante o A..

1.29. A 3.ª R., através da sua legal representante, tinha consciência que a transmissão da propriedade dos referidos imóveis poderia ter como consequência o agravamento, para o A., da possibilidade da satisfação integral do seu crédito.

1.30. Não são conhecidos outros imóveis património da 1.ª R..

1.31. Após a propositura da presente ação, o A. recebeu de CC a quantia de € 2.700.000,00 (valor máximo por si avalizado).

1.32. O Conselho de Administração da 1.ª R. é composto por CC (Presidente) e o Conselho de Administração da 3.ª R. é composto pelos seus 3 filhos: II, JJ e KK.

1.33. A negociação dos aditamentos referidos no ponto 1.22 foi feita, no que respeita à 1.ª R., pela filha de CC, II.

1.34. No dia 19/10/2016, o A. intentou contra a 1.ª R. uma ação executiva para pagamento de quantia certa com base em livrança, pelo montante de € 4.864.890,64, a qual foi distribuída ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Execução de Lisboa - Juiz …, sob o n.º 25854/ 16.5T8LSB.

1.35. No âmbito da referida execução, foram penhorados e colocados à venda dois imóveis propriedade da 1.ª R. com hipoteca constituída sobre os seguintes prédios: o prédio referido na alínea a) do ponto 1.19, pelo valor base de € 4.580.858,90; o prédio referido na alínea c) do ponto 1.19, pelo valor base de € 319.882,00.

1.36. O imóvel identificado na alínea c) do ponto 1.19 foi vendido, no dia 26/07/2017, pelo montante de € 300.000,00, acrescido da quantia devida para pagamento parcial dos honorários e despesas do agente de execução, no montante de € 7.994,75.

1.37. O A. propôs contra a 1.ª R., as sociedades “EE – Construção e Obras Públicas, S.A.” e “EE SGPS, S.A.”, o 2.º R. e mulher uma ação executiva para pagamento de quantia certa com base em livrança, pelo montante de € 1.539.691,14, a qual foi distribuída ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Execução de Lisboa - Juiz …, sob o n.º 25851/16.0T8LSB.

1.38. No dia 06/09/2017, o A. viu assegurado por CC o pagamento do montante de € 1.573.501,93.

1.39. Os nove imóveis identificados nas alíneas a) a i) do ponto 1.26. constituem frações da propriedade conhecida como “Quinta da …”.

1.40. A “Quinta da …” não fazia parte do património afeto à atividade comercial da 1.ª R..

1.41. Em dezembro de 2011, o prédio id. em a) do ponto 1.26 foi avaliado em € 326.834,00 e a 1.ª R. vendeu-o, em 20/07/2012, à 3.ª R., pelo preço de € 327.000,00.

1.42. Também em dezembro de 2011, o prédio id. em b) foi avaliado em € 295.894,00 e a 1.ª R. vendeu-o, em 20/07/2012, à 3.ª R., pelo preço de € 296.000,00.

1.43. O prédio id. em c) foi avaliado em € 95.706,00 e a 1.ª R. vendeu-o, em 20/07/2012, à 3.ª R., pelo preço de € 96.000,00.

1.44. O prédio id. em d) foi avaliado em € 593.894,00 e vendido pela 1.ª R. à 3.ª R., em 23/12/2011, pelo preço de € 696.000,00.

1.45. O prédio id. em e) foi avaliado em € 772.457,00 e vendido, em 24/02/2012, pelo preço de € 775.500,00.

1.46. O prédio id. em f) foi avaliado em € 70.272,00 e a 1.ª R. vendeu-o à 3.ª R., em 31/01/2012, pelo preço de € 70.500,00.

1.47. O prédio id. em g) foi avaliado em € 559.091,00 e a 1.ª R. vendeu-o, em 31/01/2012, à 3.ª R., pelo preço de € 559.200,00.

1.48. O prédio id. em h) foi avaliado em € 22.716,00 e a 1.ª R. vendeu-o, em 31/01/2012, à 3.ª R., pelo preço de € 22.800,00.

1.49. O prédio id. em i) foi avaliado em € 49.690,00 e vendido, em 31/01/2012, pela 1.ª R. à 3.ª R., pelo preço de € 50.000,00.

1.50.  A 1.ª R. propôs ao A., em 11/02/2015, a amortização da sua dívida por entrega de ativos mobiliários e da constituição de novas garantias, disponibilizando-se para entregar os seguintes ativos não onerados:

- Prédio rústico denominado «C… (…)», sito em …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número 4345 e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 33, secção G;

- Prédio rústico denominado «A… 4 A», sito na Quinta do …, freguesia de …, concelho da …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 311 e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 16, secção H1;

os quais foram entregues para dação em cumprimento.

1.51. O crédito do A. ficou reduzido, à data de 26/02/2018, para € 2.356.640,16.

2. Factos não provados

Foi dado como não provado que:

a) – À data em que foram vendidos os imóveis, o património da 1.ª R. era suficiente para responder pelas responsabilidades assumidas perante o A.;

b) - O património atual da 1.ª R. é suficiente para assegurar o pagamento do crédito do A.;

c) - A 1.ª R. obteve com as vendas em análise um acréscimo patrimonial global de € 106.446,00;

d) – A realização dos reportados negócios engrossou a conta bancária da 1.ª R., conferindo-lhe liquidez para responder pelas suas obrigações vencidas;

e) - Os atos de compra e venda em referência foram realizados no âmbito da atividade desenvolvida pela 1.ª R.;

f) - A falta de liquidez da 1.ª R. foi (só) um efeito nefasto da crise imobiliária que assolou a economia portuguesa na última década;

g) – A atividade deficitária das sociedades do Grupo "EE" obrigou o administrador da 1.ª R., enquanto acionista da sociedade mãe “EE, SGPS, S.A.”, a realizar várias injeções de capital, tornando-se credor da sociedade, a título de suprimentos, pelo montante de € 30.240.649,78;

h) – A “Quinta da …” encontra-se arrendada à sociedade “LL - exploração Agrícola, Lda.”, que faz a exploração agrícola da propriedade e pela qual paga uma renda anual à 3.ª R..

