Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P569
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALVES VELHO
Descritores: INDIGNIDADE
HERDEIRO
HOMICÍDIO
Nº do Documento: SJ20070327005691
Data do Acordão: 03/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
- Não pode haver lugar à declaração de indignidade sucessória do herdeiro que, indiciado por homicídio do autor da herança, não foi, pela prática do respectivo crime, condenado em processo penal;
- Nada autoriza, designadamente em caso de extinção do procedimento criminal por morte do agente indiciado, a aplicação da norma do art. 2034º-a) C. Civil, por via de recurso à analogia ou a interpretação extensiva do preceito.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - AA e outros, todos seus irmãos, propuseram contra BB e mulher, CC, acção declarativa pedindo que fosse declarada a incapacidade sucessória de DD, por indignidade, e afastado da sucessão à herança da falecida EE e filho, FF, condenando-se os réus a reconhecerem a dita indignidade do seu filho.

Alegaram os Autores que são, com EE, filhos de GG e HH, bem como tios de FF, filho daquela EE. No dia 26.07.04, EE e o seu filho FF faleceram, em consequência de disparos de caçadeira, da autoria de seu marido e pai, DD, que, por sua vez era filho dos Réus. Relativamente a estes factos correu termos processo de Inquérito, o referido DD foi detido e foi-lhe aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, processo que foi arquivado por causa da morte do arguido, em 17.11.04, quando este se encontrava detido no Estabelecimento Prisional, o qual só não foi condenado porque se suicidou.

Contestaram os Réus, peticionando a total improcedência do pedido, com fundamento no facto de que não chegou a ser proferida decisão condenatória no processo de Inquérito instaurado ao referido DD, estando os Autores a emitir um juízo de prognose póstuma ao vaticinar a condenação do mesmo.

A acção foi julgada improcedente no despacho saneador, decisão que a Relação confirmou.

Os Autores pedem ainda revista, pedindo a revogação do acórdão e insistindo na procedência da acção, a coberto das seguintes conclusões:
1 - Baseando-se numa interpretação meramente literal dos dispositivos das als. a), b), c) e d) do art. 2034.º C. Civil, o Tribunal considerou que a inexistência de condenação pelo crime de homicídio constitui impedimento à declaração de indignidade, para efeitos sucessórios;
2 - A interpretação do citado normativo não toma em conta, desde logo, que nas als. c) e d) do art. 2034º podem caber actuações que não se integram num tipo legal de crime;
3 - Casos com as circunstâncias e especificidades da situação subjudice, que, obviamente, não poderiam ser integralmente previstas, merecem a tutela do direito, com recurso à analogia, ou, pelo menos, à interpretação extensiva da norma a al. a) do art. 2034º;
4 - O entendimento do acórdão recorrido, nos termos do qual o procedimento criminal por falecimento do agente inviabiliza automaticamente a declaração de indignidade deste para efeitos sucessórios, representa uma violação do direito a uma efectiva tutela jurisdicional, consagrado no art. 20.º da Constituição da República;
5 - A interpretação perfilhada pelo Tribunal recorrido não toma em devida conta os princípios vertidos nos arts. 9º, 10º e 11º do C. Civil.

2. - Vem provado o seguinte conjunto fáctico:

- Os Autores são irmãos e tios de II, respectivamente;
- Aquela foi mulher de JJ, que foi pai de FF;
- EE e FF morreram no dia 26.07.04;
- JJ morreu no dia 17.11.04;
- Pela morte de II foi indiciado JJ, tendo corrido termos o processo de Inquérito n.º …… GBPRD cujo arquivamento foi ordenado por ser legalmente inadmissível o procedimento criminal fruto da morte do arguido.

3. Mérito do recurso.

3. 1. - A questão que se coloca consiste em saber se pode haver lugar à declaração de indignidade sucessória do herdeiro indiciado por homicídio do autor da herança, independentemente de condenação em processo penal, como prevê a al. a) do art. 2034.º C. Civil, designadamente em caso de extinção do procedimento criminal por morte do agente, devendo, para tanto, recorrer-se a interpretação analógica ou extensiva do preceito.
Sendo negativa a resposta, questiona-se ainda se um tal juízo de inviabilização da declaração de indignidade viola o direito constitucional a uma efectiva tutela jurisdicional – art. 20.º CR.

