Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P1874
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PEREIRA MADEIRA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
PLURALIDADE DE ACÇÕES
UNIDADE DE RESOLUÇÃO
UNIDADE DE INFRACÇÕES
PLURALIDADE DE INFRACÇÕES
Nº do Documento: SJ200401290018745
Data do Acordão: 01/29/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T J AMARANTE
Processo no Tribunal Recurso: 24/02
Data: 01/06/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : I - Apesar de serem dois ou mais os impostos cujas prestações foram ilegalmente retidas pelo arguido, tal não significa, necessariamente, que seja equivalente o número de crimes cometidos.
II - Na verdade, apesar de serem vários os impostos em falta, mas um só o bem jurídico atingido, o que importa averiguar é se o crime foi preenchido uma só vez, pela conduta do agente, ou se a conduta desenhada pelas factos permite concluir, ao invés, que foram duas ou mais as vezes em que esse preenchimento se verificou.
III - Nomeadamente, importa considerar para o efeito a conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente, na certeza de que «para afirmar uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação».
IV - Se os factos recolhidos implicam a existência de resoluções distintas do agente em relação ao não pagamento ou retenção ilegal de cada um dos impostos em falta - IRS e IVA, respectivamente - enfim, se atestam distintos estados de espírito em relação a cada um deles, a ponto de, em alguns meses que não entregou o IRS, resolveu entregar e entregou o IVA, pelo menos, nesses meses, em que não houve coincidência de atitudes, houve distintas e, até, opostas resoluções quanto aos respectivos impostos: num caso, não pagar; no outro, o oposto; se, além disso, o destino das quantias retidas não foi inteiramente idêntico: - num caso - retenção de IRS - o arguido agiu «em nome e no interesse da sociedade e no seu próprio interesse pessoal»; no outro - retenção de IVA - a sua actuação foi como «como representante legal da arguida e no seu interesse», o caso configura-se então como passível de um juízo de censura plúrimo, por serem dois os crimes efectivamente cometidos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. O Ministério Público acusou AP, devidamente identificado, e SCSS, L.da, com sede em S. Sebastião, Freixo de Baixo, Amarante, imputando a prática, a cada um, de dois crimes de abuso de confiança fiscal, p. e p., ao tempo, pelos artigos 24.º, n.º 1, do DL n.º 20-A/90 de 15 de Janeiro (RJIFNA), alterado pelo DL n.º 394/93 de 24/11 e 7°, e 9°, n.º 1, do citado DL n.º 394/93, pelos factos constantes da acusação oportunamente deduzida.
Efectuado o julgamento veio a ser proferida sentença em que, além do mais, foi assim decidido:
«Operada a legal convolação, julga a acusação do Ministério Público procedente, por provada e, em consequência condena o arguido AP, como autor de um crime continuado de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105° n.o 1 do RGIT e 30° e 79° do Código Penal, na pena de quatro meses de prisão;
Como autor de um crime continuado de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105°, n.º 1 do RGIT e 30° e 79° do Código Penal, condena o arguido na pena de dezasseis meses de prisão.
Em cúmulo jurídico - atendendo em conjunto à personalidade e aos factos - condena o arguido AP, na pena de dezoito meses de prisão.
Condena a arguida SCSS, L.da, como autora de um crime continuado de abuso de confiança fiscal p. e p. pelas disposições supra referidas, na pena de quarenta (40) dias de multa à razão diária de seis Euros.
Condena a mesma arguida, como autora de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelas disposições supra referidas na pena de cento e oitenta dias de multa à mesma razão diária.
Em cúmulo jurídico condena a arguida SCSS e, L.da, na pena de duzentos dias de multa à taxa diária de seis Euros, o que perfaz o total de mil e duzentos Euros (1.200).
Mais condena cada um dos arguidos na taxa de justiça de 2 Ucs, e nas custas com o mínimo de procuradoria e em 1% da taxa agora aplicada a reverter para o Cofre Geral dos Tribunais.
Nos termos do disposto no artigo 50° do Código Penal, suspende a execução da pena em que o arguido foi condenado, pelo período de três anos, com a condição de em dois anos efectuar o pagamento da quantia em falta, em sede de IVA.»
