Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JSTJ00002071 | ||
| Relator: | QUIRINO SOARES | ||
| Descritores: | TESTAMENTO INTERPRETAÇÃO DO TESTAMENTO | ||
| Nº do Documento: | SJ200209190023807 | ||
| Data do Acordão: | 09/19/2002 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
| Processo no Tribunal Recurso: | 9579/01 | ||
| Data: | 02/14/2002 | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA. | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
| Área Temática: | DIR CIV - TEORIA GERAL / DIR SUC. | ||
| Legislação Nacional: | CCIV66 ARTIGO 2182 ARTIGO 2187 N2. CCIV867 ARTIGO 1761. | ||
| Jurisprudência Nacional: | ASSENTO STJ DE 1954/10/19. | ||
| Sumário : | Constitui matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, determinar a intenção do testador, mas saber se tal vontade do testador encontra um mínimo de correspondência no contexto do testamento, ainda que imperfeitamente expressa, constitui matéria de direito. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. A, beneficiário de um legado de 2000 escudos/mês, a sair da herança deixada por B, pede, contra C, na qualidade de sucessor do primitivo herdeiro, a declaração de que aquela prestação é actualizável, segundo a vontade do testador. A acção improcedeu nas instâncias. O autor pede revista que fundamenta assim: - há uma manifesta contradição entre o n.º28 da matéria de facto do acórdão, onde se diz que "B ao instituir que fosse paga a quantia de 2000 escudos / mês para ser paga ao A., pretendia que o futuro deste ficasse assegurado no ponto de vista económico" e a conclusão de que "Nada permite afirmar que a intenção do testador fosse assegurar o futuro do recorrente do ponto de vista económico", sobre que assenta a decisão impugnada, contradição que deve ser resolvida pela remessa dos autos ao tribunal recorrido; - uma vez que a real vontade do testador foi a de assegurar o futuro do autor sob o ponto de vista económico e que nada, no texto do testamento, afasta a possibilidade de actualizar a prestação, é de concluir que a actualização corresponde à intenção do testador. 2. São os seguintes os factos provados: - em 11 de Maio de 1938, morreu B, no estado de casado, sem herdeiros legitimários; - B deixou dois testamentos cerrados; - nos termos do primeiro testamento, celebrado em 23 de Fevereiro de 1931, o testador instituiu como herdeira da nua propriedade da sua meação nos bens do casal D e como usufrutuária de todos os seus bens a viúva meeira, deixando, para além disso, diversos legados; - em 18 de Julho de 1936, B alterou o primeiro testamento, aditando-lhe disposições que contemplavam o autor, A, como herdeiro universal, caso a morte do testador ocorresse posterior ou simultaneamente à morte de sua mulher e da herdeira instituída no primeiro testamento; - no testamento de 18 de Julho de 1936, o testador determinava que "ainda para a hipótese de vir a dar-se a execução ao meu testamento de vinte e três de Fevereiro de mil novecentos e trinta e um, isto é de minha mulher me sobreviver, bem como nossa afilhada às quais contemplo naquele testamento respectivamente como usufrutuária e a nossa afilhada depois como herdeira universal ou na falta desta, minha mulher, herdeira universal, devem dar ao meu protegido E a importância de dois mil escudos por mês quando ele chegar aos vinte e seis anos e durante a menor idade que aqui fica expressa nos vinte e seis anos educação e ilustração se para tal tiver inteligência e não tendo deve ser habilitado nos trabalhos agrícolas como eu o criaria se vivesse" ; - a morte de B ocorreu em data anterior à morte de D e à de sua mulher; - por morte de D sucedeu-lhe seu marido E, por força de testamento celebrado a seu favor; - em Abril de 1968, morreu E, deixando como seu herdeiro universal, C; - quando, em 11 de Maio de 1938, faleceu B, foi apresentada pela viúva, para os efeitos de imposto sucessório, a relação de bens constante de fls. 53/74, da qual consta um activo avaliado em 2880 contos e um passivo no valor de 1912 contos; - no testamento de 18 de Julho de 1936, constante de fls. 22, ficou estabelecido que os nomeados administradores da herança tomassem "ao seu serviço F com o ordenado de 500 escudos por mês e todas as comodorias necessárias e meio de transporte" e ainda que o ordenado "a F deve ser o que aqui digo enquanto os preços dos géneros sejam os da época que faço este testamento mais dez por cento a mais ou a menos assim que a baixa ou alta sejam superiores ou inferiores aos preços da data deste serão alterados com prévia combinação dos dirigentes aqui nomeados ou seus substitutos"; - o B escreveu as cartas constantes de fls. 78, 79 e 80 aos seus afilhados; - na carta de fls. 78, datada de 1936 e enviada a D, B pede à sua afilhada se morrer sem filhos para o que ficar livre de encargos dar a E; - na carta de fls. 79, datada de Maio de 1938, também dirigida à sua afilhada D escreveu: "toma conta de E e trata-o como se fosse vivo o que é teu padrinho muito amigo"; - na carta de fls.80, pede a E o seguinte: "como irá ver pelo meu testamento em poder de minha mulher eu desejara que tudo o que tenho ficasse para sua mulher e minha afilhada D com a obrigação de educar e dar o possível ao E, e que ele por brincadeira que eu muito gosto acrescenta o nome B"; - o autor era então uma criança, filho de empregados agrícolas do testador, por quem este tomou afeição e a quem pretendia beneficiar; - desde o seu nascimento até à presente data, sempre o autor residiu no Monte das Gamas, coabitando com B e sua mulher G; - foi sempre na residência do casal que o autor comia, dormia, brincava e estudava; - todas as férias de Verão do autor, enquanto menor e enquanto solteiro, foram passadas com o