Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P3186
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HENRIQUES GASPAR
Descritores: JOGO DE FORTUNA E AZAR
MÁQUINA DE JOGO
MODALIDADES AFINS DOS JOGOS DE FORTUNA E AZAR
Nº do Documento: SJ200711280031863
Data do Acordão: 11/28/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO O RECURSO
Sumário :
I - O art. 115.º do DL 422/89, de 02-12, alterado pelo DL 10/95, de 19-01, prevê uma infracção penal cujos elementos típicos vêm descritos como «fabricar, publicitar, importar, transportar, transaccionar, expor ou divulgar material e utensílios que sejam caracterizadamente destinados à prática dos jogo de fortuna ou azar», sem autorização da Inspecção-Geral de Jogos. Trata-se, pois, de uma infracção de mera actividade de relação com determinados bens, e actividade relativamente proibida porque dependente da ausência de autorização da Administração.
II - Os jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente da sorte (art. 1.º do DL 422/89, de 02-12), e que estão tipificados no art. 4.º, n.º 1, do mesmo diploma.
III - No que releva para o caso, dado que o elemento essencial está ligado à detenção de determinadas máquinas de jogos, as als. f) e g) do n.º 1 do art. 4.º do DL 422/89 consideram como tipos (modalidades) de jogos de fortuna ou azar os «jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas» e os «jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvem formas próprias dos jogos de fortuna ou azar, ou apresentam como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte». Fora desta descrição, modalidades de jogos cujos resultados também dependam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, não constituem, na disciplina da lei, jogos de fortuna ou azar, mas modalidades afins, com regulamentação e consequências próprias.
IV - «Modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar» são, nos termos do art. 159.º, n.º 1, do referido diploma, «as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e na perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémio coisas com valor económico»; como exemplos do tipo de “modalidades afins” refere a lei, «nomeadamente», «rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos» – art. 159.º, n.º 2. As modalidades afins e outras formas de jogo não podem desenvolver temas característicos dos jogos de fortuna ou azar, «nomeadamente o póquer, frutos, campainhas, roleta, dados, bingo, lotaria de números ou instantânea, totobola e totoloto, nem substituir por dinheiro ou fichas os prémios atribuídos» – art. 161.º, n.º 3, do referido diploma.
V - A infracção penal por que o recorrente foi condenado – art. 115.º do DL 422/89, de 02-12 – exige, como se referiu, como elemento essencial, uma ligação instrumental directa, imediata e inequívoca («caracterizadamente») entre o «material e utensílios» e a prática de jogos de fortuna ou azar. Material e utensílios que não tenham relação directa e específica com este tipo de jogos, normativamente descritos e definidos, não integram a previsão da referida disposição penal.
VI - Resultando da factualidade assente que as máquinas que o recorrente transportava – máquinas para jogos designados “Crisbrinde” e “Titanic” – funcionavam, no essencial, do seguinte modo:
- o utilizador introduzia na máquina uma moeda de PTE 100$00 que se depositava num cofre, rodava o respectivo manípulo, saindo aleatoriamente uma cápsula/bola que continha três senhas/rifas com um número cada;
- nas situações em que a numeração da senha/rifa não coincidia com as existentes no cartaz com a indicação dos prémios, o jogador não tinha direito a qualquer prémio;
- se a senha/rifa contivesse no seu interior qualquer dos números que estavam impressos nos rectângulos picotados do cartaz que acompanhava a máquina, era descolado o número por esse picotado e pago em dinheiro ao utilizador a quantia descrita sob o mesmo, que podia variar entre PTE 500$00 e 7 500$00, ou ainda, se o número da senha/rifa coincidisse com o número que se encontrava impresso em qualquer objecto do expositor exterior, teria o utilizador o direito a esse objecto;
verifica-se que os jogos que as referidas máquinas proporcionavam, embora os resultados dependessem da sorte e não da perícia do utilizador, não exploravam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar, nem pagavam directamente prémios em fichas ou moedas, faltando, deste modo, as características essenciais que permitam qualificar um jogo como sendo de fortuna ou azar, nos termos descritos e definidos no art. 4.º, n.º 1, do DL 422/89, de 02-12.
VII - Tanto basta para que as referidas máquinas não possam ser consideradas como «material ou utensílios» «caracterizadamente» destinados à prática de jogos de fortuna ou azar, revertendo antes as características e os elementos dos jogos proporcionados para as modalidades afins referidas no art. 159.º do referido diploma; no rigor, constituem uma espécie de sorteio por meio de rifas ou tômbolas mecânicas, com o sentido e a natureza de modalidades afins de jogos de fortuna ou azar; mesmo a circunstância de no jogo “Titanic” os prémios serem em dinheiro ou em coisas com valor económico, não lhe retira a natureza de modalidade afim, uma vez que a atribuição de prémios em dinheiro, por si só, se não é permitida nos termos do art. 161.º, n.º 3, do DL 422/89, também não integra a específica configuração em que está definido o pagamento de prémios (pagamento directo em fichas ou moedas) nos jogos de fortuna ou azar. Os factos provados não integram, pois, o crime p. no art. 115.º do DL 422/89, de 02-12.
