Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A379
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: VALORES MOBILIÁRIOS
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ20070313003791
Data do Acordão: 03/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Sumário :
1) A fixação dos factos baseados em meios de prova livremente apreciados pelo julgador está fora do âmbito do recurso de revista.
2) Só em casos excepcionais é que o Supremo Tribunal de Justiça conhece matéria de facto (artigos 26º da Lei 3/99 e 722º nº2 e 729º nº 2 do Código de Processo Civil).
3) Ressalvando essas situações muito restritas, o STJ só conhece matéria de direito, apenas sindicando o modo como a Relação fixou os factos materiais se foi aceite um facto sem produção do tipo de prova para tal legalmente imposto ou se for patente o incumprimento das normas reguladoras de certos meios de prova.
4) É válida a clausula do contrato de compra e venda de acções que condiciona a transmissão da sua propriedade à verificação de um evento futuro, cuja não ocorrência terá a natureza de condição resolutiva.
5) O Código de Valores Mobiliários, como lei especial que é, terá feito depender a transmissão da plena propriedade de acções por compra e venda (com o exercício de todos os direitos incorporados) à prática de determinados actos independentes (“modo”) salvo se a transmissão for feita em mercado regulamentado.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

“AA SA”, intentou acção com processo ordinário contra “BB (Holding) –, SA”, pedindo a sua condenação a pagar-lhe as quantias de 67.050.000$00 correspondente ao capital a devolver (entregando a Autora à Ré 134.100 acções que detém), 8.398.674$00 de juros moratórios vencidos, às taxas de 15% e 12%, e juros vincendos até integral pagamento.
A ré contestou e deduziu reconvenção pedindo a condenação da Autora a pagar-lhe a quantia de 67.050000$00 acrescida de juros, à taxa legal, desde 1 de Abril de 1999.
Na 8ª Vara Cível da Comarca do Porto a acção foi julgada procedente e improcedente a reconvenção.
A Relação do Porto confirmou o julgado.
A Ré pede revista assim concluindo:
- As acções ao portador, sendo valores mobiliários titulados ao portador, transmitem-se por entrega do título ao adquirente;
- O Banco …, depositário daqueles valores, informou a CC, por ordem da DD, titular dos mesmos, do número de acções desta para efeito de votação na Assembleia Geral de 27/02/99, onde expressamente declara que a DD é proprietária de 134.100 acções, adquiridas à BB;
- A resolução do contrato não impede a transmissão posterior das acções, por qualquer negócio entre as partes ou mesmo a sua convalidação parcial, o que é perceptível pelos documentos de fls. 514 a 518 dos autos;
- A DD, com as acções que adquiriu à BB, viabilizou a aprovação da proposta apresentada naquela Assembleia-geral, tendo a BB votado contra, sendo certo que se ainda fosse titular daquelas acções tal proposta não teria passado;
- Os documentos de fls. 118 a 120 não sofreram qualquer impugnação, nem quanto à sua autenticidade, nem quanto ao teor dos mesmos, pelo que não podem ser objecto de interpretações aleatórias e/ou especulativas, antes infirmando a seriedade da informação neles contida;
- Os documentos de fls. 514 a 518 foram confirmados pelas testemunhas que representavam legalmente as entidades neles referidas, por onde se pode ver que existiram negociações visíveis entre as partes e, nomeadamente, entre recorrente e recorrida, que levaram esta a manter ou convolar o negócio anterior ou outro, para continuar na titularidade daquelas acções e como tal as usar.
Contra alegou a Autora, pedindo a confirmação do Acórdão, e concluindo em síntese:
- Quanto à decisão sobre a matéria de facto, não logrou a recorrente, conforme lhe competia (artigo 342º nº 1 do CC), provar quer a existência da alegada proposta negocial, quer, a ter existido, o que concebe sem conceder, a aceitação da mesma, ainda que tácita, por parte da recorrida.
- Vem agora a recorrente enquadrar a presente questão de direito no âmbito do Código dos Valores Mobiliários, alegando, para tanto, que a transmissão de acções ao portador se opera pela simples entrega dos títulos ao adquirente ou ao depositário por ele indicado, pelo que, tendo as acções sendo transmitidas pela recorrente à recorrida, estas seriam necessariamente da propriedade da recorrida. Tal entendimento não pode proceder, porquanto
- Decorre essencialmente o artigo 101º do CVM que a lei não faz qualquer exigência de forma, mormente a redução do contrato de compra e venda a escrito, para que se opere a transmissão válida de acções ao portador; é um corolário do Principio da Liberdade de Forma previsto no artigo 219º do CC.
