Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
374/17.4T8FAR.E2.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
EMBARGO DE OBRA NOVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO ESPECIFICADA
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
REJEIÇÃO PARCIAL
CONSTITUCIONALIDADE
ACESSO AO DIREITO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ANULAÇÃO DE ACÓRDÃO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Apenso:
Data do Acordão: 10/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa assenta na noção de relação jurídica administrativa, abrangendo apenas os litígios em que um dos sujeitos é  uma entidade pública ou uma entidade privada que atua como se fosse pública e  em que  os direitos e os deveres que constituem a relação emergem de normas legais de direito administrativo ou referem-se ao âmbito substancial da própria função administrativa.

II. Não cabe, assim, no âmbito da competência dos tribunais administrativos e fiscais julgar litígios no domínio das relações entre particulares, titulares de direitos reais, regidas pelas normas do Código Civil, da competência residual dos tribunais judiciais.

III. Cumpre o ónus  impugnativo previsto  na alínea a) do nº 2 do  artigo 640º, do Código de Processo Civil, quem rebate, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo e tenta demonstrar que a prova que esteve na base da formação da convicção do tribunal inculca outra versão dos factos, não constituindo fundamento para a rejeição do recurso, nesta parte, a falta de indicação, nas conclusões recursórias, dos meios concretos de prova nem das passagens das gravações constantes do corpo alegatório, visto que não têm por função delimitar o objeto do recurso, traduzindo-se antes em elementos de apoio à argumentação probatória.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL




***


I. Relatório


1. Radical Red Holdings, LLC e AA (AA) intentaram a presente ação declarativa, sob a forma do processo comum, contra BB (R), pedindo:

- seja declarada a caducidade da providência decretada no processo n.° 789/16…, que correu termos na Comarca ... - ... - Instância Local – Secção Cível- J…;

- seja ordenado o levantamento da suspensão da obra decretada na providência cautelar e, consequentemente, a não proceder à reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição;

- o não reconhecimento da ré como dona e legítima proprietária do prédio urbano sito em ..., freguesia ..., concelho ..., composto por casas de morada de um pavimento com três divisões assoalhadas, cozinha e casa de banho, com a área total de 517m2, correspondendo a 126m2 à área coberta e 390,90m2 à área descoberta, confrontando do Norte com lote …, do Sul com lotes .. e …, Nascente com CC e do Poente com rua, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ….67 (anteriormente inscrito sob o artigo ….11, da freguesia de ..., concelho de ...) e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.° …22, adquirido por usucapião, no que se refere à configuração e limites;

- se reconheça que a autora é dona e única proprietária e possuidora, com exclusão de outrem dos bens imóveis adquiridos nos termos do disposto no art.° 874.° e seguintes do Código Civil:

- Prédio urbano, lote de terreno destinado a construção urbana, sito em ..., ..., denominado lote …, freguesia ..., concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo …,17 descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.° …93, da freguesia ..., Alvará de Loteamento de 30 de agosto de 2000;

- Prédio urbano, lote de terreno destinado a construção urbana, sito em ..., ..., denominado lote …, freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo …18, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.° …94, da freguesia ..., Alvará de Loteamento de 30 de agosto de 2000; e que

- a ré seja condenada a abster-se de praticar quaisquer atos contra as propriedades da A supra descritas, com as devidas consequências legais.

Alegam, para tanto e em síntese, que no âmbito do referido procedimento cautelar foi reconhecido o direito de propriedade da ré sobre o prédio urbano descrito sob o n.° …, determinando-se a suspensão imediata da obra que levavam a efeito nos prédios que adquiriram no âmbito de processo de insolvência, bem como a reconstrução das paredes e telhado nos termos em que se encontravam antes dos trabalhos de demolição, decretando-se a inversão do contencioso, não pretendendo os autores que a decisão proferida se consolide como composição definitiva do litígio, na medida em que entendem não existir o direito de propriedade da ré sobre o identificado prédio urbano.


2. A ré contestou, alegando a aquisição por usucapião do direito de propriedade sobre o referido prédio urbano e concluindo pela manutenção da providência decretada.


3. Na sua resposta, os autores pugnaram pela improcedência do pedido reconvencional deduzido.


4. Foi realizada audiência prévia, no âmbito da qual foi declarada a inexistência de pedido reconvencional, considerando-se não escrita a resposta dos autores, foi proferido despacho saneador, fixado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova, sem que tenha sido objeto de reclamação.