Decisão Texto Integral:


Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA, solteiro, comerciante, nascido em 18.02.1962, natural da freguesia de Nossa Senhora do Bispo, concelho de Montemor-o-Novo, filho de BB e de CC residente na Rua ..........., n.º ...,... ....., Montemor-o-Novo, DD casado, comerciante, nascido em ......., natural da freguesia e concelho de Coruche, filho de DD e de EE residente na Rua do ..... Santo ......., Coruche, FF, casado, agricultor nascido.......... em natural da freguesia da ......, concelho de ......., filho de GG e de HH, residente na Estrada da ....., Bairro da ....., Coruche, e JJ, casada, reformada, nascida em ......, natural da freguesia de S. João Batista, concelho de Moura, filha de KK e de LL, residente na Estrada Nacional n.º ...., Fajarda, Coruche, foram acusados pelo Ministério Público pela a prática em co-autoria, de um crime de exploração ilícita de jogo p.º e p.º no art.º 108.º n.º 1 do D.L. n.º 422/89 de 02.12, com as alterações introduzidas pelo D.L. n.º 10/95 de 19.01; aos arguidos AA, DD, FF, em co-autoria e em concurso efectivo com o supra referido crime, de um crime de jogo fraudulento p.º e p.º no art.º 113.º n.º l do D.L. n.º 422/89 de 02.12, com as aludidas alterações; e, em concurso efectivo com os supra identificados crimes, ainda ao arguido AA, de um crime de material de jogo p.º e p.º no art.o 115.º do D.L. n.º 422/89 de 02.12 com as mesmas alterações.
Na sequência do julgamento, o tribunal colectivo decidiu absolver os arguidos AA, DD FF e JJ, da prática de de um crime de exploração ilícita de jogo p.º e p.º no art.º 108.º n.º 1 do D.L. n.º 422/89 de 02.12, com as alterações introduzidas pelo D.L. n.º 10/95 de 19.01, por que foram acusados;
absolver os arguidos AA, DD e FF da prática de um crime de jogo fraudulento p.º e p.º no art.º 113.º n.º l do D.L. n.º 422/89 de 02.12, com as alterações introduzidas pelo D.L. n.º 10/95 de 19.01, por que foram acusados;
condenar o arguido AA pela prática de um crime material de jogo p.º e p.º no art.o 115.º do D.L. n.º 422/89 de 02.12, com as alterações introduzidas pelo D.L. n.º 10/95 de 19.01, na pena de 1 (um) ano de prisão e 110 (cento e dez) dias de multa à taxa diária de € 03,00 (três euros), o que perfaz o montante global de € 330,00 (trezentos e trinta euros);
suspender a execução desta pena de prisão ao arguido AA, pelo período de 3 (três) anos;
declarar perdidos a favor do Estado, o numerário que foi retirado das máquinas existentes nos estabelecimentos comerciais (11.800$00) e apreendido a fls. 17 e 18;
declarar perdidos a favor do estado as máquinas destinadas à pratica de jogo, as sete caixas “Desfolhando Malmequer”, a caixa branca contendo cromos de jogo, os três sacos com bolinhas, os “placard” e os cartões com denominações, apreendidos a fls. 17 e 18, e ordenar a sua destruição, após trânsito em julgado.

2. Não se conformando, o arguido AA recorre para o Supremo Tribunal, com os fundamentos da motivação que apresenta e que termina com a formulação das seguintes conclusões:
A. O enquadramento jurídico efectuado pelo Digníssimo Tribunal “a quo" no que ao material apreendido ao arguido AA e refere não foi, no modesto entendimento do ora Recorrente, o correcto, limitando-se esse Tribunal a afirmar que os jogos desenvolvidos por tal material "assumem perfeitamente a natureza de fortuna ou azar, pois, o seu resultado dependia, mais do que fundamentalmente, exclusivamente da sorte de quem o praticasse", sem que no entanto nada mais diga, ou refira, quanto a tal classificação, e quanto ao facto de tais máquinas, e os jogos por elas desenvolvidos, puderem ou não assumir a natureza de modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar.
B. Assim, e atendendo a toda uma série de Jurisprudência que vem entendendo material e máquinas como as dos autos, aprendidas ao Recorrente, como desenvolvendo jogos que assumem a natureza de modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar, e já não dos próprios jogos de fortuna ou azar em si mesmos, é de referir que essencial para a boa decisão da causa, através de uma correcta qualificação jurídica de tal material, seria o Digníssimo Tribunal “a quo" ter apurado da hermenêutica dos artigos 1°, 4°, 159°, n.º 1, 2 e 3, e 161°, nº 3, todos do D.L. n.o 422/89, de onde decorre, por um lado, que a lei distingue o jogo de fortuna ou azar das modalidades afins e, por outro lado, que prevê a existência de outros jogos não enquadráveis em qualquer daqueles dois tipos de Jogos.
C. Além do que, deveria o Digníssimo Tribunal “a quo" ter aferido dos resultados visados com o exercício dos jogos desenvolvidos por tal material, submetendo-os a um juízo crítico em ordem a proceder à qualificação jurídica dos mesmos, apreciando o preenchimento, ou não, dos elementos objectivos que caracterizam o ilícito penal ora em causa, sendo que, no caso sub judice, tal elemento de forma alguma se encontrará preenchido.
D. No caso sub judice não estamos perante um qualquer jogo de fortuna ou azar, mas sim perante uma modalidade afim desses jogos de fortuna ou azar, pois, os prémios atribuídos estavam previamente afixados e o número de jogadores podia ser indeterminado, e a sua interpelação sempre resultará explícita da colocação do jogo sobre um balcão num qualquer estabelecimento comercial, sendo certo que, de forma alguma relevará o facto de poderem ou não ser atribuídos prémios em dinheiro para que se conclua estarmos perante um crime e já não uma modalidade afim dos jogos de fortuna ou azar.