Inconformado, recorre ao Supremo Tribunal o arguido supra identificado, delimitando assim conclusivamente o objecto da sua impugnação ao decidido:
«1.) Os factos de que foi acusado o arguido integram a prática de um só crime continuado, de acordo com o disposto no art.ºs 30°, n.º 2, do C. P e 105°, n.º 1, do RGIT;
2.) O douto Acórdão recorrido viola as referidas normas, pelo que deve, nessa parte, ser revogado e substituído por decisão que condene o arguido num único crime continuado de abuso de confiança fiscal.
3.) A favor do arguido depõe as seguintes circunstâncias atenuantes gerais:
- a ausência de antecedentes criminais;
- o pagamento integral das quantias devidas em sede de IRS;
- o pagamento das quantias devidas em sede de IVA, quase na totalidade.
- a pronta confissão do arguido;
- a situação pessoal do arguido;
- a inserção social e familiar do arguido;
- a motivação e as demais circunstâncias em que os crimes foram cometidos;
- o bom comportamento do arguido, quer antes quer depois da prática dos factos.
e, ainda, a circunstância especial que consiste
- na garantias reais prestadas ao pagamento da restante dívida em sede de IVA
4.) A decisão recorrida, quanto à medida e aplicação da pena, violou pois o disposto nos art.ºs 71°, 72° e 73° do Cód. Penal e deve por isso ser revogada e substituída por decisão que, ao abrigo das disposições citadas, e atenta a moldura penal estabelecida no art.º 105° do RGIT, condene o arguido:
- em pena especialmente atenuada, consistente em multa à razão diária de 2 Euros, atenta à diminuta capacidade económica do Réu, o critério já aplicado na fixação da multa à co-arguida;
ou, quando assim se não julgue
- em pena atenuada adequada, proporcional à gravidade da conduta e que considere todas as circunstâncias que depõem a favor do arguido, consistente em pena de prisão de seis meses, no máximo, suspendendo-se a execução por um ano, ao abrigo do disposto no art.º 50° do C.P.
Nestes termos, confiante no elevado sentido e critério de Justiça de V. Ex.as., se requer que seja o presente recurso julgado procedente, e, por via dele, seja revisto o douto Acórdão recorrido, em conformidade com o exposto.»
O MP junto do tribunal recorrido defendeu o julgado assentando, em suma, na defesa da pluralidade de infracções, por estar em causa «a apropriação de quantias devidas pela liquidação de dois impostos completamente distintos, com natureza axiológica-normativa também distinta».
Subidos os autos, nada foi requerido.
As questões essenciais a dirimir são, assim:
1. A indagação da existência de um ou mais crimes de abuso de confiança fiscal, respectivamente perspectivados pelo recorrente e pela decisão recorrida com apoio do MP.
2. A determinação da medida da pena.

2. Colhidos os vistos e realizada a audiência cumpre decidir.
Vejamos, antes de mais, os factos provados.
A sociedade arguida encontra-se inscrita na área da Repartição de Finanças de Amarante, dedicando-se à construção e engenharia civil e operações sobre imóveis.
No ano de 1999, o arguido AP exercia sozinho a administração da referida sociedade.
Nessa qualidade actuando em nome e no interesse da sociedade e no seu próprio interesse pessoal, e com o objectivo de atingir um beneficio patrimonial ilegítimo, efectuou a retenção de IRS relativa aos rendimentos de trabalho dos seus trabalhadores dependentes, mas não procedeu à sua entrega nos cofres do Estado, até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foi deduzido.
Na qualidade de sócio-gerente da arguida, o arguido A efectuou a retenção de IRS relativo a rendimentos das categorias A - rendimento do trabalho dependente - dos meses de Maio de 1999, no montante de 202.750$00; de Junho no montante de 198.690$00; de Julho no montante de 203.100$00; de Agosto no montante de 208.820$00; de Setembro no montante de 245.190$00; de Outubro no montante de 520.500$00; de Novembro no montante de 306.070$00 e de Dezembro no montante de 430.730$00, num total de 2.315.850$00 e não o entregou nos Cofres do Estado.
A arguida era sujeito passivo de IVA, enquadrada no regime normal de periodicidade mensal, pelo que estava obrigada a enviar mensalmente, ao Serviço de Administração do Imposto sobre Valor Acrescentado o montante do imposto exigível, através de vale do correio, cheque ou transferência bancária.
Apesar do arguido ter enviado as correspondentes declarações periódicas de IVA, não as fez acompanhar do respectivo pagamento até ao dia 10 do mês seguinte àquele a que respeitavam as operações.
