Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B3261
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BETTENCOURT DE FARIA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
MORTE
DANOS FUTUROS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
PEDIDO
LIMITES DA CONDENAÇÃO
Nº do Documento: SJ20070329032612
Data do Acordão: 03/29/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I – O que releva para identificar a questão jurídica submetida a juízo é o pedido indemnizatório global, funcionando os pedidos parcelares como simples fundamentos daquela pretensão.
II – Logo, quando se coloca em recurso o problema do aumento da indemnização total, o tribunal ad quem, que não está sujeito aos argumentos das partes, pode atender a mesma pretensão, embora louvando-se em outros motivos que não os invocados pelos recorrentes.
III – No caso, estes pediram o aumento da indemnização global. Tanto bastava, pois, para que a Relação pudesse calcular, como o fez, a indemização por danos patrimoniais futuros em montante superior ao peticionado.
IV – No caso dos danos patrimoniais futuros, não se justifica qualquer dedução ao valor da indemnização correspondente à mais valia que adviria para o lesado de receber de uma só vez aquilo que iria recebendo ao longo do tempo, se, devido à juventude da vítima, não se puder conjecturar quer nunca viria a perceber o rendimento global derivado dessa indemnização V – O pedido pela viúva e filhos da vítima de uma indemnização por danos não patrimoniais derivados da morte deste pode ser atendido, ainda que aqueles tenham alegado quaisquer factos respeitantes à dor que sofreram, uma vez que tal sofrimento é uma regra da experiência e a notoriedade cultural também vincula os tribunais.
VI – No caso de assim não acontecer, estamos perante matéria de excepção a provar pela outra parte.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I
AA, por si e em representação de seus filhos menores BB e CC, moveu a presente acção contra Companhia de Seguros DD SA, pedindo que a ré fosse condenada no pagamento de indemnização no montante de 53.777.000$00, que descriminou pelo seguinte modo:
1 - 105.000$00 de despesas com o o funeral de EE;
2 – 1.000.000$00 a título de indemnização moral para cada um dos autores;
3 – 2.000.000$00 pelo sofrimento pessoal do EE, originado pela sua morte dolorosa;
4 – montante equivalente aos salários que o falecido receberia, desde a data do acidente até à data da reforma, acrescidos da taxa de inflação e que foi de 11%, totalizando até à data (da p.i.) 48.672.000$00.
O processo seguiu os seus trâmites e, feito o julgamento, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente o pedido, pelo seguinte modo:
1 – a título de danos morais, por morte do marido e pai , foi atribuída à autora a quantia de 3.000.000$00 e a cada um dos filhos a quantia de 2.000.000$00;
2 – a título de lucros cessantes a quantia de 24.000.000$00.
Tudo no valor global de 31.000.000$00 (€ 154.627,34).
Apelaram a ré e, subordinadamente, os autores.
O Tribunal da Relação julgou parcialmente procedentes os recursos e alterou a decisão de 1ª instância fixando os seguintes montantes indemnizatórios:
1 € 175.000,00 de danos patrimoniais, sem prejuízo do que se vier a liquidar em execução de sentença, no que diz respeito às prestações até aí recebidas pelos autores, em sede de arbitramento provisório de indemnização, devendo-se efectuar a correcção monetária, no termos consignados no acórdão;
2 € 24.939,89 e 12.469,95 pelo dano morte do marido e pai em relação, respectivamente à autora mulher e a cada um dos autores filhos;
mais determinando a condenação em juros à taxa legal, quanto à indemnização por danos patrimoniais, a partir da decisão actualizadora e em juros à taxa legal quanto à indemnização por danos não patrimoniais, a partir da data da respectiva decisão.
Voltaram as partes a recorrerem, sendo os autores, subordinadamente.

Nas suas alegações de recurso, apresentam as partes, em síntese, as seguintes conclusões:

