Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6380/16.9T8CBR.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: UNIÃO DE FACTO
PRESSUPOSTOS
VIDA EM COMUM DOS CÔNJUGES
ECONOMIA COMUM
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 03/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS / ÓNUS DA PROVA.
Doutrina:
-Antunes Varela, Direito da Família, Volume I, p. 31;
-Carlos Pamplona Corte-Real e José Silva Pereira, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Comentada, Alessandra Silveira, Mariana Canotilho Coordenadoras; Almedina, 2013, p. 132;
-Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Volume I, Introdução Direito Matrimonial, 4.ª Edição, Coimbra Editora, 2008, p. 60;
-Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada”, 4.ª Edição. Revista, Volume I, Coimbra Editora, 2007, p. 559 a 568 e 561;
-Hegel, Filosofia do Direito, p. 158;
-Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 4.ª Edição (reimpressão), FDL Editora, Lisboa, 2015, p. 651 e 653;
-Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa, p. 398;
-Pereira Coelho, Casamento e Família no Direito Português, Temas de Direito de Família, Almedina, 1996, p. 9;
-Rita Lobo Xavier, O «estatuto» privado dos membros da união de facto, Scientia Iuridica, Tomo LXIV, n.º 338, Maio/Agosto de 2015, p. 316;
-Telma Carvalho, União de Facto : a sua eficácia jurídica, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Volume I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, p. 226.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 342.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 09-07-2014, PROCESSO N.º 3076711.1TBLLE.E1.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:


- DE 22-09-1993, IN CJ, ANO 1993, TOMO IV, P. 178.
Jurisprudência Estrangeira:
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE):


- DE 26-05-1994, PROCESSO N.º 18535/91 , KROON AND OTHERS V. THE NETHERLANDS, IN HTTPS://HUDOC.ECHR.COE.INT/ENG#{"ITEMID":["001-57904"]};
- DE 26-05-1994, ACÓRDÃO KEEGAN V. IRLANDA, IN SÉRIE A Nº 290, P. 17 E 18, PARÁGRAFO 44.
Sumário :
I. A união de facto pressupõe uma comunhão de vida análoga à dos cônjuges, ou seja, uma coabitação, na tripla vertente de comunhão de leito, mesa e habitação.

II. A vivência em “condições análogas às dos cônjuges” deve ser aferida segundo critérios de normalidade e de vulgaridade, inseridos na cultura a que pertencemos.

III. Por economia comum, entende-se a situação de pessoas que vivam  em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e  tenham estabelecido uma vivência em comum  de entreajuda ou partilha de recursos.

IV. Não tendo a ré logrado provar, tal como lhe competia, nos termos do disposto no art. 342º, nº1 do Código Civil, ter vivido em economia doméstica comum com o beneficiário falecido, tanto basta para se considerar como não provada a união de facto por ela invocada.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça



I – Relatório


1. O Instituto de Segurança Social/Centro Nacional de Pensões, IP (ISS)/CNP, instaurou a presente ação com processo comum contra AA, pedindo que se declare que a Ré não viveu em situação de união de facto com o beneficiário BB, à data da morte deste.

Alegou, para tanto, que, na sequência da morte do beneficiário BB, ocorrida em 14.07.2015, no estado de divorciado, requereu a Ré a atribuição das pensões devidas pela morte do mesmo, invocando a sua qualidade de unida de facto por com ele ter vivido em condições análogas às dos cônjuges desde 17.08.1991 até à respectiva morte.

Para prova dessa qualidade, apresentou a ré atestado emitido pela respectiva Junta de Freguesia, certificando que a mesma residira em comunhão de mesa e habitação com aquele beneficiário desde 1991 até à data da sua morte.

Sucede, porém, que uma filha do falecido veio informar o A. que tal não era verdade e que a Ré sempre residiu em habitação distinta da do falecido.


2. Contestou a Ré, afirmando que durante, pelo menos, 24 anos viveu com o falecido BB, partilhando a mesma mesa, cama e casa, sempre o acompanhando nomeadamente às consultas e ao Hospital e com ele recebendo amigos e familiares na casa do casal, onde frequentemente ocorriam almoços e jantares na respetiva companhia.

Nunca se desfez da sua casa por uma questão de cautela, pelo que a declaração que fez corresponde à realidade, devendo a ação improceder.