Assim não entregou, no ano de 1999, no mês de Julho, a quantia de 3.041.512$00; no mês de Agosto a quantia de 6.085.821$00; no mês de Setembro a quantia de 3.492.918$00 e no mês de Dezembro a quantia de 2.983.223$00, num total de 15.603.474$00.
O arguido agiu voluntária e conscientemente, como representante legal da arguida e no seu interesse, obtendo vantagens patrimoniais nas quantias supra referidas e causando um prejuízo patrimonial ao Estado no mesmo montante.
Sabia que estava obrigado a entregar à fazenda Nacional as quantias de IRS, que reteve e que liquidou a título de IVA, e não obstante isso integrou tal quantia no património da sociedade que geria.
Sabia que a sua conduta era proibida por lei.
As quantias não entregues foram utilizadas para efectuar pagamento de salários a trabalhadores, porque arguida estava com problemas de tesouraria.
O arguido já efectuou o pagamento das quantias devidas em sede de IRS, e já efectuou o pagamento de algumas quantias respeitantes a IVA, estando somente em dívida a quantia de 27.737,89.
A sociedade neste momento encontra-se quase sem actividade.
O arguido é primário.
A esta matéria de facto não vêm imputados vícios que a invalidem, mormente os aludidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nem o Supremo Tribunal de Justiça ali os vislumbra.
Há que tê-la, assim, por adquirida.
Assim sendo, vejamos o tratamento a dar às questões postas.
1. Um só crime - continuado (1) - de abuso de confiança fiscal, como advoga o recorrente, ou dois, como se assumiu no acórdão recorrido?
São aplicáveis subsidiariamente, quanto aos crimes (tributários) e seu processamento, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e respectiva legislação complementar - art.º 3.º, a), do RGIT.
Aos responsáveis pelas infracções previstas nesta lei [RGIT], são somente aplicáveis as sanções cominadas nas respectivas normas, desde que não tenham sido efectivamente cometidas infracções de outra natureza. - art.º 10.º do mesmo diploma.
Esta última norma institui, como se vê, a especialidade das normas tributárias em concurso de infracções, ao dispor que aos responsáveis pelas infracções tributárias só se aplicam as sanções previstas pelas leis tributárias, ressalvados os casos de concurso real de infracções, ou seja, «desde que não tenham sido efectivamente cometidas infracções de outra natureza».
Mas não responde ao problema que se coloca no caso sujeito, qual seja o de saber se, deixando de entregar as prestações relativas a dois tipos diferentes de impostos, o arguido cometeu um ou dois crimes fiscais.
Se assim é, então, a resposta há-de ser buscada, por força da primeira disposição citada, nas normas subsidiárias do Código Penal.
Dispõe o artigo 30.º deste Código que «o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime foi cometido pela conduta do agente.»
No caso, sendo um só o tipo legal de crime em equação - abuso de confiança fiscal p. e p. no artigo 105.º, n.º 1, do RGIT (2) - o número de crimes eventualmente cometidos pelo recorrente há-de forçosamente ser aferido em função do critério sobrante daquele artigo 30.º, ou seja, pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime foi preenchido pela conduta do agente.
Esta indagação implica que se vá um pouco mais longe e se averigúe, nomeadamente, qual o bem jurídico protegido com aquela incriminação, já que, como parece óbvio, se tal conceito coincidisse com os objectivos de cada um dos dois impostos singulares não cumpridos pelo recorrente, a resposta estava encontrada.
Escreve a tal propósito o Cons. Alfredo José de Sousa (3) que «entre o obrigado tributário e a Fazenda Nacional estabelece-se uma relação de confiança fundada na lei, cuja violação por aquele se torna passível de juízo de censura ético-jurídica.
Para além disso, ao lado dos deveres gerais do contribuinte ou de terceiros a ele ligados de prestar informações à Administração Fiscal sobre a situação tributária, há deveres específicos de verdade, de boa fé, de confiança, de obediência a ordens legais dos seus agentes, que devem ser observados aquando ou posteriormente ao concreto cumprimento daqueles deveres gerais.»
E, segundo o mesmo autor, todos aqueles deveres convergem para a revelação da real capacidade contributiva de cada um e de todos os cidadãos obrigados a pagar impostos, tendo em vista a realização dos princípios da igualdade e justiça tributárias.
«Daí que os bens jurídicos a tutelar nos crimes fiscais sejam similares aos tutelados em crimes idênticos previstos no Código Penal, integrando um bem jurídico mais amplo: a confiança da Administração Fiscal na verdadeira capacidade contributiva dos contribuintes.»