3. Do mérito do recurso

3.1. Quanto à alegada violação da lei processual, no respeitante ao poder de cognição por parte da Relação

Como já acima foi referido, as Recorrentes invocaram a violação da lei processual, mais precisamente do disposto nos artigos 5.º, 413.º, 607.º, n.º 3 a 5, conjugado com o 674.º, n.º 1, alínea b), do CPC, na parte em que a Relação exerceu o seu poder de reapreciação da impugnação da matéria vertida nos pontos 28 e 29 da factualidade dada por provada pela 1.ª instância e assim mantida no acórdão recorrido.

De tais pontos consta como provado o seguinte:

. 28. Tais negócios foram concretizados com o propósito de impedir que tais imóveis pudessem vir a responder pelas dívidas da 1.ª R., nomeadamente perante o A.;

. 29. A 3.ª R., através da sua legal representante, tinha consciência que a transmissão da propriedade dos referidos imóveis poderia ter como consequência o agravamento, para o A., da possibilidade da satisfação integral do seu crédito.

        

A 1.ª instância fundamentou, especificamente, tais juízos probatórios nos seguintes moldes:

  «Os factos dados como provados nos Pontos 28 e 29 foram deduzidos por presunção judicial, considerando a conjugação dos demais factos provados, nomeadamente os referidos nos Pontos 32 e 33, sobre os quais foi feita prova direta, perante a lógica constatação de que estamos perante relações familiares diretas e que a própria filha do legal representante da 1.ª Ré que, por sua vez, representa também a 3.ª Ré, foi quem negociou os termos das sucessivas alterações ao acordo de reestruturação da dívida, sendo certo que da prova testemunhal resultou reforçada, de forma clara e segura, não só o conhecimento de toda a situação por parte da filha do legal representante da 1a Ré como a intenção de não permitir que o património em causa pudesse vir a constituir uma garantia de pagamento da dívida da Sociedade. Acresce que as Rés não lograram demonstrar qualquer outra lógica na transferência do património de uma para a outra - que pudesse pôr em causa a dedução feita -, sendo certo que a única Sociedade da “Família V…” que não tinha dívidas era a 3.ª Ré e todas as Sociedades do "grupo" são, na verdade, encabeçadas pelo Engenheiro CC, sendo a “sobrevivência” das empresas assegurada por este.»

De referir, a este propósito, que dos pontos 32 e 33 dos factos provados consta o seguinte:

. 32. O Conselho de Administração da 1.ª R. é composto por CC (Presidente) e o Conselho de Administração da 3.ª R. é composto pelos seus 3 filhos: II, JJ e KK.

. 33. A negociação dos aditamentos referidos no ponto 22 foi feita, no que respeita à 1.ª R., pela filha de CC, II.

Ora, as Recorrentes, na respetiva apelação, impugnaram a matéria dos indicados pontos 28 e 29, insurgindo-se com a presunção judicial desse modo inferida pela 1.ª instância, convocando em seu abono, além do factualismo dado por provado em 1, 5, 7, 18, 19, 20 e 22, os depoimentos das testemunhas MM, NN, OO e PP (alegações de fls. 774/v.º a 778/v.º), no sentido de demonstrar a falta de base probatória indiciária suficiente para se concluir pela prova daqueles factos a título de má fé imputada às 1.ª e 3.ª R.R..

Pretendem, nessa base, que tais factos sejam dados como não provados.

Por sua vez, o Tribunal da Relação apreciou essa impugnação nos seguintes termos:

«No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414.º do C.P.C., de que a “dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes (“Impugnação”, in Estudos em Homenagem ao Prol Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em “caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1.ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialeticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.”

Assim, para que a decisão da 1- instância seja alterada haverá que averiguar se algo de "anormal" se passou na formação dessa apontada "convicção", ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ã instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente, face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.

No tocante aos factos provados 28 e 29:

“28. Tais negócios foram concretizados com o propósito de impedir que tais imóveis pudessem vir a responder pelas dívidas da 1S Ré, nomeadamente perante o Autor.

29. A 3- Ré, através da sua legal representante, tinha consciência que a transmissão da propriedade dos referidos imóveis poderia ter como consequência o agravamento, para o Autor, da possibilidade da satisfação integral do seu crédito.»

A fundamentação fáctica é do seguinte teor:

“Os factos dados como provados nos Pontos 28 e 29 foram deduzidos por presunção judicial, considerando a conjugação dos demais factos provados, nomeadamente os referidos nos Pontos 32 e 33, sobre os quais foi feita prova direta, perante a lógica constatação de que estamos perante relações familiares diretas e que a própria filha do legal representante da 1- Ré que, por sua vez, representa também a 3- Ré, foi quem negociou os termos das sucessivas alterações ao acordo de reestruturação da dívida, sendo certo que da prova testemunhal resultou reforçada, de forma clara e segura, não só o conhecimento de toda a situação por parte da filha do legal representante da 1a Ré como a intenção de não permitir que o património em causa pudesse vir a constituir uma garantia de pagamento da dívida da Sociedade. Acresce que as Rés não lograram demonstrar qualquer outra lógica na transferência do património de uma para a outra - que pudesse pôr em causa a dedução feita -, sendo certo que a única Sociedade da "Família V…" que não tinha dívidas era a 3- Ré e todas as Sociedades do "grupo" são, na verdade, encabeçadas pelo Engenheiro CC, sendo a "sobrevivência" das empresas assegurada por este.”

