Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7957/1992.2.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ALVES VELHO
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
INCUMPRIMENTO
MAIORIDADE
Data do Acordão: 03/25/2010
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO I/2010, P. 147
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO AGRAVO
Sumário : O progenitor a quem foi confiada a guarda do filho não perde a legitimidade para continuar a exigir do outro, designadamente no incidente de incumprimento, o pagamento das prestações alimentares vencidas e não pagas durante a menoridade do filho, após a maioridade deste.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - Intentada pelo Exmo. Curador de Menores acção de regulação do exercício do poder paternal contra os pais do menor AA, BB e CC, foi proferida sentença, em 14/07/93, que condenou o progenitor do menor, a pagar a título de alimentos para seu filho, a quantia mensal de esc. 10.000$00 e ainda a de esc. 100.000$00 a título de prestações vencidas e não pagas desde a instauração da acção.
Em 31/07/2003, a progenitora, em representação do filho menor, deduziu incidente de incumprimento da prestação de alimentos contra o pai.
Verificado o incumprimento, foi decidido ordenar o desconto da quantia de 100,00€ no mês de Abril/2007, correspondente à prestação vincenda de Abril (mês em que o menor atinge a maioridade) e a de 75,00€ mensais para amortizar a quantia vencida e não paga desde a propositura da acção até Março/2007, no valor total de 8.700,00€.
Mediante requerimento do devedor, em 08/04/2008 foi proferido despacho a decidir reduzir os descontos mensais devidos para o valor de 45,00€.
A Requerente do incidente de incumprimento interpôs recurso de agravo de cujo objecto a Relação não conheceu por, em sede de questão prévia, ter julgado a Recorrente parte ilegítima para o recurso.

Interpôs a mesma Recorrente este recurso de agravo, agora visando a revogação do decidido e o reconhecimento da sua legitimidade para recorrer ou continuar o incidente no tocante às prestações de alimentos vencidas e não pagas durante a menoridade do filho.
Para tanto, argumenta nas conclusões da sua alegação:
a) - É certo, de acordo com o disposto nos artigos 130° e 1905°, n.º 1, do Código Civil, que com a maioridade se adquire plena capacidade de exercício de direitos e que os alimentos fixados na regulação do exercício do poder paternal são devidos ao filho.
b) - Contudo cumpre ponderar que o progenitor a quem se encontra confiado o filho suporta, na normalidade do dia a dia, as despesas necessárias a prover a segurança, saúde, educação e sustento do menor.
c) - Certo é que, visto o disposto nos artigos 397°, 1908°, n.º 2, e 2005º, n.º 1,1ª parte, do Código Civil, é que para cumprir com a sua obrigação deve o outro progenitor entregar o montante de prestação alimentícia ao progenitor a quem está confiado o filho.
d) - Consequentemente no artigo 181°, n.º 1 da O.T.M., estabelece-se que se, relativamente à situação do menor, um dos progenitores não cumprir o que tiver sido acordado ou decidido, pode o outro requerer ao tribunal as diligências necessárias para o cumprimento coercivo.
e) - Com efeito, fixada a pensão de alimentos a cargo do progenitor a quem o menor não estiver confiado, tem aquele de os satisfazer tempestivamente, como é regra do cumprimento das obrigações em geral.
f) - Se não fizer, pode ser lançada mão do meio de cobrança coerciva da prestação de alimentos, através de procedimento pré-executivo.
g) - O referido incidente deve ser intentado pelo progenitor que tem o menor a seu cargo, no caso a mãe de menor, por ser a solução mais correcta e a que melhor salvaguarda os interesses em jogo.
h) - No caso dos autos, o incidente de incumprimento foi deduzido ainda durante a menoridade do credor de alimentos, pelo progenitor que o tinha à sua guarda.
i) - Logo, o direito de crédito cujo pagamento a aqui Recorrida pretende ver satisfeito é um direito a alimentos do filho, então menor.
j) - A Recorrida intervém, assim, enquanto substituta processual, e em representação do seu filho menor, como titular do direito de crédito a alimentos.
l) - As prestações de alimentos vencidas e não pagas no decurso da menoridade não deixam de ser relativas à situação do menor por este ter atingido a maioridade.
m) - Efectivamente cumpre ponderar que nada justifica que o filho, atingida a maioridade, deva beneficiar do pagamento dos montantes correspondentes às prestações de alimentos vencidas e não pagas no decurso da sua menoridade e que, precisamente, se destinam a ressarcir as despesas havidas para prover à sua segurança, saúde, educação e sustento durante a sua menoridade.
O Recorrido respondeu, defendendo o julgado.
2. - A questão a resolver, tal como vem definida pela Recorrente, é se a maioridade do filho retira ao progenitor a quem foi confiada a respectiva guarda a legitimidade para exigir o pagamento das prestações alimentares vencidas e não pagas durante a menoridade daquele.
3. - A factualidade relevante é a que segue.
- Por despacho de 6/3/2007, proferido nos autos de incumprimento, foi ordenado o desconto da quantia de 100,00€ no mês de Abril/2007, correspondente à prestação vincenda de Abril (mês em que o menor atinge a maioridade) e a de 75,00€ mensais para amortizar a quantia vencida e não paga desde a propositura da acção até Março/2007, atingindo o valor total de 8.700,00€; a partir do mês de Maio/2007 deveria passar a ser efectuado o desconto mensal de 75,00€ até perfazer o valor total da dívida de alimentos vencida.
- Em 08/4/2008, no seguimento de requerimento do ora Recorrido, em 08/04/2008 foi proferido despacho a decidir reduzir os descontos devidos para o valor de 45,00€/mês.
- A Requerente do incidente de incumprimento, ora Recorrente, impugnou, mediante recurso, esta decisão de redução da quantia anteriormente fixada.
- O menor completou 18 anos de idade em 15/4/2007.