3. Proferido despacho saneador, fixou-se o objecto do litígio e selecionaram-se os temas da prova.  


4. Após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação “parcialmente procedente” e, em função disso, julgou não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre a Ré e BB à data da morte deste.


5. Inconformada com esta decisão, dela apelou a Ré para o Tribunal da Relação de ... que, por acórdão proferido em 2.11.2017, revogou a sentença recorrida e, em consequência, julgou improcedente a ação.   


6. Inconformado com esta decisão, dela interpôs o autor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1. Um dos requisitos necessários à União de Facto será forçosamente o da coabitação.

2. O Tribunal recorrido não concordou com a tese proferida em primeira instância, que entendeu que o relacionamento entre a R., ora recorrida e o falecido BB "não revestia as características que o tornavam análogo ao dos cônjuges".

3. Entenderam que não é imprescindível que a relação nunca seja interrompida pela saída de um dos membros da morada comum quando ocorram desentendimentos ou discussões." (...) "Tal como a circunstância de a Ré ter continuado a pagar as despesas do seu prédio urbano sito no n.° 21, 1o, da Rua …, …, C..., não podia pôr em causa a partilha da residência comum com o falecido - a n.° 8, R/Chão da mesma Rua".

4. E que bastava a circunstância da recorrida ter encetado com o beneficiário falecido BB um relacionamento que implicou a manutenção de relações sexuais, feitura de refeições conjuntas com amigos e familiares na morada comum, o pagamento alternado de despesas de alimentação e o acompanhamento do falecido ao Hospital para consultas e atendimentos nas urgências.

5. Ora, salvo o devido respeito, não aceitamos a tese do douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, de que se recorre.

6. Na sequência da morte de BB, a Ré, aqui recorrida, requereu prestações por morte à Segurança Social, já que, dispõe o artigo 8.° do D.L n° 322/90 de 18.10 que "1. O direito às prestações previstas neste diploma e o respectivo regime jurídico são tornados extensivos às pessoas que se encontrem na situação prevista no n.° 1 do artigo 2020.° do Código Civil. 2. O processo de prova das situações a que se refere o n.° 1, bem como a definição das condições de atribuição das prestações consta de decreto regulamentar."

7. Sendo certo que a razão de ser destas prestações por morte está prevista no n.° 1 do artigo 4.° do D.L. n° 322/90 de 18.10 quando estabelece que as "As pensões de sobrevivência são prestações pecuniárias que têm por objectivo compensar os familiares de beneficiários da perda de rendimentos de trabalho determinada pela morte deste."

8. O que se pretende é compensar a perda de rendimentos daqueles que vivam em situações análogas às dos cônjuges provocada pela morte do beneficiário.

9. Uma vez que os cônjuges ou aqueles que vivam numa situação análoga à dos cônjuges têm uma situação de economia comum, ou seja, têm despesas do agregado que são pagas com os rendimentos de ambos e a perda desses rendimentos pode ser devastadora para a parte sobreviva.

10. Ora, o conceito de "união de facto" ou de vivência "em condições análogas às dos cônjuges" - expressões do artigo 2020.°, n° 1 do Código Civil, na sua anterior redacção - tem de ser preenchido por via da alegação e prova de factos concretos que caracterizem o modo de vida próprio dos cônjuges, como sejam, a partilha da mesma habitação, cama, mesa e economia: tem que haver um esforço conjunto, a contribuição para as despesas comuns, colaboração na vida quotidiana.

11. Além do mais, é necessário que a relação seja vista, para aqueles que rodeiam os membros da união de facto e com eles convivam, como uma relação em tudo semelhante ao casamento, em que as pessoas sejam como tal vistas e tratadas.

12. E define-se essencialmente como uma comunhão de habitação, mesa e leito, sem um vínculo de casamento, sendo que as duas figuras diferem, essencialmente, no facto de que o casamento se realiza dentro de um quadro legal pré-definido e a união de facto fora desse quadro legal.

13. Aliás, tal como defende ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, em Código Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, página 624, a expressão "condições análogas às dos cônjuges" significa que os "companheiros não só mantêm notoriamente relações de sexo, mas vivem também de casa e pucarinho um com o outro, com comunhão de mesa, leito e habitação, como se fossem de facto cônjuges um do outro".