5. Foram habilitados como adquirentes do direito de propriedade da autora DD e EE.


6. Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, por não provada, e, em consequência, absolveu a R do pedido.


7. Inconformados com a sentença, os autores dela apelaram, tendo o Tribunal da Relação proferido acórdão que anulou a sentença e parcialmente o julgamento, ordenando que fosse completada a perícia para suprimento e apuramento de elementos, proferindo-se nova sentença.


8. Após a realização da perícia, vieram DD e EE com articulado autónomo pronunciar-se sobre a perícia, invocar a incompetência absoluta em razão da matéria e a ilegitimidade passiva dos requeridos no procedimento cautelar e autores nestes autos.


9. A ré respondeu, pugnando pelo indeferimento do requerido.


10. Em audiência final foi proferido o seguinte despacho:

"Requerimentos de fls. 657 e seguintes:-

Toda a defesa deverá ser deduzida na Contestação - Art. 573° n° 1 do c.r.c:

Apenas pode ser deduzida excepção superveniente, nos termos do disposto no Art. 573, n° 2 do CPC; ou quando a lei expressamente o admite, ou o Tribunal deva conhecer oficiosamente.-

O tribunal já declarou a sua competência material para a apreciação do litígio, o que mantém, mormente porque se discute a propriedade de determinados prédios, vindo a ser intentada esta acção na sequência do procedimento Cautelar, intentado pela aqui Ré, e no qual o Tribunal da Relação de Évora decidiu pela inversão do contencioso.-

Por outro lado, as Partes são legítimas, como também o Tribunal já apreciou, atento o pedido e a causa de pedir dos presentes autos, sendo apenas quanto a estes que haverá que apreciar e decidir tal pressuposto processual, e não já do procedimento Cautelar que anteriormente foi interposto.-

Por último, a questão suscitada pelos Requerentes/Autores prende-se com o mérito da causa, que será apreciado em sede de Sentença. Notifique."


11. Foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu a ré dos pedidos.


12. Inconformados com esta decisão, dela apelaram os autores para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão proferido em 29.04.2021, julgou improcedente o recurso de apelação interposto e manteve a sentença recorrida.


13. Inconformados com este acórdão, os autores dele interpuseram   recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«I. Não se conformam os Recorrentes com o douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal de Relação, que considera competente o tribunal judicial comum para apreciação da causa, ao abrigo do disposto no art.º 64.º do CPC e art.º 4.º do ETAF.

II. A competência do tribunal, em razão da matéria, afere-se em função do objeto do processo, delimitado pela causa de pedir e pelo pedido, nos termos conformados pelo autor.

III. Para aferir a competência material, importa considerar os termos em que foi proposta a ação, nomeadamente, a natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária e o facto ou ato donde resulta esse direito.

IV. Em sede de audiência prévia foi definido o seguinte objeto do litígio “discute-se na acção aferir da existência do direito de propriedade da ré acautelado no âmbito do procedimento cautelar nº 789/16… que correu termos no … juízo local cível do Tribunal da Comarca …..”

V. Como fundamento do seu pedido, alegam os ora Recorrentes, na Petição Inicial, que a propriedade dos dois lotes em causa, denominados lote … e lote …, têm origem no Alvará de Loteamento 5… datado de30-08-2000, emitido pela Câmara Municipal ....

VI. Alegou a Recorrida no Procedimento Cautelar e nos presentes autos, que por lapso ou má-fé, o seu imóvel foi indevidamente englobado na área do loteamento aprovado pelo alvará n.º 5… de 30-08-2000.

VII. No mesmo sentido, no Relatório de Perícia, a senhora perita conclui que o prédio da Recorrida está inserido nos Lotes … e … do Alvará de Loteamento 5..., emitido pela Câmara Municipal …..., em 30 de agosto de 2020.

VIII. Face à identificação do objeto do litígio, à relação jurídica e situação factual descrita na petição inicial e às conclusões da senhora perita constantes dos Relatórios de Perícia e de Esclarecimentos de Perícia, conclui-se forçosamente que o ato que alegadamente põe em causa o direito da mesma é um ato administrativo.

IX. Discordando os Recorrentes do entendimento defendido pelo Venerando Tribunal, de acordo com o qual, o alvará de licença de loteamento não tem a virtualidade de criar ou suprimir direitos, uma vez que, foi através do referido alvará que forma criados os lotes adquiridos pelos Recorrentes, nos quais, de acordo com o alegado pela Recorrida, se encontra englobado o prédio cuja propriedade a mesma reclama nos presentes autos.

