Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
106/20.0KRCBR.C1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: CONCEIÇÃO GOMES
Descritores: RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO PER SALTUM
RECURSO DA MATÉRIA DE DIREITO
NULIDADE
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 05/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - Entende a recorrente que o acórdão recorrido enferma, no que concerne à fixação da pena única, de falta de fundamentação, o que consubstancia nulidade do arts. 379.°, n.° 1, al. a) e 374.°, n.° 2 do CPP.

II - A Lei Fundamental consagra no art. 205.º, n.º 1, que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

III - Em conformidade com este preceito constitucional, o art. 374.º, n.º 2, do CPP determina que a sentença deve conter a “fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

IV - Para a falta de fundamentação comina-se uma nulidade – art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP.

V - O acórdão recorrido não enferma de qualquer nulidade por falta de fundamentação, quanto à medida da pena única aplicada à arguida.

VI - O acórdão aplicou corretamente a lei, fundamentando de acordo com os critérios e princípios que presidem à fixação da medida da pena única, proteção de bens jurídicos, às exigências de prevenção geral e especial, princípios da proporcionalidade e da adequação, considerando em conjunto os factos e a personalidade da arguida.

Decisão Texto Integral:

Acordam, na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça



1. RELATÓRIO

1.1. No Juízo Central Criminal ... – Juiz ... – foi julgada em processo comum com intervenção do tribunal coletivo a arguida AA, filha de BB e de CC, nascida a .../.../1967, natural da freguesia ..., ..., concelho ..., divorciada, copeira, residente na Rua ..., ..., atualmente presa preventivamente à ordem do presente processo, no estabelecimento prisional ..., e por acórdão de 09NOV21 foi deliberado:

Condenar a arguida AA, pela prática, em autoria singular e em concurso efetivo de:

A. I) - sete crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210.º, n.º 1, nº 2 a) por referência à alínea b) do artigo 144º-- e nº 2 b) --por referência à alínea d) do nº 1 do artigo 204º-- todos do Código Penal (ofendido I - DD; ofendido II - EE, dia 17.10.20; ofendido III - FF; ofendida IV - GG; ofendido V - HH; ofendido IX - II; ofendida XI - JJ), nas penas de três anos e nove meses de prisão, cada um;

A.II) - um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º, 144º b) e 145º nº 1 c), por referência às alíneas g), i) e j), do nº 2 do artigo 132º, todos dos Código Penal (ofendido II - EE, dia 16.10.20), na pena de três anos e seis meses de prisão;

A.III) - dois crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210º nº 1 e nº 2 alínea b), por referência ao disposto na alínea d) do art.º 204º nº 1), todos do Código Penal (ofendida X - KK; ofendido XVII - LL), nas penas de três anos e seis meses de prisão, cada um;

A.IV) - quatro crimes de peculato, previstos e punidos pelos artigos 375º nº 1 e 386º nº 1 d), todos do Código Penal (ofendido VI - MM; ofendida VII - NN; ofendida VIII - OO; ofendida XII - PP), nas penas de um ano e seis meses de prisão, cada um;

A.V) - quatro crimes de ofensa à integridade física grave qualificada, na forma consumada, previstos e punidos pelos artigos 143º, 144º alíneas b) e d) e 145º nº 1 c) e nº 2, por referência às alíneas g), i) e j) do nº 2 do art.º 132º, todos do Código Penal (ofendida XIII - QQ; ofendida XIV - RR; ofendida XV - SS, dias 20 e 21.01.21), nas penas de três anos e seis meses de prisão, cada um;

A.VI) - um crime de roubo, agravado pelo resultado morte, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1, nº 2 a) e b) e nº 3, do Código Penal (ofendido XVI - TT), na pena de dez anos de prisão;

A.VII) - um crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368º A nºs 1, 2, 4, 5 e 6 do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão;

B) - condenar a arguida AA, em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de dezassete anos de prisão;

1.2. Inconformada com o acórdão dele interpôs recurso a arguida para o Tribunal da Relação ..., que motivou concluindo nos seguintes termos: (transcrição):

1. Não pode a recorrente conformar-se com o subscrito no douto acórdão.

2. A recorrente não se pode conformar no que concerne à pena que lhe foi aplicada, em cúmulo jurídico pela alegada prática em autoria singular daqueles crimes.

3. Sob pena de comprometer o embasamento das diligências adoptadas e seus resultados, cumpre afirmar que, não se questionando a verosimilhança das ilações retiradas de uma apreciação crítica das provas, tem-se como inadequada, face aos factos apurados, a medida da pena concretamente aplicada de 17 anos em cúmulo jurídico.

4. A fundamentação de uma decisão tem de permitir avaliar o porquê dessa decisão. Assumindo que aquela se encontra preenchida, questionam-se as suas derivações.

5. Afigura-se-nos que os elementos recolhidos no decurso das diligências adoptadas, a análise e ponderação da matéria probatória carreada e a interpretação conjugada dos elementos disponíveis nos autos não habilitam a que a sanção privativa de liberdade com que a recorrente foi cominada seja de 17 anos.

6. Colocam-se em crise os termos em que se procedeu à determinação da medida concreta da pena.

7. No que concerne à escolha e determinação das penas, a fase de plena discricionariedade judicial que encarava a determinação da pena como manifestação paradigmática da arte de julgar encontra-se superada.

8. Após a determinação da moldura abstracta da pena é necessário proceder à determinação da medida concreta da pena, à sua quantificação e por fim a escolha da pena.

9. O art. 71°, n° 1 do Código Penal (CP) determina que o quantum da pena de prisão seja fixado em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Atendendo ao preceituado, a culpa funciona como limite da pena, inviabilizando, desde logo, que alguém seja punido com pena mais elevada em atenção a fins de prevenção geral ou especial.

10. Na determinação da medida concreta da pena são basilares os factores de determinação da pena, acolhendo-se todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente as circunstâncias agravantes e atenuantes apresentadas nas alíneas a) a f), do n° 2 do mesmo normativo.

11. Sufraga-se o entendimento de que, a medida da pena terá que ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva, definitiva e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial positiva, defendido pelo Professor Figueiredo Dias.

12. O douto acórdão não ponderou tal dinâmica.

13. Ora, sem prescindir, atendendo apenas e exclusivamente a matéria efetivamente dada como provada pelo Tribunal a quo no seu douto Acórdão,

14. é nosso entendimento que a decisão concretamente proferida contraria o objetivo da política criminal que a lei perspetiva e que a justiça não pode subtrair-se, que é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e da primazia e preferência da lei pelas penas não privativas da liberdade, uma vez que condenou a arguida em pena única de prisão de 17 anos,

15. quando poderia e deveria, tendo em conta a prova produzida, e tendo em conta as concretas necessidades de prevenção geral e especial, e as circunstâncias que depunha a favor e contra a mesma, condenado em pena bem inferior.

16. O conteúdo reeducativo das penas consagra, além do aspeto punitivo a reintegração social do delinquente na sociedade. A matriz humanista do nosso direito, penal não bloqueia esta realidade, antes a promove. O recorrente, admitindo-se a autoria dos dois crimes terá necessariamente de ser punido.

18. Mas esse castigo não lhe pode nem deve fechar as portas de uma ulterior vida honesta.

19. A recorrente está perfeitamente integrada socialmente, sempre trabalhou e é bem vista por todos as pessoas que lhe são mais próximas.

20. Assim, a recorrente apela que lhe seja dado uma merecida e justa oportunidade de iniciar um correto caminho, adentro dos interesses de reinserção social que o nosso ordenamento institui.

21. O Tribunal a quo, e com o devido respeito, ao condenar a recorrente na pena de prisão de 17 anos, fê-lo sem apresentar um único fundamento para a escolha daquela dosimetria e não de outra.

22. Aliás afigura-se existir, nesta questão concreta da escolha e determinação da medida da pena, falta de fundamentação, que consubstancia nulidade do artigo 379°, n° 1, alínea a) e 374°, n° 2 do Código Processo Penal, o que aqui se suscita e alega para os devidos e legais efeitos.

23. Pelo exposto, é nosso entendimento que, no caso concreto e tendo em conta tudo o que se acaba de referir quanto a determinação da medida da pena e tendo em conta as concretas exigências de prevenção geral e especial e tendo em conta todas as circunstâncias que depõem a favor da recorrente, a pena aplicável à recorrente, deveria ser inferior aos 17 anos de prisão em cúmulo jurídico que foi condenada e suspensa a sua execução.

24. Foram violados, o artigo 21°, Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de janeiro, o artigo 86°, n° 1, ai. c), RJAM, os artigos 40°, 70° e 71° do Código Penal e artigos 120°, n° 2, ai. d), 369° e 410°, n° 2 do Código Processo Penal e 32° da Constituição da República Portuguesa.

25. Pelas expostas razões e reafirmando as elevadas qualidades de inteligência, cultura jurídica, sensatez e suficiente experiência da vida, a limitação resultante da incontornável subjetividade da justiça e o sequente aceite de que ninguém é perfeito,

26. impõe-nos a conclusão que se lamenta dum desrespeito da concordância prática dos valores em causa, valores imperativamente atendíveis por nenhuma sanção poder ser aplicada afora da teleologia especifica do conjunto de meios que é o processo penal, convergente com a regeneração pessoal e social da delinquente, afetante da ponderação de meio e fim ínsita no princípio da proporcionalidade.

27- Ora tal não foi respeitado desequilibrando-se desrazoavelmente o princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade entre prova e pena, que um outro igualmente ponderoso da igualdade de todos perante a lei também impõe, pela circunstância que mereceu a justificação que o douto acórdão contém da personalidade da recorrente e do justificativo racional que esta oferecia para as condutas delituosas imputadas.

28- São os inpunts referidos por Max Weber que não inquinam pela compreensão que merecem mas afetam pela injustiça que possibilitam é contra esta que se protesta, nesta vertente da violação dos aludidos princípios jurídico-constitucionais da proporcionalidade e da igualdade de todos perante a lei,

29- consignados e estatuídos nos artigos 13°, 18° e 32° da Constituição da República Portuguesa, decorrente da inconstitucionalidade material dos artigos 21°, n° 1 do DL 15/93 de 22 de janeiro e 86°, n° 1, c), do RJAM, que ora se suscita.

30- Pelo exposto, foram violados os artigos 21°, Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de janeiro, o artigo 86°, n° 1, al. c), RJAM, os artigos 40°, 70° e 71° do Código Penal e artigos 120°, n° 2, al. d), 369° e 410°, n° 2 do Código Processo Penal e artigos 13°, 18° e 32° da Constituição da República Portuguesa.

NESTES TERMOS, e nos mais de direito que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá ser revogada a decisão de que agora se recorre, fazendo-se a costumada JUSTIÇA!»

1.3. O Ministério Público junto do Tribunal “a quo” pronunciou-se pela improcedência dos recursos, concluindo nos seguintes termos:

«Em suma, a presente pretensão recursiva terá, em nosso entender, que naufragar, atendendo à carência de qualquer fundamento legal que a suporte.

Pelo que se expôs e em nosso entender, bem fica demonstrada a coerência e correcta fundamentação do acórdão do Tribunal a quo, o qual, não se encontrando ferido de qualquer nulidade processual e não merecendo qualquer censura, deverá ser integralmente mantido, com a condenação da recorrente pelos crimes que, efectiva e assumidamente, cometeu.

Termos em que, se V. Ex.ªs julgarem improcedente o recurso, com as legais consequências e adequada tributação, farão a habitual justiça».

1.4. Por Decisão Sumária de 23 de fevereiro de 2022, proferida no Tribunal da Relação ... foi decidido «declarar, em termos hierárquicos/funcionais, incompetente o Tribunal da Relação ... para o conhecimento do recurso interposto no âmbito dos presentes autos e competente para o referido efeito o Supremo Tribunal de Justiça».

1.5. Neste Tribunal o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso nos seguintes termos: (…)

«7 Como resulta das conclusões que rematam a motivação de recurso, é contra a medida da pena única aplicada que a recorrente se insurge, considerando que a pena deveria ser inferior aos 17 anos de prisão em cúmulo jurídico que foi condenada e suspensa a sua execução, reivindicação que se funda, essencialmente, na sua integração social e laboral (até à sua prisão), e na impressão favorável que dela têm as pessoas que lhe são mais próximas.