- O facto, contudo, de a validade da declaração negocial não depender, in casu, da observância de forma especial, não implica que não seja necessária a existência de uma proposta e de uma aceitação, ainda que tácita, por parte do destinatário da proposta, facto que o recorrente não logrou provar conforme lhe competia, nos termos do artigo 342º nº1 do CC.
- Os contornos da situação sub judice são claros: 1) foi entre as partes e a EE celebrado um contrato de compra e venda de acções, o qual, tal como os sucessivos aditamentos, foi reduzido a escrito; 2) tal contrato estava sujeito a duas condições – uma condição suspensiva e uma condição resolutiva, ambas já referidas supra pelo que, por razões de economia processual, não voltaremos a enunciar aqui; 3) veio a verificar-se a condição resolutiva, pelo que, a recorrida comunicou, por escrito, às duas contrapartes (recorrente e EE) a resolução do referido contrato; 4) a EE devolveu à recorrida a quantia recebida, pelo que de imediato lhe foram devolvidas as respectivas acções; 5) a recorrente, porém, não obstante o teor das cartas de fls. 53 e 54 dos autos, nunca procedeu à devolução da quantia aqui em apreço; 6) (única) razão pela qual, como é do conhecimento da recorrente, a recorrida também ainda não procedeu à devolução das respectivas acções, mantendo a situação de simples detenção das mesmas enquanto a recorrente não devolver a quantia pela mesma recebida.
- Acresce que, a transmissão das acções ocorreu no âmbito da vigência do contrato de compra e venda de fls. 16 a 21 e respectivos aditamentos, sendo que, a verificação da condição resolutiva acarretou a consequente obrigação de, por um lado, devolução, por parte da recorrente, da quantia entregue a titulo de inicio de pagamento das acções, e por outro, a obrigação da entrega dos títulos pela recorrida à recorrente.
- Ora, uma vez que a recorrida, concordando embora, e de forma expressa, com a verificação da condição resolutiva, e tendo-se demonstrado disponível para devolução da quantia monetária (carta de fls. 53), nunca o
fez, razão pela qual a recorrida manteve as acções como garantia do cumprimento da obrigação por parte da recorrente (com razão, dir-se-á), ou seja, resulta claro, não ter existido qualquer nova transmissão ao abrigo do artigo 101º do CVM, a única transmissão que se verificou foi aquela feita ao abrigo do já referido contrato de compra e venda.
- A previsão do nº 1 do artigo 101º do CVM não pode, pelas razões expostas supra, ser aplicada, só por si, no caso sub judice, isto é, sem estar acompanhada da prova – a cargo da recorrente – de que existiu uma nova proposta feita, posteriormente à verificação da condição resolutiva, pela Recorrente à Recorrida, a qual tenha sido comprovadamente por esta: o que não sucedeu nos presentes autos.
- Pelo que, bem andou o Tribunal a quo ao não reduzir a questão em apreço tão só ao âmbito do artigo 101º do CVM, como pretende só agora, em sede de recurso, a Recorrente, enquadrando-a antes no âmbito do regime geral do Direito Civil (artigos 217º, 219º e 342º nº 1 CC), não merecendo, de resto, tanto a decisão proferida em 1ª instância como agora o acórdão recorrido qualquer censura, quer quanto à decisão da matéria de facto, quer no que à aplicação das normas de Direito diz respeito.
As instâncias deram por assente a seguinte matéria de facto:
- A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à gestão de participações sociais.
- No dia 16 de Abril de 1998, a autora DD celebrou com a ré BB (HOLDING) – …, SA e com a EE – …, SA o contrato de compra e venda de acções junto aos autos a fls. 16 a 21.
- No âmbito deste contrato de compra e venda de acções, a autora comprometeu-se a comprar à ré BB 134.100 acções ordinárias da sociedade CC, SA, pelo preço global de 134.100.000$00 (v. cláusula 2), bem como a comprar 45.900 acções, da mesma sociedade, à EE, pelo preço global de 45.900.000$00 (ver cláusula 2.1).
