Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4068/07.0TDPRT.G1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
DUPLA CONFORME
LACUNA
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 04/07/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Área Temática: DIREITO PROCESSUAL CIVIL
DIREITO PROCESSUAL PENAL
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 11.º, Nº1, 12.º, Nº1, 414.º, NºS 2 E 3, 420.º, Nº1, ALÍNEA B), 691.º, Nº1, 721.º, NºS 1 E 3, 721.º-A.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 4.º, 72.º, Nº1, ALÍNEA C), 400.º, Nº3.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 148.º, Nº3.
Jurisprudência Nacional: SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
ACÓRDÃO FIXADOR DE JURISPRUDÊNCIA Nº 1/2002.
Sumário :
I - O tribunal de 1.ª instância condenou a recorrente seguradora, a pagar aos demandantes, ora recorridos, certas indemnizações a título de danos não patrimoniais e pela perda do direito à vida e, em recurso, o Tribunal da Relação, sem qualquer voto de vencido, confirmou aquela decisão.
II - Nos termos do art. 721.º, n.º 1, referido ao art. 691.º, n.º 1, do CPC (versão do DL 303/2007, de 24-08), cabe recurso de revista para o STJ do acórdão da Relação que tenha incidido sobre uma decisão de 1.ª instância que tenha posto termo ao processo. Mas, de acordo com o n.º 3 do primeiro destes preceitos, «não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte»: é o chamado sistema da “dupla conforme”.
III - Esta norma é subsidiariamente aplicável aos pedidos de indemnização civil julgados no processo penal, por força do disposto no art. 4.º do CPP.
IV - Com a norma do art. 400.º, n.º 3, do CPP, quis-se claramente afirmar solução oposta àquela a que chegou o Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2002, estabelecendo-se sem margem para dúvidas, ao que se julga, que as possibilidades de recurso relativamente ao pedido de indemnização são as mesmas, seja o pedido deduzido no processo penal ou em processo civil – cf. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X.
V - Se o legislador do CPP quis consagrar a solução de serem as mesmas as possibilidades de recurso, quanto à indemnização civil, no processo penal e em processo civil, há que daí tirar as devidas consequências, concluindo-se que uma norma processual civil, como a do n.º 3 do art. 721.º, que condiciona, nesta matéria, o recurso dos acórdãos da Relação, nada se dizendo sobre o assunto no CPP, é aplicável ao processo penal, havendo neste, em relação a ela, caso omisso.
VI - Até porque o legislador do CPP, na versão da Lei 48/2007, afirmou a igualdade de oportunidades de recurso em processo civil e em processo penal, no que se refere ao pedido de indemnização, numa altura em que já conhecia a norma do n.º 3 do art. 721.º do CPC (a publicação do DL 303/2007 é anterior à da Lei 48/2007).
VII - Por outro lado, a aplicação do n.º 3 deste art. 721.º ao pedido de indemnização civil deduzido no processo penal não cria qualquer desarmonia; não existe, efectivamente, qualquer razão para que em relação a duas acções civis idênticas haja diferentes graus de recurso apenas em função da natureza civil ou penal do processo usado, quando é certo que neste último caso a acção civil conserva a sua autonomia.
VIII - Pode mesmo dizer-se que outro entendimento que não o aqui defendido conduziria ao inquinamento da decisão a tomar pelo lesado nos casos em que a lei lhe permite deduzir em separado, perante os tribunais civis, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime.
IX - Este sistema da “dupla conforme” entrou em vigor em 01-01-2008, aplicando-se apenas aos processos iniciados após essa data, como se prevê nos arts. 11.º, n.º 1, e 12.º, n.º 1, do referido DL 303/2007. Como o presente pedido de indemnização civil foi apresentado em 18/04/2009, aplicando-se-lhe por isso a lei nova e, porque não está em causa a aplicação do regime excepcional do art. 721.º-A do CPC, o recurso não é admissível, e por isso não deveria ter sido admitido, em face do disposto no art. 414.º, n.º 2, do CPP.
X - Tendo sido admitido, e porque essa decisão não vincula este tribunal superior, nos termos do n.º 3 daquele art. 414.º, deve agora ser rejeitado, de acordo com o disposto no art. 420.º, n.º 1, al. b), deste último código.


Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

No 3º juízo criminal da comarca de Guimarães, em processo comum com intervenção do tribunal singular, foi, em 01/02/2010, proferida sentença que, além do mais que aqui não importa considerar, condenou a Companhia de Seguros ..., SA, a pagar aos demandantes AA e BB, a título de indemnização, as quantias de € 2156,50, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a notificação do pedido, e de € 140 000,00, com juros de mora desde a data da sentença, sendo que o pedido foi apresentado em 18/04/2009.

A demandada Companhia de Seguros ..., SA, interpôs recurso para a Relação de Guimarães, que, por acórdão de 14/12/2010, o julgou improcedente, confirmando a sentença do tribunal de 1ª instância, sem voto de vencido.

Desse acórdão a demandada interpôs ainda recurso para este Supremo Tribunal, concluindo assim a sua motivação:
«1. O recurso ora interposto do douto Acórdão dos autos é apresentado na firme convicção de que fez uma incorrecta aplicação do direito aos factos dados como provados no que respeita aos montantes destinados a indemnizar o dano vida e os danos morais dos Recorridos.
2. O Tribunal a quo na douta decisão ora recorrida decidiu condenar a aqui Recorrente a pagar aos Demandados, aqui Recorridos, pela privação do direito à vida da sinistrada, a quantia de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros).
3. Para fixação do referido montante o Tribunal a quo defendeu que "a valoração do dano morte não pode deixar de ter em conta factores como a idade da vítima e a sua qualidade de vida – saúde, vida pessoal, profissional, familiar, social, e quaisquer outros susceptíveis de tornar mais ou menos gratificante a vida que a vítima tinha à data do acidente e com que podia, razoavelmente contar para o futuro".
4. Contudo, sempre com o devido respeito por opinião contrária, a ora Recorrente entende que a Vida, enquanto bem jurídico supremo, deverá ser, sempre, valorado de forma uniforme.
5. Uma vida, qualquer que ela seja e em qualquer contexto, é sempre uma vida.
6. No mesmo sentido, o douto aresto deste Supremo Tribunal de 26.10.2010, disponível em www.dgsi.pt, quando refere "sendo a vida um valor absoluto, independente da idade, condição sócio-cultural, ou estado de saúde, irrelevam na fixação desta indemnização quaisquer outros elementos da vítima, que não a vida em si mesma".
7. Desta forma, porque todas as vidas humanas têm o mesmo valor, não deverão ser tidos em conta outros factores, conforme resulta do douto acórdão ora em crise.
8. No que ao valor do bem supremo vida diz respeito, são vários os exemplos na jurisprudência em que o julgador decidiu, em casos idênticos ao ora em apreço, (vitima menor de idade), fixou o valor da indemnização pela perda do direito à vida entre os € 50.000,00 e € 60.000,00.
9. Pelo exposto, a ora Recorrente entende o douto Acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por um outro em que se reduza para os € 60.000,00 (sessenta mil euros) a indemnização devida aos Recorridos a título de dano vida.
Mais se diga que,
10. O valor de € 25.000,00 atribuído a cada um dos Recorridos, a título de danos morais próprios, atendendo aos critérios fixados pela jurisprudência, é excessivo.
11. Da pesquisa efectuada de vários arestos deste Supremo Tribunal resultou que na fixação da indemnização pelos danos morais sofridos com a morte de um filho existe uma certa consonância na atribuição da quantia nos € 20.000,00 (vinte mil euros).
12. Assim sendo, por o valor em crise não respeitar os critérios hodiernamente aplicáveis, deve o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por um outro em que se reduza para € 40.000,00 a indemnização devida aos Recorridos a título de danos morais.
13. O douto acórdão, ao decidir como se acabou de mencionar, viola o disposto nos artigos 483° e seguintes, 496°, 562° e seguintes e 473° e seguintes, todos do Código Civil».

Respondendo, os demandantes pronunciaram-se no sentido da improcedência do recurso.
Não foi requerida a realização de audiência.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