Entende ainda a recorrente que a decisão recorrida padece, no que concerne à fixação da pena única, de falta de fundamentação, o que consubstancia nulidade do artigo 379°, n° 1, alínea a) e 374°, n° 2 do Código Processo Penal.

Por fim, tem por violadas normas relativas aos crimes de tráfico de estupefacientes e de detenção de arma proibida, e diversas outras de natureza processual, designadamente os artigos 120. °, n.º 2, alínea d), 369.° e 410.°, n.º 2, do C.P.P., que nenhum cabimento têm, umas e outras, na situação vertente.

8. Sem que questione qualquer das penas parcelares impostas pelos crimes cuja prática, por si, em autoria material, resultou demonstrada em julgamento, considera a recorrente, em síntese, que «… a análise e ponderação da matéria probatória carreada e interpretação conjugada dos elementos disponíveis nos autos não habilitam a que a sanção privativa da liberdade … seja de 17 anos» e «que a decisão concretamente proferida contraria o objetivo da política criminal que a lei perspetiva e que a justiça não pode subtrair-se, que é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e da primazia e preferência da lei pelas penas não privativas da liberdade, uma vez que condenou a arguida em pena única de prisão de 17 anos, quando poderia e deveria, tendo em conta a prova produzida, e tendo em conta as concretas necessidades de prevenção geral e especial, e as circunstâncias que depunha a favor e contra a mesma, condenado em pena bem inferior.».

Não lhe assiste razão, afigura-se.

Na determinação da medida das penas, o Tribunal a quo, numa avaliação criteriosa e ponderada, de notável equilíbrio, aliás, atendeu, como é de Lei, ao número de crimes que se provou terem sido cometidos pela recorrente (vinte): um crime integridade física grave qualificada, quatro crimes de peculato e um crime de branqueamento.

Considerou também as molduras penais abstratas aplicáveis a esses crimes: prisão de 8 a 16 anos, relativamente ao crime de roubo, agravado pelo resultado morte, prisão de 3 a 15 anos, relativamente aos crimes de roubo agravado, prisão de 3 a 12 anos, no que respeita aos crimes de ofensa à integridade física grave qualificada, prisão de 1a 8 anos, quanto aos crimes de peculato, e prisão de 1 mês a 12 anos, o crime de branqueamento.

Na avaliação da culpa, das exigências de prevenção e das circunstâncias que se apuraram a favor e contra a arguida, o Tribunal a quo teve em linha de conta:

- grau de ilicitude do facto: atendendo aos bens jurídicos cuja tutela a pena visa assegurar que ter em conta, os concretos objectos retirados pela arguida, a intensidade das ofensas, sofrimento das vítimas e a quantidade de objectos retirados e dinheiro obtido;

- modo de execução do crime: actuação no contexto referido, aproveitando as circunstâncias de desvalimento dos utentes e deslocando-se de modo a fazer-se passar pelo exercício da sua actividade de apoio aos doentes;

- gravidade das consequências: para além da subtracção dos objectos, a colocação das pessoas em risco de vida chegando até num dos casos ao falecimento de um dos ofendidos:

- grau de violação dos deveres impostos ao agente: intenso desrespeito pelos doentes, pelos seus objectos em ouro (todos associados a situações de valor sentimental para os ofendidos), pelos seus deveres como funcionária e pela saúde e vida dos utentes; e também da confiança da licitude da obtenção dos objectos em ouro colocado em circulação;

- intensidade do dolo: grau mais elevado dolo directo artº 14º, 1, representação do facto e actuação com intenção de o realizar;

- sentimentos manifestados no cometimento do crime: desprezo pelos deveres a valores em causa e aproveitamento da confiança dos doentes e familiares na situação de internamento;

- fins ou motivos que o determinaram: obter os objectos em ouro para os converter em dinheiro para as suas despesas;

- condições pessoais da arguida e situação económica: vivia com o ex-marido e filhas, estava a trabalhar e tinha dificuldades económicas;

- conduta anterior aos factos: tinha uma condenação por crime de furto também de pessoas que estavam a seu cargo;

- conduta posterior aos factos: a arguida confessou os factos e manifesta arrependimentos, no estabelecimento prisional não regista anomalias e recebe visitas e apoio dos filhos.

E na ponderação de todos estes fatores e circunstâncias, o Tribunal a quo decidiu aplicar à recorrente as seguintes penas parcelares:

- três anos e nove meses de prisão, numa moldura penal aplicável de prisão de três a quinze anos, por cada um dos sete crimes de roubo, agravados, em que foram ofendidos: I - DD, II - EE, III - FF, IV - GG, V - HH, IX - II, e XI - JJ;

- três anos e seis meses de prisão, numa moldura penal aplicável de prisão de três a doze anos, pelo crime de ofensa à integridade física grave qualificada, relativo ao ofendido II - EE;

- três anos e seis meses de prisão, numa moldura penal aplicável de prisão de três a quinze anos por cada um dos dois crimes de roubo respeitantes aos ofendidos X - KK e XVII - LL;

- um ano e seis meses de prisão, numa moldura penal de prisão de um a oito anos, por cada um dos quatro crimes de peculato, respeitantes aos ofendidos VI - MM, VII - NN, VIII - OO e XII - PP;

- três anos e seis meses de prisão, numa moldura penal aplicável de prisão de três a doze anos, por cada um dos quatro crimes de ofensa à integridade física grave qualificada, respeitantes às ofendidas XIII - QQ, XIV - RR e XV - SS

- dez anos de prisão, numa moldura penal aplicável de prisão de oito a dezasseis anos, pelo crime de roubo, agravado pelo resultado morte, respeitante ao ofendido XVI - TT;

- um ano e seis meses de prisão, numa moldura penal de prisão de um mês a doze anos de prisão, pelo crime de branqueamento.

No cotejo da medida das penas parcelares concretamente aplicadas à recorrente com a penalidade abstracta prevista para cada um dos assinalados tipos legais de crime, verifica-se que foram, todas elas, fixadas em quantum muito próximo dos respectivos limites mínimos, assim se compreendendo porque é que não lhe suscitou a menor crítica a decisão recorrida, neste particular, da medida das penas parcelares.

Já no que concerne à determinação da pena única, atendeu e valorou o Tribunal a quo, como se lhe impunha, os factos e a personalidade do agente, em conjunto, e bem assim a moldura penal abstractamente aplicável, balizada pelos limites mínimo de 10 anos de prisão, a mais elevada das penas parcelares de prisão aplicadas, e máximo de 25 anos de prisão, correspondente à soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, com o limite, inultrapassável, de 25 anos, embora esse somatório atinja os 68 anos e 3 meses de prisão.

E na fundamentação da medida da pena única, o Tribunal a quo considerou o seguinte:

(…)

O referido critério para a individualização da pena única determina que sejam considerados “em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

É pacífico o entendimento de que, com tal asserção, se deve ter em conta, no dizer do Senhor Professor Figueiredo Dias, “a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão, e o tipo de conexão, que entre os factos concorrentes se verifique.

Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: no primeiro caso, não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.

De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.

A opção legislativa por uma pena conjunta pretendeu por certo traduzir, também a este nível, a orientação base ditada pelo artigo 40º, em matéria de fins das penas.

Sem que nenhum destes vectores se constitua em compartimento estanque, é certo que para o propósito geral-preventivo interessará antes do mais a imagem do ilícito global praticado, e para a prevenção especial contará decisivamente o facto de se estar perante uma pluralidade desgarrada de crimes, ou, pelo contrário, perante a expressão de um modo de vida.

Como expressa o Senhor Conselheiro Carmona da Mota, a pena conjunta situar-se-á até onde a empurrar o efeito “expansivo” sobre a parcelar mais grave, das outras penas, e um efeito “repulsivo” que se faz sentir a partir do limite da soma aritmética de todas as penas.

Ora, este efeito “repulsivo” prende-se necessariamente com uma preocupação de proporcionalidade, que surge como variante com alguma autonomia, em relação aos aludidos critérios da “imagem global do ilícito” e da personalidade do arguido; proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar no conjunto de todas elas.

No entanto, em princípio, os factores de determinação da medida das penas singulares não podem voltar a ser considerados na medida da pena conjunta (dupla valoração), muito embora, aquilo que à primeira vista possa parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá razão para invocar a proibição de dupla valoração.

Os crimes em causa apresentam intensa relação entre si, tendo em conta as semelhantes actuações da arguida, pelo que se pode afirmar como reconduzível a uma tendência ou até a uma “carreira” criminosa que vai muito além de uma mera pluriocasionalidade.

O que tudo apontará, neste caso, tendo em conta ainda a anterior condenação pelo crime de furto, para um forte “efeito expansivo” da pena mais grave, com a consequente aplicação de uma pena conjunta, um patamar firmemente acima da pena parcelar mais grave.

Tendo em conta que a pena mais grave é de dez anos e soma das demais é limitada pelos 25 anos, concretizando o cúmulo jurídico, nos termos dos alinhados critérios, deve fixar-se a pena única de dezassete anos de prisão.

(…)

Estes considerandos não podem ser encarados isoladamente, antes se deverão compreender na sistemática e lógica da decisão em que se inserem, por referência, naturalmente, à materialidade que resultou demonstrada, na dupla perspetiva da verificação dos factos e da personalidade da arguida, afigurando-se, por conseguinte, desprovida de razão a alegação da recorrente de que decisão que a afeta padece do vício de falta de fundamentação.

E o que dizer sobre a pretensão da recorrente para que a pena única deva ser bem inferior à aplicada (de 17 anos de prisão), e ademais suspensa na sua execução?

Como se refere, e muito bem, na resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público na 1ª Instância, (…) a medida da pena única aplicada é justa, proporcional e adequada, tendo em conta os concretos antecedentes criminais da arguida, o número de crimes em que foi condenada, a extrema gravidade dos factos pela mesma praticados sobre pacientes internados no ..., de onde resulta a frieza e indiferença da arguida perante o próximo, “atacando” aqueles pacientes enquanto sujeitos frágeis e vulneráveis e querendo ainda adensar esta sua vulnerabilidade fornecendo-lhes, de modo dissimulado, benzodiazepinas, para assim melhor garantir o sucesso das suas (diversas) investidas, as elevadas exigências de prevenção geral e especial, bem como as consequências advenientes dos crimes em causa, em especial a morte de um daqueles pacientes, em virtude dos fármacos que lhe foram ministrados pela arguida.

Por outro lado, é, como se sabe, legalmente inadmissível a suspensão da execução da pena de prisão aplicada à arguida, atentas a sua medida concreta, de 17 anos de prisão, e a norma do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, sendo que, de resto, só o limite mínimo da pena a considerar na realização do cúmulo jurídico de penas, 10 anos de prisão, correspondente à pena parcelar mais elevada das aplicadas no concurso – que a recorrente não questionou, não é demais lembrar – evidencia a mais completa irrazoabilidade da pretensão da recorrente quanto à suspensão da execução da pena.

9 Assim, por se entender que a decisão recorrida não padece do vício, por falta de fundamentação, que lhe assaca a recorrente, e que as penas que a esta foram aplicadas, parcelares (não impugnadas), e unitária, são adequadas, justas, proporcionais e conformes aos critérios definidores dos artigos 40.º, 71º e 77.º do Código Penal, acompanhando, por conseguinte, a posição do Ministério Público nas instâncias, emite-se parecer no sentido de dever ser julgado improcedente o recurso interposto pela arguida AA».

1.5. Foi cumprido o art. 417º, do CPP.

1.6. Com dispensa de Vistos, foi o processo à conferência.


***

2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. A matéria de facto provada é a seguinte:

1. Durante todo o ano de 2020 e até ao dia 28 de janeiro de 2021, data em que foi detida à ordem dos presentes autos, a arguida exerceu funções como copeira por conta do ..., no ... (...).

2. Nas suas atribuições incluía-se a distribuição da alimentação aos doentes, auferindo a arguida, mensalmente, cerca de 635 euros.