X. Os prédios adquiridos pelos Recorrentes encontram-se inseridos num loteamento urbano titulado pelo alvará n.º 5..., emitido pela Câmara Municipal ......

XI. A constituição destes lotes e os correspondentes direitos sobre os mesmos adquiridos só poderiam ser anulados por meio de prévia revogação do alvará de loteamento ou pela anulação de tal ato administrativo.

XII. Na eventualidade de se considerar que o ato de licenciamento se encontrava eivado de vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de facto, o mesmo estaria sujeito ao regime da revogação previsto no n.° 1 do artigo 141.° do Código do Procedimento Administrativo então em vigor, aprovado pelo Decrelo-Lei n.° 442/91, de 15 de novembro, com a redação conferida pelo Decreto-Lei n.° 6/96, de 31 de janeiro.

XIII. O ato pretensamente lesivo dos interesses da Recorrida é um ato administrativo e, consequentemente, deveria ter sido impugnado judicialmente, dentro do prazo legal, no Tribunal Administrativo competente, nos termos do disposto no art.º 4.º, alínea b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

XIV. Sendo que a Recorrida nunca intentou qualquer ação nos tribunais administrativos para anulação do alvará de loteamento nem o poderá ora fazer, atento o prazo de caducidade já decorrido.

XV. Na ordem jurídica interna, diz-nos o art. 60.º, n.º 2, do CPC, que a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, a hierarquia judiciária, o valor da causa, e o território.

XVI. Nos termos do disposto nos artigos 96.º n.º 1 do CPC, os tribunais judiciais são totalmente incompetentes em razão de matéria do foro administrativo.

XVII. Constituindo a incompetência absoluta do Tribunal em função da matéria uma exceção dilatória, nos termos do disposto no artº 577.º a) do CPC, a qual determina a absolvição da instância nos termos do disposto nos artºs 278.º e 279.º do CPC.

XVIII. Pelo Venerando Tribunal deveria ter sido julgada procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta do Juízo Central Cível, do Tribunal Judicial da Comarca de ....

XIX. Ao não fazê-lo, o Venerando Tribunal, com o devido respeito, violou as disposições previstas nos art.ºs 64.º do CPC e art.º 4.º do ETAF.

XX. Decidiu o Venerando Tribunal rejeitar o recurso interposto pelos Recorrentes, na parte em que se propõem impugnar a matéria de facto, por incumprimento do ónus de impugnação.

XXI. Na impugnação da matéria de facto realizada pelos Recorrentes no recurso de apelação indicamos mesmos os pontos indicados na sentença dos factos impugnados, a resposta a dar aos mesmos, os meios de prova e passagens de gravações dos depoimentos que no seu entender impõem decisão diversa da proferida, procedendo à transcrição dos excertos considerados importantes, fazendo uma análise crítica do sentido das respostas dadas, indicando o motivo pelo qual as respostas deveriam ser num sentido e não noutro, de acordo com o exigido pelo art.º 640.º do CPC.

XXII. Cumprindo o ónus de impugnação imposto pelo art.º 640.º do CPC.

XXIII. A interpretação do douto Acórdão é essencialmente formal e impede os Recorrentes de obter um segundo grau de jurisdição no âmbito do julgamento da matéria de facto.

XXIV. A interpretação feita no douto Acórdão do artigo 640° do C.P.C, é mesmo inconstitucional pois viola o direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20° da CRP, bem como o princípio da proporcionalidade consagrado nos artigos 2.º e 18°, n°2 , 2ª parte, da CRP.

XXV. O douto Acórdão, proferido pelo Venerando Tribunal, não tendo conhecido da impugnação feita pelos Recorrentes sobre a decisão da matéria de facto, com base na circunstância de aquela não ter cumprido o ónus de impugnação, cometeu uma nulidade por omissão de pronúncia prevista na alínea d), do n° 1 do artigo 615° do C.P.C.

XXVI. Não se conformam os Recorrentes com o douto Acórdão proferido, na parte em que se pronuncia pela improcedência do recurso, no que se refere à impossibilidade de aquisição do prédio por parte da Recorrida, alegada pelos Recorrentes.