Questão prévia:
O tribunal de 1ª instância condenou a demandada, aqui recorrente, a pagar os demandantes, ora recorridos, os referidos montantes indemnizatórios de € 2156,50, acrescido de juros de mora à taxa legal desde a notificação do pedido, e de € 140 000,00, com juros de mora desde a data da sentença.
A Relação, sem qualquer voto de vencido, confirmou essa decisão de 1ª instância.
Nos termos do artº 721º, nº 1, referido ao artº 691º, nº 1, do CPC, na versão resultante do DL nº 303/2007, de 24 de Agosto, cabe recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação que tenha incidido sobre uma decisão de 1ª instância que tenha posto termo ao processo. Mas, de acordo com a norma do nº 3 do primeiro destes preceitos, «não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte». É o chamado sistema da “dupla conforme”.
Esta norma é subsidiariamente aplicável aos pedidos de indemnização civil julgados no processo penal, por força do disposto no artº 4º do CPP, conclusão a que se chega pelas razões que seguem.
No domínio da versão do CPP anterior à resultante da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, o Supremo Tribunal de Justiça, através do acórdão nº 1/2002, fixou a seguinte jurisprudência: «No regime do Código de Processo Penal vigente – nº 2 do artigo 400º, na versão da lei nº 59/98, de 25 de Agosto – não cabe recurso ordinário da decisão final do tribunal da Relação, relativa à indemnização civil, se for irrecorrível a correspondente acção penal». Negava, pois, esta jurisprudência que o critério de admissibilidade de recurso dos acórdãos proferidos em recurso pelas relações relativamente à acção civil de indemnização instaurada no processo penal fosse o mesmo que vigorava no processo civil: valor do pedido superior à alçada da Relação e valor da sucumbência superior a metade dessa alçada.
A Lei nº 48/2007 acrescentou um nº 3 ao artº 400º do CPP, com o seguinte texto: «Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil». Com esta norma quis-se claramente afirmar solução oposta àquela a que chegou o referido acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, estabelecendo-se sem margem para dúvidas, ao que se julga, que as possibilidades de recurso relativamente ao pedido de indemnização são as mesmas, seja o pedido deduzido no processo penal ou em processo civil, sendo inequívoca a afirmação com que na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 109/X se justificou a disposição: «Para garantir o respeito pela igualdade, admite-se a interposição de recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil mesmo nas situações em que não caiba recurso da matéria penal».
Se o legislador do CPP quis consagrar a solução de serem as mesmas as possibilidades de recurso, quanto à indemnização civil, no processo penal e em processo civil, há que daí tirar as devidas consequências, concluindo-se que uma norma processual civil, como a do nº 3 do artº 721º do CPC, que condiciona, nesta matéria, o recurso dos acórdãos da Relação, nada se dizendo sobre o assunto no CPP, é aplicável ao processo penal, havendo neste, em relação a ela, caso omisso.
Até porque o legislador do CPP, na versão da Lei nº 48/2007, afirmou a igualdade de oportunidades de recurso em processo civil e em processo penal, no que se refere ao pedido de indemnização, numa altura em que já conhecia a norma do nº 3 do artº 721º do CPC (a publicação do DL nº 303/2007 é anterior à da Lei nº 48/2007).
Por outro lado, a aplicação do nº 3 do artº 721º do CPC ao pedido de indemnização civil deduzido no processo penal não cria qualquer desarmonia.
Não existe, efectivamente, qualquer razão para que em relação a duas acções civis idênticas haja diferentes graus de recurso apenas em função da natureza civil ou penal do processo usado, quando é certo que neste último caso a acção civil conserva a sua autonomia. Pode mesmo dizer-se que outro entendimento que não o aqui defendido conduziria ao inquinamento da decisão a tomar pelo lesado nos casos em que a lei lhe permite deduzir em separado, perante os tribunais civis, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime. Pense-se, por exemplo, no caso de danos ocasionados pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência da previsão do artº 148º, nº 3, do CP, em que o pedido de indemnização tanto pode ser formulado em processo civil como no processo penal, nos termos do artº 72º nº 1, alínea c), do CPP. A opção pelo processo civil estaria clara e injustificadamente condicionada, se a norma limitativa do nº 3 do artº 721º do CPC não se aplicasse ao pedido deduzido no processo penal.
Este sistema da “dupla conforme” entrou em vigor em 01/01/2008, aplicando-se apenas aos processos iniciados após essa data, como se prevê nos artºs 11º, nº 1, e 12º, nº 1, do referido DL nº 303/2007.
O presente pedido de indemnização civil foi apresentado em 18/04/2009. Devendo considerar-se essa a data do seu início, o processo em matéria civil não estava pendente no momento da entrada em vigor do referido diploma, aplicando-se-lhe por isso a lei nova.
Assim, e porque não está em causa a aplicação do regime excepcional do artº 721º-A do CPC, o recurso não é admissível, e por isso não deveria ter sido admitido, em face do disposto no artº 414º, nº 2, do CPP.
Tendo sido admitido, e porque essa decisão não vincula este tribunal superior, nos termos do nº 3 daquele artº 414º, deve agora ser rejeitado, de acordo com o disposto no artº 420º, nº 1, alínea b), deste último código.