14. Sendo que a caracterização destas situações estáveis, consolidadas, notórias, de convivência de casa e pucarinho exige como elemento essencial a comunhão de residência, a comunhão de habitação.

15. Dos factos provados, resulta que o beneficiário falecido residia na Rua …, n.° …, R/C, sendo apenas ele quem pagava a renda e as despesas de água, luz e electricidade dessa casa. Ao contrário da Ré que mantinha os pertences no n.° 21 da mesma rua, sendo ela quem pagava as mesmas despesas dessa outra casa.

16. Concluindo-se assim que não havia um contributo fixo ou variável para despesas comuns do casal, para a comunhão de vida (comunhão de cama, mesa e habitação) e para a economia comum baseada na entreajuda ou partilha de recursos.

17. A recorrida e o BB até podiam ter uma relação de grande afectividade, de grande carinho e de grande cumplicidade, mas não tinham uma relação em tudo análoga à dos cônjuges, pois não tinham uma vida em comum, não partilhavam casa nem responsabilidades, apenas bons e por vezes maus momentos, sendo certo que a partilha da mesma habitação é essencial para a existência de uma situação de união de facto.

18. Concordamos, por isso, com a tese explanada na sentença proferida na primeira instância, quando se diz que "embora BB e a Ré tivessem relações sexuais e esta pernoitasse quase sempre em casa daquele, certo é que mantinha a sua casa, onde dormia pontualmente e onde mantinha os seus objectos. Não sentia a casa sita no n.° 8 r/c como verdadeiramente sua, até porque, como a própria explicou, chegou a ser expulsa dali por BB, no contexto de discussões. Por outro lado, embora partilhassem as refeições, não havia comunhão patrimonial: as compras eram custeadas, alternadamente por um e pelo outro, tendo uma separação bem definida das despesas de renda, água, luz e gás de cada uma das suas casas". "Ou seja, embora BB e a Ré tenham tido um relacionamento amoroso longo (de mais de vinte anos), de dedicação, auxílio, acompanhamento desta àquele, particularmente na doença de que o mesmo padeceu, certo é que o mesmo não revestia as características que o tornavam "análogo ao dos cônjuges".

19. Pelo que o Tribunal da Relação deveria ter confirmado a douta sentença proferida na primeira instância.

20. Não fazendo, violou assim os artigos 4.°. n.° 1 e 8.° do D.L. n.° 322/90 de 18.10, art.° 2020°, n.° 1 do Código Civil, assim como o art.° 1o, n.° 2 da Lei 7/2001».


Termos em que requer seja revogado o acórdão recorrido e a sua substituição por outro que julgue a ação totalmente procedente e assim não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre AA e o beneficiário falecido BB, à data da morte deste.


7. A ré contra alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido. 

 

8. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



II. Delimitação do objecto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, a única questão a decidir consiste em saber se é de qualificar o relacionamento havido entre a ré o BB como união de facto.  



***



III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


As instâncias deram como provados os seguintes factos:


1. BB, beneficiário nº 11…2 do ISS/CNP, faleceu em 14/07/2015, no estado civil de viúvo.


2. A Ré nasceu em 12-01-1943 e é solteira (vd. assento de nascimento de fls. 43).


3. BB e CC contraíram casamento em 26-07-1964 (vd. assento de nascimento de fls. 43).


4. O agregado familiar constituído por BB, CC e a filha de ambos, DD, residia na Rua …, n.º …, r/c.


5. Desde data não concretamente apurada de 1973, a Ré reside na Rua …, n.º …-1º.

6. CC faleceu em 28-02-1991 (vd. assento de nascimento de fls. 43).


7. Após a data referida em 6), BB e a Ré encetaram um relacionamento amoroso.


8. Após a data referida em 6), BB e a Ré passaram a ter relações sexuais e a fazer as refeições juntos, na Rua …, n.º …, r/c.


9. Cinco anos após a data referida em 6), DD licenciou-se e foi trabalhar e viver para o ….


10. Após o referido em 9), a Ré passou a pernoitar em casa de BB, excepto quando DD o vinha visitar e passar o fim-de-semana, duas vezes por mês, e quando discutiam.


11. Após o referido em 9), a Ré manteve o arrendamento da casa sita na Rua …, n.º …-1º, onde conservou os seus objectos e pertences.