No essencial, os apelantes discordam desta valoração, porque, para que a presunção judicial seja admissível é imperativo que haja uma relação direta e segura, sem necessidade de elaboradas conjeturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge. Ainda que se admita que a relação familiar (entre o administrador único da 1.ª Apelante e os administradores da 2.ª Apelante) pudesse ser um indício da má-fé (affectio), nunca poderia servir para, sem mais, concluir-se a partir do mesmo que as Apelantes tinham consciência de estarem a causar um prejuízo ao Apelado. Por outro lado, a prova resultante da instrução é explicativa do contexto em que as vendas ocorreram, demonstrando, para lá de qualquer dúvida, que não houve consciência dolosa por parte das Apelantes.

“Para se avaliar do animus das Apelantes, é preciso recuar ao longínquo ano de 2011, que contextualizou a venda da Quinta da …. E avalizar a decisão tomada à luz dos conhecimentos que os intervenientes tinham nessa data (e não de efabulações sobre factos futuros). Nos presentes autos, resultou provado que:

Em 27.10.2011, foi celebrado um “Acordo de Liquidação Parcial e Reestruturação de Dívida” com o Autor, nos termos dos quais este concedeu às sociedades do Grupo EE um empréstimo de capital de € 5.058.300,00 (cinco milhões cinquenta e oito mil e trezentos euros), com data valor de 30.12.2011 (Factos Provados 1 e 5).

O empréstimo foi concedido pelo prazo de 120 (cento e vinte) meses, a contar da data-valor de utilização do crédito, vencendo-se a última prestação em 30.12.2021 (Facto Provado 7).

Para garantia do bom e pontual pagamento da quantia mutuada, foram dadas várias garantias ao Autor/Apelado, incluindo: (i) uma livrança subscrita e avalizada pelo administrador único da 1.9 Ré/1.§ Apelante, que o Autor/Apelado ficou autorizado a preencher livremente; (ii) hipoteca voluntária em primeiro grau sobre três imóveis da '\.- Ré/1.- Apelante; e (iii) dois penhores sobre valores mobiliários constituídos sobre acções AA e unidades de participação representativas do capital de um fundo de investimento (Factos Provados 18, 19 e 20).

O Contrato foi sucessivamente modificado, no que respeita às respetivas condições contratuais celebradas e ao plano prestacional, mediante aditamentos celebrados, por documento particular, nas seguintes datas: 18.12.2014, 01.04.2015, 01.05.2015 e 23.12.2015 (Facto Provado 22).”

“Na raiz do presente litígio está uma operação de financiamento, realizada em 30.12.2011, entre a 1.ª Apelante e o Apelado. É um facto notório que o Apelado é uma instituição bancária com mais de 30 anos de história, que goza de elevado prestígio no mercado financeiro nacional e que tem acesso aos melhores profissionais do ramo.”

“Atendendo ao perfil (público) do Apelado, é evidente, segundo as regras da experiência, que o mesmo nunca teria concedido tão avultado empréstimo às sociedades do Grupo EE se entendesse que as garantias prestadas por conta do pagamento da dívida seriam insuficientes na data do reembolso.

Assim, é seguro concluir que, no final de 2011, o Banco Apelado sentia-se confortável com as garantias prestadas. O que se diria natural, dado que uma parte substancial das garantias assentava em ações representativas do capital do próprio Banco Apelado. Na verdade, se houvesse gestão sã, prudente e competente por parte do mesmo (como era expectável), com certeza a garantia iria, no mínimo, manter o seu valor económico.

Esta garantia, recorde-se, representava € 1.840.973,83 (um milhão oitocentos e quarenta mil novecentos e setenta e três euros e oitenta e três cêntimos), isto é mais de 36% (trinta e seis por cento) do valor do crédito garantido (i.e. € 5.058.300,00 - cf. artigos 5.º e 23.º - a) da petição inicial). Por incúria do Apelado e contrariando as expectativas de todos os agentes do mercado financeiro, as cotações das participações AA degradaram-se acentuadamente; facto que, por ser público e notório, dispensa alegação.”

“Note-se ainda que as garantias prestadas não abrangeram os ativos objeto de impugnação pauliana porque, como sempre foi do conhecimento do Banco Apelado, já em 2009 havia intenção da "\.- Apelante vendê-los nos termos e condições previstos no contrato de financiamento celebrado com o FF e melhor descritos infra.”

E foram vendidos entre o final de 2011 e meados de 2012, sendo tal venda do conhecimento do Apelado, que regularmente tinha acesso à informação financeira da 1.ª Apelante”.

Tal venda, do conhecimento do Banco Apelado, não constituiu facto impeditivo das sucessivas renovações do contrato de mútuo, em 18.12.2014, 01.04.2015, 01.05.2015 e 23.12.2015 (Facto Provado 22). É absolutamente claro e notório que: (i) a 1.5 Apelante tinham intenção de vender os imóveis objeto de impugnação pauliana, nos termos e condições previstos no contrato de financiamento celebrado com o FF, mais 2 (dois) anos antes da celebração do contrato de mútuo com o Apelado; e (ii) o Apelado teve conhecimento da venda logo em 2011/2012 e tal não o impediu de manter a relação comercial com a 1.ª Apelante, como demonstram os aditamentos ao mencionado contrato, celebrados três e quatro anos depois”.