- Nos termos das cláusulas 2.2 a 2.4 do contrato de compra e venda de acções, convencionou-se a transacção das 180.000 acções no momento em que fosse assinado, entre as três outorgantes e os Grupos FF, um contrato que enquadrasse as relações pré aumento de capital da CC, prevendo-se que estes últimos viessem a adquirir participações sociais na sequência deste aumento de capital.
- Neste sentido, a transmissão e a consequente obrigação de pagamento do preço das 180.000 acções da CC ficaram condicionadas, nos termos do contrato de compra e venda de acções, à assinatura daquele acordo para produzirem os seus efeitos, o que denominaram de “condição suspensiva”.
- Assim sendo, a DD comprometeu-se a entregar 50% do preço das 180.000 acções, isto é, 90.000.000$00 à Ré e à EE, na data da assinatura do contrato previsto no considerando e) do contrato de compra e venda de acções (v. cláusula 2.2, alínea a)), ficando de entregar à BB 67.050.000$00 pelas 134.100 acções desta e 22.950.000$00 à EE pelas suas 45.900 acções.
- A restante parte do preço, no valor de 90.000.000$00, seria entregue pela DD à Ré e à EE na data do futuro aumento de capital da CC (v. cláusula 2.2 alíneas a) e b)).
- As partes estabeleceram na cláusula 3.2 do contrato de compra e venda de acções, denominando “condição resolutiva”, que este contrato ficaria sem efeito caso as partes, e as sociedades pertencentes aos Grupos FF, não outorgassem a escritura do aumento de capital no prazo máximo de nove meses a contar do momento em que fosse assinado o contrato que enquadrasse as relações pré aumento de capital previsto no considerando e) do contrato de compra e venda de acções.
- A autora, a ré e a EE estabeleceram, igualmente, na cláusula 4ª do contrato de compra e venda de acções que a verificação da denominada “condição resolutiva” teria como consequência ficar este contrato sem efeito, devendo, em tal caso, as partes adoptar os procedimentos seguintes:
c) A devolução da parte do preço recebido efectuar-se-ia contra a entrega das acções no prazo de 30 dias sobre a verificação da condição resolutiva;
d) Se a verificação da condição resolutiva ocorresse mais de seis meses
após a entrega da parte do preço em causa, a respectiva quantia seria acrescida de juros calculados à taxa LISBOR a 6 meses, pelo prazo excedente a esse período de 6 meses.”
- Posteriormente, em 5 de Maio de 1998, a autora, a ré e a EE celebraram o aditamento ao contrato de compra e venda de acções junto aos autos a fls. 22 a 25, o qual aqui se dá por integralmente reproduzido.
- Em 7 de Maio de 1998, a autora, a ré e a EE, a GG, … SA, a HH, SA (pertencente ao Grupo FF) e a II – …, SA (do Grupo FF), assinaram o acordo previsto no considerando e) do contrato de compra e venda de acções.
- Em 27 de Julho de 1998 essas sociedades, por convenção adicional ao acordo pré aumento de capital, determinaram alterar a sua cláusula VII, estabelecendo que este (o acordo pré aumento de capital) deixaria de produzir efeitos caso a escritura de aumento de capital social da CC se não realizasse até 31 de Outubro de 1998. (doc. de fls. 46 a 50, que aqui se dá por reproduzido).
- Assinado o acordo pré aumento de capital em 07/05/98, a BB entregou à DD as suas 134.100 acções, tendo recebido desta, como convencionado na alínea a) da cláusula 2.2 do contrato de compra e venda de acções, 67.050.000$00, e a EE entregou à autora as suas 45.900 acções, tendo recebido desta 22.950.000$00.
- Nos termos da alínea b) da cláusula 2.2 do contrato de compra e venda de acções, a autora ficou de entregar os restantes 50% do preço das acções, isto é, 90.000.000$00, à BB e à EE na data da outorga da escritura pública do aumento de capital da CC, no qual viriam a participar as sociedades já referidas, ficando de entregar 67.050.000$00 à BB e 22.950.000$00 à EE, respectivamente.
- Os Grupos FF não vieram outorgar a escritura de aumento de capital social da CC, nem a adquirir quaisquer participações sociais desta.
- Por carta de 06/11/98, a autora confirmou à BB a verificação da condição resolutiva supra citada, exigindo desta a devolução dos 67.050.000$00 em 30 dias, contra a entrega das 134.100 acções.