E. Atendendo a toda uma série de recente Jurisprudência, onde se inserem os doutos arestos da Relação de Lisboa de 26-10-2005, e os desta Relação de 23.05.2006 e 11.07.2006, é de afirmar que no caso concreto estamos claramente perante uma situação que não se poderá enquadrar na previsão do art. 115º do D.L. 422/89, de 02 de Dezembro, pois que, ainda que a esperança de ganho resida única e exclusivamente na sorte, de forma alguma o material apreendido nestes autos desenvolve qualquer tipo de jogo tal como tipificado na lei como sendo de fortuna ou azar.
F. Assim, e uma vez que no caso concreto não estamos perante um qualquer jogo de fortuna ou azar, conforme descritos no art. 4º do diploma legal supra referido, até porque, não se verifica em tais jogos uma qualquer potencialidade de viciação, que se entende ser o critério a considerar para a determinação do conceito de jogo de fortuna ou azar, visto que, pelas suas características, a sua utilização é sempre imediata e instantânea, esgotando-se a cada "jogada", não se propiciando de forma alguma a que o seu utilizador se sinta preso, com a ânsia de por novamente em jogo a sua sorte, nunca a conduta do ora Recorrente poderia ser criminalmente punível, pois que, não estaríamos perante um qualquer crime de material de jogo, mas sim já, perante uma mera contra-ordenação.
G. Por outro lado, e sem conceder de tudo quanto supra foi expendido, discorda ainda o Recorrente da medida concreta da pena que lhe foi aplicada, pois que, a exigência do respeito pela dignidade da pessoa do agente e os termos da referência à culpa, critério consagrado expressamente no n.° 2 do art. 40° do C. Penal, impõem que não haja pena sem culpa e a culpa decida da medida da pena.
H. Acontece que, se é certo que é muito difícil "medir" a culpa de quem pratica factos criminalmente puníveis, não o é menos que, para a determinação judicial da pena, a nossa lei penal oferece ao julgador um quadro ou moldura em cujos limites aquela deverá ser fixada e dentro dos quais o julgador deverá ter em consideração, em conjunto, as particularidades do crime e do seu autor, orientando-se por critérios valorativos objectivos.
I. De entre tais critérios ou regras temos, em primeiro lugar, o critério de culpa do agente, que desempenha uma função justificável e limitadora da pena, o mesmo é dizer, impõe uma retribuição justa - artigo 71°, n.º 1 do Código Penal - ou seja, uma pena justa, adequada, proporcional e razoável, radicando neste ponto, da retribuição justa, a discordância do aqui Recorrente em relação à medida da pena fixada pelo Digníssimo Tribunal “a quo".
J. E isto porque, o Tribunal "a quo" considerou como elementos relevantes o dolo que classificou como intenso e o passado criminal do ora Recorrente, tudo tendo em conta as exigências de prevenção geral e especial que se impunham considerar, além do que, considerou não se antever forma organizada na actividade desenvolvida pelo arguido, bem como, não puder a mesma causar danos sérios ao património alheio e que dela não resultariam para o mesmo arguido recursos económicos de monta.
K. Assim sendo, conclui-se que, o Tribunal "a quo" envereda por um caminho que ultrapassa a medida da culpa "in casu", imputando um juízo de censura que não se atém à esfera da realidade que circunda o arguido, extravasando o sentido subjacente ao conceito de "prevenção geral" que, aliado à protecção de bens jurídicos, tem que ter sempre em conta a proporcionalidade entre a medida da pena e a gravidade do facto praticado.
L. Com efeito, não valorou convenientemente o Digníssimo tribunal "a quo" todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do arguido, designadamente: o grau da ilicitude, o facto de não haver notícia posterior da prática, por parte do arguido, de qualquer outro crime e de o mesmo se encontrar social e familiarmente inserido.
M. Motivo pelo qual, a pena de prisão aplicada ao arguido revela-se extremamente exagerada e desproporcionada às exigências de prevenção geral e especial aqui reclamadas, sendo que, em obediência aos imperativos consignados no nº 2 do artigo 71 o do C.Penal, o Digníssimo Tribunal "a quo" deveria ter considerado adequado aplicar ao ora Recorrente pena menos gravosa, com a qual sempre resultariam perfeitamente prosseguidas tais exigências de prevenção, realizando-se, por este meio, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição..
N. Não o tendo feito, o Digníssimo Tribunal “a quo" violou o disposto nos artigos 40° e 71°, nºs 1 e 2, do nosso Código Penal.
O. O acórdão recorrido violou os artigos 115°, 159° e 163°, todos do D.L. n.o 422/89, de 02 de Dezembro, com a redacção dada pelo D.L. no 10/95 de 19 de Janeiro, bem como os artigos 40° e 71°, nºs 1 e 2 do C..Penal.
Pede, em consequência, o provimento do recurso, com a absolvição da prática do crime pelo qual foi condenado, ou, caso assim não se entenda, com a aplicação uma pena consideravelmente menos gravosa.
O magistrado do Ministério Público respondeu á motivação, entendendo pelos seguintes fundamentos que o recurso não merece provimento:
- O critério decisivo de distinção entre os jogos de fortuna ou azar e as modalidades afins destes, como decorre, desde logo, da letra do artigo 159.°, n.º 1 do Regime do Jogo, é o da oferta ao público das operações, oferta característica das ditas modalidades afins.
- Não merece acolhimento a tese sustentada pelo recorrente de que a aludida distinção radica em critério diverso do acima enunciado e, designadamente, no dos prémios dos jogos de fortuna ou azar não serem previamente fixados ou no de nestes jogos só poder jogar um número determinado de pessoas de cada vez, tanto mais que estes critérios não integram as definições dos artigos 1.° (jogos de fortuna ou azar) e 159º (modalidades afins do jogo de fortuna ou azar e outras formas de jogo) do Regime do Jogo.