Em primeiro lugar, as presunções judiciais são admitidas pelo julgador enquanto presunções de facto ou naturais, baseadas nos ensinamentos de experiência e nas regras de vida e inspiram-se nas máximas de experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana, podendo ser afastados pela simples prova em contrário (Fernando Pereira Rodrigues, A Prova em Direito Civil, Coimbra Editora, 2011, págs. 16/18). Tal como se equacionou no Acórdão desta Relação de 20.09.2018, a «lei não exige a concertação do vendedor e do comprador, apenas exige que os mesmos tenham consciência de que a venda do modo que foi feita prejudica o credor». No caso vertente, as rés não conseguiram contrariar as ilações extraídas pelo tribunal recorrido, «perante a lógica constatação» da existência de relações familiares diretas e de que a «própria filha do legal representante da 1.ª Ré que, por sua vez, representa também a 3 - Ré, foi quem negociou os termos das sucessivas alterações ao acordo de reestruturação da dívida, sendo certo que da prova testemunhal resultou reforçada, de forma clara e segura, não só o conhecimento de toda a situação por parte da filha do legal representante da 1ã Ré como a intenção de não permitir que o património em causa pudesse vir a constituir uma garantia de pagamento da dívida Sociedade”.

Por último, ainda que o autor, e ora apelado, pudesse ter conhecimento da venda dos imóveis, o que é relevante e determinante é que, não autorizou tais atos, as vendas foram realizadas em data posterior à da celebração do «Acordo de Liquidação Parcial e Reestruturação de Dívida» e tiveram por objecto o único património imobiliário que se encontrava desonerado de quaisquer ónus ou encargos. A testemunha NN, que acompanhou directamente a negociação do acordo de reestruturação, esclareceu este aspeto e explicou também qual o motivo de não ter sido exigido à época a inclusão deste património nas garantias a prestar («fizeram alguns reforços de garantias ...por exigência da TROIKA, mas o património «Quinta da …» não fazia parte da capacidade produtiva da família e raramente os bancos abrangiam o património todo, para não sufocar as hipóteses de recuperação do devedor»). Mas também referiu que chegou a ser falado com o Dr. CC, que excluiu totalmente tal hipótese.

Por outro lado, se a 1.ª Apelante tinha a intenção de vender os imóveis objeto de impugnação pauliana, nos termos e condições previstos no contrato de financiamento celebrado com o FF, é irrelevante para a situação em apreço, tal como é referido pelo tribunal recorrido. Nas palavras de João Cura Mariano (citando Menezes Cordeiro), a «má-fé adicional tem exactamente o mesmo conteúdo da má-fé do ato inicial, isto é, a consciência de que esse ato afetou a garantia patrimonial do credor impugnante, devendo esse conhecimento verificar-se nas pessoas do subalienante (adquirente) e do subadquirente» {Obra citada, pág. 233-234).

Consequentemente, a valoração feita pelo tribunal recorrido é lógica e adequada às regras da experiência, bem como aos meios probatórios produzidos.»

Nos termos dos artigos 5.º, n.º 2, alínea a), e 607.º, n.º 4, este aplicável aos acórdãos da Relação por via do artigo 663.º, n.º 2, todos do CPC, deve o tribunal extrair dos factos instrumentais resultantes da instrução da causa as ilações que se impuserem no sentido da comprovação dos factos essenciais. Neste domínio, cabe ao Tribunal da Relação, ao abrigo do artigo 662.º, n.º 1, do mesmo Código, fazê-lo no âmbito da reapreciação da decisão de facto impugnada.

Todavia, o exercício desse poder-dever cognitivo é sindicável pelo Supre-mo Tribunal de Justiça em termos de verificar se foram observados os parâmetros formais ou balizadores da respetiva disciplina processual.

Assim, no que respeita à reapreciação da decisão de facto, compete ao tribunal de revista ajuizar se o Tribunal da Relação observou o método de análise crítica da prova prescrito no n.º 4 do indicado artigo 607.º, mas já não imiscuir-se na valoração da prova feita, segundo o critério da livre e prudente convicção do julgador, genericamente editado no n.º 5 do artigo 607.ºdo CPC.

Ora é hoje jurisprudência seguida por este Supremo que a reapreciação da decisão de facto impugnada, por parte do tribunal de 2.ª instância, não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa.

Importa, pois, no caso vertente, verificar se a Relação, na reapreciação feita sobre a impugnação deduzida pelas R.R./apelantes sobre os factos dados como provado nos pontos 28 e 29 da sentença da 1.ª instância se pautou por tais diretrizes.

Debruçando-nos sobre a fundamentação do acórdão recorrido acima transcrita, constatamos que, depois de algumas considerações teóricas sobre a prova por presunção judicial, foi reproduzida a fundamentação consignada na sentença da 1.ª instância no âmbito daqueles pontos.

De seguida, considerou-se que as apelantes, no essencial, discordavam dessa valoração por entenderem que, para a presunção judicial ser admissível era imperativo que houvesse uma relação direta e segura, sem necessidade de elaboradas conjeturas, entre o facto presuntivo de base e o facto presumido. E foi então observado que, mesmo a admitir que a relação familiar entre o administrador único da 1.ª R. e os administradores da 3.ª R. pudesse ser um indício da má-fé, nunca poderia servir para, sem mais, se concluir, a partir do mesmo, que aquelas R.R. tinham consciência de estarem a causar um prejuízo ao apelado, salientando-se que a prova resultante da instrução é explicativa do contexto em que as vendas ocorreram, demonstrando, para lá de qualquer dúvida, que não houve consciência dolosa por parte das apelantes.

A referida fundamentação prossegue com uma extensa transcrição da argumentário das R.R., após o que, revertendo ao caso concreto, no essencial, se conclui no sentido de que aquelas não conseguiram contrariar as ilações extraídas pela 1.ª instância de que perante a lógica constatação da existência de relações familiares diretas e de que a «própria filha do legal representante da 1.ª R. que, por sua vez, representa também a 3.ª R., foi quem negociou os termos das sucessivas alterações ao acordo de reestruturação da dívida, sendo certo que da prova testemunhal resultou reforçada, de forma clara e segura, não só o conhecimento de toda a situação por parte da filha do legal representante da 1.ª R. como a intenção de não permitir que o património em causa pudesse vir a constituir uma garantia de pagamento da dívida da Sociedade”.