12. BB e a Ré faziam almoços e jantares entre amigos e familiares de BB, na casa sita na Rua …, n.º …, r/c.


13. BB pagava a renda e as despesas de água, luz e electricidade da casa sita na Rua …, n.º …, r/c e a Ré pagava a renda e as despesas de água, luz e electricidade da casa sita na Rua …, n.º …, 1º.


14. BB e a Ré pagavam alternadamente as despesas de supermercado.


15. A Ré acompanhava BB, às consultas e às urgências do hospital.


16. O referido em 8) e 10) a 15) durou até ao falecimento de BB.


17. Em 03/08/2015, a Ré requereu as prestações por morte de BB, na qualidade de “unida de facto”, juntando os documentos exigidos pelo art. 2º-A, nº4 da Lei 7/2001, de 11 de Maio.


18. Dos documentos referidos em 17), consta um atestado emitido pela Junta de … - C…, datado de 14 de Outubro de 2015, onde se lê “que AA, de 72 anos de idade, solteira, natural da freguesia de …, concelho de ..., filho/a de EE e de FF, Doméstica, reside nesta freguesia na Rua …, n.º … – r/chão, 3030-Coimbra. Mais atesta que a requerente residiu em comunhão de mesa e habitação com BB desde o ano de 1991 até à data do seu falecimento em 14/07/2015”.


19. A Ré preencheu e assinou uma declaração, sob compromisso de honra, que viveu com o beneficiário falecido em condições análogas às dos cônjuges, no período de 17/08/1991 a 14/07/2015, mais declarando não se encontrar em nenhuma das situações impeditivas da atribuição dos direitos fundados em união de facto, estabelecidas no artº 2º da Lei 7/2001, de 11 de Maio.


20. No dia 12/08/2015, DD apresentou uma denúncia ao A. na qual alegava que a Ré não vivera em união de facto com o seu pai.   

                                                    


*


Factos não provados:


- que a Ré e BB tenham passado a fazer toda a vida de casal, na Rua …, nº … r/chão.


- que a R. tenha mantido o arrendamento da casa sita na Rua …, nº …-1º para acautelar a possibilidade de DD pode querer vir para ali morar.


- que a casa sita na Rua … , nº …- 1º servisse como uma casa para os amigos ficarem a dormir.


- que BB pernoitasse em casa da Ré.



***



3.2. Fundamentação de direito


Conforme já se deixou dito, a única questão a decidir, no âmbito do presente recurso, consiste em saber se o relacionamento havido entre a ré o BB integra o conceito de união de facto. 

3.2.1. Enquadramento preliminar.


Não obstante o casamento como forma de constituição de família encontrar-se ainda bastante enraizado na nossa sociedade, a verdade é que, nas últimas décadas, o conceito de família tem vindo a adquirir um âmbito muito mais vasto.

A evolução social conduziu a novas conceções de família, fazendo surgir novos tipos de organização familiar.

No dizer de Hegel[2], o direito a constituir uma família fora do casamento, é um direito fundamental dos cidadãos, expressão do seu direito à liberdade e à sua autodeterminaçãode e, sendo a família uma substancialidade imediata do espírito tem como determinante a autoconsciência da sua própria individualidade, nessa mesma unidade.

Também o art. 36º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, ao estabelecer que «Todos têm direito a constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade», parece distinguir a família do casamento.

Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira[3], « Conjugando, naturalmente, o direito de constituir família com o de contrair casamento a Constituição não admite todavia a redução  do conceito de família à união baseada no casamento, isto é, à família “matrimonializada” ».

Dito de outro modo e na expressão de Jorge Miranda e Rui Medeiros[4], tal como resulta do disposto no art. 67º, nº1 da CRP, a proteção constitucional dirigida à família não se esgota na família conjugal, abarcando a família natural, numa abertura à diversidade e pluralidade das relações familiares hodiernas.

No mesmo sentido, o artigo 9º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), baseando-se no artigo 12º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH), dispõe que «O direito de contrair e o direito de constituir família são garantidos pelas legislações nacionais que regem o respectivo exercício», o que, no dizer de Carlos Pamplona Corte-Real e José Silva Pereira[5], evidencia claramente não haver uma conexão necessária entre o direito de constituir família e o instituto do casamento.