3. O ..., por sua vez, é uma pessoa coletiva de direito privado e de utilidade pública administrativa, sob tutela governamental.

4. Por força das funções exercidas, a arguida conhecia e tinha acesso a diversas enfermarias do hospital, circulando com liberdade, sob pretextos variados, mesmo em zonas do edifício onde não prestava serviço e tinha acesso direto aos doentes e à alimentação por estes ingerida.

5. Durante quase todo o ano de 2020 e até à data da prisão da arguida, foram impostas fortes restrições no acesso ao hospital, mormente à entrada e circulação de terceiros estranhos ao serviço, por força da pandemia por Covid 19, ficando os doentes particularmente isolados.

6. A arguida exercia as suas funções em vários serviços, todavia, até ao Verão de 2020 encontrava-se adstrita, maioritariamente, ao serviço de Cirurgia Cardiotorácica e, a partir daí, esteve adstrita, maioritariamente, ao Serviço de Urologia e Transplantação Renal (doravante SUTR) do ..., localizado no ..., cumprindo o turno das 13h30 às 22h.

7. No referido serviço de urologia e transplantação renal, composto por uma enfermaria de homens e uma enfermaria de mulheres, existem, predominantemente, doentes transplantados renais, doentes internados devido a processos infeciosos do enxerto renal e doentes a aguardar cirurgias ou em recobro, ou seja, doentes imunodeprimidos e numa condição de grande fragilidade física e psicológica.

8. A enfermaria de mulheres, inclusivamente, é uma unidade fechada, com código de entrada, a que só acedem alguns funcionários, entre os quais a arguida.

9. O serviço de alimentação é prestado, em cada turno, por uma única colaboradora.

Do modo de atuação

10. Durante o tempo em que exerceu as funções descritas, movida pelo propósito de obter maiores rendimentos e proveitos económicos necessários para os seus gastos pessoais, a arguida procurava apropriar-se de objectos em ouro, de doentes internados naquele hospital.

11. Nesse desígnio, a arguida selecionava vítimas mais vulneráveis e/ou com idade mais avançada, aproveitando a situação de enorme fragilidade física e dependência dos cuidados de terceiros que as doenças, por si só, já provocavam aos utentes;

12. Mas não se bastando com isso, em muitas outras situações, a arguida ainda administrava substâncias narcóticas às vítimas, por forma a causar nas mesmas um estado de entorpecimento e inconsciência que as colocasse na impossibilidade de resistirem às subtracções dos objectos que usavam.

13. Logrando a arguida, com isso, simultaneamente, não ser identificada pelas vítimas.

14. Para esse efeito, a arguida triturava, previamente, no seu domicílio, medicamentos, em especial “...”, mas também “...”; “...” e “UU”, reduzindo-os pó, o qual de seguida colocava num frasco, que transportava, na sua lancheira pessoal, para o local de trabalho, por forma a ser-lhe mais fácil e rápido diluí-los nas bebidas dos utentes.

15. Os aludidos medicamentos, que são benzodiazepinas, eram receitados à arguida ou a pessoas do seu círculo de relacionamento, como o respetivo companheiro, para toma, razão pela qual esta tinha noção do que era uma dose terapêutica e dos efeitos que a medicação surtia.

16. Bem sabendo que os mesmos provocariam, a quem os ingerisse em dose excessiva, sonolência extrema e prostração generalizada, podendo até acarretar perigo para a vida.

17. A arguida, quando iniciava o turno ou quando deambulava pelas enfermarias, verificava quais os utentes que ostentavam peças em ouro, procurando a melhor oportunidade para subtrair os objetos.

18. No início da tarde, a arguida subia até às enfermarias, com um carro de transporte próprio para servir o lanche, contendo, além do mais, três recipientes, com café, leite e chá – e munia-se também do frasco contendo os comprimidos (benzodiazepinas) reduzidos a pó.

19. Antes da distribuição do lanche, a arguida entrava nas enfermarias para perguntar a preferência de cada utente e só depois regressava para entregar o tabuleiro com as opções de cada um, que preparava junto ao carro que, propositadamente, deixava no corredor.

20. Quando tinha necessidade e oportunidade de entorpecer as vítimas, a arguida aproveitava essa ocasião para colocar e diluir, nos recipientes da bebida destas, uma quantidade aleatória dos medicamentos narcóticos em pó, mas superior a doses terapêuticas, para conseguir o efeito pretendido;

21. Após o que levava a bebida para os utentes, que as ingeriam no desconhecimento de que as mesmas continham benzodiazepinas e sem consentirem ou quererem tal ingestão.

22. Nessas situações, a arguida sabia que quando regressasse às enfermarias, para servir o jantar, a medicação já teria provocado o efeito que pretendia, ou seja, um estado de prostração ou confusão mental dos utentes, facto que esta aproveitava para se apropriar dos respectivos objectos em ouro, sem que eles disso se apercebessem ou o pudessem contrariar, dado o estado em que se encontravam.

23. Quando, por obstáculos alheios à sua vontade e domínio, não encontrava oportunidade para abordar as vítimas que tinha entorpecido, por vezes a arguida repetia, no dia seguinte ou em futura ocasião propícia, o procedimento.

24. A generalidade das vítimas melhor identificadas infra não tinha prescrição clínica para a administração de benzodiazepinas, nem a arguida tinha conhecimentos ou legitimidade para ministrar tais medicamentos em condições de segurança.

25. Com efeito, as benzodiazepinas para além de poderem provocar, nomeadamente, disartria, alterações da consciência, fraqueza, depressão respiratória, agitação ou hipotensão, em doses excessivas podem ser até ser letais, sobretudo se associadas a patologias pré-existentes e/ou quando não supervisionada a sua interação com outras terapêuticas.

26. Concretamente, a depressão respiratória pode conduzir a um estado de debilidade que incapacita os doentes de reagir a eventos como quedas, ou vómitos, com desfecho fatal;

27. Por seu turno, as benzodiazepinas são metabolizadas pelo fígado e expelidas através do sistema urinário, pelo que, em doentes cuja função renal esteja comprometida, os metabolitos permanecem mais tempo no organismo, prolongando o seu efeito.

28. Nos dias 4, 5, 16, 17 e 29 de outubro; 2, 3, 4, 27 e 29 de novembro; 1, 3, 4, 5, 6 e 7 de dezembro de 2020 e 21 de janeiro de 2021 a arguida cumpriu, sozinha, o turno da tarde, compreendido entre as 13h30 e as 22h no SUTR; no dia 23 de novembro de 2020 a arguida cumpriu o turno da tarde no ... piso (serviços “Gastro” e “Medicina Interna” e “Medicina E”); no dia 27 de Janeiro a arguida cumpriu o turno da tarde no serviço de Cirurgia A.

I - Ofendido DD

29. No dia 4 outubro de 2020, o ofendido DD estava internado no SUTR, na sequência de complicação pós-cirúrgica prostática, tendo no dedo anelar esquerdo duas alianças, uma em ouro amarelo e outra em ouro branco, bens esses de valor global não concretamente apurado, mas superior a 230 euros.

30. A arguida, que se encontrava ao serviço, apercebendo-se desse facto, usando o método supra descrito, colocou na bebida do lanche do ofendido uma quantidade indeterminada de benzodiazepinas, que este ingeriu sem disso ter noção.

31. Em sequência dessa ingestão, o ofendido perdeu a consciência, ficando num estado de confusão mental, totalmente privado das suas capacidades intelectuais e impossibilitado de utilizar o seu corpo e sentidos, não tendo noção ou memória do sucedido até à manhã do dia 6 de outubro de 2020.

32. Durante esse período, aproveitando a afetação das capacidades físicas e intelectuais e a situação de impossibilidade de resistência por si causada ao ofendido, a arguida, retirou-lhe as duas alianças, que fez suas.

33. No dia 08.10.2020 a arguida vendeu essas alianças, assim subtraídas, no estabelecimento “M... Unipessoal, Ld.ª”, sito na Avenida ..., em ..., pelo valor global de 230 euros.

II - Ofendido EE

34. No dia 13 de outubro de 2020, o ofendido EE, de 76 anos de idade, foi internado no SUTR, para realização de cirurgia prostática.

35. Já em recobro da cirurgia, o ofendido usava no dedo anelar esquerdo uma aliança comemorativa das bodas de ouro, em ouro amarelo, no valor de 375 euros, e um cordão em ouro de valor não apurado.

36. No dia 16 de outubro, a arguida, que se encontrava ao serviço, apercebendo-se desse facto, usando o método supra descrito, colocou numa bebida do ofendido uma quantidade indeterminada de benzodiazepinas, que este ingeriu sem disso ter noção.

37. Na sequência dessa ingestão, decorrido algum tempo, o ofendido apresentava confusão mental, sonolência e prostração, estado que provocou o adiamento da alta e a realização de exames complementares.

38. Nesse dia 16, a arguida, por razões alheias à sua vontade, não teve oportunidade de abordar o ofendido para lhe subtrair os bens em ouro pelo que, no dia seguinte, 17 de outubro de 2020, reiterando a sua resolução, repetiu o procedimento, colocando numa bebida do ofendido uma quantidade indeterminada de benzodiazepinas que este ingeriu sem disso ter noção.

39. Na sequência dessa ingestão, decorrido algum tempo, o ofendido apresentava confusão mental e descoordenação física, ao ponto de a esposa, que o visitou, cerca das 18h00, lhe ter retirado, para acautelar, o cordão de ouro e um relógio de pulso, deixando-lhe, contudo, a aliança.

40. Por volta da hora do jantar, o ofendido perdera a consciência, aparentado ter desmaiado, ficando totalmente privado das suas capacidades intelectuais e impossibilitado de utilizar o seu corpo e sentidos, só recuperando a razão no dia 18 de outubro de 2020, não se recordando do sucedido do que sucedera.

41. Durante esse período, aproveitando a afetação das capacidades físicas e intelectuais e a situação de impossibilidade de resistência por si causada, a arguida retirou a aliança ao ofendido, único objeto de valor que não tinha sido acautelado, a qual fez sua, vendendo-a nas condições referidas infra.

42. O ofendido não teve perceção nem guardou memória do sucedido nada, só regressando ao seu estado normal quando cessou o efeito dos medicamentos.

43. Por tudo isto, o ofendido já não teve alta, como estava inicialmente previsto, no dia 17 de outubro, o que só sucedeu no dia 19 seguinte, sendo o episódio que o acometeu de tal forma inesperado que chegou a equacionar ter tido um enfarte.

III - Ofendido FF

44. No dia 17 de outubro de 2020, o ofendido FF estava internado no SUTR, em recobro de cirurgia prostática.

45. Nessa ocasião o ofendido usava no dedo duas alianças, uma em ouro amarelo e outra em ouro branco com brilhantes, nos valores de 500,00 euros e 600,00 euros, respetivamente.

46. A arguida, que se encontrava ao serviço, apercebendo-se desse facto, usando o método supra descrito, colocou numa bebida que deu ao ofendido uma quantidade indeterminada de benzodiazepinas, que este ingeriu sem disso ter noção.

47. A partir do final do dia 17, em virtude dessa ingestão, o ofendido perdeu a consciência, ficando totalmente privado das suas normais capacidades, e impossibilitado de utilizar o seu corpo e sentidos, mantendo-se em estado de confusão durante todo o dia 18 de outubro 2020.

48. Durante esse período, aproveitando a afetação das capacidades físicas e intelectuais e a situação de impossibilidade de resistência por si causada ao ofendido, a arguida, retirou-lhe as duas alianças, que fez suas, a qual fez sua, vendendo-a nas condições referidas infra.

49. O ofendido não teve perceção ou memória do sucedido, só regressando ao seu estado normal quando cessou o efeito dos medicamentos.

IV - Ofendida GG

50. Entre os dias 24 de outubro e 3 de novembro, a ofendida GG, a qual é doente epilética e imunodeprimida, transplantada desde 2017, estava internada no SUTR, na sequência de infeção do enxerto renal.

51. Nessa ocasião, a ofendida tinha no dedo anelar esquerdo, bem apertada e de difícil remoção, a aliança de casamento, em ouro amarelo, bem de valor não concretamente apurado, mas superior a 102 euros.