- Assim, uma vez que o desenvolvimento dos jogos transportados pelo arguido depende exclusivamente da sorte e os mesmos não carecem de ser oferecidos ao público para que funcionem, merecem a qualificação de jogos de fortuna ou azar.
- No caso, as exigências de prevenção geral são prementes, atenta a profusão deste tipo de jogos em estabelecimentos comerciais idênticos àquele em cujas imediações foi encontrado o veiculo conduzido pelo arguido, sendo certo que, no entanto, ainda não foi devidamente interiorizado pela comunidade e, designadamente, por quem explora esses jogos, que revestem carácter ilícito.
- O apreciável número de crimes de natureza idêntica ao dos autos por que o arguido foi antes condenado permite questionar a sua capacidade de conformação com os valores tutelados pelo ordenamento, adensando as necessidades de prevenção especial.
- É também significativa a culpa do agente.
- O dolo com que actuou foi intenso.
- Nestes termos, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto à luz dos critérios dos artigos 40.° e 71.º do CódigoPenal, a medida da pena de prisão aplicada, próxima do meio da moldura abstracta, não se mostra exagerada.
- O acórdão recorrido não padece dos apontados vicias, nem de qualquer outro, nem está ferido de qualquer nulidade.

3. No Supremo tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta teve intervenção nos termos do artigo 416º do Código de Processo Penal, considerando que nada obsta ao conhecimento do recurso.
Colhidos os vistos, teve lugar a audiência, com a produção de alegações, cumprindo decidir.

4. O tribunal colectivo julgou provados os seguintes factos:
__ 1) no dia 07.11.2001, em hora não concretamente apurada, foram aprendidos os bens e numerário constantes do auto de apreensão de fls. 17 e 18, cujo teor se dá aqui por reproduzido;__
__ 2) também nesse dia, em hora não concretamente apurada, nas imediações do estabelecimento comercial de tipo “Café” denominado “...........”, na Estrada da ........, Bairro da ......., Coruche, foi apreendido o veículo de marca “Mercedes”, modelo “Vito”, matricula ..-..-.., que o arguido AA conduzia e cujo registo de propriedade era a favor da sociedade “..........Aluguer de ............ Lda”, conforme teor de fls. 19 e 20 que aqui se dá por reproduzido;______
__ 3) dos bens constantes do auto de apreensão de fls. 17 e 18, uma máquina com expositor de formato rectangular para um jogo designado “Crisbrinde” e uma máquina com expositor de formato redondo para um jogo designado “.............”, pertencentes a indivíduo não concretamente identificado, cada uma com um número indeterminado de cápsulas/bolas de plástico, e ambas com moedas nos respectivos cofres no montante global de 5.100$00, encontravam-se no estabelecimento comercial de tipo “Café” denominado “........." em Santo .........., ........., explorado pelo arguido DD, que igualmente matinha tais máquinas, conjuntamente com tal indivíduo que aí as colocou em exploração, à disposição dos frequentadores desse estabelecimento para nelas utilizarem os seus jogos, mediante contrapartida económica que não se logrou apurar;___
__ 4) dos bens constantes do auto de apreensão de fls. 17 e 18, uma máquina com expositor de formato redondo para um jogo designado “.......”, pertencente a indivíduo não concretamente identificado, com um número indeterminado de cápsulas/bolas de plástico e com moedas no respectivo cofre no montante de 2.800$00, encontrava-se no referido estabelecimento comercial de tipo “Café” denominado "............"explorado pelo arguido FF, que igualmente matinha tal máquina, conjuntamente com tal indivíduo que aí a colocou em exploração, à disposição dos frequentadores desse estabelecimento para nela utilizarem o seu jogo, mediante contrapartida económica que não se logrou apurar;___
__ 5) dos bens constantes do auto de apreensão de fls. 17 e 18, uma máquina com expositor de formato rectangular para um jogo designado “Crisbrinde”, pertencente a indivíduo não concretamente identificado, com um número indeterminado de cápsulas/bolas de plástico e com moedas no respectivo cofre no montante de 3.900$00, encontrava-se no estabelecimento comercial de tipo “Café” denominado “.............” sito na Rua do ........, ..........., Coruche explorado por pessoa cuja identidade também não se logrou apurar, que igualmente matinha tal máquina, conjuntamente com tal indivíduo que aí a colocou em exploração, à disposição dos frequentadores desse estabelecimento para nela utilizarem o seu jogo, mediante contrapartida económica que não se logrou apurar;____
__ 6) essas máquinas, com funcionamento e jogos semelhantes, eram compostas por tal expositor com um dispositivo para introdução de moedas de 100$00, contendo no seu interior as citadas cápsulas/bolas de plástico, que, por sua vez, tinham, cada uma, três senhas/rifas com um número, sendo fechadas através de dispositivo com chave;___
__ 7) em particular as denominadas “.........” tinham ainda um expositor exterior com vários objectos como relógios ou isqueiros, em que neles estavam colados números, e um cartaz com a designação “........”, no qual constavam vinte e quatro pequenos rectângulos com um número em cada, e, na parte de baixo, um outro rectângulo, subdividido em trinta rectângulos picotados também com números em cada um, em que sob esse picotado descrevia-se o prémio pecuniário atribuído;___
__ 8) assim, o seu utilizador ao introduzir nessas máquinas uma moeda de 100$00 que se depositava num cofre, após rodar o respectivo manípulo saía aleatoriamente uma cápsula/bola que continha as três senhas/rifas com um número cada;_
__ 9) nas situações em que a numeração da senha/rifa não coincidia com as existentes no cartaz o jogador não tinha direito a qualquer prémio;____
__ 10) essencialmente, se a senha/rifa contivesse no seu interior qualquer dos números que