Algo distante desta perspectiva se apresenta a concepção de Augusto Silva Dias (4) para quem tal bem jurídico «é constituído pelas receitas fiscais no seu conjunto e a base normativa, cuja violação integra o desvalor da acção, é constituída pelos deveres de colaboração que municiam tecnicamente o dever geral de pagar imposto, dever fundamental de cidadania que, relacionando a conduta típica com as receitas fiscais e as respectivas finalidades, lhe confere ressonância e desvalor ético-social. Por outro lado, a instrumentalidade dos deveres de colaboração relativamente ao dever geral de imposto, explica que integrem o ilícito penal fiscal apenas aqueles deveres directamente ligados à obrigação tributária principal e que a violação de deveres preparatórios ou acessórios dessa obrigação tenha sido tendencialmente considerada pelo legislador português fundamento de ilícito contra-ordenacional».
Qualquer que seja, porém, o acerto de cada uma destas concepções, separadas, ao que parece, essencialmente por via da inclusão, ou não, nos confins do bem jurídico em causa, dos deveres de colaboração do contribuinte com a administração fiscal, o certo é que, não é por aqui que se consegue a resposta ao problema posto, na medida em que a conduta retratada nos factos provados, apesar de serem dois os impostos em falta, é passível de integração no referido singular bem jurídico. Isto é: para qualquer daquelas teses, pluralidade de incumprimento de impostos não se confunde necessariamente com pluralidade de violação de bem ou bens jurídicos. Pode haver incumprimento simultâneo de mais do que um imposto e ser um só o bem jurídico violado.
De resto, a própria definição típica do crime em causa - n.º 1 do artigo 105.º do RGIT - permite inferir legitimamente que na definição do abuso de confiança fiscal possam entrar em simultâneo prestações tributárias de diversa proveniência, respeitantes a impostos distintos.
Assim, sendo um só o bem jurídico atingido, o que resta a averiguar é se o crime foi preenchido uma só vez (5), pela conduta do recorrente tal como este defende, ou se a conduta desenhada pelas factos permite concluir que foram duas (6) as vezes em que esse preenchimento se verificou, tal como foi decidido na sentença recorrida.
E chegada a hora da verdade, há que afirmar que a razão não está com o recorrente.
Com efeito, os factos recolhidos implicam a existência de resoluções distintas em relação ao não pagamento ou retenção ilegal de cada um dos impostos em falta (IRS e IVA, respectivamente).
É ver, por um lado, que não são coincidentes os períodos temporais das respectivas prestações em falta.
O IRS não foi entregue nos meses de Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 1999, havendo, naturalmente, as respectivas decisões de retenção sido tomadas em relação à entrega prevista para cada um desses meses.
Mas já quanto ao IVA, com idêntica periodicidade mensal, e diversamente do que sucedeu com o IRS, o recorrente só deixou de entregar as relativas aos meses de Julho, Agosto, Setembro e Dezembro, tendo entregue, ao que se infere dos factos provados, as referentes aos meses de Maio Junho, Outubro e Novembro.
Ora isto atesta distintos estados de espírito em relação a cada um deles, enfim distintas resoluções, a ponto de, em alguns daqueles meses que não entregou o IRS, resolveu entregar e entregou o IVA. E, pelo menos, nesses meses, em que não houve coincidência de atitudes, ninguém ousará afirmar que não houve distintas e, até, opostas resoluções quanto aos respectivos impostos: num caso, não pagar; no outro, o oposto.
Além de que, se bem se interpreta a matéria de facto apurada, o destino das quantias retidas não foi inteiramente idêntico: - num caso - retenção de IRS - o arguido agiu «em nome e no interesse da sociedade e no seu próprio interesse pessoal»; no outro - retenção de IVA - a sua actuação foi como «como representante legal da arguida e no seu interesse (7)».
Ora, é seguro que, sempre que possa verificar-se uma pluralidade de resoluções - de resoluções no sentido de determinações de vontade, de realizações do projecto criminoso - o juízo de censura será plúrimo.
E a forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente será o critério a considerar para o efeito, na certeza de que «para afirmar uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação». (8)
E como se viu, a matéria de facto provada está longe de fundar a existência dessa «unidade resolutiva». Bem pelo contrário.
Dois crimes, portanto, ao invés do que advoga o recorrente.