No mesmo sentido se vem pronunciando o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, recordando, no Acórdão Kroon and others V. The Netherlands - Proc. n.º 18535/91 [6], que a noção de "vida familiar" não se limita unicamente a relações baseadas no casamento, podendo  abranger outros "laços familiares" de facto, onde as partes vivem juntas fora do casamento.

De resto, como é consabido, os Estados-Membros da União Europeia foram mesmo encorajados pelo Parlamento Europeu, na Resolução de 5 de julho de 2001, a reconhecerem as relações não maritais, entre pessoas do mesmo ou diferentes sexos, e a adotarem medidas protectoras de tais situações de coabitação similares às conferidas aos casais casados.

E também o Conselho, na Diretiva 2003/86/CE, de 22 de Setembro de 2003, e a propósito da reunificação da família, estabelece que ela é baseada numa visão contemporânea da família, abarcando o cônjuge ou coabitante, incluindo os do mesmo sexo, considerando-se como entidade familiar o vínculo coexistencial entre pessoas do mesmo sexo, mesmo que desligado da celebração do casamento.

Tudo isto para, no dizer de Carbonnier[7], «se donner de la famille une image plus réaliste, plus soucieuse des situations de fait que des vues théoriques».

De salientar, contudo, que o legislador não reconhece nem confere tutela jurídica a todas as opções de vida em comum, ainda que socialmente aceites.

De entre estas opções, aquela que, entre nós, vem ganhando cada vez maior expressão e relevo jurídico, apresentando-se como a figura do direito convivencial por excelência, é a união de facto, primeiramente com acolhimento legal na Lei nº 135/99, de 28.08 e, depois, na Lei nº 7/2001, de 11.05, alterada pela Lei nº 23/2010, de 30.08.

Mas, não obstante isso, a verdade é que, ante o disposto no art. 1576º do C. Civil, que apenas considera como «fontes das relações jurídicas familiares o casamento, o parentesco, a afinidade e a adopção», a questão da qualificação da união de facto como relação familiar ainda não ganhou consenso entre nós.

Assim, enquanto alguns autores reconhecem carácter familiar à união de facto[8], outros há que defendem ser opção do legislador, apesar da proteção social que lhe é concedida, não atribuir natureza familiar à união de facto[9].

Tomando posição sobre esta problemática diremos que, sendo elementos caracterizadores da instituição família, a “vida em comum” e a sua perdurabilidade, não podemos deixar de reconhecer o carácter familiar às “uniões de facto”.

Daí sufragarmos as afirmações feitas por Telma Carvalho no sentido de que essa qualificação se impõe «face à actual redacção do artigo 36º, nº1 da Constituição da República Portuguesa e face aos efeitos que são e vão sendo reconhecidos à própria união de facto», não se ficando a dever «apenas a uma clara e evidente evolução social apreendida pelo direito, mas também à própria função teleológica da união de facto de comunhão plena de vida, de mesa, leito e habitação», que, tal como o casamento, permite a realização pessoal de cada sujeito familiar. «A união de facto afasta-se, assim das qualificadas relações fortuitas e passageiras, que não se coadunam com uma qualificação de relação familiar» e «encontra-se na esfera de protecção constitucional prevista no art. 67º da Constituição da República Portuguesa que prevê a protecção à família»[10].

De salientar, porém, que, não obstante se vir a assistir a uma aproximação cada vez maior dos efeitos da união de facto ao casamento, isso não significa que à união de facto seja de aplicar, por analogia, o regime matrimonial, o que a acontecer afrontaria o princípio da igualdade consagrado no art. 13º da CRP, na medida em que estamos perante duas bem realidades diferentes.

A união de facto não assenta num vínculo jurídico, distinguindo-se do casamento, quer no plano da constituição[11], dos efeitos[12] e da extinção[13].

De comum com o casamento apenas tem a circunstância de pressupor uma “comunhão de vida”.

Posto que as Leis n.º 135/99, de 28.08, e n.º 7/2001, de 11.05,  não definiram o conceito de união de facto, a conceptualização desta figura, enquanto convivência de duas pessoas em “condições análogas  às dos cônjuges”, teve como preceito orientador o art. 2020º do C. Civil ( com a redação dada pela reforma de 1977 e sem a alteração introduzida pela Lei  nº 23/2010, de 30.08) que, no seu  nº1, dispunha: «Aquele que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, tem direito a exigir alimentos da herança do falecido, se os não poder obter, nos termos das alíneas a) a d) do artigo 2009º ».