Decisão:
Em face do exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso.
As custas são da responsabilidade da recorrente. Este pagará ainda a soma de 3 UC, ao abrigo do nº 3 daquele artº 420º.

Lisboa, 7 de Abril de 2011


Manuel Braz (relator, por vencimento) **
Isabel Pais Martins (“Discordando da tese que fez vencimento quanto à inadmissibilidade do recurso pelas razões que constam da declaração de voto que junto”:
“(…) A admissibilidade do recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil está (…) dependente da verificação cumulativa de dois requisitos: que a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e que a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal que proferiu a decisão de que se recorre. (…)
Por aplicação da norma do n.º 3 do artigo 721.º do CPC, a posição vencedora faz depender a recorribilidade para o STJ da parte do acórdão da relação relativa à indemnização civil da verificação cumulativa dos pressupostos previstos no CPP (duplo requisito do valor do pedido e do valor da sucumbência) e de não se verificar a excepção à regra de recorribilidade constante do n.º 3 do artigo 721.º do CPC (dupla conforme, sem voto de vencido).
A questão a que importa responder está em saber se a falta de previsão, no CPP, do caso especial de irrecorribilidade previsto no n.º 3 do artigo 721.º do CPC (verificação de dupla conforme, sem voto de vencido) constitui uma lacuna que deva ser integrada por apelo ao artigo 4.º do CPP.
A lacuna é sempre uma incompletude, uma falta ou falha contrária ao plano do direito vigente.
No plano das próprias normas podem verificar-se lacunas quando a norma legal não pode ser aplicada sem que acresça uma nova determinação que a lei não contém. São as chamadas lacunas da lei ou lacunas de regulamentação ou, ainda, lacunas ao nível das próprias normas.
Próximas desta categoria estão as lacunas resultantes de contradições normativas, que podem ser contradições lógicas, contradições teleológicas e contradições valorativas das quais nascem as chamadas lacunas de colisão: um espaço jurídico à primeira vista duplamente ocupado fica a constituir um espaço jurídico desocupado, uma lacuna.
A mais importante das categorias das lacunas da lei são as lacunas teleológicas. São lacunas a determinar em face do escopo visado pelo legislador, ou seja, em face da ratio legis. Nesta categoria de lacunas a doutrina costuma distinguir entre lacunas patentes e lacunas latentes. Verifica-se um caso da primeira espécie sempre que a lei não contém qualquer regra que seja aplicável a certo caso ou grupo de casos, se bem que a mesma lei, segundo a sua própria teleologia imanente e a ser coerente consigo própria deverá conter tal regulamentação. A lacuna teleológica será latente ou oculta quando a lei contém na verdade uma regra aplicável a certa categoria de casos, mas por modo tal que, olhando ao próprio sentido e finalidade da lei, se verifica que essa categoria abrange uma subcategoria cuja particularidade ou especialidade, valorativamente relevante, não foi considerada. A lacuna traduzir-se-ia aqui na ausência de uma disposição excepcional ou de uma disposição especial para essa subcategoria de casos.
Sabido que o problema das lacunas não é apenas ou fundamentalmente o problema do seu preenchimento mas prioritariamente, e não menos importante, o problema da sua determinação ou descoberta, podemos já excluir a existência de uma lacuna ao nível da própria norma ou uma lacuna de colisão.
A norma do artigo 400.º, n.º 2, do CPP não carece de qualquer integração nem entra em contradição com qualquer outra norma processual penal.
Define os pressupostos de recorribilidade das decisões proferidas sobre o pedido de indemnização civil deduzido na acção penal e não entra em colisão com qualquer outra norma do ordenamento processual penal.
E, assim, a questão fica delimitada à indagação da existência de uma lacuna teleológica.
Ou seja, saber se a ausência de uma disposição a conformar um caso especial de irrecorribilidade do acórdão da relação na parte relativa à indemnização civil contraria o escopo visado pelo legislador, subjacente à regulamentação legal da matéria da admissibilidade do recurso da acção civil deduzida em processo penal.
Deve ter-se presente que todo o regime do pedido de indemnização civil deduzido em processo penal está submetido a regras próprias, contidas no ordenamento processual penal.
É certo que, em matéria de recorribilidade da decisão relativa à indemnização civil, o legislador procurou a harmonia da regulamentação contida no processo penal com as regras de recorribilidade do processo civil, e, por isso, a norma do n.º 2 do artigo 400.º do CPP decalca, afinal, a regra geral de recorribilidade do n.º 1 do artigo 678.º do CPC.