XXVII. De acordo com a decisão proferida em 1ª Instância “decorridos que foram mais de 20 anos sobre o início da posse, o que sucedeu desde 1975, deu-se a usucapião a favor da ré sobre o mencionado prédio (art.º 1296.º do Código Civil). Por outro lado, é lícito à ré fazer valer o direito de propriedade sobre a área em causa que, como vimos, foi englobada nos lotes ... e ... adquiridos pelos autores, na medida em que a aquisição destes lotes pelos autores ocorre em fevereiro de 2015 e não gozam de posse ou registo anterior ao início da posse da ré – art.º 1268.º, n.º 1 do Código Civil.”

XXVIII. Acrescentando que: “não está em causa a aquisição por usucapião, de determinada área pertencente aos prédios urbanos que resultaram autonomizados com o loteamento (a que corresponde o alvará n.º 5....). Isto tendo presente que, o que se apura, é que tal loteamento foi realizado tendo por objeto determinados prédios, onde não se inclui o prédio urbano identificado em 1., o qual já em data anterior havia sido adquirido pela ré. Por conseguinte, também aqui não assiste razão aos autores, reconhecida a existência do direito de propriedade da ré, improcedendo na totalidade a sua pretensão.”

XXIX. Decidindo no mesmo sentido, porém com fundamentação diferente, no que se refere à questão suscitada pelos Recorrentes relativa à impossibilidade de aquisição por usucapião do prédio em causa nos autos, do qual a Recorrida se arroga proprietária, entendeu o Venerando Tribunal que as normas de natureza administrativa urbanística são irrelevantes face à natureza originária da aquisição da propriedade pela usucapião.

XXX. Defendendo que o terreno em causa, que a Recorrida terá adquirido por usucapião corresponde a uma parte do loteamento invocado pelos Recorrentes, que foi submetido à análise das normas administrativas, tendo sido objeto de aprovação.

XXXI. Concluindo “se assim é, sabemos que não existiam condicionantes de natureza administrativa, ou seja, não há violação dos normativos de natureza administrativa”.

XXXII. O prédio cuja propriedade a Recorrida reclama não tem correspondência com nenhum dos lotes que compõem o loteamento aprovado pelo alvará n.º 5... de 30-08-2000, emitido pela Câmara Municipal …....

XXXIII. Constituindo a aquisição por usucapião da parcela de terreno por parte da Recorrida, uma verdadeira operação urbanística, na medida em que vem criar um novo prédio, dentro do loteamento.

XXXIV. Tal operação urbanística contraria as normas imperativas contidas nos artigos 4.º, n.º 1 e 2, alínea a) do Decreto-Lei 555/99, de 16/12, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, pois reflete uma operação de loteamento da qual resulta um novo prédio, sem que tenha sido emitido qualquer alvará de loteamento.

XXXV. A Recorrida não juntou aos autos qualquer documento que comprove que a referida operação urbanística tenha sido precedida de qualquer procedimento administrativo, pressuposto da validade da operação.

XXXVI. As normas legais quanto ao licenciamento de operações de loteamento são a natureza imperativa, considerando os fins que as entidades públicas prosseguem nesta matéria e proíbem os loteamentos ilegais, bem como os meios indiretos de lá chegar.

XXXVII. Face às limitações impostas à validade destas operações urbanísticas, não podem os atos de posse, baseados num facto proibido pelas leis de loteamento, permitir uma aquisição por usucapião, na medida em que são contrários a uma disposição de carácter legal imperativo (artigo 294.º do Código Civil) e, consequentemente, nulos.

XXXVIII. Na interpretação e aplicação das normas do Código Civil relativas ao direito de propriedade de imóveis o intérprete e aplicador não pode restringir-se à estrita consideração dos tradicionais regimes de direito privado, tendo necessariamente, numa perspetiva abrangente e interdisciplinar, que conferir o indispensável relevo aos regimes jurídicos atinentes ao direito do urbanismo e da ordenação do território e à tutela do ambiente.

XXXIX. Impondo-se a articulação dos regimes de direito privado com assento no Código Civil com os regimes de direito público urbanístico e de ordenamento do território, constantes de legislação avulsa.

XL. Não podendo considerar-se verificada a aquisição por usucapião, sem que dos autos prova de que a alteração dos lotes é lícita face às normas imperativas que regem as operações de loteamento.