estavam impressos nos rectângulos picotados do citado cartaz era descolado o número por esse picotado e pago em dinheiro ao utilizador a quantia descrita sob o mesmo, que podia variar entre 500$00 e 7.500$00, ou ainda, se o número da senha/rifa coincidisse com o número que se encontrava impresso em qualquer objecto do expositor exterior, teria o utilizador o direito a esse objecto;___
__ 11) a máquina instalada no estabelecimento comercial de tipo “Café” denominado “........” para o jogo designado “.............”continha no seu cofre, e, assim, separadas das outras, quatro cápsulas/bolas de plástico com dois prémios de 7.500$00 e dois de 5.000$00, por motivos que não se lograram apurar;___
__ 12) a máquina instalada no estabelecimento comercial de tipo “Café” denominado “............” para o jogo designado “.........”, continha igualmente no seu cofre, e, assim, separadas das outras, quatro cápsulas/bolas com prémios que não se lograram apurar, por motivos que igualmente não se conseguiram apurar;____
__ 13) por seu turno, os demais bens e numerário constantes no auto de apreensão de fls. 17 e 18, com excepção dos expositores exteriores e cartazes que pudessem estar agregadas às máquinas aprendidas nos referidos estabelecimentos comerciais, que não se lograram identificar entre os que constam nesse auto, e de uma máquina com expositor de formato rectangular para o jogo designado “Crisbrinde”, pertencente a indivíduo também não concretamente identificado, com um número indeterminado de cápsulas/bolas de plástico, que se encontrava à entrada, na zona de esplanada, do aludido estabelecimento comercial de tipo “Café” denominado “.............”, para ser explorada em estabelecimento comercial não apurado mas similar aos citados e ficar à disposição dos seus frequentadores para nela utilizarem o seu jogo, eram transportados no aludido veículo;_____
__ 14) assim, o arguido AA nesse veículo transportava, designadamente, 299.500$00 em moedas e seis máquinas com expositor de formato rectangular para o referido jogo “Crisbrinde”, destinadas a serem exploradas para esse efeito em estabelecimentos comerciais similares aos citados e ficar à disposição dos seus frequentadores para nelas utilizarem o seu jogo, contendo cada uma um número indeterminado de bolas, que por sua vez encerravam no seu interior três senhas/rifas com um número, e quatro senhas com os melhores prémios retidas no interior do respectivo cofre, assim, separadas das restantes;_
__ 15) ainda uma máquina com expositor igual às das utilizadas para os jogos “Crisbrinde” e duas máquinas com expositor de formato redondo idênticas às das utilizadas para os jogos “.............”, todas sem bolas, que igualmente se destinavam à exploração de tais jogos em idênticas condições às já referidas para as outras máquinas;____
__ 16) também sete caixas de cartão com a identificação “Desfolhando Malmequer”, que continham cada, aproximadamente, 4.000 senhas, com uma abertura amovível no terço inferior destinada a permitir a retirada dessas senhas e quatro senhas com os melhores prémios colados na tampa superior, para serem utilizadas como jogo pelo modo descrito a fls. 126 e 127 do relatório do exame pericial da Inspecção Geral de Jogos (fls. 118 a 128) e exploradas em estabelecimentos comerciais similares aos já citados ficando à disposição dos seus frequentadores;___
__ 17) e ainda, uma caixa contendo número não determinado de rifas/senhas, três sacos com bolinhas, “placards” contendo navalhas ou relógios, cartões “.........”, três cartões “Super Cabaz”, um cartão “Chocolates”, dois cartões “O Bombeiro”, cinco cartões “ É Natal outra vez”, três cartões “Merry Christmas”, oito cartões “Desfolhando Malmequer”, um cartão com o alfabeto e números, um cartão “Elefante Branco”, um cartão “Super Estrela”, oito cartões “Estrela”, quatro cartões utilizados para rifas e um “placard” de prémios com remate final “um forno eléctrico e patins em linha”;___
__ 18) os cartões aludidos no número antecedente eram para ser utilizados em jogos designadamente com funcionamento idêntico ao do referido no n.º 16 destes factos assentes e explorados nas mesmas circunstâncias aí mencionadas ou, tal como os demais bens aí constantes, o mesmo sucedendo como outros placards e cartões citados no auto de apreensão de fls. 17 e 18, para serem igualmente utilizados em jogos a explorar nas mesmas circunstâncias que as aludidas nos n.ºs 13 a 15 destes factos assentes;_
__ 19) o numerário e os bens mencionados nos n.ºs 13 a 18 destes factos assentes pertenciam a indivíduo cuja identidade não se logrou apurar;___
__ 20) nenhum dos arguidos possuía, à data dos factos, licença para a exploração das máquinas acima aludidas e nem os estabelecimentos comerciais citados estavam autorizados fazer a exploração dos jogos que respectivamente aí foram apreendidos;___
__ 21) o arguido AA sabia que para transportar bens como os mencionados nos n.ºs 14 a 18 destes factos assentes, e divulgar e explorar os jogos anteriormente referidos é necessária a autorização do organismo competente para tal e não obstante esse conhecimento, como foi seu propósito, transportava esses bens, bem sabendo também que essa sua conduta é punida por lei penal, tendo capacidade para se determinar segundo esse conhecimento;___
__ 22) os arguidos DD e FF desconheciam que para fazer a exploração dos jogos descritos nos n.ºs 3, 4 e 6 a 10 destes factos assentes e cujas máquinas se encontravam expostos nos respectivos estabelecimentos comerciais que exploravam, era necessária autorização do organismo competente para tal e que a sua conduta era proibida por lei;_____
__ 23) o arguido AA tem os antecedentes criminais constantes do seu C.R.C. de fls. 292 a 305.

5. Como fundamento principal do recurso, o recorrente discorda da integração dos factos na categoria penal que determinou a condenação.