52. A arguida, em data não concretamente apurada desse período, mas possivelmente durante o turno do dia 29 de outubro ou dos dias 2, 3 ou 4 de novembro, apercebendo-se desse facto e da situação de especial debilidade da ofendida, usando o método supra descrito, colocou numa bebida desta última, uma quantidade indeterminada de benzodiazepinas, que esta ingeriu sem disso ter noção.

53. Na sequência dessa ingestão, a ofendida perdeu a consciência, ficando totalmente privada das suas capacidades intelectuais, e impossibilitado de utilizar o seu corpo e sentidos.

54. Ao ponto de não se aperceber de diversas chamadas que o marido lhe efetuou nem atender as mesmas, ao contrário do que acontecia nos outros dias, levando a que este contactasse os serviços do hospital para apurar do seu estado.

55. Nessas circunstâncias, aproveitando a afetação das capacidades físicas e intelectuais e a situação de impossibilidade de resistência por si causada à ofendida, a arguida, retirou-lhe a aliança, que fez sua, sem que a ofendida tivesse noção ou memória do sucedido.

56. A arguida vendeu a aliança subtraída, nas circunstâncias referidas infra.

V - Ofendido HH NUIPC 46/21....

57. No dia 04.11.2020, o utente HH, com 82 anos de idade, estava internado no SUTR, na sequência de cirurgia renal, usando no dedo anelar duas alianças, uma em ouro branco e outra em ouro amarelo com ouro branco na parte central, comemorativas dos 25 e 50 anos de casado, no valor global de cerca de 500 euros.

58. A arguida, que se encontrava ao serviço, apercebendo-se desse facto, usando o método supra descrito, colocou na bebida do lanche do ofendido uma quantidade indeterminada de benzodiazepinas, que este ingeriu sem disso ter noção.

59. Em sequência dessa ingestão, o ofendido ficou num estado de confusão mental, ficando totalmente privado das suas capacidades intelectuais e impossibilitado de utilizar o seu corpo e sentidos, não se segurando em pé nem tendo noção ou memória do sucedido até à manhã do dia 5 de novembro de 2020.

60. Nessas circunstâncias, aproveitando a afetação das capacidades físicas e intelectuais e a situação de impossibilidade de resistência por si causada ao ofendido, a arguida, retirou-lhe as alianças, que fez suas - vendendo-as nas condições referidas infra.

61. Só no dia 05 de novembro de 2020, passado o efeito da medicação, é que o ofendido se apercebeu de que lhe tinham retirado as alianças.

VI - Ofendido MM

62. Entre o dia 1 e o dia 5 de novembro de 2020, o ofendido MM, de 70 anos de idade, o qual era doente oncológico e sofria de demência, esteve internado no SUTR, na sequência de hemorragia e agravamento geral do estado de saúde.

63. Nessas circunstâncias, o ofendido, entretanto falecido, tinha no dedo anelar esquerdo uma aliança de casamento em ouro amarelo, tendo sobreposta uma aliança/aro em ouro branco, esta comemorativa dos 25 anos de casados, com a gravação, no interior, das datas, respetivas, de 23-11-74 e 23-11-99, de valor não concretamente apurado, mas superior a 102 euros.

64. Em dia indeterminado, no referido intervalo temporal, acedendo à enfermaria em virtude das suas funções, a arguida, apercebeu-se desse facto, bem como da circunstância do ofendido ser pessoa demente, sem noção da realidade e em estado de saúde muito débil.

65. Aproveitando essa especial debilidade da vítima, a arguida subtraiu-lhe, retirando-lha do dedo, a referida aliança, que fez sua.

66. No dia 5 de novembro de 2020, a arguida vendeu a aliança, assim subtraída, no estabelecimento “Ilustre R... Ld.ª”, sito na Rua ..., em ..., a troco de numerário em dinheiro, que utilizou em seu proveito.

67. Na mesma ocasião, a arguida vendeu também, além do mais, as alianças que subtraíra aos ofendidos HH, GG, FF e EE.

VII - NN

68. Entre os dias 9 de novembro até 2 de dezembro de 2020, a ofendida NN esteve internada no ..., nos serviços de “Cirurgia” e de “Medicina E”, sucessivamente, apresentando já sinais de demência.

69. Por ocasião do internamento, esta, com 91 anos, entretanto falecida, usava uns brincos em ouro, melhor retratados na foto de fls. 270 dos autos, de valor não concretamente apurado mas não inferior a 102 euros.

70. No dia 23 de novembro, a arguida, que se encontrava ao serviço, acedendo à enfermaria em virtude das suas funções, apercebeu-se desse facto, bem como da circunstância da ofendida apresentar sinais de demência e um estado de saúde muito débil.

71. Nessa ocasião, aproveitando essa especial debilidade da vítima, a arguida subtraiu-lhe os brincos, retirando-lhos das orelhas, ato em que partiu o encaixe dum fecho, fazendo-os seus.

72. No dia 25 de novembro de 2020 a arguida deslocou-se ao estabelecimento “M... Unipessoal, Ld.ª” em ..., aí tendo vendido, para fundição, os brincos subtraídos à ofendida, com 2,62g, recebendo o valor de 62,64 euros em dinheiro, correspondente à cotação de ouro usado com dedução de margem de comercialização, logo inferior à cotação do ouro – montante esse que utilizou em seu proveito.

VIII - OO

73. Entre os dias 20 e 24 de novembro de 2020, a ofendida OO, com 84 anos de idade e mobilidade reduzida, estava internada no ..., no serviço de “Medicina Interna”, com insuficiência respiratória aguda, encontrando-se debilitada e dependente de cuidados de outras pessoas.

74. Por ocasião do internamento, a mesma usava, no dedo anelar esquerdo, um anel em ouro branco com pérola e pequenos brilhantes, uma aliança de casamento em ouro e uma aliança comemorativa dos 50 anos de casamento, estas com as gravações alusivas às datas dos eventos, respetivamente, de 14.09.1961 e de 14.09.2011 e à identificação do seu falecido marido, VV, objetos estes melhor retratados nas fotos de fls. 484 e 485 dos autos.

75. No dia 23 de novembro, a arguida, que se encontrava de serviço, acedendo à enfermaria, em virtude das suas funções, apercebeu-se desses factos.

76. Aproveitando a dependência de cuidados de terceiros e especial debilidade da vítima, a arguida abordou aquela, que estava acamada, mas lúcida, retirando-lhe os anéis enquanto lhe dizia que tinha que os remover.

77. Apanhada de surpresa com a abordagem determinada da arguida, mas julgando que esta cumpria alguma ordem do hospital e que os objetos ficariam guardados para lhe serem devolvidos no momento da alta, a ofendida não colocou qualquer objeção, deixando que a arguida lhos retirasse das mãos.

78. Só no momento da alta é que a ofendida se apercebeu que os bens descritos lhe tinham sido subtraídos.

79. A arguida fez seus os objetos assim subtraídos sendo que, no dia 25 de novembro de 2020 se deslocou ao estabelecimento “M... Unipessoal, Ld.ª” sito na Avenida ..., em ..., aí tendo vendido, para fundição, os anéis subtraídos à ofendida, recebendo o valor global de 194,75 euros em dinheiro, que utilizou em seu proveito.

80. Por lapso ou outro motivo não apurado, na declaração de venda foi feita constar data de gravação nas alianças com alusão ao mês “8”, ao invés de mês “9”.

IX - II

81. No dia 26 de novembro de 2020, por falta de vaga na ortopedia, o ofendido II, de 77 anos de idade, estava internado no SUTR, na sequência de uma cirurgia de urgência, após queda com fratura no braço direito, encontrando-se debilitado física e emocionalmente.

82. Nessa ocasião o ofendido usava uma aliança de casamento lisa, em ouro amarelo, no valor de cerca de 215 euros.

83. No dia 27 de novembro, a arguida, que se encontrava ao serviço, apercebendo-se desse facto, usando o modo de atuação já descrito, colocou numa bebida que deu ao ofendido uma quantidade indeterminada de benzodiazepinas, que este ingeriu sem disso ter noção.

84. Algum tempo decorrido, em virtude dessa ingestão, o ofendido ficou em estado de confusão mental, ficando totalmente privado das suas normais capacidades intelectuais e impossibilitado de utilizar o seu corpo e sentidos.

85. Durante esse período, antes das 20h45, aproveitando a afetação das capacidades físicas e intelectuais e a situação de impossibilidade de resistência por si causada ao ofendido, a arguida, retirou-lhe a aliança, que fez sua.

86. A arguida vendeu o objeto em causa em circunstâncias e por valor não concretamente apurados.

87. O ofendido só recuperou o seu normal estado de consciência e verificou o desaparecimento da aliança quando o efeito da medicação passou, não tendo qualquer memória ou noção do que lhe sucedeu.

X - Ofendida KK (NUIPC 1118/20....)

88. No dia 28 de novembro de 2020, a ofendida KK, com 80 anos de idade, estava internada no SUTR, sendo o seu estado de saúde muito debilitado, ao ponto de não se levantar sozinha da cama.

89. Nessas circunstâncias, a ofendida KK tinha colocados, nas orelhas, uns brincos de ouro branco, com pequenas pedras, bem como, no dedo anelar direito, a aliança de casamento, bens estes de valor global não concretamente apurado, mas não inferior a 195 euros.

90. A arguida, encontrando-se ao serviço, apercebeu-se desses factos.

91. Com o propósito de se apoderar de tais bens, por volta da hora do jantar, aproveitando-se do facto de não haver outros funcionários nas imediações, a arguida abordou a ofendida, debruçando-se sobre a mesma e começando a retirar-lhe os brincos.

92. Perante tal atitude, a ofendida KK, que se encontrava a falar ao telemóvel com o marido, disse à arguida, por várias vezes, que não queria que ela lhe tirasse os brincos, tentando afastar-lhe as mãos, e resistindo dentro do limite que as suas forças lhe permitiam.

93. Contudo, a arguida, indiferente à vontade daquela e valendo-se da sua superioridade física, retirou-lhe os brincos contra a sua vontade, com o que lhe causou dor nas orelhas, retirando-lhe também a aliança de casamento, em ouro, que tinha no dedo.

94. Para camuflar a sua atuação e intenção, a arguida simulou que estava a retirar tais objetos para os guardar na gaveta da mesa de cabeceira, tendo de imediato aberto a mesma e fingido, provocando barulho, a colocação de objetos, após o que abandonou o local.

95. Contudo, a arguida manteve na sua posse os referidos objetos, que fez seus, vendendo-os posteriormente, em circunstâncias e por valor não concretamente apurados.

96. A ofendida não acreditou na justificação da arguida, mas por não se conseguir movimentar e pela falta de forças, não só não conseguiu impedir a atuação daquela, como não conseguiu ir em sua perseguição ou verificar de imediato o conteúdo da gaveta, o que só sucedeu assim que um enfermeiro surgiu na enfermaria.

XI - Ofendida JJ

97. No final de novembro de 2020, a ofendida JJ, de 81 anos de idade, doente com insuficiência renal, estava internada no SUTR e, apesar de lúcida, estava dependente em termos de mobilidade, cuidados de higiene e alimentação.

98. Nessa ocasião a ofendida usava, no dedo do meio da mão esquerda, uma aliança de casamento, lisa, em ouro amarelo, de valor não concretamente apurado, mas superior a 102 euros a qual, ao longo dos anos, se foi cravando de tal forma no dedo que a própria não o conseguia remover.

99. No dia 30 de novembro, a arguida, apercebendo-se desse facto, usando o modo de atuação já descrito, colocou numa bebida que deu à ofendida uma quantidade indeterminada de benzodiazepinas, que esta ingeriu sem disso ter noção.

100. Algum tempo decorrido, em virtude dessa ingestão, a ofendida entrou num estado de alheamento mental e amnésia, ficando totalmente privada das suas normais capacidades intelectuais e impossibilitado de utilizar o seu corpo e sentidos.