Seguidamente, na referida fundamentação do acórdão recorrido, considerando-se irrelevante para o caso que o A. pudesse ter conhecimento da venda dos imóveis, mas antes como determinante que as não autorizou, foi convocado o depoimento da testemunha NN, destacando-se o seu esclarecimento sobre o motivo de não ter sido exigido à época a inclusão do património em causa nas garantias a prestar, por não fazer parte da capacidade produtiva da família e raramente os bancos abrangerem o património todo, para não sufocar as hipóteses de recuperação do devedor, embora tenha também referido que chegou a ser falado com o Dr. CC, que excluiu totalmente tal hipótese.

Por último, na mesma fundamentação, é tida por irrelevante a intenção de a 1.ª R. vender os imóveis em causa nos termos e condições previstos no contrato de financiamento celebrado com o FF.

Sem mais, concluiu a Relação, de forma lapidar, que a valoração feita pela 1.ª instância foi lógica e adequada às regras da experiência, bem como aos meios probatórios produzidos.

De tudo isto resulta que, não obstante o acerto ou não das referidas considerações, a Relação não procedeu, pelo menos objetivamente, à análise crítica dos concretos meios probatórios convocados pelas R.R. apelantes, mormente dos indicados depoimentos testemunhais, de modo a ajuizar sobre o invocado erro de valoração dessas provas e a formar a sua própria convicção sobre os factos constantes dos pontos impugnados, limitando-se a sufragar formalmente a decisão da 1.ª instância e respetiva motivação, que teve como ajustada.

Ora, antes de mais, impunha-se que, em face da impugnação da decisão de facto configurada pelas R.R./apelantes, a Relação empreendesse a análise dos concretos meios de prova por elas convocados, ajuizando se e em que medida tais resultados probatórios afetam as ilações presuntivas extraídas pela 1.ª instância em sede de motivação dos pontos de facto impugnados. Feito isso, poderia então reforçar-se essa análise diacrónica com uma apreciação mais compreensiva ou sincrónica de toda a factualidade envolvente.

Porém, não foi esse o caminho percorrido pela Relação, tendo antes cingido a sua apreciação aos aspetos globais, sem dúvida relevantes, mas sem incidir minimamente sobre os testemunhos convocados, à exceção de uma breve referência ao depoimento da testemunha NN. Nem tão pouco se dá uma justificação no sentido de considerar irrelevante ou prejudicada a análise dos concretos meios probatórios indicados pelas Recorrentes.

A este propósito, importa sublinhar que a 1.ª instância, além de considerar a “lógica constatação” das relações familiares diretas entre a filha do legal representante da 1.ª R., por sua vez, representante também a 3.ª R., e de que fora ela quem negociara os termos das sucessivas alterações ao acordo de reestruturação da dívida, teve ainda por certo que da prova testemunhal resultava “reforçada, de forma clara e segura, não só o conhecimento de toda a situação por parte da filha do legal representante da 1.ª R. como a intenção de não permitir que o património em causa pudesse vir a constituir uma garantia de pagamento da dívida da Sociedade.

Todavia, a 1.ª instância não especificou sequer quais os meios de prova testemunhal de que resultava esse reforço, o que também escapou à reapreciação feita pela Relação.

Em tal contexto, a análise crítica dos meios de prova indicados pelas R.R. terá a virtualidade de contribuir para uma melhor consubstanciação dos juízos presuntivos em que se estribam os factos dados como provados nos pontos 28 e 29 da sentença, o que será até relevante na hipótese de vir a ser suscitada, em sede de revista, a sindicância sobre o uso de tais presunções.      

Nestas circunstâncias, impõe-se concluir que a Relação, na rea-preciação sobre a impugnação, deduzida pelas R.R./apelantes, dos factos dados como provados nos pontos 28 e 29, no âmbito do artigo 662.º, n.º 1, do CPC, não observou o método de análise crítica da prova pres-crito no n.º 4 do artigo 607.º, aplicável por via do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo Código, o que importa a anulação do acórdão recorrido, nesta parte, e a baixa do processo para o respetivo suprimento.

3.2. Quanto à apreciação pela Relação da alegada omissão de pronúncia sobre o abuso de direito

        As Recorrentes invocaram a nulidade da sentença da 1.ª instância com fundamento em omissão de pronúncia sobre a questão do abuso de direito suscitada por aquelas sob os artigos 168.º a 176.º da contestação.

       Na verdade, a 1.ª instância não se pronunciou, de modo algum, sobre tal questão.

       Todavia, Relação entendeu o seguinte:

   «No tocante à «exceção do abuso de direito», afigura-se igualmente que o tribunal recorrido não estava vinculado à sua apreciação, pois a matéria alegada nos artigos 168.º a 176.º da contestação não tem a virtualidade de impedir, modificar ou extinguir o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor na petição. Os fundamentos da ação de impugnação pauliana estão contemplados nos artigos 610.º e 612.º do C.C., que especificam os elementos integrantes da respectiva causa de pedir, sendo o primeiro a existência de determinado crédito na titularidade do impugnante (anterior ou posterior ao ato impugnado). Interessa determinar se o crédito se encontra formalmente constituído e em que data, bem como a sua natureza e o montante da dívida, cuja prova incumbe ao credor, nos termos do artigo 611.º do C.C. As razões subjacentes à constituição do crédito ou de depreciação das garantias prestadas são irrelevantes, pois a impugnação pauliana insere-se num conjunto de meios colocados à disposição dos credores para evitarem a frustração de segurança que constitui a garantia patrimonial, enquanto expectativa jurídica do direito de executar o património do devedor para satisfação dos seus créditos (João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2- ed., Abril, 2008, pág. 84)».