recurso da ré

1 Onde o acórdão recorrido determina “Fixar a indemnização por dano morte do marido e pai relativamente ao cônjuge e a cada um dos filhos no montante de € 24.939,89 para aquela e € 12.469,95 para cada um daqueles.”, pretendia dizer “Fixar a indemnização por danos não patrimoniais do cônjuge e de cada um dos filhos, no montante de € 24,939,89 para aquela e € 12.469,95 para cada um daqueles, dado que o dano morte foi julgado improcedente, por apenas invocado em recurso. Há que proceder à rectificação, de acordo com o artº 667º nº 1 do CPC.
2 O tribunal a quo não podia, como fez, aumentar o valor da indemnização por danos patrimoniais futuros, uma vez que, em contra-alegações os autores não pediram a ampliação do recurso, requerendo o aumento desse valor, sendo certo que também na sua apelação subordinada não colocaram a questão, limitando-se a pedir a apreciação do dano morte e dos danos não patrimoniais do falecido e deles próprios.
3 De qualquer modo, o valor apurado pela Relação a título de danos patrimoniais futuros, sempre deveria ser substancialmente reduzido, atendendo aos rendimentos do falecido (13.000$00 semanais), que certamente gastaria um terço dos seus rendimentos e que tinha 31 anos à data do acidente, a quantia de que a família dispunha era a de € 172,91 mensais.
4 Acresce que é diferente receber a quantia mensalmente e receber tudo de uma vez, porque neste caso poderão aplicar o dinheiro recebendo juros; no caso percebendo um rendimento mensal de € 437,00, superior ao que dispunham em vida do sinistrado e sem tocar no capital.
5 Acresce também, que, aplicando as taxas correntemente usadas pelos tribunais superiores, apurar-se-ia um valor de € 43.829,12.
6 Embora não se tenha provado nenhum facto quanto aos danos não patrimoniais, decidiu a Relação o montante de tais danos segundo as regras de experiência, o que é insuficiente para demonstrar a real existência dos danos não patrimoniais.
7 E, sem prescindir, os montantes encontrados são excessivos. Com efeito, os autores peticionaram 1.000.000$00 para cada um deles, considerando que sofreram por igual, mas, ao serem atribuídos montantes diversos, a sentença violou a regra de que não pode haver condenação em quantia superior ou em objecto diverso do que se pedir.
8 Sendo que esses montantes são superiores aos que têm sido atribuídos na generalidade dos tribunais portugueses.

recurso dos autores


1 À viúva deve ser atribuída uma indemnização pelo desgosto de perder um marido de 31 anos de € 30.000,00, devendo ser atribuída a cada um dos filhos pela perda do pai uma indemnização de € 15.000,00.
2 Pelo sofrimento da vítima que, de acordo com documentos dos autos, faleceu muito depois do acidente, deve ser arbitrada uma indemnização de € 7.500,00.
3 Pela perda do seu direito à vida, deve ser fixada uma indemnização de € 25.000,00.
4 O tribunal tem de atender à verba referida em 3, mesmo que não tenha sido peticionada pelo autor.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II
Factos assentes:

Nos termos do artº 713º nº 6 do C. P. Civil, consignam-se os factos dados por assentes pelas instâncias remetendo para o que consta de fls. 622 a 623, os quais na sua quase totalidade respeitam à ocorrência do acidente.
Deixam-se aqui expressos aqueles qe possam ter interesse para a decisão da matéria indemnizatória e que são apenas os seguintes:

1 EE auferia à data do acidente um rendimento semanal de 13.000$00.
2 O funeral foi pago pela autora.
3 Do acidente resultou a morte de EE, que nessa altura tinha 31 anos de idade.

III
Apreciando
recurso da ré

1 A primeira questão suscitada é a de que há um lapso manifesto no acórdão recorrido quando fixa determinadas quantias a arbitrar à viúva e a cada um dos filhos “pelo dano morte”, quando é certo que a reparação deste dano foi considerada improcedente na mesma decisão. Assim, tais verbas são de considerar fixadas a título de danos não patrimoniais.
Sem prejuízo de uma expressão menos feliz, o certo é que se entende aquilo que foi decidido e que é, precisamente, a reparação dos danos não patrimoniais. Com efeito, quando aí se fala em dano morte não se está a falar, como seria correcto, da violação do direito à vida da vítima, mas antes do prejuízo moral que essa morte causou nos seus familiares. Só deste modo e que se compreende que em relação a tal dano não se fala do direito próprio do lesado, mas antes da morte do “marido e do pai”.
Compreende-se o que se quis dizer, nada havendo a rectificar.