2. A segunda questão posta prende-se com a medida da pena que aquele quer ver «atenuada» ou mesmo «especialmente atenuada»
A conclusão a que se chegou quanto à primeira questão retira ao recorrente o lastro mais denso em que assentava a sua pretensão de ver a pena reduzida.
Tanto mais que a sentença valorou nesta sede as condições pessoais do arguido retratadas nos factos provados, (9) nomeadamente a ausência de antecedentes criminais e os pagamentos parciais entretanto já efectuados.
Estas considerações levam a que o Supremo Tribunal entenda não interferir na medida concreta encontrada, justamente porque não encontra qualquer assomo de ilegalidade no procedimento seguido para apuramento das penas concretas aplicadas - parcelares e única - sendo certo que, como se sabe, os recursos são meio de corrigir ilegalidades mas não de refinar decisões judiciais.
Neste sentido se vem aqui reiteradamente entendendo (10) que "no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a sua desproporção da quantificação efectuada" (11).
Ou, dizendo por outras palavras, "como remédios jurídicos, os recursos (salvo o caso do recurso de revisão que tem autonomia própria) não podem ser utilizados com o único objectivo de uma "melhor justiça". (...) A pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulta de violação do direito material". (12)
Como se expôs, o tribunal recorrido explicou, fundamentando, a razão da sua decisão, que, de resto, em obediência aos critérios de dosimetria dos artigos 71.º 72.º e 73.º do Código Penal, se mostra talhada, conforme o exigido pelos citados dispositivos, nos limites admitidos pela culpa do agente, conjugada com as finalidades da pena, proporcionada à gravidade da ilicitude dos factos, e proferida com sentido de justiça.
De resto, para além de beneficiar já de uma pena de substituição - que neste tipo de infracções criminais deve ser concedida cada vez com mais parcimónia, já que, como se sabe, a pena suspensa visa acima de tudo «prevenir a reincidência» e não fomentar ou potenciar a prática de novos crimes, que em matéria fiscal por aí proliferam com uma frequência alarmante -, enfim, de uma pena, qualificável, no mínimo, de «benevolente», o recorrente cobiça ainda a pena de multa «especialmente atenuada» à taxa diária de € 2.
Como em muitos outros casos com igual pretensão, cumpre afirmar a propósito o seguinte:
Quando o legislador dispõe de uma moldura penal para um certo tipo de crime, tem de prever as mais diversas formas e graus de realização do facto, desde os de menor até aos de maior gravidade pensáveis: em função daqueles fixará o limite mínimo; em função destes o limite máximo da moldura penal respectiva; de modo a que, em todos os casos, a aplicação da pena concretamente determinada possa corresponder ao limite da culpa e às exigências de prevenção.
Desde há muito, porém, se põe em relevo a limitação da capacidade de previsão do legislador para abarcar não só todas as situações contemporâneas da feitura da lei, como acompanhar o constante fluir de novas situações que a vida faz emergir a cada momento.
Daí que, em nome de valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade, tenha surgido a necessidade de dotar do sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses especiais, quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respectiva, a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena. (13)
Hipóteses que, em muitos casos, o próprio legislador prevê (14-15), mas que a apontada incapacidade de previsão leva ainda a suprir com uma cláusula geral de atenuação especial. (16)
O funcionamento de uma tal válvula de segurança obedece a dois pressupostos essenciais, a saber:
- Diminuição acentuada da ilicitude e da culpa, necessidade da pena e, em geral, das exigências de prevenção (17);
- A diminuição da culpa ou das exigências de prevenção só poderá considerar-se relevante para tal efeito, isto é, só poderá ter-se como acentuada quando a imagem global do facto, resultante da actuação das circunstâncias atenuantes se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.
O que, por outras palavras, significa que a atenuação especial só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar. Para a generalidade dos casos, para os casos "normais", "vulgares" ou "comuns", "lá estão as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios" (18).
Não deve esquecer-se todavia, que esta solução de consagrar legislativamente a referida "cláusula geral de atenuação especial" como válvula de segurança, dificilmente se pode ter como apropriada para um Código como o nosso, "moderno e impregnado pelo princípio da humanização e dotado de molduras penais suficientemente amplas". Ou seja, é uma solução antiquada, (19) não só em face do Código Penal, como, por maioria de razão, em face do RGIT, que viu a luz do dia ainda não são passados dois anos.