Por sua vez, sustentam as Recorrentes que a Relação fez incorreta interpretação do artigo 608.º, n.º 2, do CPC e que, além disso, se limitou a rejeitar, em abstrato, a verificação do instituto do abuso de direito no quadro do instituto da impugnação pauliana.

Vejamos.

Segundo o disposto no n.º 2, do artigo 608.º do CPC, ao juiz incumbe “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.”

Nessa conformidade, mostra-se incorreta a consideração feita no acórdão recorrido de que a 1.ª instância não estava vinculada a apreciar a referida questão por se tratar de matéria sem a virtualidade de impedir, modificar ou extinguir o efeito jurídico dos factos articulados pelo A. na petição inicial.

Com efeito, o dever de pronúncia afere-se em função da questão que tiver sido suscitada pelas partes, independentemente do respetivo mérito, sendo este precisamente o objeto dessa pronúncia. Só nos casos de questão não suscitada pelas partes, mas que, ainda assim, seja de conhecimento oficioso, é que se tem vindo a entender que este conhecimento oficioso só se impõe, nos termos do artigo 608.º, n.º 2, parte final, do CPC, caso se mostre, porventura, relevante.

Em suma, no caso presente, verificava-se a invocada omissão de pronúncia e a consequente nulidade da sentença da 1.ª instância, nessa parte, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 1.ª parte, do CPC, competindo então à Relação providenciar por tal apreciação, nomeadamente em sede de substituição, nos termos do artigo 665.º do CPC.

Sucede que a Relação se limitou a considerar que o tribunal da 1.ª instância não estava vinculado a apreciar a invocada questão de abuso de direito, o que procurou justificar, a partir de uma referência genérica ao alegado nos artigos 168.º a 176.º da contestação, com o facto de, em abstrato, as razões subjacentes à constituição do crédito ou de depreciação das garantias prestadas serem irrelevantes, visto que a impugnação pauliana se insere num conjunto de meios colocados à disposição dos credores para evitarem a frustração de segurança que constitui a garantia patrimonial, enquanto expetativa jurídica do direito de executar o património do devedor para satisfação dos seus créditos.

Nesta medida, o juízo de improcedência sobre as conclusões recursórias nessa parte, formulado a fls. 902, encerra apenas o sentido decisório de considerar não verificada a invocada omissão de pronúncia, sem envolver qualquer pronunciamento que possa ser tido por relevante sobre o mérito da própria questão do alegado abuso de direito.

Porém, considerando, como se considera, que a apreciação em foco incorre em interpretação errada do disposto no artigo 608.º, n.º 2, do CPC, não resta senão revogar o assim decidido pela Relação e, consequentemente, anular a sentença da 1ª instância na parte em que omitiu tal pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), primeira parte, do mesmo Código.

Em face disso, compete agora à Relação conhecer da procedência ou não da questão de abuso de direito, em substituição da 1.ª instância, nos ter-mos do artigo 665.º do CPC, o que está vedado a este Supremo Tribunal como decorre da ressalva da aplicação daquele normativo constante do artigo 679.º do mesmo Código.

Termos em que procedem, nesta parte, as razões das Recorrentes.

3.3. Quanto ao pretendido aditamento dos factos descritos na conclusão 38.ª das Recorrentes

Pretendem as R.R./Recorrentes o aditamento à factualidade provada dos seguintes factos:

i) - O produto da venda da Quinta da … foi utilizado, por via da cessão de créditos, na assunção liberatória das dívidas de suprimentos da 1.ª R. e, por sua vez, da sociedade mãe «EE SGPS, S.A.» ao acionista;

ii) - A carteira de projetos da 1.ª R. estava orientada para a comercialização de terrenos de grande superfície, localizados sobretudo na zona de …, …, … e …, e no …;

iii) - Apesar dos esforços comerciais desenvolvidos pela 1.ª R., não surgiram interessados nestes imóveis;

iv) - Parte dos terrenos da 1.ª R. encontravam-se localizados nas áreas abrangidas pelas Medidas Preventivas destinadas a garantir a programação e execução do empreendimento público do novo aeroporto da OTA e da ligação ferroviária de alta velocidade (TGV), o que impediu a 1.ª R., durante vários anos, de conseguir a aprovação dos projetos que tinha para os terrenos afetados;

v) - A situação económica e financeira da 1.ª R. foi ainda agravada por fatores como o estrangulamento do crédito bancário (que agravou a contração do mercado), o aumento expressivo do spread e do indexante e a depreciação sustentada do valor do património imobiliário;

vi) - No dia 03-07-2009, foi celebrado entre várias sociedades do Grupo EE (em que se enquadra a 1.ª R.) e o BANCO FF, S.A. um «Contrato de Financiamento» pelo montante de € 188.038.941,33, que previa a alienação da Quinta da … para a assunção liberatória das dívidas de suprimentos;

vii) - No âmbito do referido financiamento, foi realizada uma auditoria independente às demonstrações financeiras, na qual os auditores concluíram que a Quinta da … foi vendida pelo seu valor de mercado.

viii) - As 1.868.800 ações AA dadas em garantia do crédito do A. foram adquiridas pela sociedade mãe da 1.ª R., pelo montante de € 1.840.973,83, no âmbito da operação de aumento de capital do primeiro implementada em 2003 e fortemente encorajada por este.

ix) - Em alguns anos, as cotações degradaram-se e o valor comercial das participações no A. ficou reduzido a menos de 1% do seu valor de compra;

x) - Este negócio resultou numa perda patrimonial na ordem dos quatro milhões (incluindo o valor mutuado para aquisição das participações financeiras e respetivos encargos financeiros);

xi) - Na altura em que a Quinta da … foi vendida, a 1.ª Apelante tinha conhecimento dos estudos realizados pelo Banco FF de Investimento que indicavam que o fluxo financeiro libertado pela atividade do Grupo EE, em particular a que estava a ser desenvolvida no …, seria suficiente para liquidar toda a sua dívida bancária, incluindo o financiamento do Banco Apelado.