3. 2. - As causas de incapacidade sucessória por indignidade encontram-se enunciadas no art. 2034º C. Civil.

Depois de, no art. 2033º, estabelecer os princípios gerais da capacidade sucessória, o legislador aponta as causas de incapacidade por referência aos actos ilícitos geradores da indignidade que faz assentar em circunstâncias “de raiz puramente subjectiva, traduzida numa atitude de repúdio da lei pelos factos graves cometidos por alguém contra o autor da herança, seu cônjuge ou familiares mis próximos” (P. DE LIMA e A. VARELA, “C. Civil, Anotado”, VI, 37).

Assim, prevê a al. a) mencionado art. 2034º que carece de capacidade sucessória, por motivo de indignidade, o condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, ascendente, descendente, adoptante ou adoptado.

A lei exige claramente a condenação do indigno, como autor ou cúmplice da prática dos factos, em sentença penal, resultando afastada a possibilidade de prova do ilícito constitutivo do crime em acção cível (cfr., nesse sentido, ob. cit., pg. 38 e R. CAPELO DE SOUSA, “Lições de Direito das Sucessões, I, 3.ª ed., 257).
Como se escreveu no acórdão deste Supremo de 23/7/74 (BMJ 239-225), “a falta dessa capacidade (sucessória)» por motivo de indignidade», nem é mero efeito da prática do crime e homicídio contra o autor da herança – pois o art. 2034 – a) C. Civil, tal como o previgente art. 1782.º do Código de Seabra, só a recusa, como acentuava DIAS FERREIRA (C. Civil Anotado, 2.ª ed., vol. 3º, 296), a quem por ele tenha sido condenado «por sentença com trânsito em julgado» (…) sendo antes, conforme observa o Prof. O. ASCENSÃO (“As Actuais Coordenadas do Instituto da Indignidade Sucessória”, pg. 8, Separata dos anos 100.º e 101. de “O DIREITO”) «consequência autónoma no plano civil» da respectiva condenação”.

Que assim é, colhe-se também da concretização do regime e requisitos dos factos de natureza criminosa previstos nas als. a) e b) do art. 2034.º.
Com efeito, logo no art. 2035.º se estabelece que a condenação a que se referem as als. a) e b) do art. anterior pode ser posterior à abertura da sucessão, mas só o crime anterior releva para o efeito, do mesmo passo que quanto às causas previstas nas mesmas alíneas a lei toma como indexante do prazo de caducidade da acção de declaração de indignidade a data da condenação pelo crime que a determina.
Já relativamente às causas previstas nas als. c) e d) do preceito, não necessariamente de natureza criminosa, o prazo de caducidade se conta do conhecimento de cada uma dessas causas, assim ficando estabelecido mais um traço de distinção entre os factos ilícitos cujo reconhecimento e relevância dependem de condenação penal e os que podem ser conhecidos em acção cível.

3. 3. - Sustentam os Recorrentes que, não tendo o legislador previsto o falecimento do herdeiro homicida antes de proferida a sentença condenatória definitiva, há que resolver a situação recorrendo à analogia ou a interpretação extensiva da al. a) do art. 2034.º.

3. 3. 1. - De harmonia com o disposto no art. 10.º-1 C. Civil, deve o julgador aplicar aos casos omissos as normas que directamente disponham para casos análogos.
A analogia existe, como do n.º 2 do preceito se colhe, quando no caso omisso concorram as mesmas razões justificativas da solução encontrada pela lei, isto é, quando “o critério valorativo adoptado pelo legislador para compor esse conflito de interesses num dos casos seja por igual ou maioria de razão aplicável ao outro” – BAPTISTA MACHADO (“Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 202) – justificando-se o recurso à analogia por razões de coerência do sistema e de justiça relativa, tudo postulado pelo princípio da igualdade e pela certeza do direito.

De notar, como referem P. DE LIMA e A. VARELA (ob. cit., I, 4ª ed., 59), que “a analogia das situações mede-se em função das razões justificativas da solução fixada na lei, e não por obediência à mera semelhança formal das situações”.

Ora, a situação que se apresenta não constitui, a nosso ver, um caso omisso, um caso que sendo relevante, não constitui objecto de disposição legal.