Atualmente, a Lei nº 7/2001, após a alteração operada pela Lei nº 23/2010, de 30.08[14], passou a estabelecer, no seu art. 1º, nº 2 que «A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às do cônjuges há mais de dos anos».

Vejamos, então, o que significa comunhão de vida “em condições análogas às dos cônjuges”.       

Assim, densificando este conceito, diremos, na esteira do afirmado no Acórdão do STJ, de 09.07.2014 ( proc. nº 3076711.1TBLLE.E1.S1)[15], que, no fundo, estamos perante a “comunhão de leito, mesa e habitação, a que tradicionalmente se recorre para caracterizar a relação entre os cônjuges, ou seja, nas palavras de Jorge Duarte Pinheiro[16], face a «uma coabitação, na tripla vertente de comunhão de leito, mesa e habitação».

Segundo este mesmo autor, a alusão a “comunhão de leito” é integrada pela comunhão sexual, elemento que, por faltar, na “convivência em economia comum”, diferencia esta figura da união de facto[17].

Por “ economia comum”, entende-se, nos termos do art. 2º, n.º 2 da Lei nº 6/2001, de 11.05 (que estabelece as medidas de proteção das pessoas que vivem em economia comum), «a situação de pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação há mais de dois anos e tenham estabelecido uma vivência em comum de entreajuda ou partilha de recursos».

Aliás, é precisamente este aspeto que distingue a união de facto do chamado concubinato duradouro, a que alude o art. 1871º, n.º 1 do C. Civil, uma vez que neste, não há comunhão de mesa e habitação, verificando-se apenas um relacionamento sexual estável[18].

De realçar, por um lado, que não basta uma comunhão de vida por parte dos membros da união de facto como se fossem casados, exigindo ainda o art. 1º, n.º 2 da Lei nº 7/2001, que a comunhão de leito, mesa e habitação seja estável, tendo, pelo menos, uma durabilidade superior a dois anos, sob pena de não produzir qualquer efeito juridicamente tutelado.

E, por outro lado, que, não goza das medidas de previstas na Lei nº 7/2001 a união de facto fundada nos impedimentos estabelecidos no art. 2º desta mesma lei.



*

3.2.2. É, pois, neste contexto que importa analisar se a factualidade dada como provada e supra descrita nos nºs 1 a 20 do ponto 3.1. é, ou não, suficiente para se concluir pela existência de uma situação de união de facto entre o BB e a ré.

No sentido negativo, pronunciou-se o Tribunal de 1ª instância, argumentando que :

« (…)

Efectivamente, embora BB e a Ré tivessem relações sexuais e esta pernoitasse quase sempre em casa daquele, certo é que mantinha a sua casa, onde dormia pontualmente e onde mantinha os seus objectos. Não sentia a casa sita no n.º … r/c como verdadeiramente sua, até porque, como a própria explicou, chegou a ser expulsa dali por BB, no contexto de discussões. Por outro lado, embora partilhassem as refeições, não havia comunhão patrimonial: as compras eram custeadas, alternadamente por um e pelo outro, tendo uma separação bem definida das despesas de renda, água, luz e gás de cada uma das suas casas”.

Concluindo, assim, que o relacionamento entre o falecido BB e a Ré “não revestia as características que o tornavam ‘análogo ao dos cônjuges’”.


Discordando deste entendimento, afirmou o Tribunal da Relação  que:

« (…) para que uma relação convivencial entre duas pessoas se possa considerar com “união de facto” não é imprescindível que a mesma nunca seja interrompida pela saída de um dos membros da morada comum quando ocorram desentendimentos ou discussões.

Desentendimentos ou discussões também se verificam no casamento, podendo levar à interrupção esporádica da comunhão que é própria desse instituto sem todavia se poder dizer que, por isso, a comunhão de habitação fica descaracterizada.

Tal como a circunstância de a Ré ter continuado a pagar as despesas do seu prédio urbano sito no nº 21, 1º, da Rua …, …, C..., não podia pôr em causa a partilha da residência comum com o falecido – a do nº …, r/chão da mesma Rua.

Querendo a Ré manter a propriedade daquele seu imóvel – por motivos que para aqui não interessam – nada mais óbvio do que estar vinculada a suportar as respectivas despesas e encargos de conservação.