Sustentam as Recorrentes que se trata de factos essenciais à defesa alegados na sua contestação, à exceção do facto descrito em xi) que, no entanto, resultaria da instrução da causa.

E referem que tais factos são relevantes para ajuizar sobre os temas da prova respeitantes à intenção imputada às R.R. de impedir a satisfação do crédito do A. e à impossibilidade ou seu agravamento de obter a satisfação integral desse crédito. E que, além disso, os factos descritos de viii) a x) evidenciam o alegado abuso de direito, contendendo também com a considerada impossibilidade ou seu agravamento de obter a satisfação integral do crédito do A.. 

Sobre tal matéria a Relação considerou o seguinte:

«Esta factualidade [de i) a x)] foi alegada pelas rés no articulado de contestação, mas não foi incluída nos factos provados e não provados, estando claramente abrangida no segmento da fundamentação do tribunal recorrido em que se refere: «O demais alegado mostra-se instrumental, conclusivo ou consubstancia matéria de direito.»

Na verdade, só interessa averiguar a factualidade controvertida, que é abrangida pelos temas da prova (artigo 596.º, n.º 1, do C.P.C.), e a matéria indicada não se inclui no objecto do litígio tal como foi fixado: «O direito da Autora de satisfazer os seus créditos sobre a 1.ª Ré à custa dos imóveis vendidos por esta à 3.ª ré».

As motivações dos representantes legais das rés quanto ao destino a dar ao produto dos bens vendidos, ou o contexto económico-financeiro que originou a desvalorização das garantias prestadas, não influi na decisão neste tipo de litígio. Citando de novo Cura Mariano, «a impugnação pauliana não só pode ter lugar quando o património do devedor não está apetrechado de bens para solver uma determinada dívida, mas também quando, apesar dos bens existentes serem suficientes para pagar essa dívida, não têm um valor que garanta a satisfação de todas as dívidas conhecidas por cujo pagamento o devedor é responsável. Existindo esta insuficiência, a garantia patrimonial de qualquer crédito comum mostra-se danificada, deixando os respectivos credores de terem assegurada a satisfação integral dos seus direitos» {obra citada, pág. 175).

(x) «Na altura em que a Quinta da … foi vendida, a 1.ª Apelante tinha conhecimento dos estudos realizados pelo Banco FF de Investimento que indicavam que o fluxo financeiro libertado pela atividade do Grupo EE, em particular a que estava a ser desenvolvida no …, seria suficiente para liquidar toda a sua dívida bancária, incluindo o financiamento do Banco Apelado»;

Por último, esta matéria factual não foi alegada e, no entender das apelantes, resulta da instrução da causa, designadamente, do depoimento de MM. Além das considerações já tecidas, que são aplicáveis, pelos mesmos motivos, socorrendo-nos das contra-alegações, trata-se de um facto objecto de análise em sede de sentença, na fundamentação, quando refere que «o Acordo feito com o FF nada tem a ver com o Autor».

Vejamos. 

Com é sabido, a procedência da impugnação pauliana depende da verificação cumulativa dos requisitos enunciados nos artigos 610.º e 612.º do CC, os quais constituem, por assim dizer, os elementos integrantes da respetiva causa de pedir, e que a jurisprudência e a doutrina[1] têm catalogado nos seguintes termos: 

a) – a existência de determinado crédito na titularidade do impugnante anterior ao ato impugnado, ou mesmo posterior, quando este ato for praticado como dolo específico - art.º 610.º , alínea a), do CC;

b) – a verificação do ato impugnado que envolva diminuição da garantia patrimonial do crédito em causa, seja por redução do ativo do devedor, seja por aumento do seu passivo; 

c) – a impossibilidade ou seu agravamento de o credor obter a satisfação integral do crédito;

d) – o nexo causalidade entre o ato impugnado e a sobredita impossibilidade ou seu agravamento;

e) – a má-fé do devedor e do terceiro adquirente, se o ato sendo posterior ao crédito, for oneroso, considerando-se má-fé a consciência do prejuízo que o ato oneroso causa ao credor.

Dentro deste quadro normativo, segundo o disposto no artigo 612.º do CC, em particular nos casos de ato oneroso, não se exige, no plano da má fé, a concertação entre o devedor e o terceiro adquirente, dispensando-se, portanto, o chamado consilium fraudis.

Em suma, quando se trate de ato posterior ao crédito, basta a consciência ou a previsão efetiva do dano que para os credores deriva do ato impugnado. Tal conhecimento, na maioria dos casos, será provado com base em elementos indiciários que, segundo a experiência comum, permitam induzir esse conhecimento.

Incumbe assim ao autor impugnante o ónus de provar tais requisitos, como factos constitutivos que são do direito peticionado, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do CC, mas recai sobre o devedor ou o terceiro interessado na manutenção do ato impugnado o ónus de provar que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor do que o do crédito em causa, nos termos da 2.ª parte do artigo 611.º do CC.

Nesta conformidade, impende sobre o Banco A. o ónus de provar, no que aqui releva, os factos essenciais respeitantes quer a impossibilidade ou agravamento para a situação integral do crédito e ao nexo causalidade entre o ato impugnado e a sobredita impossibilidade ou agravamento, quer ao requisito má fé das R.R..

Por seu turno, às R.R. assiste a faculdade de produzir contraprova em ordem a tornar duvidosos os factos que ao A. incumbe provar, nos termos do artigo 346.º do CC.