O recorrente foi condenado pela prática de um crime p. no artigo 115º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, alterado pelo Decreto-Lei nº 10/95, de 19 de Janeiro, no caso, por transportar «material ou utensílios que sejam caracterizadamente destinados à prática de jogos de fortuna ou azar».
O artigo 115º do referido diploma prevê uma infracção penal cujos elementos típicos vêm descritos como «fabricar, publicitar, importar, transportar, transaccionar, expor ou divulgar material e utensílios que sejam caracterizadamente destinados à prática dos jogo de fortuna ou azar», sem autorização da Inspecção-Geral de Jogos.
Trata-se, pois, de uma infracção de mera actividade de relação com determinados bens, e actividade relativamente proibida porque dependente da ausência de autorização da Administração.
Elemento central da descrição do tipo são os bens («material e utensílios»), que pela sua natureza e pela funcionalidade instrumental se ligam à prática de jogos de fortuna ou azar.
Os jogos de fortuna ou azar constituem, pois, um elemento fundamental de conexão e de delimitação instrumental; a precisa definição, para efeitos da lei, da categoria de jogos de fortuna ou azar, na distinção de outras modalidades, apresenta-se como prius da integração logo ao nível da tipicidade descrita no artigo 115º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro.

6. A regulamentação dos jogos de fortuna ou azar, bem como de outras modalidades de jogo que se apresentam à disposição do público, potenciadas por novas possibilidades tecnológicas (o surgimento e aperfeiçoamento da “máquinas de jogos”) tem sido objecto de extensa legislação desde 1927, que, no essencial, mantém a mesma perspectiva de regulamentação no enquadramento da actividade.
"O jogo, sendo embora um fenómeno humano, carece de ser devidamente regulamentado e objecto de rigorosa fiscalização, com vista à minimização dos resultados que, da sua prática descontrolada, decorrem para a sociedade"
Esta afirmação do próprio legislador no preâmbulo do Decreto-Lei nº 22/85, de 17 de Janeiro, sem marcada referência ou conotação ética, aponta para o lugar onde deve ser encarado esse fenómeno, como actividade ou comportamento humano e, por isso ainda, ligada a um certo modo de realização da personalidade de cada um, no exercício da liberdade de ser, de actuar e de se comportar no espaço plural de uma sociedade aberta.
A sociedade e o Estado devem, por isso, considerar o jogo como actividade que constitui, ainda, a satisfação individual dentro de limites toleráveis de certo modo de ser e de viver.
Por isso, a necessidade da "devida regulamentação" e "rigorosa fiscalização" para minimizar os efeitos da "prática descontrolada".
Esta necessidade de intervenção regulamentadora e, consequentemente, de fiscalização pelos órgãos que a Administração expressamente instituiu, ou considere para tanto vocacionados, tem determinado a previsão de apertada disciplina da prática dos jogos de fortuna ou azar, com a definição e precisão das modalidades e espécies autorizadas, a delimitação e concessão das chamadas zonas de jogo e, como garantia de eficácia, a tipificação dos comportamentos proibidos neste domínio, com o estabelecimento das sanções que se consideram adequadas.
A proliferação de certo tipo de máquinas de jogo e as consequências negativas que foram produzidas junto das camadas mais jovens, destinatários preferenciais da oferta dos jogos específicos proporcionados por essas máquinas forçaram a Administração a intervir, disciplinando e controlando a respectiva utilização.
A regulamentação, que se pretendia completa, da exploração de jogos em máquinas eléctricas ficou traçada pelo Decreto-Lei nº 293/81, de 16 de Outubro.
Nesse diploma, para além da definição do tipo de jogos oferecidos pelas máquinas eléctricas cuja utilização regulamentava (artigo 2º, n.ºs 1 e 2), introduziu-se o sistema do registo prévio das máquinas (artigos 4º e segs.) fixou-se a idade mínima de 18 anos para, o acesso à prática dos jogos oferecidos por aqueles tipos de máquinas (artigo 17º) e tipificavam-se variados ilícitos (artigos 202 e segs.) qualificados na categoria de contravenções, para garantia do efectivo cumprimento das imposições que a regulamentação da actividade exigia.
O sistema do Decreto-Lei nº 293/81 previa ainda a possibilidade da utilização de outras máquinas de jogo, cujas características viessem a ser diversas das indicadas no próprio articulado, sujeitando-as ao mesmo regime através de despacho do Ministro da Administração Interna.
A possibilidade de enquadramento no regime do Decreto-Lei n.º 293/81 de outros tipos de máquinas de jogos foi utilizada no Despacho n.º 10/83, ao determinar a sujeição a esse regime das máquinas de diversão eléctricas que desenvolvessem temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentassem como resultado pontuações dependentes exclusivamente da sorte.