Aliás, o A. demandou a Ré como moradora na casa onde esta viveu com o falecido (o dito nº …, r/c da Rua …) e foi aí que esta foi efectivamente citada para a acção.

Como, de resto, bem se enfatiza na sentença, o que define a vivência “em condições análogas às dos cônjuges” a que se reporta o nº 2 do art.º 1º da Lei nº 23/2010 de 30 de Agosto é a presença de uma comunhão de mesa, leito e habitação.

Já nada impondo que entre os membros da união existam os mesmos deveres jurídicos do casamento, designadamente os de fidelidade ou assistência.

De sorte que estando demonstrado que, desde 1991 até ao decesso do dito BB em 14.07.2015, a Ré encetou com ele um relacionamento que implicou a manutenção de relações sexuais, feitura de refeições conjuntas com amigos e familiares na morada comum, pagamento alternado de despesas de alimentação, e o acompanhamento do falecido ao Hospital para consultas e atendimento nas urgências, mostram-se suficientemente comprovados os requisitos da declaração da união de facto que se tem de ter por estabelecida durante todo o aludido lapso temporal».

Vejamos, então, de que lado está a razão.


É certo resultar dos factos provados ter a ré, no ano de 1991, iniciado um relacionamento amoroso com o BB e que, a partir de então e até 14.07.2015, passaram a ter relações sexuais um com o outro, o que, em consonância com as instâncias, nos permite facilmente concluir pela existência, entre ambos, de um relacionamento sexual estável e duradouro.

A discordância entre a 1ª e a 2ª instâncias radica quanto à questão de saber se é susceptível de integrar o conceito de “comunhão de mesa e habitação” a circunstância de, por um lado, ter ficado provado que a ré passou, desde 1991 até 14.07.2015, a fazer as refeições com o BB na casa dele, sita na Rua …, n.º …, r/c, onde também faziam almoços e jantares entre amigos e familiares de BB, pagando, alternadamente as despesas de supermercado; que a ré acompanhava o BB, às consultas e às urgências do hospital e que passou a pernoitar naquela casa a partir de 1996, o que só não acontecia quando a filha do BB o vinha visitar e passar o fim-de-semana, vezes por mês, e quando discutiam. 

E de, por outro lado, ter ficado igualmente provado que o BB pagava a renda e as despesas de água, luz e electricidade da casa sita na Rua .., n.º .., r/c e que a ré manteve o arrendamento da casa sita na Rua …, n.º …-1º, pagando a renda e as despesas de água, luz e eletricidade desta casa, onde conservou os seus objectos e pertences.

Ora, tendo em conta, como refere o citado acórdão do STJ, de 09.07.2014, que a vivência em “condições análogas  às dos cônjuges” deve ser aferida segundo critérios de normalidade e de vulgaridade, inseridos na cultura a que pertencemos, diremos, em consonância com o Tribunal de 1ª instância, não ser o quadro factual acabado de descrever suficiente para dar como provada a existência entre a ré e o BB de uma convivência em economia comum.

É que, caracterizando-se esta convivência pela situação de pessoas que vivam em comunhão de mesa e habitação, com base num lar em sentido familiar, moral e social e com base numa economia doméstica comum, o que ressalta da factualidade supra descrita é, conforme se afirma na sentença proferida pela Tribunal de 1ª Instância, que a ré pernoitava na casa do BB, sita no n.º … r/c, mas manteve sempre a sua casa, onde conservou os seus objectos e pertences, o que é bem sintomático de que não sentia aquela casa como sua.

Acresce que, não obstante ter alegado, a ré não logrou provar, tal como lhe competia, nos termos do disposto no art. 342º, nº 1 do C. Civil, que: «a Ré e o BB tenham passado a fazer toda a vida de casal, na Rua …, nº … r/chão; a R. tenha mantido o arrendamento da casa sita na Rua ..., nº ...-1º para acautelar a possibilidade de DD pode querer vir para ali morar; a casa sita na Rua …, nº …- 1º servisse como uma casa para os amigos ficarem a dormir e que o BB pernoitasse em casa da Ré», o que tudo é bem ilustrativo do que se acabou de afirmar.

E se é certo resultar da factualidade provada que a ré fazia as refeições com o BB na casa dele, a verdade é que não se vê que existisse uma economia doméstica comum, característica do modo de vida próprio dos cônjuges, existindo, antes, economias separadas, posto que as despesas do supermercado eram custeadas, alternadamente por um e pelo outro, e havia uma separação bem definida das despesas de renda, água, luz e gás de cada uma das respetivas casas.