Neste quadro, os factos alegados pelas R.R. em sede de contraprova não se traduzem em factos essenciais, nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do CPC, consistindo em meros factos impugnativos com função instrumental em relação aos factos essenciais que incumbe ao A. provar. Tais factos integram o que se designa por contraversão total ou parcial dos factos constitutivos alegados pelo autor. É sobre estes que devem recair os juízos probatórios positivos ou negativos. E basta que a contraprova produzida pelo réu, veiculada pelos factos impugnativos, torne duvidosos os factos constitutivos visados para que estes sejam tidos por não provados, nos termos do mencionado artigo 346.º do CC.  

Em suma, sobre tais factos impugnativos, de natureza instrumental, não se exige, em regra, a formulação destacada de um juízo decisório factual, bastando que sejam atendidos, como elementos resultantes da contraprova produzida, em sede da fundamentação dos factos essenciais a que se reportam.

No caso presente, a 1.ª instância, na motivação da decisão de facto, considerou que, para além da prova direta das relações familiares entre a filha do representante da 1.ª R.., por sua vez, representante também da 3.ª R., e que foi quem negociou os termos das sucessivas alterações ao acordo da reestruturação da dívida, como decorre dos pontos 32 e 33, resultava ainda, de forma clara e segura, da prova testemunhal tanto o conhecimento de toda a situação por parte da filha do legal representante da 1.ª R. como a intenção de não permitir que o património em causa pudesse vir a constituir uma garantia de pagamento da dívida da sociedade. E ali foi também considerado que as R.R. não lograram demonstrar outra lógica na transferência do património de uma para outra que pudesse pôr em causa a dedução feita, tomando por certo que a única sociedade da “Família V…” que não tinha dívidas era a 3.ª R., sendo todas as sociedades do “grupo” encabeçadas pelo engenheiro António Varela que assegurava a sobrevivência das empresas.

Esta apreciação só pode significar que a 1.ª instância considerou que os factos que as Recorrentes ora pretendem aditar não foram de molde a tornar duvidosos, em sede de contraprova, os factos indiciários em que se estribaram os juízos probatórios positivos constantes dos pontos 28 e 29.

O mesmo se diga em relação à questão da impossibilidade ou seu agravamento de o A. obter a satisfação integral do seu crédito e ao respetivo nexo causalidade com os atos impugnados, tomando em linha de conta os factos dados como não provados e a sua motivação consignada a fls. 741.

Saber se essa desconsideração pelos factos impugnativos instrumentais que as Recorrentes ora pretendem aditar traduz uma correta valoração da prova produzida é questão que só poderá ser ponderada em sede de reapreciação da impugnação da decisão de facto e não por via do pretendido aditamento, uma vez que, como foi dito, não se trata de factos essenciais.

Quanto aos factos descritos de viii) a x) da 38.ª conclusão das Recorrentes tendentes a provar o invocado abuso de direito, a relevância do aditamento desses factos dependerá, ainda assim, do que for ou puder ser equacionado em sede de pronúncia sobre tal questão, que cumprirá agora ao tribunal da Relação efetuar.

Posto isto, impõe-se concluir pela rejeição do pretendido aditamento dos factos descritos de i) a xi) na 38.ª conclusão das Recorrentes acima consignada, sem prejuízo de serem considerados os factos descritos em viii) a x) para efeitos da apreciação da questão da omissão de pronúncia a fazer pela Relação.

3.4. Síntese conclusiva  

De toda a análise acima empreendida resulta a concessão parcial da revista com os seguintes efeitos sobre o acórdão recorrido:

a) – A anulação do mesmo no respeitante à reapreciação da decisão sobre a impugnação dos factos dados por provados nos pontos 28 e 29 da sentença da 1.ª instância;

b) – A revogação do segmento decisório de não verificação da invocada omissão de pronúncia sobre a questão do abuso de direito com a consequente anulação da sentença da 1.ª instância nessa parte e determinação do conhecimento dessa questão pela Relação;

c) – A rejeição do aditamento de factos pretendido pelas Recorrentes, mantendo-se, nesta parte, o acórdão recorrido.

      Em face dessas soluções ficam prejudicadas quer a questão da admissibilidade da revista excecional, quer, por ora, a questão da pretendida dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente recursiva que só fará sentido, porventura, equacionar no contexto da prolação de novo acórdão.   

IV – Decisão

 

Pelo exposto, acorda-se em conceder parcialmente a revista e decide-se:

a) - Anular o acórdão recorrido no respeitante à reapreciação da decisão de facto sobre os pontos 28 e 29 da factualidade dada por provada na sentença da 1.ª instância; 

b) – Revogar o segmento decisório em que se julgou não verificada a omissão de pronúncia na sentença da 1.ª instância sobre a invocada questão do abuso de direito, anulando-se esta sentença nessa parte e determinando-se o conhecimento de tal questão pela Relação, nos termos do artigo 665.º do CPC;  

c) – Determinar a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Lisboa para reapreciar o objeto da apelação respeitante à impugnação referida em a) e, seguidamente, decidir de novo a questão de direito, bem como para se pronunciar ainda concretamente sobre a invocada questão do abuso de direito referida em b), nos termos acima referidos;

d) – Considerar prejudicadas quer a questão da admissibilidade da revista excecional, quer, por ora, a questão da dispensa do pagamento da taxa de justiça remanescente recursiva;

e) – Manter no mais o acórdão recorrido.

 A responsabilidade pelas custas será determinada a final.     

Lisboa, de 11 de Julho de 2019

                                           

                                                       

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

Maria Rosa Tching

______

[1] Vide, por todos Prof. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11ª Edição, 2008, Almedina, pag. 860-864.