4. - Mérito do recurso.

4. 1. - Como resulta do já descrito, a Relação considerou a Recorrente carecida de legitimidade para o recurso argumentando:
(…) a partir do momento em que o AA perfez 18 anos de idade, cessou a sua incapacidade decorrente da menoridade, que até então era suprida pela intervenção processual da sua mãe, no exercício do poder paternal.
É-lhe, sem sombra de dúvida, reconhecida legitimidade activa para prosseguir nos presentes autos, a partir dos seus 18 anos de idade (art. 26º do CPCivil).
Assim sendo, no incidente de incumprimento da prestação de alimentos contra o seu progenitor, pode e deve o AA Lacerda fazer valer o seu direito a alimentos “iure proprio” mesmo que, como é o caso estejam em dívida quantias devidas durante a sua menoridade por parte de seu pai”.

4. 2. - Em causa estão, como reconhecido, prestações alimentares vencidas anteriormente à maioridade do filho, cujo desconto foi ordenado em decisão também proferida durante a sua menoridade.
Trata-se, pois, de pagamento ou cobrança coerciva de dívida de alimentos, há muito vencida, em curso em incidente de incumprimento de natureza executiva, alternativa à execução especial por alimentos – arts. 189º, 190º-4, ambos da LTM e 1118º CPC.

Sabido que a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título figure como credor (art. 55º-1 CPC), importará saber se a Requerente-exequente, ora Recorrente, mantém a qualidade de credora, como tal figurando no título - que é a sentença que regulou o poder paternal e fixou a pensão alimentar, complementada pelas posteriores decisões, designadamente a que fixou o montante das quantias não pagas e ordenou o desconto em curso na pensão auferida pelo Requerido -, e se pode continuar a exigir o pagamento do crédito nos mesmos termos em que lhe era facultado durante a menoridade do filho.

4. 3. - Tendo presente o regime legal que rege o conteúdo e modo de exercício do poder paternal – hoje responsabilidades parentais - estabelecido no processo, que se reporta já a 1993 (logo sem que na fixação tivessem intervindo as normas contidas na Lei n.º 61/2008, de 31/10), parecem-nos curiais breves considerações sobre o estatuto efectivamente aplicável.

O dever de prestar alimentos aos filhos menores recai sobre ambos os pais que, em conjunto, estão onerados com a obrigação de contribuir para o sustento, manutenção e educação dos descendentes menores. Trata-se de uma manifestação do conteúdo do poder paternal a que estão sujeitos os filhos até à maioridade ou emancipação (arts. 1874º, 1877º, 1878º-1 e 1879º C. Civil).

Do poder paternal (ora responsabilidades parentais) são titulares ambos os progenitores e a ambos pertence o respectivo exercício na constância do matrimónio – art. 1901º.
Pode, porém, suceder que os pais do menor não convivam maritalmente, ou tenha cessado essa coabitação – quer porque nunca estiveram unidos por laços matrimoniais, quer porque o matrimónio tenha sido anulado ou dissolvido ou porque ocorra mera separação de facto -, casos em que o poder paternal deve ser regulado judicialmente (arts. 1905º a 1912º C. Civ.).
Nessas situações, como sucedeu no caso em apreciação, o tribunal decide (ou homologa os acordos dos progenitores) sobre o destino do filho, o regime de visitas do progenitor a quem não tenha sido confiado, os alimentos devidos ao filho e a forma de os prestar.
O poder paternal não se extingue em relação a qualquer dos pais, mas passa a ser exercido pelo progenitor a quem o filho é confiado e apenas por ele unilateralmente – art. 1906º.