XLI. Prova esta que incumbia à Recorrida e que não foi produzida nos presentes autos.

XLII. Pelo que, ao contrário do referido no douto Acórdão proferido, jamais a ora Recorrida poderia adquirir por usucapião, qualquer prédio, sem que estejam preenchidos os pressupostos legais para o efeito, impostos pelas normas administrativas de natureza urbanísticas, sob pena de violação das disposições constantes do Decreto-Lei 555/99, de 16/12, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.

XLIII. Ao decidir pela improcedência do recurso relativamente à questão relativa à impossibilidade de aquisição por usucapião por parte da Recorrida, do prédio relativamente ao qual a mesma se arroga proprietária, violou o Venerado Tribunal as disposições constantes do Decreto-Lei 555/99, de 16/12, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação.

Nestes termos e nos mais de Direito, deverá conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida e substituindo-se por outra em que se julgue procedentes, por provados, os pedidos formulados pelos Autores, ora Recorrentes e, consequentemente:

a) Declarar-se procedente a exceção de incompetência absoluta do Tribunal em função da matéria conforme arts. 96.º, al. a), 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. a), 576.º, n.º 2, 577.º, al. a), e 578.º, todos do CPC art.º 577.º e) do CPC.

b) Declara-se a caducidade da providência decretada no processo nº 789/…, que correu termos na Comarca de ... – ... – Instância Local – Secção Cível – J…;

c) Ordenar-se o levantamento da suspensão da obra decretada na providência cautelar e, consequentemente, a não proceder à reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição;

d) Declarar-se o não reconhecimento da Recorrida e recorrida como dona e legítima proprietária do prédio urbano sito em ..., freguesia ..., concelho ..., composto por casas de morada de um pavimento com três divisões assoalhadas, cozinha e casa de banho, com a área total de 517m2, correspondendo a 126m2 à área coberta e 390,90m2 à área descoberta, confrontando do Norte com lote …, do Sul com lotes …, Nascente com CC e do Poente com rua, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …67 (anteriormente inscrito sob o artigo …11, da freguesia ..., concelho ...) e descrito na Conservatória do Registo Predial  ... sob o n.º …22, adquirido por usucapião, no que se refere à configuração e limites;

e) Reconhecer-se os Recorrentes como donos e únicos proprietários e possuidores, com exclusão de outrem dos bens imóveis adquiridos nos termos do disposto no artº 874.º e seguintes do Código Civil:

- Prédio urbano, lote de terreno destinado a construção urbana, sito em ..., ..., denominado lote …, freguesia ..., concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ….,17 descrito na Conservatória do Registo Predial... sob o nº …93, da freguesia ..., Alvará de Loteamento de 30 de Agosto de 2000;

- Prédio urbano, lote de terreno destinado a construção urbana, sito em ..., ..., denominado lote ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo …18, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº …94, da freguesia ..., Alvará de Loteamento de 30 de Agosto de 2000; e que

f) Condenar-se a recorrida BB a abster-se de praticar quaisquer atos contra os prédios identificados na alínea anterior, com as devidas consequências legais.

Caso assim não se entenda, deverá ser revogado o douto Acórdão recorrido, determinando-se a remessa dos autos à Relação, para que seja apreciada a matéria de facto impugnada pelos Recorrentes, em cumprimentos do disposto no art.º 640.º do CPC, a qual foi indevidamente rejeitada pelo Venerando Tribunal, com as consequências previstas no art.º 615.º n.º 1 d) do CPC».

14. A ré não respondeu.


15. Após os vistos, cumpre apreciar e decidir.


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II. Questão prévia da inadmissibilidade do recurso de revista interposto pelos autores.


Não obstante resultar, do  confronto entre a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância e o acórdão da Relação, terem  ambas as instâncias concluído, com base  em idêntica fundamentação,  pela improcedência de todos os pedidos formulados pelos autores,  tendo o acórdão recorrido sido proferido sem voto de vencido, certo é, por um lado,  que esta dupla conformidade entre as decisões  das instâncias não constitui obstáculo  ao conhecimento das questões  da incompetência material do tribunal e  de saber  se o Tribunal da Relação, ao não conhecer da impugnação da matéria de facto,  violou o disposto no art. 640º, do CPC, visto estarmos perante questões que  emergiram apenas do acórdão  da Relação.

E, por outro lado, que, caso se venha a  concluir estar o acórdão recorrido inquinado de erro decisório relativamente a esta última questão, tal terá forçosamente reflexos na decisão de mérito.

Termos em que se admite o recurso de revista.