A partir deste Despacho, emitido na sequência da previsão do artigo 22, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 293/81, as máquinas automáticas, eléctricas ou electrónicas de diversão ficaram submetidas ao regime de regulamentação, fiscalização e de definição de ilícitos que aquele diploma instituía. As máquinas de tipo "flipper" pela previsão directa do diploma que expressa e detalhadamente se lhes referia; as máquinas que desenvolvessem temas próprios dos jogos de fortuna ou azar, por efeito daquele Despacho do Ministro da Administração Interna.
Respeitados os condicionalismos do sistema legal instituído e concedida a autorização necessária, a exploração dos referidos tipos de máquinas para a prática dos jogos que ofereciam era lícita.
Este sistema foi, porém, modificado pelos Decretos-Leis n.ºs 21/85 e 22/85, ambos de 17 de Janeiro, que traduziram uma dupla finalidade: de clarificação regulamentar para superar dificuldades de aplicação, mas igualmente de modificação dos critérios de uniformidade normativa para os diversos tipos de máquinas de diversão que influenciavam o Decreto-Lei n.º 293/81 e o Despacho Normativo n.º 10/83.
A diferenciação dos condicionamentos de exploração dos diversos tipos de máquinas automáticas, mecânicas, eléctricas ou electrónicas de jogos foi enunciado através da definição (mais restritiva) de máquinas de diversão: consideraram-se estas as que, não pagando prémios em dinheiro, fichas, ou coisas com valor económico, desenvolvam jogos cujos resultados dependem exclusiva ou fundamentalmente da perícia do utilizador, segundo o artigo 2º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 21/85.

E o n.º 3 remeteu expressamente para o sistema do Decreto-Lei nº 48912, de 18 de Março de 1969, (que discipninava a prática de jogos de fortuna ou azar) a regulamentação da exploração das máquinas que, diversamente daquelas, desenvolvessem temas próprios dos jogos de fortuna ou azar, ou apresentassem pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
O Decreto-Lei nº 22/85 concretizou especificamente esta remissão, aditando, através do artigo 12, um novo número (o n.º 4) ao artigo 4º do Decreto-Lei n.º 48912, de 18 de Março de 1969 (que especificava as modalidades de jogos de fortuna ou azar cuja exploração era autorizada nos casinos das zonas de jogo), referindo expressamente as máquinas automáticas, mecânicas, eléctricas ou electrónicas que, não pagando directamente prémios em dinheiro, fichas ou coisas com valor económico, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
A mudança de concepção operada através do conjunto destes dois diplomas conjunto unitário nas finalidades e distinto pela sistemática relevando da diferenciação do tipo de máquinas através dos jogos que ofereciam, estava justificada no relatório do Decreto-Lei nº 22/85: alguns tipos de máquinas, pelas características dos jogos que ofereciam, proporcionavam a prática ilegal de jogos de fortuna ou azar, desaconselhando, por isso, a solução consistente na qualificação dessas máquinas como de diversão e a consequente sujeição ao regime instituído para as máquinas de tipo "flipper".
A verificação desta realidade determinou, consequentemente, a revisão do enquadramento legal deste tipo de máquinas, qualificando-as como verdadeiros jogos de fortuna ou azar, restringindo-se por isso o seu uso aos casinos das zonas de jogo autorizadas.
A partir dos Decretos-Leis nºs 21/85 e 22/85, ambos de 17 de Janeiro, a exploração de máquinas de jogos cujos resultados dependiam exclusiva ou fundamentalmente de perícia do utilizador continuou a ser autorizada em geral, cumpridas que fossem as imposições regulamentares e obtida a licença de exploração; diversamente do regime de assimilação que se verificava anteriormente, a exploração das máquinas que desenvolvessem temas próprios dos jogos de fortuna ou azar foi remetida para o sistema do Decreto-Lei n.º 48912, de 18 de Março de 1969, isto é, para os limites das zonas concessionadas para a prática desse tipo de jogos.
Como actividade apertada regulamentarmente, o legislador tipificou e fixou sanções para determinados comportamentos, com a finalidade de criar mecanismos de efectividade prática às imposições que estabeleceu.
A infracção das condições regulamentares de exploração das máquinas ditas de diversão, anteriormente no domínio das contravenções, passou para o âmbito das contra-ordenações; a exploração de jogo ilegal (jogos classificados como de fortuna ou azar fora das zonas próprias), em violação do disposto no artigo 2º do decreto-lei nº 48912, de 18 de Março de 1969, continuou a ser punida como crime nos termos do artigo 56º deste diploma, que na redacção do artigo 3º do Decreto-Lei nº 22/85 passou a abranger expressamente as máquinas automáticas que desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar.

7. Actualmente a disciplina dos jogos de fortuna ou azar consta do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro, com as alterações do Decreto-Lei nº 10/95, de 19 de Janeiro.
Na versão revista, o diploma regulou também a matéria relativa às modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar, «por razões que se prendem com a conveniência de disciplinar unitariamente uma realidade próxima» da que já era regulada pelo diploma na sua versão original.
Nas categorizações que a lei assume, e para as quais estabelece diferentes modalidades de regulamentação, destacam-se os jogos de fortuna ou azar, as modalidades afins de jogos de fortuna ou azar em que o resultado depende fundamentalmente da sorte e os jogos de diversão em que o resultado depende exclusiva ou fundamentalmente da perícia do jogador.
A diferenciação entre as modalidades de jogos é essencial, porque as consequências da violação da respectiva disciplina são diversas: situadas também no plano criminal no que respeita à violação de algumas regras que enquadram a prática dos jogos de fortuna ou azar, e apenas no âmbito da contra-ordenações para a violação da disciplina dos jogos afins – artigos 108º a 117º do Decreto-Lei nº 422/89, que referem os ilícitos criminais relativos à prática de jogos de fortuna ou azar; artigos158º a 163º para os ilícitos relativos às modalidades afins.