casal, e posteriormente à morte de B com G, como se fosse filho; - ao atingir a idade de frequentar o liceu, G montou casa em Lisboa e acompanhou o protegido do seu marido; - dados os meios económicos de que dispunha, G contratou pessoal doméstico para o seu serviço na casa de Lisboa, aí passando a viver com o autor, limitando-se a deslocar-se ao Monte das Gamas por período estritamente necessário à administração das propriedades; - tal situação manteve-se durante todo o período de frequência do liceu do autor, bem como nos dois anos em que o autor frequentou a Faculdade de Direito de Lisboa; - foi a necessidade imperiosa de coadjuvar G, na administração dos seus bens e de B, de que esta era usufrutuária e cabeça de casal, que obrigaram o autor a deixar os estudos e voltar à casa onde sempre vivera; - G, quer por vontade própria, quer pelo respeito que lhe merecia a vontade do seu falecido marido, B, sempre proporcionou ao autor a educação e ilustração que proporcionaria a um filho do casal; - até à data da sua morte, em 1981, G entregava ao autor, mensalmente, as quantias em dinheiro que correspondiam à pensão que o seu marido instituíra ao autor, no testamento; - foi na casa do testador que nasceram todos os filhos do autor; - aí permanecendo o autor, sua mulher e quase todos os filhos na mesma residência até aos dias de hoje; - a herança de que o réu é herdeiro tem bens suficientes para proceder ao pagamento actualizado; - B, ao instituir a quantia de 2000 escudos/mês, para ser paga ao autor, pretendia que o futuro deste ficasse assegurado no ponto de vista económico. 3. A solução do problema de actualização ou correcção monetária que faz a questão central do processo e do recurso depende, apenas, da interpretação do testamento em que o legado da prestação periódica foi instituído. Com isto pretende-se significar que está fora de questão a hipótese de actualização legal, quer porque, em matéria de obrigações pecuniárias, como é aquela, sempre vigorou o princípio nominalista (cfr. artºs727º, CC867 (1) e 550º, CC (2)), quer, também porque se não trata de obrigação de valor, isto é, de obrigação que não tem directamente por objecto o dinheiro, mas em que o dinheiro funciona como simples medida do valor da prestação devida. Como entre a elaboração dos testamentos e a actualidade se sucederam dois regimes legais, a tarefa de interpretação da vontade do testador não poderia ser empreendida sem a prévia definição do regime aplicável, não fosse o caso de os art.s1761, CC867, e 2187, CC actual, terem adoptado soluções fundamentalmente iguais, tendo como referência o apuramento da vontade real do testador. O actual art. 2187 acrescentou em letra de forma aquilo que, sem o expressar, o velho 1761, CC867, já implicitamente admitia, qual seja a legalidade do recurso a elementos extrínsecos ao testamento para apuramento da vontade real do autor. - Segundo um velho assento deste Supremo Tribunal, de 19.10.54, "constitui matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, determinar a intenção do testador". Não seria por, entretanto, terem mudado tanto o Código Civil como o Código de Processo Civil que aquela norma judicativo-interpretativa mereceria menos obediência do que a devida à época em que saiu. Afinal de contas, o domínio legislativo que interfere com a doutrina do assento não sofreu alteração de substância. O que se passa é que, hoje, os velhos assentos valem, apenas, como meros uniformizadores de jurisprudência, nos termos do art. 17, n. 2, DL 329-A/95, de 12/12 (preambular da reforma do processo civil). Valendo o que vale, não vemos, porém, motivo para arrepiar caminho na orientação definida pelo mencionado assento há quase 50 anos. Para o Supremo, enquanto tribunal de revista ficará, no entanto, o poder de controlo sobre se a interpretação que às instâncias pareceu corresponder à real vontade do testador encontra, no contexto do testamento, "um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa", já que, neste particular, se trata de aplicar um critério de direito material, inescapável, por isso mesmo, ao controlo do tribunal de revista. - As instâncias, analisando o contexto do testamento em conjunto com a prova complementar, designadamente, as cartas de fls. 78, 79 e 80, escritas pelo autor dos testamentos aos respectivos afilhados, concluíram que a disposição testamentária em discussão tem uma componente estritamente monetária, sem referência a qualquer factor de actualização. É uma interpretação que se ajusta perfeitamente ao contexto do testamento. E, pelo contrário, a defendida pelo recorrente, ainda que tivesse passado pela cabeça do testador, não encontra, no mesmo contexto, o tal mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expresso, de que fala o n. 2, do art. 2187, CC. Daí que não tenha a importância que, em princípio, deveria ter, o manifesto lapso do acórdão recorrido, no ponto em que diz: "Nada permite afirmar que a intenção do testador fosse assegurar o futuro do recorrente do ponto de vista económico", em evidente contradição com o facto provado de que "B ao instituir que fosse paga a quantia de 2000 escudos / mês para ser paga ao A., pretendia que o futuro deste ficasse assegurado no ponto de vista económico". A conclusão é, pelo que se vê, errada, mas a inversa não redimiria, por si só, a interpretação rejeitada nas instâncias, que, em todo o caso, e como já se disse, não encontra expressão, ainda que imperfeita, no contexto dos testamentos. 4. Por todo o exposto, negam a revista. Custas pelo recorrente. Lisboa, 19 de Setembro de 2002 Quirino Soares, Neves Ribeiro, Araújo de Barros. ---------------------- (1) Código Civil de 1867, revogado em 1.6.67 pelo actual (2) Código Civil vigente |