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III. Delimitação do objeto do recurso

Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Assim, a esta luz, as questões a decidir consistem em saber se:

1ª- os tribunais judiciais são incompetentes, em razão da matéria, para julgar a presente ação;

2ª- o Tribunal da Relação, ao não tomar conhecimento dos segmentos da decisão de facto impugnados, com fundamento na inobservância do requisito formal do ónus impugnativo previsto na alínea a) do nº 2 do art. 640º, do CPC, violou o disposto neste artigo e nos arts. 2º, 18º, nº 2 e 20 da CRP, enfermando também, por isso, da nulidade prevista no artº 615º, nº1, al. d), do CPC,

3ª- existe fundamento para a procedência dos pedidos formulados pelos autores.


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III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


As Instâncias consideraram provados os seguintes factos:

1 - Encontra-se registado a favor da ré BB, através da ap.7 de 17.11.1997, a aquisição, por partilha subsequente a divórcio, do prédio urbano, sito em ... (próximo da Rua ...), freguesia ..., concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo …67 (anteriormente inscrito sob o artigo …11, da freguesia ..., concelho ...) e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n° …22.

2 - Este prédio urbano encontra-se descrito sob o n° …..22 como um prédio urbano, composto por casas de morada de um pavimento, com três divisões assoalhadas, cozinha e casa de banho, com a área total de 35m2 e foi desanexado do prédio descrito sob o n° …72, a fls. 195, do Livro …, da Conservatória do Registo Predial  ....

3 - Correspondendo a uma parcela de terreno e casas, com a área total de 517m2, sendo 126,10m2 a área coberta e 390,90m2 a área descoberta, composto de moradia de um pavimento com três divisões assoalhadas, cozinha e casa de banho e logradouro.

4 - Cujos limites e confrontações se encontram assinalados a tracejado no levantamento topográfico junto a fls.355, cujo teor se dá por reproduzido.

5 - Correspondendo sensivelmente a cerca de metade da área do prédio designado por urbano, constante da planta cadastral do concelho ..., elaborada pelos serviços do cadastro geométrico do concelho ..., junta a fls.388, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

6 - Desde pelo menos o ano de 1975 que o prédio urbano apresentava a configuração e os limites referidos e era constituído por logradouro e casas de habitação.

7 - Este prédio sempre foi utilizado pela ré, pelo FF e pelos seus antecessores, como habitação, sendo as casas conservadas e cuidadas pelos mesmos.

8 - O logradouro era usado para parqueamento de viaturas e recreação e o pátio para canteiro, cultivo de plantas e criação de animais

9 - Entre os anos de 1975 a 1995 foi a residência de GG, filha da ré, que no mesmo habitou com o seu agregado familiar.

10 - Entre os anos de 1995 e até pelo menos 2012, a ré e FF cederam, de forma temporária, o gozo do prédio a terceiros.

11 - Estes atos foram praticados pela ré, pelo FF e pelos seus antecessores à vista de toda a gente, sem oposição e de forma ininterrupta.

12 - Com a intenção e convicção de que o prédio lhes pertencia.

13 - Antes da demolição efetuada pelos autores as casas existentes no prédio não estavam habitadas mas encontravam-se em razoável estado de conservação.

14 - A ré não vendeu ou alienou por qualquer forma o referido prédio.

15 - Encontrava-se registada a favor da autora Radical Red Holdings a aquisição, por compra, do prédio urbano, composto por lote de terreno destinado a construção urbana, sito em ..., ..., denominado lote ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ….17, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° …93, da freguesia  ..., desanexado do prédio nº…..90.

16 - E do prédio urbano, composto por lote de terreno destinado a construção urbana, sito em ..., ..., denominado lote ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo …18, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n° …94, da freguesia ..., desanexado do prédio.

17 - Os quais adquiriu por escritura de compra e venda, outorgada em 06.02.2015, no Cartório Notarial a cargo do notário HH, em ....

18 - No âmbito do processo de insolvência n° 1834/13…, que correu termos no … juízo do Tribunal Judicial ... referente a Sulnovo - Agricultura e Construção Civil, Lda.

19 - Tendo a administradora da insolvência atestado, no auto de arrematação, após a apreensão dos mesmos no processo de insolvência, de que os referidos lotes de terreno foram adquiridos no âmbito de tal processo por proposta de maior preço válida apresentada.

20 - Após a aquisição dos referidos Lotes a autora requereu na Câmara Municipal ... o licenciamento para obras de demolição, originando os processos n° 13/2015/… e n, ° 13/….