2 Alega a recorrente que a Relação não podia aumentar o montante da indemnização por danos patrimoniais futuros, dado que os autores não pediram a ampliação do recurso, requerendo o aumento desse montante, nas suas contra-alegações, bem como nada disseram a esse respeito no recurso subordinado.
No recurso subordinado de apelação, os autores pediram que a indemnização global fosse aumentada por deverem serem superiores as indemnizações devidas pelos danos não patrimoniais – cf. fls. 518 I - .
Por outro lado, conforme é entendimento pacífico, “a fixação dos danos parcelares em quantia superior à valorada pelos autores na petição inicial não infringe o disposto no artº 661º do C. P. Civil, quando a sentença não condena em valor superior ao do pedido global de indemnização.” - Ac. STJ de 01.07.00 Sumários de Acórdãos Danos Futuros 2002 Out 2006 - .
Ou seja, o que releva para identificar a questão jurídica submetida a juízo é o pedido indemnizatório global, funcionando os pedidos parcelares como simples fundamentos daquela pretensão. Logo, quando se coloca em recurso o problema do aumento do pedido global, o tribunal ad quem, que não está sujeito aos argumentos das partes, pode atender a mesma pretensão, embora louvando-se noutros motivos, que não os invocados pelo recorrente.
No caso, os autores, recorrentes subordinados, pediram o aumento da indemnização total. Tanto bastava, pois, para que a Relação pudesse calcular, como fez, a indemnização por danos patrimoniais futuros em montante superior ao peticionado. Isto, independentemente de se concordar, ou não, com a quantia arbitrada em 2ª instância, do que se tratará a seguir.

3 Pretende a ré recorrente que é demasiado o montante fixado para os danos patrimoniais futuros.
Só são reparáveis os danos que em concreto se verificarem ou vierem a verificar. É o que resulta da teoria da diferença plasmada no nº 2 do artº 566º do C. Civil. Por isso, quanto aos danos futuros não basta a mera possibilidade de virem a ter lugar. Necessário se torna que se possa emitir juízo de probabilidade sobre a sua ocorrência. Ou seja, ser mais certo que venham a ter lugar do que o contrário. E se está em causa a perda do rendimento e capitalização correspondente ao período de uma vida, torna-se problemático o seu cálculo, dada a pouca segurança dos critérios em que se baseia.
Como se entendeu no AC deste STJ de 06.07.2004 – ob. cit. - , “A avaliação pelo juiz do dano futuro causado...é tanto mais difícil quanto o trabalho futuro se distancia do sinistro, entrando-se no campo da profecia.” sendo que “Os critérios de capitalização dependem de factores aleatórios e utilizam coeficientes matemáticos assentes em avaliações médias e indivíduos tipo, que não garantem cálculos indemnizatórios precisos e se revelam tantas vezes inadequados ao caso concreto.”
Na verdade, nem a evolução das condições macroeconómicas, nem a alteração do status económico do sujeito em causa oferecem qualquer garantia de que as coisas correrão como o indicam as fórmulas matemáticas. Unicamente se poderá dizer, ao indagar do que será a normal evolução duma situação económica individual, que o período activo se prolonga por determinado número de anos e que a tendência é para ter lugar alguma capitalização. Deste modo, tem vindo a ganhar terreno a jurisprudência que defende como critério predominante e decisivo a equidade.
Não que seja ilegítimo o recurso às fórmulas, desde que os resultados sejam meramente indicativos e apenas aferidores do referido critério da equidade.
A equidade não significa o puro subjectivismo. Adquirem, aqui, particular relevo as correntes jurisprudenciais.
O falecido tinha 31 anos à data do acidente que o vitimou e auferia um rendimento semanal de 13.000$00.
Atendendo aos seus rendimentos e ao que seria a sua esperança de vida (cerca de 40 anos), cremos que a questão foi bem decidida em 1ª instância, quando se arbitrou a indemnização de 24.000.000$00. A quantia fixada pela Relação parece-nos, salvo o devido respeito, algo excessiva.

4 O facto do montante ser entregue todo de uma só vez não se traduz, no caso concreto, numa indevida mais valia, a descontar no montante da indemnização por danos futuros. Com efeito, tal só seria de atender se, devido a uma idade mais avançada do lesado, fosse de prever que o acréscimo de rendimento que lhe era proporcionado pela recepção integral e imediata do quantum indemnizatório significaria uma rendimento total, que, sem a lesão nunca viria a obter. Mas, no caso, a juventude da vítima não permite conjecturar que, ao longo da sua vida, nunca teria acesso a tal quantitativo.