- Foi convocada a assembleia-geral de 27/02/99, que tinha como agenda a seguinte: “Ponto único: discutir, analisar e decidir sobre a anulação das decisões da mesma assembleia realizada em 25 de Abril de 98 e relativas à mudança da sede social, aumento do capital social, alteração do contrato social, tal como consta nos números 1, 2 e 3 da respectiva acta.”
- A DD, constituiu um membro da direcção da CC como seu representante nessa assembleia-geral de 27/02/99 e este mandatário logo esclareceu ter instruções da sua mandante para votar com a totalidade das 267.060 acções.
- A BB notifica a DD por carta registada com aviso de recepção de 1 de Março de 1999, para remeter a parte do preço em falta, isto é, 67.050.000$00, a qual chegou ao conhecimento da autora em 2/3/99.
- Provado o que consta do documento de fls. 120.
- Provado o que consta do documento de fls. 119.
- A ré, a EE e a JJ votaram contra a proposta apresentada no âmbito do ponto único da agenda e a seu favor votaram a GG e a DD, tendo sido considerada aprovada essa proposta pela maioria qualificada que a lei exige para alteração ao contrato social, com base nas participações constantes na lista de presenças, entre as quais, no que agora interessa, a da DD, incluindo as 134.100 acções ao portador objecto de contrato de 16 de Abril de 1998.

Foram colhidos os vistos.
Conhecendo,
1- Matéria de facto.
2- Transmissão de acções.
3- Conclusões.

1- Matéria de facto.
Em primeira linha, a recorrente pretende que se considere, em sede de matéria de facto, o teor dos documentos de fls. 118 a 120 e 514 a 518.
Confrontado com este ponto, na apelação, disse o Acórdão recorrido: “Na verdade, e como se procedeu na motivação de facto – e, depois, na própria sentença – os documentos de fls. 118 a 120 são da autoria do Banco …, não da autora”; (…) “ fls. 514 a 518 é documento que nem sequer se vê esteja assinado, ou com qualquer carimbo ou logótipo, dirigido no cimo da 1ª folha “Aos accionistas da CC (ou de alguns accionistas desta)” sendo assim manifesto que não tem a virtualidade de traduzir a aceitação por parte da Autora, de qualquer proposta negocial formulada pela ré tendente à transmissão das questionadas acções, depois de o contrato de Abril de 98 ter ficado sem efeito conforme se entendeu e fundamentou na sentença – e, antes na fundamentação da matéria de facto – tendo-se naquela valorado a actuação da autora…”
Não obstante, cumpre acentuar que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista que é, conhece apenas, e como regra, matéria de direito, por força dos artigos 26º da LOFTJ e 722º do Código de Processo Civil, com as excepções do nº2 e 3 do artigo 729º deste diploma.
Muitíssimo limitada, pois, a intervenção na matéria de facto, apenas podendo averiguar a observância das regras de direito probatório material – nº2 do artigo 722º CPC – ou mandar ampliar a decisão sobre essa matéria – nº 3 do artigo 729º.
Assim, a fixação dos factos materiais da causa, baseada na prova de livre apreciação do julgador, não cabe no âmbito do recurso de revista.
O tribunal de revista limita-se a aplicar o regime jurídico adequado aos factos fixados pelo juízo “a quo” (nº1 do artigo 729º do Código de Processo Civil).
As referidas situações de excepção consistem no erro de apreciação das provas e na fixação dos factos pela Relação só ocorrendo violação expressa de norma que exija certa espécie de prova para a existência de um facto ou de norma que estabeleça a força probatória de certo meio de prova, tal como resulta dos artigos 722º nº2 e 729º nº2 da lei adjectiva.
Assim, o STJ só pode conhecer do juízo de prova da Relação quando tenha sido dado por assente um facto sem que tivesse sido produzida a prova que a lei declare indispensável para a demonstração da sua existência ou tivessem sido violados os preceitos reguladores da força probatória de alguns meios de prova.
Ora, não se verificando ofensa de disposição expressa da lei a exigir certa espécie de prova para a existência de um facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova (ou seja, que a Relação tenha dado por assente um facto sem a produção do tipo de prova que a lei exige, como não dispensável para demonstrar a sua existência ou que tenha incumprido preceitos reguladores da força probatória de certo meio de prova) não há que emitir qualquer juízo de censura.