Daí o bem fundado da nossa jurisprudência, quando pressupõe que tal sistema só se torna político-criminalmente suportável se a atenuação especial, decorrente da cláusula geral apontada, entrar em consideração apenas em casos relativamente extraordinários ou mesmo excepcionais. (20-21-22)
No caso, nada de excepcional se descortina, já que ao agir como agiu, o arguido o fez sempre consciente e deliberadamente, fazendo-o com plena liberdade de actuação bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
As atenuantes que o poderiam beneficiar foram até por demais valoradas.
Por isso, hoc sensu, não há lugar a falar aqui em atenuação especial.
Para mais, falar, nos dias de hoje, numa multa com uma taxa diária como a proposta (€2) para a prática de qualquer crime, quando as multas por vulgar contravenção há muito que não se ficam por tal insignificância, pouco menos seria que levar ao altar do ridículo a sentença que tal pretensão viesse a contemplar e, pior do que isso, pôr em cheque absoluto a eficácia preventiva que se reclama de toda e qualquer pena, onde, em princípio, para garantia daquela eficácia, já não tem lugar aceitável qualquer multa de quantitativo diário inferior a € 5, mesmo para casos ditos de pequena gravidade.
O mesmo se diga da pretensão de ver reduzido a seis meses o período de suspensão, o que, por direitas contas, mais não levaria que a uma encoberta absolvição, com o inaceitável olvido de que os crimes tributários pela sua repercussão negativa nos objectivos fundamentais do Estado de Direito, mormente a prossecução das finalidades constitucionais de melhor «justiça distributiva», vêm assumindo uma gravidade crescente a que urge dar resposta adequada.
Improcedem, assim, todas as conclusões da motivação.
3. Termos em que, negando provimento ao recurso, confirmam a decisão recorrida.
O recorrente pagará pelo decaimento taxa de justiça que se fixa em 10 unidades de conta.

Supremo Tribunal de Justiça, 29 de Janeiro de 2004
Pereira Madeira (relator)
Costa Mortágua
Rodrigues da Costa
Quinta Gomes
__________________
(1) Cuja configuração in casu, porque não questionada, se vai aqui ter como pressuposto e, assim, fora de discussão.
(2) Segundo o qual «quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.»
(3) Direito penal fiscal - Uma perspectiva, apud Direito Penal Económico e Europeu Textos Doutrinários, Vol. II, págs. 168 e segs.
(4) Crimes e contra-ordenações fiscais ibidem, págs. 445 e segs.
(5) Como se disse, de forma continuada.
(6) Como na nota anterior.
(7) Ao que se supõe, dela, arguida.
(8) Cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal II reimpressão, Almedina 1968, págs. 202
(9) Ao contrário do recorrente que se apoia em muitos outros não traduzidos em factos provados, como é o caso por exemplo, da alegada «pronta confissão», (que aqui, de todo o modo, sempre seria de valor muito relativo ante o carácter essencialmente documental da prova), bom comportamento, etc.
(10) Cfr. por todos, Ac. STJ de 9/11/2000, in Sumários STJ disponível em http://www.cidadevirtual.pt/stj/jurisp/bo14crime.html, e muitos outros que se lhe seguiram.
(11) Cfr. a solução que, para o mesmo problema, aponta Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 197, § 255
(12) Cfr. Cunha Rodrigues, Recursos, in Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 387.
(13) Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime §444
(14) "O tribunal atenua especialmente a pena, para além do casos expressamente previstos na lei...
(15) Artigo 72.º, n.º 1, do Código Penal.
(16) "...Quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente, ou a necessidade da pena".
(17) Figueiredo Dias, ob. cit., §451
(18) Autor e ob. cit., §454
(19) Estas considerações, aplicam-se por inteiro à nova disciplina dos crimes tributários consagrada no RGIT - Lei n.º 15/2001, de 5/6.
(20) Ibidem § 465
(21) O sistema , segundo o mesmo Mestre de Coimbra, compreende-se, isso sim, por razões ligadas a uma Parte Especial velha e desactualizada, «em função de molduras penais escusada e injustamente severas características de um tempo em que o princípio político-criminal da humanização do direito penal se não fazia ainda sentir, ou se não fazia sentir, em todo o caso, carregado com as exigências que hoje postula; em função, por outro lado, de molduras penais demasiado exíguas, com limites máximo e mínimo relativamente próximos, consequência ainda do dogma das penas fixas e da desconfiança perante a autonomia da função judicial».
(22) Em bold pelo relator.