5 Refere a recorrente que não ficaram provados quaisquer danos não patrimoniais.
É certo que não ficaram provados nenhuns elementos de facto respeitante a esta matéria. A Relação, fundando-se nas regras da experiência, arbitrou as indemnizações a título de danos não patrimoniais.
Os danos não patrimoniais têm de ser alegados e provados pelo autor. E é costume neste tipo de acções os peticionantes referirem a dor moral que funda o seu pedido.
No entanto, cabe ver se essa dor não está implícita no próprio pedido de tal tipo de danos. Manifesto que está. Independentemente de vir a ser provado um certo desgosto ou uma sua maior ou menor intensidade, o que poderá condicionar os limites da reparação, o seu cerne resulta desde logo da própria qualidade dos demandantes. A viúva e os filhos do falecido que pedem indemnização pela morte do seu marido e pai estão apenas a requerer aquilo que, mais até do que derivado da experiência, é um dado cultural básico. Que os laços familiares têm um forte conteúdo afectivo e que a sua interrupção traumática é fonte de sofrimento. A notoriedade cultural também vincula os tribunais.
Nem se diga, como o recorrente, que nem sempre assim acontece. É evidente que não. Mas, nesse caso, isso constituirá matéria de excepção, a provar pelo réu.

6 Alega a ré recorrente que, tendo os autores pedido indemnizações iguais para cada um deles, não podia a Relação distinguir arbitrando mais à viúva do que aos filhos, nem arbitrar quantias superiores quantias superiores às peticionadas, como fez.
Não tem razão a recorrente, nos termos do consignado em 2, que têm aqui pleno cabimento e para os quais se remete.
O julgador pode ultrapassar as quantias pedidas a título de indemnizações parcelares, desde que se contenham dentro dos limites do pedido global. O que significa também, por maioria de razão, que pode estabelecer medidas de indemnização diversificadas para cada um dos lesados, embora se tenha feito um pedido idêntico para todos eles.

7 Quanto aos montantes fixados, encontram-se eles dentro dos limites que têm sido arbitrados pela jurisprudência deste Supremo.
Vejam-se os Acórdãos de 24.01.06 e de 12.10.06 – ob.cit – em que os valores arbitrados para a indemnização dos familiares por danos não patrimoniais, derivados de morte do lesado, são da mesma ordem de grandeza.


Com o que procede em parte o recurso.

recurso dos autores

1 Pretendem os recorrentes que as indemnizações por danos não patrimoniais da viúva e dos filhos sejam aumentadas em, respectivamente, cerca de € 5000,00 e € 2.500,00, respectivamente. Não vemos motivo para uma alteração, relativamente pequena, que não é fundamentada em nenhum facto especialmente relevante, para além da natural dor de perder um familiar.
Acresce que, como referimos em 7 do recurso da ré, os valores fixados estão dentro do que é de jurisprudência. Note-se que esta jurisprudência respeita a situações em que existe mais matéria de facto do que no na hipótese em apreço.

2 Pretendem também os autores uma indemnização pela perda do direito à vida do falecido.
Acontece que os autores não peticionaram essa indemnização.
Alegam que o tribunal pode fixar essa indemnização, respeitante a tal perda, dado que o que interessa é a indemnização global peticionada.
Quando na apreciação do recurso da ré – 2 e 6 – se consignou que o tribunal pode alterar, ainda que para mais, os valores constantes da petição inicial para as indemnizações parcelares, não se quis dizer que estas não devam ter uma causa de pedir, que o autor tem de alegar e provar. Nada se dizendo na petição inicial sobre a perda do direito à vida, não pode ser considerada, configurando-se, como bem assinala a Relação, de uma questão nova que não pode ser apreciada em recurso.

3 Os recorrentes peticionaram uma indemnização pelo sofrimento da vítima anterior à sua morte. As instâncias entenderam que aqueles não tinham demonstrado que a morte do lesado não fora imediata.
Insistem os recorrentes que existem nos autos documentos que provam a sua alegação.
Trata-se duma questão de facto que não pode ser agora sindicada, uma vez que não está em questão a força probatória vinculada desses documentos.
Verifica-se portanto, que não está provado que o a vítima não morreu de imediato ao acidente, o que era um ónus dos autores. Por esta razão não existe suporte fáctico para arbitrar uma indemnização pelo aludido sofrimento.
Termos em que improcede o recurso.

Pelo exposto, acordam em negar a revista dos autores e em conceder, em parte, a revista da ré e, em consequência, confirmam o acórdão recorrido, excepto no que se refere à indemnização por danos futuros, no que revogam o mesmo acórdão, mantendo o decidido em 1ª instância.
Custas do recurso da ré, por recorrente e recorridos na proproção do vencido e do recurso dos autores pelos recorrentes.

Lisboa, 29 de Março de 2007


Bettencourt de Faria (relator)
Pereira da Silva
Rodrigues dos Santos