Vale, em consequência, a regra do nº2 do artigo 729º quedando intocada a factualidade provada pois um eventual erro na apreciação das provas, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova produzidos e de livre apreciação do julgador, não cabe no âmbito deste recurso. (cf. v.g, os Acórdãos do STJ desta mesma conferencia, de 21 de Novembro de 2006 – 06 A3489 – de 29 de Novembro de 2006 – 06 A3794 – e de 18 de Abril de 2006 – 06 A701).
2- Transmissão de acções.
2.1- Resulta, inequivocamente, dos factos provados o seguinte quadro:
A recorrente e a recorrida, ambas sociedades gestoras de participações sociais (SGPS) celebraram um contrato de compra e venda de acções representativas de parte do capital social da sociedade “CC, SA”.
O objecto do contrato eram 134.100 acções, sendo compradora a recorrida e vendedora a recorrente.
O contrato ficou a depender de duas condições: uma suspensiva (os efeitos dependiam da assinatura do Acordo de Pré Aumento de Capital da CC) e outra resolutiva (se a escritura de aumento de capital não fosse outorgada até 31 de Outubro de 1998).
A condição suspensiva verificou-se em 7 de Maio de 1998 com a assinatura do acordo referido.
A condição resolutiva surge com a não outorga (pelos Grupos FF) da escritura de aumento do capital social da CC, até 31 de Outubro de 1998.
Aquando do contrato, a recorrida pagou o preço de 67.050.000$00 e recebeu da recorrente as 134.100 acções.
Fora convencionado que a condição resolutiva implicaria a devolução do preço recebido, contra a entrega das acções no prazo de 30 dias, contados a partir daquela data.
Não resultou provada qualquer outra transmissão de acções entre as partes.
A única questão que tem de ser abordada – e na ponderação do acervo conclusivo da recorrente, decidida, como foi acima, a questão da prova documental – é saber se se operou a definitiva transmissão de acções, com a respectiva entrega ao transmissário, ou se já operou válida condição resolutiva.
Diga-se, desde já, que ficou improvada a celebração de qualquer negócio – perfeito, por objecto de aceitação – entre recorrente e recorrida posteriormente à outorga do contrato de 16 de Abril de 1998.
E tal bastaria para concluir pela improcedência das pretensões da recorrente, já que ocorreu a condição resolutiva devendo cada contraente restituir o que prestou.
Cumpre, porém, ver da relevância para o caso em apreço do artigo 101º do CVM insistentemente invocada pela recorrente.
2.2- O contrato é válido por livremente celebrado pelas partes (artigo 405º do CC), sendo que a condição resolutiva não ofende a imperatividade de qualquer norma, designadamente do CVM.
Dispõe o artigo 101º deste diploma que as acções tituladas e ao portador transmitem-se por entrega do titulo (nº1) e que se os títulos já estiverem em depositário indicado pelo adquirente, a transmissão efectua-se por registo na conta deste (nº2).
Mas no tocante à produção de efeitos, o artigo 104º determina que o exercício de direitos inerentes às acções tituladas ao portador depende da posse do titulo ou de certificado passado pelo depositário, sendo que, tratando-se de acções tituladas nominativas, não integradas em sistema centralizado, os direitos são exercidos face à sociedade pela apresentação dos certificados de registo.
Daí que, e ao contrário do regime geral do Código Civil, onde, em regra (artigo 408º) a transferência da propriedade se dá por mero efeito do contrato, aqui não é liquido que a transmissão da propriedade plena seja consequência directa do contrato.
Haverá a necessidade de conjugar o contrato com determinados actos dele independentes.
É a intervenção do chamado “modo” (cf. Dr.ª Vera Eiró – “A transmissão de valores mobiliários – As acções em especial”, in “Themis – Revista da Faculdade de Direito da UNL” – VI, 11, 2005, p. 145 e ss; Prof. Antunes Varela, “Ensaio sobre o conceito de modo”, 1955).
Mas ainda que se apelasse apenas para o citado artigo 408º da lei civil, sempre se diria que as partes podem condicionar que a transmissão da propriedade fique dependente de um evento acordado. (cf. v.g, Drªs Assunção Cristas e Mariana Gouveia – “Transmissão da propriedade de coisas móveis e contrato de compra e venda”, in “Transmissão de propriedade e contrato”, 2001, 129).