Diferentemente, o caso é objecto de previsão e regulamentação justamente na al. a) da norma que se pretende ver aplicada por analogia.

O que acontece é que para além da previsão do facto ilícito gerador do efeito jurídico, a mesma norma exige um outro requisito, de natureza exógena e processual, que consiste na verificação e declaração definitiva do facto e sancionamento do agente pelo tribunal materialmente competente.
Não se pode falar de incompletude ou falha de previsão que deva ser integrada, no sentido de que a lei não contém uma resposta á questão jurídica. A lei contempla a situação de comissão de homicídio contra o autor da herança, mas condiciona a eleição do acto criminoso a causa de declaração de indignidade à condenação penal transitada.

E, como já se adiantou, tal sucede porque, certamente atendendo às razões subjectivas que sustentam o repúdio da lei pelos factos de natureza criminosa que, pela sua gravidade, elegeu à categoria de determinantes da indignidade, manteve deliberadamente a exigência de condenação penal que vinha do direito anterior, dispensando-a quanto aos factos que enuncia nas als. c) e d) do artigo, atendendo à sua diferente natureza.

A tal não será certamente estranho o princípio, com consagração constitucional – art. 32º-2 CR – da presunção de inocência, desde logo na sua vertente de dever considerar-se inocente quem não foi ainda julgado culpado por sentença transitada em julgado, mesmo sem curar aqui de questões que podem prender-se, por exemplo, com a imputabilidade do agente, o que não é indiferente face à opção pela natureza não objectiva das causas de indignidade.

A gravidade da declaração de indignidade e dos factos que o legislador seleccionou como suas possíveis causas, bem como os requisitos de que as fez depender, conduzem-nos, ainda, ao entendimento que devem considerar-se taxativas as causas de incapacidade sucessória enunciadas no art. 2034º.

3. 3. 2. - Do referido pode já deduzir-se que também se entende não ser caso de, por interpretação extensiva, incluir a situação dos autos na previsão da norma da alínea a) – arts. 9.º e 11.º C. Civil.

Decerto que à razão de ser da lei, enquanto norma de fixação da causa de indignidade, não repugnaria a abrangência de casos como o ajuizado, demonstrado que fosse facto ilícito criminoso.
Porém, como já se viu, nem a letra nem o espírito da lei comportam o entendimento de que a mesma diga mesmo do que aquilo que pretendia dizer

Não se trata, mais uma vez, de a lei contemplar uma situação, estabelecendo o respectivo regime jurídico, deixando de fora situações que, pelos mesmos ou mais fortes motivos (argumentos a pari e a fortiori), haveriam de ser abrangidas pela mesma lei.
A situação está contemplada, mas tem a respectiva relevância condicionada a certos requisitos de reconhecimento e eficácia.

3. 3. 5. - Concluindo, dir-se-á que nada autoriza, por via de recurso à analogia ou a interpretação extensiva, aplicar a norma do art. 2034º-a) do C. Civil a casos em que o autor (indiciado) do facto criminoso não foi pela respectiva prática condenado por sentença penal.

3. 4. - Finalmente, os Recorrentes sustentam que o entendimento segundo o qual a extinção do procedimento criminal por morte do agente inviabiliza a declaração de indignidade deste para efeitos sucessórios representa uma violação do direito a uma efectiva tutela jurisdicional, consagrado no art. 20º CR.
Em vão se procuram, nas alegações, as razões da afirmação, pois que nada mais se acrescenta ao conteúdo da conclusão.

Nestas circunstâncias, nada mais haverá a dizer que vendo os Recorrentes, como viram, apreciado e definido o direito que invocaram em conformidade com a interpretação que o Tribunal, por aplicação da lei e do direito, teve como adequada, com respeito pelas normas processuais, designadamente assegurando o contraditório e a igualdade das partes, também em sede de recurso, não se vislumbra a violação do mencionado preceito constitucional ou de qualquer princípio nele contido.

5. – Decisão.

Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
- Negar a revista;
- Confirmar a decisão impugnada; e,
- Condenar os Recorrentes nas custas.


Lisboa, 27 Março 2007

Alves Velho
Moreira Camilo
Urbano Dias