101. Nessas circunstâncias, no final do dia, aproveitando a afetação das capacidades físicas e intelectuais e a situação de impossibilidade de resistência por si causada à ofendida, a arguida, arrancou-lhe a aliança, socorrendo-se de um lubrificante, tal era a forma como a aliança estava cravada.

102. A arguida fez da aliança assim subtraída coisa sua, dando-lhe destino não apurado.

103. Não obstante o grande esforço que foi necessário para arrancar a aliança, que estava cravada no dedo da ofendida, esta não teve noção do sucedido do que sucedeu, tal foi o seu estado de alheamento, só recuperando a razão no dia seguinte pela manhã, verificando que a aliança tinha sido subtraída, facto que, de imediato reportou.

XII – Ofendida PP

104. No dia 2 de dezembro de 2020, a ofendida PP, de 89 anos, a qual era doente dependente nos autocuidados, entretanto já falecida, estava internada no SUTR.

105. Nessas circunstâncias, a ofendida tinha um fio em ouro, bem de valor não concretamente apurado, mas superior a 102 euros.

106. Nessa altura, a arguida, que se encontrava ao serviço, em virtude das suas funções, apercebeu-se desse facto, bem como da circunstância da ofendida ser pessoa em estado de saúde muito débil.

107. Aproveitando essa especial debilidade da vítima, a arguida subtraiu-lhe o fio de ouro, sem que esta disso se apercebesse.

108. A arguida fez seu o objetos assim subtraído, ao qual deu destino não apurado.

XIII - Ofendida QQ

109. No dia 4 de dezembro de 2020, a ofendida QQ, doente diabética e transplantada, em pleno processo infecioso do enxerto renal, encontrava-se internada na enfermaria de mulheres no SUTR dos ..., sendo o seu estado de saúde frágil.

110. Encontrando-se a arguida ao serviço e tendo verificado que a mesma usava objetos em ouro de valor não apurado, mas superior a 102 euros com o propósito de deles se apoderar, à hora do lanche, colocou na bebida solicitada pela ofendida uma dose incerta, mas elevada, de benzodiazepinas, que esta ingeriu sem de tal se aperceber.

111. Com isso, a arguida provocou na ofendida sonolência extrema, prostração, lentificação motora, e um estado de confusão mental traduzido em atos e discurso sem nexo, acentuando o risco de queda, efeito que se iniciou na parte final do dia 4 de dezembro e se prolongou pelos dias 5 e 6 de dezembro.

112. A arguida só não logrou apoderar-se dos bens em ouro da ofendida, por razões alheias à sua vontade, e por, entretanto, os enfermeiros os terem recolhido e guardado em cofre.

113. Tendo sido efetuada, no dia 5, colheita de sangue para análise para quantificação de benzodiazepinas, por suspeita de intoxicação, veio a ser conhecido o resultado positivo, com os valores de 100ng/ml.

114. A ofendida só regressou ao seu estado normal de pois de passar o efeito da medicação, que se manteve presente no organismo por vários dias, não guardando memória nem tendo noção do sucedido.

115. A administração de elevada dose de benzodiazepinas nas circunstâncias descritas, associadas às patologias pré-existentes da ofendida e sem supervisão da sua interação com outras terapêuticas era apta, além do mais, a causar perigo para a vida da ofendida.

XIV - Ofendida RR

116. No dia 4 de dezembro de 2020, a ofendida RR, encontrava-se internada no mesmo quarto da ofendida QQ, na enfermaria de mulheres do SUTR dos ..., tratando-se duma doente transplantada, com histórico de realização de hemodiálise desde 2017, estando com processo infecioso do enxerto renal.

117. Encontrando-se a arguida ao serviço e tendo verificado que a mesma ostentava objeto em ouro de valor não apurado, mas superior a 102 euros, com o propósito de deles se apoderar, à hora do lanche, colocou na bebida solicitada uma dose incerta, mas elevada, de benzodiazepinas, que a ofendida ingeriu sem de tal se aperceber.

118. Com isso, a arguida provocou na ofendida sonolência extrema, prostração, lentificação motora, e um estado de confusão mental traduzido em atos e discurso sem nexo, acentuando o risco de queda, efeito que se iniciou na parte final do dia 4 de dezembro e se prolongou pelos dias 5 e 6 de dezembro.

119. A arguida só não logrou apoderar-se dos bens em ouro da ofendida, por razões alheias à sua vontade, e por, entretanto, os enfermeiros os terem recolhido e guardado em cofre.

120. Tendo sido efetuada, no dia 5, colheita de sangue para análise para quantificação de benzodiazepinas, por suspeita de intoxicação, veio a ser conhecido o resultado positivo, com os valores de 95ng/ml.

121. A ofendida só regressou ao seu estado normal de pois de passar o efeito da medicação, que se manteve presente no organismo por vários dias, não guardando memória nem tendo noção do sucedido.

122. A administração de elevada dose de benzodiazepinas, nas circunstâncias descritas, associadas às patologias pré-existentes da ofendida e sem supervisão da sua interação com outras terapêuticas era apta, além do mais, a causar perigo para a vida da ofendida.

XV - Ofendida SS

123. No dia 20 de janeiro de 2021, a ofendida SS, de 78 anos de idade, a qual é insuficiente renal com necessidade de realização de hemodiálise, encontrava-se internada na enfermaria de mulheres do SUTR, por ter sido submetida, dias antes, a uma cirurgia de amputação de dois dedos do pé direito.

124. Nessa altura, usava, no dedo anelar esquerdo, dois anéis em ouro, um dos quais com pedra verde, com valor global não apurado, mas superior a 102 euros, facto que foi detetado pela arguida quando entrou ao serviço.

125. A arguida, com o intuito de se apoderar de tais bens, usando o supra descrito modo de atuação, colocou numa bebida do lanche da ofendida uma quantidade indeterminada, mas elevada, de benzodiazepinas, mais concretamente, ..., que esta ingeriu sem disso ter noção.

126. Mais tarde a ofendida foi transportada para a hemodiálise, prostrada e sonolenta, só despertando após estímulos vigorosos, de tal modo que, cerca das 22h34, foi pedida, pela médica de serviço, análise para quantificação de benzodiazepinas, por suspeita de intoxicação, resultado que veio a ser conhecido no dia seguinte, sendo positivo, com os valores de 56ng/ml.

127. No dia seguinte, 21.01.2021, pelas 11h47, da manhã a ofendida ainda se mostrava lentificada, sob o efeito das benzodiazepinas.

128. Como no dia 20, por razões alheias à sua vontade, a arguida não teve oportunidade de abordar a ofendida para lhe subtrair os bens em ouro, no dia 21 de janeiro de 2021, renovando a sua resolução, repetiu o procedimento, colocando numa bebida do lanche da ofendida nova quantidade indeterminada, mas elevada, de benzodiazepinas, mais concretamente de ..., que esta ingeriu sem disso ter noção.

129. Em consequência e algum tempo após essa ingestão, a ofendida perdeu a consciência, ficando totalmente privada das suas capacidades intelectuais e impossibilitado de utilizar o seu corpo e sentidos, tombando na cama como que desmaiada.

130. À hora de jantar, a arguida encaminhou-se na direção do quarto da ofendida, com o intuito de lhe subtrair os objetos em ouro, ciente de que, pela ação por si realizada, esta já estaria desprovida das respetivas capacidades físicas e intelectuais e em situação de impossibilidade de resistência – o que de facto se verificou.

131. Contudo, ao chegar à entrada do quarto, a arguida apercebeu-se de que estava a ser seguida pelo enfermeiro ..., limitando-se a sinalizar-lhe a necessidade de ser prestado socorro à ofendida SS, a qual estava tombada na cama, inconsciente e em risco de queda.

132. De imediato o enfermeiro ... e a auxiliar de serviço acorreram a socorrer e reposicionar a ofendida, obstando, assim, a que a arguida se apoderasse de quaisquer bens, facto esse alheio à sua vontade.

133. Contudo, esta ação deu à arguida margem de manobra para abordar o ofendido TT, nos termos que de imediato se descrevem.

134. Nesse dia, a ofendida SS foi submetida a segunda colheita para quantificação de benzodiazepinas, por suspeita de intoxicação, resultado que veio a ser conhecido no dia seguinte, sendo positivo, com os valores de 67 ng/ml.

135. Na tabela terapêutica da ofendida estava prevista apenas a administração de “... 15 mg” em situação de SOS.

136. A administração de ... nas circunstâncias descritas, associadas às patologias pré-existentes da ofendida e sem supervisão da sua interação com outras terapêuticas era apta, além do mais, a causar perigo para a vida da ofendida.

XVI - Ofendido TT (NUIPC 114/21....)

137. No mesmo dia 21 de janeiro de 2021, o ofendido TT, encontrava-se internado no SUTR, tendo colocado no pescoço um fio em ouro, com uma medalha de pescador e uma medalha de signo “...”, bens no valor de cerca de 828,90 euros.

138. O ofendido TT fora sujeito a transplante renal em 2018, por rins não funcionantes, tendo histórico de hemodiálise nos 5 anos anteriores.

139. Por via disso, estava sujeito a medicação imunossupressora, obrigando ao rigoroso ajuste e controlo de qualquer outra medicação.

140. Para além disso sofria de hipertensão arterial e dislipidemia, tendo anterior diagnóstico, em 2018, de carcinoma vesical de baixo grau de malignidade;

141. Fora internado no dia 20.01.2021 para avaliação e estudo face à frágil condição de saúde, necessitando de oxigeno terapia à entrada, por baixa saturação de O2, o que traduz patologia respiratória.

142. No dia 21.01.2021 o ofendido registava valores de creatinina muito elevados (3,06 para valores de referência de 0,72-1,18) indicadores de insuficiência do rim transplantado.

143. Na sua tabela terapêutica não estava previsto o ..., o qual é uma benzodiazepina de rápida absorção, metabolizada a nível hepático e eliminada pelos rins.

144. Desaconselhada, segundo alguns estudos científicos, em caso de patologia pulmonar, e relativamente mais tóxica do que outras benzodiazepinas.

145. Nesse dia, seguindo o modo de atuação e com o intuito já descritos, a arguida, que se encontrava de serviço, colocou na bebida do lanche do TT (tal como fez em relação à bebida da ofendida SS), uma dose não concretamente apurada de ..., mas que poderá compreender-se no intervalo entre as 3g e as 5 g.

146. Em consequência dessa ingestão, algum tempo após o ofendido perdeu a consciência, ficando totalmente privado das capacidades intelectuais, e impossibilitado de utilizar o seu corpo e sentidos, perdendo a noção da realidade que o rodeava, tombando na cama, em risco de queda.

147. À hora do jantar, a arguida conseguiu uma oportunidade para entrar sozinha no quarto do ofendido TT, enquanto o enfermeiro ... e a auxiliar acorreram ao quarto da ofendida SS, conforme descrito.

148. Nessa ocasião, aproveitando o estado de total prostração, a afetação das capacidades físicas e intelectuais e a situação de impossibilidade de resistência por si causada ao ofendido, a arguida, retirou do pescoço de TT o fio em ouro, e a medalha redonda, também em ouro, representativa do signo ....

149. Não obstante o estado de inconsciência do ofendido, que não logrou colocar-lhe qualquer oposição, com a precipitação causada pelo receio de ser surpreendida pelo enfermeiro ou pela auxiliar, a arguida deixou cair na cama do doente a outra medalha, representativa dum pescador.

150. Logo de seguida, a arguida simulou sentir-se indisposta, abandonado o serviço mais cedo.

151. A arguida fez seus os objetos assim subtraídos, guardando-os na sua residência, onde vieram a ser apreendidos, no dia 28.01.2021.

152. Na sequência da ingestão das benzodiazepinas o estado de saúde do ofendido entrou em desequilíbrio impossível de reverter mesmo com terapêutica adequada.

153. Durante todo o dia 22 o ofendido manteve-se asténico, por vezes agitado e não orientado, até que, pelas 02h00 do dia 23 de janeiro de 2021 entrou em dispneia e hipotensão, tendo feito paragens cardiorrespiratórias, a última das quais sem reanimação.

154. O ofendido faleceu no dia .../.../2021, pelas 03h00, em resultado da ingestão de ... administrado pela arguida e no contexto das suas patologias pré-existentes associadas.