Ora, se assim é no âmbito da liberdade contratual, por maioria de razão o será quando o legislador determinar, em certos casos (v.g. acções), que a transmissão da propriedade plena (na sua globalidade de “utendi, fruendi ac abutendi”) não resulte, imediatamente, e apenas, do contrato (cf. o regime regra – artigos 874º e 879º do Código Civil, no seu cotejo com a parte final do nº 1 do artigo 408º e artigos 80º nº1, 101º, 102º e 105º do CVM).
Seria, pois, uma compra e venda que, excepcionalmente, não teria eficácia real, ou por vontade expressa das partes ou por determinação de norma especial.
Note-se, porém, que na vigência do artigo 483º do Código Comercial, o Prof. Vaz Serra defendia que os actos autónomos (endosso ou entrega) interessavam, apenas, para efeitos probatórios perante a sociedade, e que a transmissão teria mero efeito de contrato (apud RLJ 3503-3504, anotação ao Acórdão do STJ de 16 de Junho de 1972 e BMJ – Sep. – 175/76/77/78 – 95 ss – “Acções nominativas e acções ao portador”; cf. no sentido do efeito imediato, os Profs. Oliveira Ascensão – “Títulos de Crédito”, in “Direito Comercial”, III, 1992, 17, Miguel Pupo Correia, “Direito Comercial”, 6ª ed, 516).
E esta argumentação encontra apoio no nº2 do artigo 80º do CVM (“A compra e venda em mercado regulamentado de valores mobiliários escriturais confere ao comprador, independentemente do registo e a partir da realização da operação, legitimidade para a sua venda nesse mercado”), que por certo não iria consagrar a venda “a non domino”.
No entanto a Dr.ª Vera Eiró (ob. cit. 163) interpreta o preceito como sendo “a consagração de uma verdadeira excepção ao principio geral de que a transmissão das acções não se dá por mero efeito do contrato” (…) “excepto quando a transmissão seja por força de um contrato de compra e venda e em mercado regulamentado.”
Sem tomar posição apodíctica sobre a tese das duas realidades (“distinguo” entre a propriedade do documento representativo e o exercício dos direitos nele incorporados) e a tese da produção de efeitos (a transmissão da propriedade da acção “versus” os efeitos relativamente à sociedade ou a terceiros) polémica que, aqui, irreleva atendendo a estar apenas em apreciação uma cláusula contratual (a impor uma condição resolutiva) livremente negociada (cláusula que se afigura válida) dizemos que, numa primeira abordagem, não repugna aceitar a opinião que sustenta a conjugação do contrato com a pratica de determinadas formalidades para que a propriedade das acções se transfira em pleno, já que, nela, tem de estar ínsito o exercício de direitos de participação social e estes dependem do “modo”, (salvo se a transmissão ocorrer em “mercado regulamentado”).
Tudo também porque os valores mobiliários sempre incorporam direitos e representam-nos. (cf., a propósito, o Prof. Pais de Vasconcelos – “O problema da tipicidade dos valores mobiliários” in “Direito dos Valores Mobiliários”, III).
Assente que fica a validade da cláusula que impôs a condição resolutiva, improcedem as razões da recorrente.
3- Conclusões.
Pode concluir-se que:
a) A fixação dos factos baseados em meios de prova livremente apreciados pelo julgador está fora do âmbito do recurso de revista.
b) Só em casos excepcionais é que o Supremo Tribunal de Justiça conhece matéria de facto (artigos 26º da Lei 3/99 e 722º nº2 e 729º nº 2 do Código de Processo Civil).
c) Ressalvando essas situações muito restritas, o STJ só conhece matéria de direito, apenas sindicando o modo como a Relação fixou os factos materiais se foi aceite um facto sem produção do tipo de prova para tal legalmente imposto ou se for patente o incumprimento das normas reguladoras de certos meios de prova.
d) É válida a clausula do contrato de compra e venda de acções que condiciona a transmissão da sua propriedade à verificação de um evento futuro, cuja não ocorrência terá a natureza de condição resolutiva.
e) O Código de Valores Mobiliários, como lei especial que é, terá feito depender a transmissão da plena propriedade de acções por compra e venda (com o exercício de todos os direitos incorporados) à prática de determinados actos independentes (“modo”) salvo se a transmissão for feita em mercado regulamentado.
Nos termos expostos, acordam negar a revista.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 13 de Março, de 2007

Sebastião Póvoas
Moreira Alves
Alves Velho