Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1579/20.6T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DIREITO DE IMAGEM
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
PRESUNÇÃO JUDICIAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
CONSTITUCIONALIDADE
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
I. A orientação que o Supremo Tribunal de Justiça vem seguindo na questão da competência internacional apreciada pelo Acórdão ora reclamado assenta no entendimento, doutrinalmente fundamentado, de acordo com o qual, em sede de aferição do pressuposto da competência do tribunal, não cabe fazer qualquer apreciação sobre o mérito da causa nem tão pouco sobre a suficiência / insuficiência do alegado; cabe apenas ponderar os contornos factuais e jurídicos da pretensão deduzida na medida necessária para aferir do pressuposto da competência em causa.

II. Tal solução não implica o recurso a qualquer enquadramento factual senão aquele que foi alegado pelo autor e havia sido atendido pelas instâncias, nem recorreu a quaisquer juízos presuntivos para firmar os factos em que fundamenta a decisão.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


1. Notificada do Acórdão proferido em 10.11.2022 por este Supremo Tribunal, que concedeu provimento à revista e revogou o Acórdão da Relação, veio a recorrida Electronic Arts, Inc., arguir a nulidade do Acórdão “ao abrigo do art.º 615.º, n.º 1, alínea d), ex vi art.º 666.º e 685.º, todos do CPC”.

Invoca, mais precisamente, a nulidade por excesso e por omissão de pronúncia, insistindo em que devem ser expressamente apreciadas as inconstitucionalidades “relativas à interpretação e aplicação dos art.º 9.º, 351.º do CC, art.º 5.º, n.º 1, 62.º, alínea b), 608.º, n.º 2, 674.º, n.º 1 e 3 do CPC e 38.º, n.º 1 e 46.º da LOSJ”.

2. O recorrente AA respondeu, defendendo, em suma, que inexistem razões para deferir a reclamação.


*

Cabe apreciar e decidir.

Da nulidade por excesso de pronúncia

Alega a reclamante que o Acórdão padece de nulidade por excesso de pronúncia “com base em sucessivas presunções judiciais ilegais e não nos factos alegados pelo autor na petição inicial”.

Não é possível reconhecer razão à reclamante.

Como se explicou, desenvolvidamente, no Acórdão reclamado, para a decisão dos presentes autos atendeu-se aos casos próximos já decididos neste Supremo Tribunal, designadamente nos Acórdãos desta 2.ª Secção de 24.05.2022 (Proc. 3853/20.2T8BRG.G1.S1)[1], de 7.06.2022 (Proc. 24974/19.9T8LSB.L1.S1), de 23.06.2022 (Proc. 3239/20.9T8CBR-A.C1.S1)[2], de 29.09.2022 (Proc. 2160/20.5T8PNF.P1.S1)[3] e de 13.10.2022 (Proc. 1014/20.0T8PVZ.P1.S1)[4] e ainda no Acórdão da 1.ª Secção de 7.06.2022 (Proc. 4157/20.6T8STB.E1.S1).

O critério adoptado para decidir a competência do tribunal em razão da matéria foi, de facto, o adoptado nestes Acórdãos. Isto é o que deve acontecer se o sistema jurídico funcionar bem – uniformidade de critério para situações do mesmo tipo.

Ao contrário do que parece entender a reclamante, este facto não significa que tenha havido um “decalque acrítico”. Aliás, como a reclamante pode verificar, se quiser, depois de se fazer referência e de se transcrever os excertos mais relevantes do primeiro dos Acórdãos do grupo acima referido, a fundamentação do Acórdão ora reclamado fala por si, usando-se “palavras próprias”, para se enunciar e se aplicar o critério (que, como qualquer critério sem sentido próprio, é geral e abstracto) ao caso dos autos (que, como qualquer caso concreto, é único).

O critério é enunciado no Acórdão ora reclamado assim:

“(…) à luz do critério da causalidade consagrado no artigo 62.º, al. b), do CPC, os tribunais portugueses serão internacionalmente competentes para conhecer o mérito de uma acção de responsabilidade civil extracontratual, por violação de direitos de personalidade através de conteúdos difundidos globalmente, se, durante o período em que ocorrem os danos, o centro de interesses do lesado se situar em Portugal ou, tendo o centro de interesses do lesado variado, existir um elo suficientemente forte entre o lesado e Portugal”.

Adiante, diz-se:

Esclarecido e enunciado o critério que deve orientar a presente decisão, é tempo de decidir, cumprindo, desde logo, compulsar a p.i. e elencar os factos alegados, em concreto, pelo autor, integradores da causa de pedir”.

O que se segue está à vista no Acórdão reclamado: foram considerados –considerados em exclusivo – factos expressamente alegados na p.i. e ilustrados através dos documentos juntos (cfr., entre outros, Doc. 1) e formou-se, com base – com base exclusiva – em tais factos uma convicção relativamente ao que estava em causa de modo a e para o efeito de estabelecer uma ligação entre o autor, AA, jogador profissional de futebol, e o tribunal por ele escolhido para propor a acção.