155. Não sendo detetada, no exame ‘post mortem’, efetuado, uma outra causa concreta de morte.

XVII – Ofendido LL

156. No dia ... de janeiro de 2021, o ofendido LL, com 86 anos de idade, deu entrada no serviço de urgência do polo ..., na sequência de queda, sendo algaliado e imobilizado com um halo de tração gravitacional, por suspeita de lesão ao nível da cervical e necessidade de intervenção cirúrgica (fls. 236 Apenso I).

157. O mesmo foi internado no serviço de “Cirurgia A”, estando lúcido, mas completamente imobilizado.

158. No momento do internamento, o ofendido usava, no dedo anelar esquerdo, duas alianças, uma em ouro amarelo, lisa, com a gravação “... 28-02-959”, alusiva à data de casamento e à esposa, WW, e a outra aliança, em ouro, lisa, com a gravação “... 28-2-84” alusiva aos 25 anos de casamento, objetos estes de valor global não inferior a 246,50 euros.

159. No dia ... de janeiro, de 2021, a arguida foi colocada a prestar serviço em apoio às enfermarias de “Cirurgia A/B” no turno da tarde.

160. Devido ao exercício das suas funções e em conversa com uma enfermeira de serviço, a arguida apercebeu-se da situação de extrema debilidade e imobilidade física em que o mesmo se encontrava.

161. A hora não apurada do final do dia, aproveitando uma ocasião sem a presença de terceiros, a arguida destapou as mãos do ofendido, que estavam dentro da roupa de cama, procurando objetos de que se pudesse apoderar, tendo visto as alianças em ouro, as quais eram de difícil remoção do dedo.

162. De imediato, a arguida começou a retirar-lhe as alianças, usando a força física, face à forma como as alianças estavam cravadas no dedo.

163. De imediato o ofendido opôs-se à atuação da arguida, tentando puxar as mãos das suas.

164. Todavia, em face da condição física do ofendido, o mesmo não conseguiu vencer a arguida, a qual, usando a sua superioridade física, continuou a puxar as alianças até lhas retirar, fazendo-as suas.

165. Pelas 06:31 horas do dia 28.01.2021 a equipa de enfermagem comunicou o óbito do ofendido.

166. A arguida guardou os objetos assim subtraídos na sua residência, onde vieram a ser apreendidos, no dia 28.01.2021.

167. Durante todo o ano de 2020 a arguida subtraiu aos ofendidos já identificados e a outros doentes internados não identificados, através do mesmo modo de atuação, diversos objetos em ouro.

168. Por forma a poder usufruir do valor correspondente aos bens assim obtidos com a prática de crimes de roubo e de peculato, e de modo a evitar que os objetos fossem identificados, ao longo do ano de 2020 a arguida vendeu os objetos em ouro para fundição, em diversas ourivesarias de ....

169. Nessas circunstâncias, a arguida declarava que os objetos lhe pertenciam, convertendo, em dinheiro, os bens em ouro obtidos e forma ilícita.

170. Por vezes a arguida tinha o cuidado de, no mesmo dia, dividir as vendas dos bens subtraídos por mais de que um estabelecimento, por forma a não levantar suspeitas – como sucedeu no dia 28.08.2020, em que a arguida vendeu no estabelecimento “M... Unipessoal, Ld.ª” diversos objetos em ouro por si subtraídos, recebendo o preço de 520€ em numerário, e num outro estabelecimento de venda de objetos em ouro, de nome “C... Ld.ª”, vendeu dois anéis por si subtraídos, recebendo o preço de 220 euros em numerário.

171. Para além disso, nos atos de venda, a arguida fornecia, rotativamente, por vezes com diferença de poucos dias, moradas diferentes, designadamente na Urbanização ... ou na Rua ..., só numa ocasião tendo fornecido a sua morada à data da prisão, sita na Rua ....

172. No ano de 2020, e apesar de durante alguns meses tais estabelecimentos estarem encerrados, a arguida concretizou, pelo menos, 13 vendas de objetos em ouro, que ascendem ao valor global de 3.519,93 euros em numerário, (correspondentes a 130,20gr de ouro), que a mesma usou em proveito próprio, através da compra de bens de consumo, disseminando-o no circuito económico legítimo.

173. No dia ... de janeiro de 2021, no seu local de trabalho, a arguida detinha, na respetiva lancheira, nomeadamente:

173.1 - Um frasco abastecido com ... reduzido a pó, destinado a administrar a novas vítimas;

173.2- 11 onze comprimidos ..., intactos;

173.3 - Um alicate de corte com inscrição da marca "Ante".

174. No dia ... de janeiro de 2021, na sua residência sita na Rua ..., ..., a arguida detinha, além do mais:

174.1 - 1 frasco plástico transparente com tampa roxa, contendo no seu interior o seguinte: 3 alianças em ouro amarelo de valor global não inferior a 380,30 euros; 1 anel em ouro amarelo, com pedra azul de valor não inferior a 46,70 euros; 1 anel barbela em ouro amarelo de valor não inferior a 95,85 euros; 1 fio em ouro, partido, com cerca de 67 cm de comprimento, de valor não inferior a 255,10 euros; 1 medalha redonda em metal amarelo, com figura de ..., de valor não inferior a 44,75 euros, subtraídos a pessoas e em circunstâncias não identificadas;

174.2 - 2 alianças, uma em ouro amarelo, lisa, com a gravação “... 28-02-959”, e outra em ouro branco, lisa, com a gravação “... 28-2-84”, subtraídas ao ofendido LL;

174.3 - Um fio em ouro, com uma medalha de signo “...”, bens subtraídos ao ofendido TT;

174.4 - 2 caixas completas de “...”, 1 caixa de “... 10mg” com um blister encetado, contendo 17 comprimidos e 1 caixa completa de “...”;

174.5. 1 caixa de “... 1mg”, encetada, contendo dois blisters completos; 1 caixa de “...”, encetada, com dois blisters; 1 caixa de “... 10mg” com um blister encetado, contendo 16 comprimidos; 1 caixa de “...”, contendo um blister com seis comprimidos e duas guias de tratamento/receitas, com o número  ...02, datadas de 20/11/2020 e por si tituladas.

175. A arguida agiu, da forma descrita, sempre, livre, voluntária e conscientemente.

176. Com a intenção de explorar a situação de especial debilidade em que as vítimas se encontravam, por força da idade e/ou das doenças de que padeciam aproveitando a vulnerabilidade e dependência de cuidados de terceiros que o internamento em meio hospitalar gerava e o acesso próximo às vítimas que as suas concretas funções propiciavam;

177. E com a intenção, nalguns casos, de colocar as vítimas em situação de impossibilidade de resistirem e de a denunciarem, mediante a administração não consentida e dissimulada de benzodiazepinas, para tal causando-lhes ofensas à integridade física graves pela afetação das capacidades intelectuais e da possibilidade de utilização do corpo e dos sentidos;

178. Bem sabendo dos riscos associados à ingestão excessiva de tais medicamentos;

179. ou com a intenção, noutros casos, de usar da sua superioridade física sobre doentes imobilizados;

180. sempre com o intuito de se apropriar, contra a vontade das vítimas, de objetos em ouro às mesmas pertencentes;

181. agindo de modo premeditado, reiterado, insidioso, indiferente às consequências que a sua atuação causava nas vítimas bem sabendo que violava frontalmente os deveres funcionais que se lhe colocavam de cuidar e proteger os utentes;

182. sempre agiu livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de dissimular a origem e proveniência das vantagens assim obtidas, convertendo-as em dinheiro que depois usava em despesas pessoais.

183. A arguida não se absteve das condutas descritas apesar de saber que as mesmas eram proibidas e punidas por lei penal.

184 - A arguida confessou integralmente e sem reservas os factos imputados e mostra arrependimento.

185 - A arguida AA foi julgada no processo comum singular nº 708/15...., do Juízo Local Criminal ..., onde foi condenada, por sentença de 15.07.2019, transitada em julgado em 30.092019, pela prática de um crime de furto simples (na forma continuada, de objetos em ouro, pertencentes a idosos para quem trabalhara), por factos ocorridos em 01.02.2015, na pena de 200 dias de multa à taxa diária de 5,50 euros; em 21.01.2021, tal pena foi declarada extinta, pelo pagamento, por referência a 31.12.2020.

186 - A arguida nasceu a .../.../1967, em ..., sendo a mais nova de seis filhos de um casal que subsistia dos proventos do trabalho do pai, sendo que a mãe se reformou por invalidez devido a problemas de saúde de que padecia.

187 - A arguida concluiu o 4.º ano de escolaridade, revelando desmotivação para o estudo.

188 - Aos 13 anos de idade, a arguida começou a trabalhar num restaurante próximo de sua casa, laborando posteriormente como cuidadora de idosos, empregada de limpeza e como cozinheira.

189 - A arguida casou aos 17 anos de idade, tendo dois filhos, atualmente com 36 e 22 anos de idade; nessa altura, o casal ficou a residir em casa da mãe do cônjuge e, posteriormente, o casal manteve alguma “mobilidade habitacional”, pela zona de ....

190 - Em 2001, o casal contraiu empréstimo à habitação na vila da ..., acabando a casa por ser entregue ao banco por falta de pagamento das prestações.

191 - Em 2011, o casamento terminou por divórcio, mas “por razões de precariedade económica”, mantiveram o relacionamento e a coabitação.

192 - A arguida passou vários anos sem trabalho efetivo, beneficiando de rendimento social de inserção.

193 - A arguida teve acompanhamento médico em diversas especialidades, ao longo do seu percurso de vida, atendendo aos problemas de saúde de que padece.

194 - À data dos factos constantes do presente processo, a arguida residia com o companheiro e a filha mais nova do casal, tendo como rendimentos o seu salário e o do companheiro, como empregado fabril.

195 - A arguida foi detida no dia 28 de janeiro de 2021 e encontra-se sujeita a prisão preventiva desde 29 de janeiro de 2021; deu entrada, no Estabelecimento Prisional ..., em 01 de fevereiro de 2021, à ordem deste processo.

196 - Em meio prisional, tem um comportamento sem reparos, beneficia de apoio pelos serviços clínicos, na especialidade de Psiquiatria, e mantém acompanhamento em diversas especialidades médicas em consultas no exterior.

197- A arguida recebe visitas e apoio económico por parte dos filhos.

Pedidos de indemnização civil

198 - O anel em ouro branco com pérola e pequenos brilhantes respeitava ao anel de noivado que a demandante OO (factos do ponto VIII) usou sempre de forma ininterrupta.

199 - Os anéis subtraídos à demandante OO significavam para si a recordação de uma vida inteira partilhada com o falecido marido, sendo que o facto de lhe terem sido subtraídos, daquela forma, constitui para si um desgosto que a acompanhará para o resto da sua vida.

200 - O demandante FF (factos do ponto III) sentiu “profunda” perda e tristeza por ter ficado sem as alianças que tinha mandado fazer, ao mesmo tempo, para si e para a sua mulher.

201 - Aquelas alianças foram adquiridas uma por ocasião do casamento e outra na celebração das suas bodas de prata.

202 - TT ficou prostrado na cama apresentando sentimentos e emoções depressivas, desorientado e agitado.

203 - TT vivia numa família feliz juntamente com a mulher e seus dois filhos, sendo a sua contribuição económica relevante para a manutenção da vida familiar.

204 - A perda do marido constituiu um choque psicológico e causou dor e desgosto a XX.

205 - A demandante XX viu afetada a sua alegria de viver, chorando, lamentando o sucedido e recordando o marido.

206 - A demandante XX teve dificuldade em frequentar, no início, a casa de família, dada a permanente lembrança do falecido.

207 - A demandante apresenta sinais de depressão devido ao falecimento do marido, encontrando-se ainda em choque psicológico.


***


3. O DIREITO

3.1. O objeto do presente recurso atentas as conclusões da motivação dos recorrentes, que delimitam o objeto do recurso, prende-se com as seguintes questões:

- A dosimetria da pena única aplicada à recorrente.