A categoria de jogos de fortuna ou azar está definida na lei através de uma fórmula geral conjuntamente com os elementos que identificam e descrevem as diversas espécies, permitindo dar conteúdo normativo à noção por si e na delimitação com as restantes modalidades que a lei prevê e às quais faz ligar diferentes consequências.
Os jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente da sorte (artigo 1º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro), e que estão tipificados no artigo 4º, nº 1 do mesmo diploma.
No que releva para o caso, dado que o elemento essencial está ligado à detenção de determinadas máquinas de jogos, as alíneas f) e g) do nº 1 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 422/89 considera como tipos (modalidades) de jogos de fortuna ou azar os «jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas» e os «jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvem formas próprias dos jogos de fortuna ou azar, ou apresentam como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte».
Fora desta descrição, modalidades de jogos cujos resultados também dependam exclusiva ou fundamentalmente da sorte, não constituem, na disciplina da lei, jogos de fortuna ou azar, mas modalidades afins, com regulamentação e consequências próprias.
«Modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar» são, nos termos do artigo 159º, nº 1 do referido diploma, «as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e na perícia do jogador, ou somente na sorte, e que atribuem como prémio coisas com valor económico»; como exemplos do tipo de “modalidades afins” refere a lei, «nomeadamente», «rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos» - artigo 159º, nº 2.. As modalidades afins e outras formas de jogo não podem desenvolver temas característicos dos jogos de fortuna ou azar, «nomeadamente o póquer, frutos, campainhas, roleta, dados, bingo, lotaria de números ou instantânea, totobola e totoloto, nem substituir por dinheiro ou fichas os prémios atribuídos» - artigo 161º, nº 3 do referido diploma.

8. A infracção penal por que o recorrente foi condenado – artigo 115º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro – exige, como se referiu, como elemento essencial, uma ligação instrumental directa, imediata e inequívoca («caracterizadamente») entre o «material e utensílios» e a prática de jogos de fortuna ou azar.
Material e utensílios que não tenham relação directa e específica com este tipo de jogos, normativamente descritos e definidos, não integram a previsão da referida disposição penal.
Os factos provados relativamente ao recorrente, e nos quais se fundamenta a decisão recorrida na integração e qualificação que assumiu, estão referidos nos pontos 14 a 18 da matéria de facto – transporte de determinados tipos de máquinas de jogos.
As características das máquinas que o recorrente transportava – máquinas para jogos designados “Crisbrinde” e “Titanic” – estão descritas nos pontos 6 a 10 da matéria de facto.
No essencial, funcionavam do seguinte modo:
O utilizador introduzia na máquina uma moeda de 100$00 que se depositava num cofre, rodava o respectivo manípulo, saindo aleatoriamente uma cápsula/bola que continha três senhas/rifas com um número cada;
Nas situações em que a numeração da senha/rifa não coincidia com as existentes no cartaz com a indicação dos prémios, o jogador não tinha direito a qualquer prémio;
Se a senha/rifa contivesse no seu interior qualquer dos números que estavam impressos nos rectângulos picotados do cartaz que acompanhava a máquina, era descolado o número por esse picotado e pago em dinheiro ao utilizador a quantia descrita sob o mesmo, que podia variar entre 500$00 e 7.500$00, ou ainda, se o número da senha/rifa coincidisse com o número que se encontrava impresso em qualquer objecto do expositor exterior, teria o utilizador o direito a esse objecto.
Verifica-se, assim, que os jogos que as referidas máquinas proporcionavam, embora os resultados dependessem da sorte e não da perícia do utilizador, não exploravam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar, nem pagavam directamente prémios em fichas ou moedas.
Faltam, deste modo, as características essenciais que permitam qualificar um jogo como sendo de fortuna ou azar, nos termos descritos e definidos no artigo 4º, nº 1 do Decreto-Lei nº 422/89 de 2 de Dezembro.
Tanto basta para que as referidas máquinas não possam ser consideradas como «material ou utensílios» «caracterizadamente» destinados à prática de jogos de fortuna ou azar.
As características e os elementos dos jogos proporcionados revertem antes para as modalidades afins referidas no artigo 159º do referido diploma; no rigor, constituem uma espécie de sorteio por meio de rifas ou tômbolas mecânicas, com o sentido e a natureza de modalidades afins de jogos de fortuna ou azar
Mesmo a circunstância de no jogo “Titanic” os prémios serem em dinheiro ou em coisas com valor económico, não lhe retira a natureza de modalidade afim, uma vez que a atribuição de prémios em dinheiro, por si só, se não é permitida nos termos do artigo 161º, nº 3 do Decreto-Lei nº 422/89, também não integra a específica configuração em que está definido o pagamento de prémios (pagamento directo em fichas ou moedas) nos jogos de fortuna ou azar.
Os factos provados não integram, pois, o crime p. no artigo 115º do Decreto-Lei nº 422/89, de 2 de Dezembro.
O recurso merece, assim, provimento.
Restará a necessidade de decidir pela autoridade competente sobre a relevância dos factos no âmbito da responsabilidade por contra-ordenação.

9. Nestes termos, na procedência do recurso, absolve-se o recorrente do crime por que vinha condenado.

Lisboa, 28 de Novembro de 2007

Henriques Gaspar (relator)
Soreto de Barros
Armindo Monteiro
Santos Cabral