Mas é também inegável que o legislador quando introduziu, com a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o n.º 3 do artigo 400.º – consagrando a solução de que mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil –, não podia desconhecer a norma do n.º 3 do artigo 721.º do CPC, como, aliás, se destaca no acórdão.
Ora, assim sendo, será pertinente perguntar por que não terá, então, introduzido, na matéria de recorribilidade da parte da sentença relativa à indemnização civil, o caso especial de irrecorribilidade para o STJ quando se verifique dupla conforme, sem voto de vencido, tanto mais quanto, nessa matéria, introduziu uma norma nova, justamente, o n.º 3 do artigo 400.º.
Norma essa que teve o inequívoco propósito de contrariar uma limitação à admissibilidade do recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil que tinha resultado da jurisprudência fixada no acórdão do pleno das secções criminais n.º 1/2002, de 14/03/2002, a bem da “igualdade” entre os recorrentes em matéria civil, dentro e fora do processo penal, como se afirma na motivação da proposta de lei n.º 109/X.
A ratio igualitária do n.º 3 é expandir – e não restringir – a admissibilidade do recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil. Daí que se tenha entendido que a norma do n.º 3 do artigo 400.º veio também resolver o problema da aplicabilidade do n.º 2 do artigo 678.º e do n.º 2 do artigo 234.º-A do CPC ao processo penal (…).
Claro que se poderá sustentar que aquela ratio igualitária sai desvirtuada se forem conferidas mais possibilidades de recurso, em matéria civil, no processo penal do que no processo civil.
Mas essa constatação, por si mesma, não se me apresenta adequada a suportar o entendimento de que a falta de previsão, no processo penal, de norma equivalente à do n.º 3 do artigo 721.º do CPC conforma uma lacuna.
Antes de mais porque o princípio geral em matéria de recursos é o da recorribilidade (artigo 399.º do CPP). As limitações a este princípio devem estar previstas na lei e, na matéria, estão-no, no n.º 2 do artigo 400.º (regras da alçada e da sucumbência).
Por outro lado, o legislador, no momento em que legislou, nesse preciso âmbito, introduzindo o referido n.º 3 ao artigo – e sendo conhecedor, como vimos, da “nova” limitação introduzida, no processo civil, pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto – não se decidiu pela consagração, no CPP, da limitação (do recurso para o STJ) decorrente de se verificar dupla conforme, sem voto de vencido.
Assim sendo, a falta desse caso especial de irrecorribilidade para o STJ parece traduzir uma opção legislativa, não podendo, a ser assim, afirmar-se a existência de uma lacuna teleológica.
Dever-se-á ponderar, ainda, que a restrição à admissibilidade do recurso da dupla conforme, sem voto de vencido, não é absoluta. Excepcionalmente cabe recurso de revista do acórdão da relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1.ª instância. Nos casos expressamente previstos no n.º 1 do artigo 721.º-A do CPC.
Como tal, o regime do n.º 3 do 721.º deve ser compreendido e articulado com o regime excepcional que lhe está associado.
A verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 721.º-A compete ao Supremo Tribunal de Justiça devendo ser objecto de apreciação preliminar sumária a cargo de uma formação constituída por três juízes escolhidos anualmente pelo presidente de entre os mais antigos das secções cíveis, conforme estabelece o n.º 3 do artigo 721.º-A do CPC.
A regulamentação própria da revista excepcional, nomeadamente a composição da formação a quem cabe decidir se se verificam os pressupostos da revista excepcional, parece apontar decisivamente no sentido de que a regra, com excepções, da irrecorribilidade para o STJ, em razão da dupla conforme, sem voto de vencido, foi pensada e construída para o processo civil. (…)
Não subsistirão dúvidas, a meu ver, de que, com a introdução da regra da dupla conforme no processo civil, o legislador civil visou dois objectivos: limitar o número de recursos cíveis para o STJ e do mesmo passo criar condições para um melhor exercício da sua função de orientação e uniformização de jurisprudência. (…)
Tratando-se, como me parece que se trata, de uma solução legislativa directamente pensada para o processo civil, não tenho facilidade em ver como se “transpõe” a mesma para o processo penal. (…)” **
Carmona da Mota (“com voto de desempate a favor do novo relator”)