- O acórdão recorrido enferma da nulidade prevista no artigo 379°, n° 1, alínea a) e 374°, n° 2 do Código Processo Penal, por falta de fundamentação, quanto à fixação da pena única.

3.1.1. Conhecendo em primeiro lugar da nulidade invocada.

Entende a recorrente que o acórdão recorrido enferma, no que concerne à fixação da pena única, de falta de fundamentação, o que consubstancia nulidade do artigo 379°, n° 1, alínea a) e 374°, n° 2 do Código Processo Penal.

Por fim, tem alega que foram violadas normas relativas aos crimes de tráfico de estupefacientes e de detenção de arma proibida, e diversas outras de natureza processual, designadamente os artigos 120. °, n.º 2, alínea d), 369.° e 410.°, n.º 2, do C.P.P.

Quanto a estes preceitos certamente se trata de lapso manifesto, uma vez que não têm nenhum cabimento, umas e outras, na situação vertente.


A Lei Fundamental consagra no art. 205º, nº 1, que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.

Em conformidade com este preceito constitucional, o art. 374º, nº 2, do CPP determina que a sentença deve conter a “fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.

Para a falta de fundamentação comina-se uma nulidade – art. 379º, nº1, al. a), do CPP.

A aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40º, nº 1, do CP).

A determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (arts. 71º, nº1 e 40º, nº 2, do CP), vista enquanto juízo de censura que lhe é dirigido em virtude do desvalor da ação praticada (arts. 40º e 71º, ambos do Código Penal).

E, na determinação concreta da medida da pena, como impõe o art. 71º, nº 2, do Código Penal, o tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do agente ou contra ele, designadamente as que a título exemplificativo estão enumeradas naquele preceito, bem como as exigências de prevenção que no caso se façam sentir, incluindo-se tanto exigências de prevenção geral como de prevenção especial.

A primeira dirige-se ao restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, que corresponde ao indispensável para a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada.

A segunda visa a reintegração do arguido na sociedade (prevenção especial positiva) e evitar a prática de novos crimes (prevenção especial negativa) e por isso impõe-se a consideração da conduta e da personalidade do agente.

Quanto à pena única a aplicar ao arguido em sede de cúmulo jurídico, de harmonia com o disposto no art. 77º, do Código Penal, a medida concreta da pena única do concurso de crimes dentro da moldura abstrata aplicável, constrói-se a partir das penas aplicadas aos diversos crimes e é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente.

Ora, no caso o Tribunal Coletivo para fixar as penas parcelares, atendeu aos critérios norteadores a que aludem os arts. 40º e 71º, do Código Penal, valorizando as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, militem a favor do arguido ou contra ela, ponderando:

- o grau de ilicitude do facto: atendendo aos bens jurídicos cuja tutela a pena visa assegurar há que ter em conta, os concretos objetos retirados pela arguida, a intensidade das ofensas, sofrimento das vítimas e a quantidade de objetos retirados e dinheiro obtido;

- o modo de execução do crime: atuação no contexto referido, aproveitando as circunstâncias de desvalimento dos utentes e deslocando-se de modo a fazer-se passar pelo exercício da sua atividade de apoio aos doentes;

- a gravidade das consequências: para além da subtração dos objetos, a colocação das pessoas em risco de vida chegando até num dos casos ao falecimento de um dos ofendidos:

- o grau de violação dos deveres impostos ao agente: intenso desrespeito pelos doentes, pelos seus objetos em ouro (todos associados a situações de valor sentimental para os ofendidos), pelos seus deveres como funcionária e pela saúde e vida dos utentes; e também da confiança da licitude da obtenção dos objetos em ouro colocado em circulação;

- a intensidade do dolo: grau mais elevado – dolo direto – art. 14º, nº 1, representação do facto e atuação com intenção de o realizar;

- os sentimentos manifestados no cometimento do crime: desprezo pelos deveres a valores em causa e aproveitamento da confiança dos doentes e familiares na situação de internamento;

- os fins ou motivos que o determinaram: obter os objetos em ouro para os converter em dinheiro para as suas despesas;

- as condições pessoais da arguida e situação económica: vivia com o ex-marido e filhas, estava a trabalhar e tinha dificuldades económicas;

- a conduta anterior aos factos: já tinha uma condenação por crime de furto também de pessoas que estavam a seu cargo;

- a conduta posterior aos factos: a arguida confessou os factos e manifesta arrependimentos, no estabelecimento prisional não regista anomalias e recebe visitas e apoio dos filhos.

Tendo presente os referidos critérios e os factos referidos, fixou as seguintes penas:

I) - por cada um dos sete crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210.º, n.º 1, nº 2 a) (por referência à alínea b) do art.º 144º) e nº 2 b) (por referência à alínea d) do nº 1 do art.º 204º) relativos aos ofendidos: I - DD; ofendido II - EE dia 17.10.20; ofendido III - FF; ofendida IV GG; ofendido V - HH; ofendido IX - II; ofendida XI - JJ – moldura penal de três a 15 anos--- três anos e nove meses de prisão;

II) - pelo crime de ofensa à integridade física grave qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º, 144º b) e 145º nº 1 c), por referência às alíneas g), i) e j), do nº 2 do artº 132º, relativo ao ofendido II - EE, dia 16.10.20 --- moldura penal de três a doze anos - três anos e seis meses de prisão;

III) - por cada um dos dois crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210º nº 1 e nº 2 alínea b), por referência ao disposto na alínea d) do art.º 204º nº 1), respeitantes aos ofendidos X - KK e XVII - LL --- moldura penal de três a 15 anos --- três anos e seis meses de prisão; levando em conta a menor gravidade face aos roubos referidos supra;

IV) - por cada um dos quatro crimes de peculato, previstos e punidos pelos artigos 375º nº 1 e 386º nº 1 d), todos do Código Penal, respeitantes ao ofendido VI - MM; ofendida VII - NN; ofendida VIII - OO; ofendida XII - PP --- moldura penal de um a oito anos --- um ano e seis meses de prisão;

V) - por cada um dos quatro crimes de ofensa à integridade física grave qualificada, na forma consumada, previstos e punidos pelos artigos 143º, 144º alíneas b) e d) e 145º nº 1 c) e nº 2, por referência às alíneas g), i) e j) do nº 2 do art.º 132º, todos do Código Penal respeitantes à ofendida XIII - QQ; ofendida XIV - RR; ofendida XV - SS, dias 20 e 21.01.21 --- moldura penal de três a doze anos --- três anos e seis meses de prisão;

VI) - pelo crime de roubo, agravado pelo resultado morte, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1, nº 2 a) e b) e nº 3, todos do Código Penal, respeitante ao ofendido XVI - TT --- moldura penal de oito a dezasseis anos --- dez anos de prisão;

VII) - pelo crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368º A nºs 1, 2, 4, 5 e 6 do Código Penal --- moldura penal de um mês a doze anos de prisão --- um ano e seis meses de prisão.

Em cúmulo jurídico de acordo, com o art. 77º, do Código Penal, a pena única de 17 anos de prisão.

E, fundamentou da seguinte forma a pena única aplicada à arguida:

«Cúmulo jurídico

A arguida AA vai condenada pela prática de vinte crimes.

Nos termos do artigo 77º, nº 1, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena.

Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (nº 2).

Nesta conformidade, para a determinação da moldura do cúmulo jurídico, o limite máximo da pena de prisão é de vinte e cinco anos (“soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos”: 7 x 3 A 9 M + 3 A 6 + 2x 3 A 6 M + 4x 1 A 6 M + 4x 3 A 6 M + 10 A + 1 A 6 M = 68 A 3 M) sendo o limite mínimo de dez anos (“a mais elevada das penas concretamente aplicadas”).

O referido critério para a individualização da pena única determina que sejam considerados “em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

É pacífico o entendimento de que, com tal asserção, se deve ter em conta, no dizer do Senhor Professor Figueiredo Dias, “a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão, e o tipo de conexão, que entre os factos concorrentes se verifique.

Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.

De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”14.

A opção legislativa por uma pena conjunta pretendeu por certo traduzir, também a este nível, a orientação base ditada pelo artigo 40º, em matéria de fins das penas.

Sem que nenhum destes vectores se constitua em compartimento estanque, é certo que para o propósito geral-preventivo interessará antes do mais a imagem do ilícito global praticado, e para a prevenção especial contará decisivamente o facto de se estar perante uma pluralidade desgarrada de crimes, ou, pelo contrário, perante a expressão de um modo de vida.

Como expressa o Senhor Conselheiro Carmona da Mota15, a pena conjunta situar-se-á até onde a empurrar o efeito “expansivo” sobre a parcelar mais grave, das outras penas, e um efeito “repulsivo” que se faz sentir a partir do limite da soma aritmética de todas as penas.

Ora, este efeito “repulsivo” prende-se necessariamente com uma preocupação de proporcionalidade, que surge como variante com alguma autonomia, em relação aos já aludidos critérios da “imagem global do ilícito” e da personalidade do arguido; proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar no conjunto de todas elas.

No entanto, em princípio, os factores de determinação da medida das penas singulares não podem voltar a ser considerados na medida da pena conjunta (dupla valoração), muito embora, aquilo que à primeira vista possa parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá razão para invocar a proibição de dupla valoração.

Os crimes em causa apresentam intensa relação entre si, tendo em conta as semelhantes actuações da arguida, pelo que se pode afirmar como reconduzível a uma tendência ou até a uma “carreira” criminosa que vai muito além de uma mera pluriocasionalidade.

O que tudo apontará, neste caso, tendo em conta ainda a anterior condenação pelo crime de furto, para um forte “efeito expansivo” da pena mais grave, com a consequente aplicação de uma pena conjunta, um patamar firmemente acima da pena parcelar mais grave.

Tendo em conta que a pena mais grave é de dez anos e soma das demais é limitada pelos 25 anos, concretizando o cúmulo jurídico, nos termos dos alinhados critérios, deve fixar-se a pena única de dezassete anos de prisão».


Do exposto se conclui, que o acórdão recorrido não enferma de qualquer nulidade por falta de fundamentação, quanto à medida da pena única aplicada à arguida.

O acórdão aplicou corretamente a lei, fundamentando de acordo com os critérios e princípios que presidem à fixação da medida da pena única, proteção de bens jurídicos, às exigências de prevenção geral e especial, princípios da proporcionalidade e da adequação, considerando em conjunto os factos e a personalidade da arguida.

Neste sentido, improcede nesta parte o recurso da arguida.


3.1.2. A dosimetria da pena única aplicada à recorrente.

Alega o recorrente que a medida da pena única que lhe foi aplicada é excessiva, que a pena deveria ser inferior aos 17 anos de prisão em cúmulo jurídico que foi condenada e suspensa a sua execução, alegando que se encontra integrada social e laboral (até à sua prisão), e na impressão favorável, que dela têm as pessoas que lhe são mais próximas.


Como se referiu a recorrente AA foi condenada nas seguintes penas:

Pela prática, em autoria singular e em concurso efetivo de:

A. I) - sete crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210.º, n.º 1, nº 2 a) por referência à alínea b) do artigo 144º-- e nº 2 b) --por referência à alínea d) do nº 1 do artigo 204º-- todos do Código Penal (ofendido I - DD; ofendido II - EE, dia 17.10.20; ofendido III - FF; ofendida IV GG; ofendido V - HH; ofendido IX - II; ofendida XI - JJ), nas penas de três anos e nove meses de prisão, cada um;

A.II) - um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, previsto e punido pelos artigos 143º, 144º b) e 145º nº 1 c), por referência às alíneas g), i) e j), do nº 2 do artigo 132º, todos dos Código Penal (ofendido II - EE, dia 16.10.20), na pena de três anos e seis meses de prisão;

A.III) - dois crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210º nº 1 e nº 2 alínea b), por referência ao disposto na alínea d) do art.º 204º nº 1), todos do Código Penal (ofendida X - KK; ofendido XVII - LL), nas penas de três anos e seis meses de prisão, cada um;

A.IV) - quatro crimes de peculato, previstos e punidos pelos artigos 375º nº 1 e 386º nº 1 d), todos do Código Penal (ofendido VI - MM; ofendida VII - NN; ofendida VIII - OO; ofendida XII - PP), nas penas de um ano e seis meses de prisão, cada um;

A.V) - quatro crimes de ofensa à integridade física grave qualificada, na forma consumada, previstos e punidos pelos artigos 143º, 144º alíneas b) e d) e 145º nº 1 c) e nº 2, por referência às alíneas g), i) e j) do nº 2 do art.º 132º, todos do Código Penal (ofendida XIII - QQ; ofendida XIV - RR; ofendida XV - SS, dias 20 e 21.01.21), nas penas de três anos e seis meses de prisão, cada um;

A.VI) - um crime de roubo, agravado pelo resultado morte, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1, nº 2 a) e b) e nº 3, do Código Penal (ofendido XVI - TT), na pena de dez anos de prisão;

A.VII) - um crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368º A nºs 1, 2, 4, 5 e 6 do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão;

B) - condenar a arguida AA, em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de dezassete anos de prisão;

A aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40º, nº 1, do CP).

A determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (arts. 71º, nº1 e 40º, nº 2, do CP), vista enquanto juízo de censura que lhe é dirigido em virtude do desvalor da ação praticada (arts. 40º e 71º, ambos do Código Penal).

E, na determinação concreta da medida da pena, como impõe o art. 71º, nº 2, do Código Penal, o tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do agente ou contra ele, designadamente as que a título exemplificativo estão enumeradas naquele preceito, bem como as exigências de prevenção que no caso se façam sentir, incluindo-se tanto exigências de prevenção geral como de prevenção especial.

A primeira dirige-se ao restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, que corresponde ao indispensável para a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada.

A segunda visa a reintegração do arguido na sociedade (prevenção especial positiva) e evitar a prática de novos crimes (prevenção especial negativa) e por isso impõe-se a consideração da conduta e da personalidade do agente.

Conforme salienta o Prof. Figueiredo Dias[1], a propósito do critério da prevenção geral positiva, «A necessidade de tutela dos bens jurídicos – cuja medida ótima, relembre-se, não tem de coincidir sempre com a medida culpa – não é dada como um ponto exato da pena, mas como uma espécie de «moldura de prevenção»; a moldura cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do «quantum» da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias. É esta medida mínima da moldura de prevenção que merece o nome de defesa do ordenamento jurídico. Uma tal medida em nada pode ser influenciada por considerações, seja de culpa, seja de prevenção especial. Decisivo só pode ser o quantum da pena indispensável para se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais».

E, relativamente ao critério da prevenção especial, escreve o ilustre mestre, «Dentro da «moldura de prevenção acabada de referir atuam irrestritamente as finalidades de prevenção especial. Isto significa que devem aqui ser valorados todos os fatores de medida da pena relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza, seja a função primordial de socialização, seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização. (...).

A medida das necessidades de socialização do agente é pois em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial para efeito de medida da pena».

Consagra o art. 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal:

«1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

3- Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.

4- As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis».

Conforme ensina o Prof Figueiredo Dias, [2] «Estabelecida a moldura penal do concurso o tribunal ocupar-se-á, finalmente, da determinação, dentro dos limites daquela, da medida da pena conjunta do concurso, que encontrará em função das exigências gerais de culpa e de prevenção. Nem por isso se dirá com razão, no entanto, que estamos aqui perante uma hipótese normal de determinação da medida da pena. Com efeito a lei fornece ao tribunal, para além dos critérios gerais da medida da pena contidos no art. 72º, nº1, um critério especial «na determinação da medida concreta da pena [do concurso], serão considerados em conjunto os factos e a personalidade do agente (art. 78º, 1- 2ª parte]. (…)

Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma carreira) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes com efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento do agente (exigências de prevenção especial de socialização)».

No mesmo sentido o AC do STJ de 27JAN16, em que foi relator o Conselheiro Santos Cabral [3] a propósito da pena conjunta derivada do concurso de infrações, defende o seguinte:

«Fundamental na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação «desse bocado de vida criminosa com a personalidade». A pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares. Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos pois que a relação dos diversos factos entre si em especial o seu contexto; a maior ou menor autonomia a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento mas também a recetividade á pena pelo agente deve ser objeto de nova discussão perante o concurso ou seja a sua culpa com referência ao acontecer conjunto da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa.”

Deverão equacionar-se em conjunto a pessoa do autor e os delitos individuais o que requer uma especial fundamentação da pena global. Por esta forma pretende significar-se que a formação da pena global não é uma elevação esquemática ou arbitrária da pena disponível mas deve refletir a personalidade do autor e os factos individuais num plano de conexão e frequência. Por isso na valoração da personalidade do autor deve atender-se antes de tudo a saber se os factos são expressão de uma inclinação criminosa ou só constituem delito ocasionais sem relação entre si. A autoria em série deve considerar-se como agravatória da pena. Igualmente subsiste a necessidade de examinar o efeito da pena na vida futura do autor na perspetiva de existência de uma pluralidade de ações puníveis. A apreciação dos factos individuais terá que apreciar especialmente o alcance total do conteúdo do injusto e a questão da conexão interior dos factos individuais. Dada a proibição de dupla valoração na formação da pena global não podem operar de novo as considerações sobre a individualização da pena feitas para a determinação das penas individuais.

Em relação ao nosso sistema penal é o Professor Figueiredo Dias quem traça a síntese do “modus operandi” da formação conjunta da pena no concurso de crimes. Refere o mesmo Mestre que a existência de um critério especial fundado nos factos e personalidade do agente obriga desde logo a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, da medida da pena do concurso: a tanto vincula a indispensável conexão entre o disposto nos arts. 78. °-1 e 72.°-3, só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja como fruto de um ato intuitivo - da «arte» do juiz uma vez mais - ou puramente mecânico e, portanto, arbitrária. Sem prejuízo de poder conceder-se que o dever de fundamentação não assume aqui nem o rigor, nem a extensão pressupostos pelo art. 72 ° nem por isso um tal dever deixa de surgir como legal e materialmente indeclinável».

Acrescentando que «Na verdade, como se referiu, a certeza e segurança jurídica podem estar em causa quando existe uma grande margem de amplitude na pena a aplicar, conduzindo a uma indeterminação. Recorrendo ao princípio da proporcionalidade não se pode aplicar uma pena maior do que aquela que merece a gravidade da conduta nem a que é exigida para tutela do bem jurídico. (…)

Na definição da pena concreta dentro daquele espaço e um dos critérios fundamentais na consideração daquela personalidade, bem como da culpa, situa-se a dimensão dos bens jurídicos tutelados pelas diferentes condenações. Na verdade, não é raro ver um tratamento uniforme, destituído de qualquer opção valorativa do bem jurídico, e este pode assumir uma diferença substantiva abissal que perpassa na destrinça entre a ofensa de bens patrimoniais ou bens jurídicos fundamentais como é o caso da própria vida. (…) (sublinhado nosso)

Paralelamente, à apreciação da personalidade do agente interessa, sobretudo, ver se nos encontramos perante uma certa tendência, que no limite se identificará com uma carreira criminosa, ou se aquilo que se evidencia uma mera pluriocasionalidade, que não radica na personalidade do arguido. Este critério está diretamente conexionado com o apelo a uma referência cronológica pois que o concurso de crimes tanto pode decorrer de factos praticados na mesma ocasião, como de factos perpetrados em momentos distintos, temporalmente próximos ou distantes ou uma referência quantitativa pois que o concurso tanto pode ser formado por um número reduzido de crimes, como pode englobar inúmeros crimes. (sublinhado nosso)

Como é bom de ver, as necessidades de prevenção especial aferir-se-ão, sobretudo, tendo em conta a dita personalidade do agente. Nela, far-se-ão sentir fatores como a idade, a integração ou desintegração familiar, com o apoio que possa encontrar a esse nível, as condicionantes económicas e sociais que tenha vivido e que se venham a fazer sentir no futuro.

Igualmente importante é consideração da existência de uma manifesta e repetida antipatia na convivência com as normas que regem a vida em sociedade, quando não de anomia, e que é a maior parte das vezes evidenciada pelo próprio passado criminal.

Um dos critérios fundamentais na procura do sentido de culpa em sentido global dos factos é o da determinação da intensidade da ofensa, e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo certo que, em nosso entender, assume significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados á dimensão pessoal em relação a bens patrimoniais. Por outro lado, importa determinar os motivos e objetivos do agente no denominador comum dos atos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência. (sublinhado nosso)

Igualmente deve ser expressa a determinação da tendência para a atividade criminosa expresso pelo número de infrações; pela sua perduração no tempo; pela dependência de vida em relação àquela atividade.

Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio, pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade que deve ser ponderado.

Recorrendo á prevenção importa verificar em termos de prevenção geral o significado do conjunto de atos praticados em termos de perturbação da paz e segurança dos cidadãos e, num outro plano, o significado da pena conjunta em termos de ressocialização do delinquente para o que será eixo essencial a consideração dos seus antecedentes criminais e da sua personalidade expressa no conjunto dos factos. (sublinhado nosso).

Serão esses fatores de medida da pena conjunta que necessariamente deverão ser tomados em atenção na sua determinação sendo então sim o pressuposto de uma adição ao limite mínimo do quantum necessário para se atingir as finalidades da mesma pena».


Ou seja, quanto à pena única a aplicar á arguida em sede de cúmulo jurídico, a medida concreta da pena única do concurso de crimes dentro da moldura abstrata aplicável, constrói-se a partir das penas aplicadas aos diversos crimes e é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do agente.

À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente.

Por último, de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

Do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detetar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da atuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e “ a culpa pelos factos em relação”, a qual se refere Cristina Líbano Monteiro em anotação ao acórdão do S.T.J de 12.7.2005 e Figueiredo Dias in “A Pena Unitária do Concurso de Crimes” in RPCC ano 16º, nº 1, pág. 162 e ss.

Partindo da moldura penal abstrata do cúmulo jurídico balizada entre um mínimo de 10 (dez) anos de prisão [correspondente à pena parcelar mais elevada] e como limite máximo 68 anos e 6 meses, reduzida a 25 anos de prisão, atento o disposto no art. 77º, nº 2, do CP [correspondente à soma das penas parcelares], aplicável ao caso concreto, deve definir-se um mínimo imprescindível à estabilização das expetativas comunitárias e um máximo consentido pela culpa do agente.

O espaço contido entre esse mínimo imprescindível à prevenção geral positiva e esse máximo consentido pela culpa, configurará o espaço possível de resposta às necessidades de reintegração do agente.

Ponderando todas as circunstâncias acima referidas, a preponderância das circunstâncias agravantes sobre as atenuantes, atendendo às exigências de prevenção geral e especial que assumem especial relevo, de harmonia com os critérios de proporcionalidade, da adequação e da proibição do excesso, entendemos que partindo da moldura penal abstrata do cúmulo jurídico entre 10 (dez) anos de prisão e 25 (vinte e cinco) anos de prisão, ao critério e princípios supra enunciados, designadamente a consideração em conjunto dos factos e a personalidade do agente, as exigências de prevenção geral e especial, procedendo ao cúmulo jurídico, das penas parcelares nos termos do art. 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, mostra-se justa, necessária, proporcional e adequada, a pena única de 17 (dezassete) anos de prisão, em que a arguida AA foi condenada.

Neste sentido improcede na totalidade o recurso.

Pelo exposto, mostra-se prejudicado conhecimento da questão sobre a aplicação da suspensão da execução da pena, uma vez que a pena aplicada é superior a 5 anos de prisão, (artº 50.º, n.º 1, do CP).


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4. DECISÃO.

Termos em que acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso da arguida AA.

Custas pelo recorrente fixando a taxa de justiça em 5 (cinco) UC’S

Processado em computador e revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do CPP).


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Lisboa, 18 de maio de 2022


Maria da Conceição Simão Gomes (relatora)

Paulo Ferreira da Cunha

Nuno Gonçalves (Presidente da Secção)

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[1] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Ed. Notícias, pág., 241-244
[2] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1ª Ed. 199, páginas 290 a 291.
[3] Proc. 178/12.0PAPBL.S2, disponível in dgsi.pt