O que tudo, a nosso ver, basta para se considerar como não provada a união de facto invocada pela ré, por inverificada uma vivência, entre a ré e o BB, em economia comum.


Termos em que procede a argumentação aduzida pela recorrente, não podendo, por isso, manter-se o acórdão recorrido.  


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III – Decisão


Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em conceder a revista e, revogando o acórdão recorrido, em manter a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª instância que julgou não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre a ré, AA, e o beneficiário falecido, BB, à data da morte deste.

Custas a cargo da ré recorrida.


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Supremo Tribunal de Justiça, 22 de março de 2018

(Texto elaborado e revisto pela Juíza relatora).

Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)

Rosa Maria Ribeiro Coelho

João Luís Marques Bernardo



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[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respectivamente.
[2] In “Filosofia do Direito”, pág. 158.
[3] In, “ Constituição da República Portuguesa, Anotada”, 4ª ed. Revista, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, pág. 561.
[4] In, “ Constituição da República Portuguesa”, pág. 398.
[5] In, “Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Comentada”, Alessandra Silveira, Mariana Canotilho Coordenadoras; Almedina, 2013, pág. 132
[6] Acessível em língua inglesa em https://hudoc.echr.coe.int/eng#{"itemid":["001-57904"]}. No mesmo sentido, cfr. o Acórdão Keegan v. Irlanda de 26 de maio de 1994, série A nº 290, pp. 17-18, parágrafo 44.
[7] Citado por Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in, “Curso de Direito da Família”, Vol. I, Introdução Direito Matrimonial, 4ª ed. Coimbra Editora, 2008, pág. 60.
[8] Designadamente, Telma Carvalho, “União de Facto: a sua eficácia jurídica”, in, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Vol. I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, pág. 226; Pereira Coelho, in “ Casamento e Família no Direito Português; Temas de Direito de Família, Almedina, 1996, pág. 9, pese embora considerar que a qualificação da união de facto como relação de família limita-se aos efeitos reconhecidos por lei; Gomes Canotilho e Vital Moreira, que in “ Constituição da República Portuguesa, Anotada”, 4ª ed. Revista, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, págs. 559 a 568, ante o art. 36, nº1 da CRP, defendem que o conceito de família, para além da família fundada no casamento, abrange também a família emergente das “comunidades constitucionalmente protegidas”, onde se insere a união de facto; Acórdão a Relação de Lisboa, de 22.09.1993, in, CJ, ano 1993, Tomo IV, pág. 178.
[9] Designadamente, Antunes Varela, in, “ Direito da Família”, Vol. I, pág. 31 Rita Lobo Xavier, in, “O «estatuto» privado dos membros da união de facto”, n Scientia Iuridica, Tomo LXIV, nº 338-Maio/Agosto de 2015, pág. 316.
[10] In União de Facto: a sua eficácia jurídica”, in, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Vol. I, Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, pág. 226.
[11]A união de facto não é um estado civil, não estando, por isso, sujeita a qualquer formalidade nem à publicidade do registo.
[12] Cfr. arts. 3º, 4º, 5º, 6º e 7º da Lei nº 7/2001, de 11.05, com as alterações introduzidas pela Lei nº 23/2010, de 30.08.
[13] Cfr. 8º da Lei nº 7/2001, de 11.05, com as alterações introduzidas pela Lei nº 23/2010, de 30.08, cujo nº 1, al. b) e nº2 , prevê que a dissolução da união de facto, por vontade de um dos membros, possa vir a ser judicialmente declarada, quando se pretendam fazer valer direitos que dela dependam.
[14] Que, no dizer do Acórdão do STJ, de 09.07.2014 (proc. nº 3076711.1TBLLE.E1.S1), tem valor interpretativo relativamente à anterior legislação, exceto quanto ao prazo da vivência.
[15] Publicado in www dgsi. pt .
[16] In, “ O Direito da Família Contemporâneo”, 4ª edição (reimpressão), FDL Editora, Lisboa, 2015, pág. 651.
[17] Cfr. obra citada, pág. 653

[18] Neste sentido, cfr. Jorge Duarte Pinheiro, in obra citada, pág. 653.