O progenitor que fica com a guarda do filho, como titular único do exercício do poder paternal e, consequentemente, dos poderes-deveres que lhe são inerentes, detém legalmente o direito e o dever de, no interesse do filho, velar pela sua saúde e segurança, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação e representá-lo, cabendo ao outro progenitor (que não exerce o poder paternal) vigiar - presentemente, ser informado (n.º 6 do art. 1906º) - a execução desse exercício – arts. 1878º-1 e 1906º-4 cit..
É àquele progenitor, detentor exclusivo do exercício do poder paternal que incumbe custear as despesas originadas por esse exercício, enunciadas no art. 1879º (sustento, segurança, saúde e educação), sem prejuízo da contribuição do outro para a satisfação dos mesmos encargos, nos termos e com as quantias em que tiver sido fixada a respectiva repartição, quantias estas a entregar ao progenitor detentor do poder paternal para por este serem utilizadas na satisfação das mencionadas despesas.

O beneficiário da prestação alimentar é o menor, mas é o progenitor a quem foi confiado que goza da respectiva titularidade. Este progenitor «age em substituição processual, parcial, representativa do menor». Age em nome próprio e, por isso, é parte processual (cf. J. P. REMÉDIOS MARQUES, “Algumas Notas Sobre Alimentos ...”, F.D.U.C. – Centro de D.to de Família, 2, pg. 297/8).

No mesmo sentido convergem as normas vertidas nos arts. 186º-3 e 181º-1 da LTM.
É ao progenitor com guarda que cabe a legitimidade para, em substituição processual do menor, pedir os alimentos, a sua alteração ou exigir o cumprimento coercivo da obrigação.

Consequentemente, se o progenitor condenado a entregar ao outro prestações alimentares a título de alimentos devidos ao filho menor não cumpre, este fica onerado e passa a custear despesas que obrigavam aquele, despesas que só ele pode exigir do devedor, seja no exercício de um direito próprio, seja, quando assim se entenda, por via sub-rogatória (art. 592º-1 C. Civ.).
O titular único do exercício do poder paternal e dos correspondentes poderes-deveres satisfaz as respectivas obrigações e custeia os inerentes encargos na totalidade. Por isso, satisfeita unilateralmente a obrigação, compreende-se que só quem efectivamente a cumpriu possa exigir do co-obrigado os encargos a que esse cumprimento deu origem e lhe assista legitimidade para exigir a parte dos encargos que, na repartição efectuada, o outro obrigado deixou de lhe prestar.

A ser assim, como se pensa que é, o problema nem será tanto de pura legitimidade processual do exequente face ao título e sua suficiência - legitimidade que se nos afigura concedida pelos arts. 55º-1 e 57º CPC -, desde logo porque, como já referido, o progenitor age como substituto processual do filho na atribuição e fixação da pensão alimentar, mas, antes, um efeito da não coincidência entre o sujeito que detém a titularidade e disponibilidade do direito quanto às prestações vencidas durante a menoridade e o seu beneficiário, como reflexo do conteúdo e exercício do poder paternal e da natureza que, no seu âmbito, assume o direito a alimentos.

4. 3. - É justamente a descrita a situação que os autos reflectem.

A Recorrente, que foi titular exclusiva do poder paternal, será, por isso, também a titular dos alimentos fixados ao filho enquanto menor, seu beneficiário, e, também por isso, será ela a titular do direito de continuar a exigir do ora Recorrido as prestações que este lhe não entregou durante a menoridade do filho AA, nos termos declarados e fixados na sentença da acção de regulação do poder paternal e nas decisões subsequentes proferidas no incidente (pré) executivo de incumprimento.

É ela, e também apenas ela, quem pode reclamar ou renunciar à exigência dessas prestações vencidas, sem as quais proporcionou ao menor as condições de vida que teve por convenientes ou possíveis, prestações que, ao menos a nosso ver, dada a natureza da obrigação alimentar relativa a menor a expensas do progenitor, não se apresentam como convertíveis em crédito próprio do filho após a maioridade deste.

5. - Decisão.

Em conformidade com o que se deixou exposto, acorda-se em:
- conceder provimento ao agravo;
- revogar o acórdão impugnado e, em consequência:
- reconhecer a legitimidade da Recorrente para, em nome próprio, intervir no incidente e no recurso da decisão nele proferida e
- determinar a devolução dos autos à Relação para, sendo caso disso, emitir pronúncia sobre o objecto do recurso de que deixou de conhecer em razão do julgamento de ilegitimidade; e,
- Condenar o Agravado nas custas.

Lisboa, 25 Março 2010

Alves Velho (Relator)
Moreira Camilo
Urbano Dias (vencido)
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Vencido pela razão que passo a expor.
A legitimidade da recorrente advinha do facto de a filha ser menor.
Enquanto esta realidade perdurou, competia à agravante suprir a incapacidade da filha, derivada da sua menoridade.
Atingida a maioridade desta, finou a “legitimidade” da agravante para representar a sua filha, seja em que circunstância for.
Negaria, por isso, provimento ao agravo.