Quer isto dizer, a final, e para o que importa, que não se verifica qualquer excesso de pronúncia, nem tão-pouco qualquer decisão-surpresa quanto ao conhecimento de factos não alegados ou apoiados em presunções judiciais. Pelo contrário, a base factual que se considerou para o efeito de decidir o caso vem alegada pelo autor na petição inicial, integrando a causa de pedir da acção.

Não há, em suma, o vício de excesso de pronúncia arguido pela reclamante.

Da nulidade por omissão de pronúncia

Alega a reclamante que o Acórdão padece de nulidade por excesso de pronúncia “porque a ré, na resposta de 15.07.2022 ao recurso de revista do autor, invocou a inconstitucionalidade da interpretação do art.º 351.º do CC, dos art.º 5.º, n.º 1, 62.º, 608.º, n.º 2 do CPC e do art.º 38.º, n.º 1 LOSJ e o tribunal não se pronunciou sobre estas questões”.

Mais refere que, na resposta de 15.07.2022 ao recurso de revista do autor, “se suscitou a inconstitucionalidade da interpretação normativa destes artigos, no sentido de serem aplicáveis “…conceitos relativos ao domicílio e centro de interesses do autor e, bem assim, quaisquer presunções judiciais ou factos que não estejam referidos napetição inicial e que não integrem acausa de pedir(incluindo o local onde o autor terá exercido predominantemente a sua atividade profissional …”, tendo sido diretamente requerida a “… apreciação expressa deste tribunal, nos termos e para os efeitos dos art.º 70.º, n.º 1, alínea b), 72.º, n.º 2 e 75.º-A, n.º 2, todas da Lei n.º 28/82”.

A este respeito, cabe remeter para o que se diz no Acórdão a página 33:

Saliente-se, desde logo, que o que se trata é de considerar os factos alegados na p.i. para o efeito – o estrito efeito – de aferir a competência do tribunal. Não tem, pois, razão de ser o receio expressado pela ré de que sejam considerados factos não referidos na p.i. nem que tenham sido efectuados juízos presuntivos [cfr., entre outras, conclusões k), l), x), y), ll), mm), nn) e oo) das contra-alegações], que, eventualmente, conduzissem à interpretação inconstitucional de alguma norma [cfr., em especial, conclusões k) e l) da contra-alegações] ou a excesso de pronúncia [cfr., em particular, conclusão oo) das contra-alegações]”.

Antes de mais, recorde-se que o objecto do recurso é delimitado pela conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), respeitando, em princípio, a omissão de pronúncia às questões suscitadas no recurso de revista pelo recorrente. Ora, o recorrente não é a aqui reclamante mas sim o aqui reclamado.

De todo o modo, a verdade é que a inconstitucionalidade arguida pela recorrida / reclamante na resposta às alegações de revista foi considerada, como aquele excerto do Acórdão é comprova – e, embora isso não satisfaça a pretensão da recorrida / reclamante, foi considerada para o efeito de dela se não conhecer. Isto porque a interpretação normativa cuja constitucionalidade se pretendia ver apreciada não era ratio decidendi daquela decisão. Por outras palavras: não há qualquer omissão de pronúncia, mas sim uma pronúncia de não conhecimento da questão de constitucionalidade suscitada, por esta incidir sobre uma interpretação normativa que não teve lugar.

Do requerimento de pronúncia expressa sobre as inconstitucionalidades

Como se disse atrás, a reclamante insiste em que devem ser expressamente apreciadas as inconstitucionalidades “relativas à interpretação e aplicação dos art.º 9.º, 351.º do CC, art.º 5.º, n.º 1, 62.º, alínea b), 608.º, n.º 2, 674.º, n.º 1 e 3 do CPC e 38.º, n.º 1 e 46.º da LOSJ”.

Reitera-se que a interpretação normativa cuja inconstitucionalidade se invoca não teve lugar. E como isso, além de resultar do Acórdão reclamado, acaba de ser explicado no ponto anterior, entende-se que nada mais é necessário dizer para resolver a questão no sentido da não apreciação por falta de cabimento ou oportunidade.


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DECISÃO

Pelo exposto, indefere-se a presente reclamação.


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Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

Lisboa, 19 de Janeiro de 2023

Catarina Serra (Relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano

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[1] Relatado pelo ora 2.º Adjunto.
[2] Subscrito pela ora Relatora enquanto 1.ª Adjunta e pelo ora 1.º Adjunto enquanto 2.º Adjunto.
[3] Subscrito pela ora Relatora enquanto 2.ª Adjunta.
[4] Relatado pelo ora 2.º Adjunto.