21 - Os quais foram deferidos, dando origem aos Alvarás de Obras de Demolição n° 2 e 3/2016, respetivamente, com início em 17.03.2016 e Termo em 08.04.2016.

22 - Os lotes ... e ... têm origem no Alvará de Loteamento n° 5..., datado de 30.08.2016.

23 - Desse Alvará de Loteamento consta que "Nos termos do artigo vigésimo oitavo do Decreto-Lei quatrocentos e quarenta e oito barra noventa e um de vinte e nove de Novembro, é emitido o alvará de loteamento número cinco barra dois mil em nome da Sociedade Sulnovo - Agricultura e Construção Civil Limitada, com sede na Avenida Sá Carneiro, Bloco cinco, primeiro B, freguesia de Quarteira, contribuinte fiscal número 502631651, como promotora e executora da urbanização de um prédio rústico, no ... com a área de dez mil trezentos e sessenta e sete metros quadrados, que confronta do norte com caminho, II e outros, sul com caminho, FF c outros, nascente com caminho, JJ e outros e poente com LL e outros, inscrito na respetiva matriz predial a parte rústica sob os artigos …59, ambos da Secção O do ..., e a urbana sob os artigos …68, e descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob os números …….26.

O loteamento e os projetas definitivos das obras de urbanização foram aprovados em reuniões realizadas a dez de agosto de mil novecentos e noventa e nove e nove de maio de dois mil e são em local que possui Plano Diretor Municipal e foi cumprida a Portaria mil cento e oitenta e dois barra noventa e dois e o mesmo possui as seguintes características: - São constituídos seis lotes destinados a moradias unifamiliares e três lotes destinados a edificações multifamiliares com quatro pisos.

(. . .) Lote número três - com a área de quinhentos e setenta e três virgula zero cinco metros quadrados, área de implantação cento e vinte metros quadrados, área de construção cento e cinquenta metros quadrados, para habitação e estacionamento, com dois pisos acima do solo um fogo unifamiliar e dois estacionamentos em garagem exterior.

Lote número quatro - com a área de quinhentos e sessenta e sete vírgula trinta e quatro metros quadrados, área de implantação cento e vinte metros quadrados, área de construção cento e cinquenta metros quadrados, para habitação e estacionamento, com dois pisos acima do solo um fogo unifamiliar e dois estacionamentos em garagem exterior."

24 - O loteamento incidiu sobre um terreno destinado a construção urbana, com a área total de 1 0.367m2, registado na Conservatória do Registo Predial ... sob o n° ….28, antiga freguesia ..., ..., sito em ..., formado pela anexação dos prédios n°s ..,10, …23, …25 e …04, todos situados no ..., antiga freguesia ..., concelho ..., prédios que se passa a descrever:

- prédio urbano n° …10, descrito como casas de morada de um pavimento com três divisões assoalhadas, cozinha e casa de banho, com a área de 37m2;

- prédio rústico n° …23, descrito como terra de cultura com figueiras, com a área de 4990m2;

- prédio rústico n° …...25, descrito como terra de cultura com figueiras, com a área de 4710m2;

- prédio urbano n° …04, descrito como edifício de um pavimento composto por três assoalhadas, cozinha, casa de banho e logradouro, com a área total de 630m2 (área coberta 35m2 e descoberta 595m2).

25 - Do prédio descrito sob o n° …90 foram desanexados os prédios n° …91, …92, …93, …94, …95,  ….96, …97, …98, …99, …02 e …..28 com a área de 5113,10 m2.

26 - O remanescente do prédio nº 5390 foi anexado ao prédio …..03, formando o prédio n° ……21.

27 - Os lotes ... e ... sobrepõem-se sob o prédio urbano identificado em 1., conforme levantamento topográfico de fls.355, cujo teor se dá por reproduzido.

28 - O lote 3 apresenta a área e as confrontações assinalados a azul no anexo ao relatório pericial, a fls.602 v./603 v., cujo teor se dá por reproduzido.

29 - O lote 4 apresenta a área e as confrontações assinalados a amarelo no anexo ao relatório pericial, a fls.602vo/603vo, cujo teor se dá por reproduzido.

30 - A Câmara Municipal ..., referindo-se ao loteamento com o alvará 5..., certificou, a pedido da ré, que "O artigo matricial …67, antigo …11 da freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial …. sob o n° … da extinta freguesia..., indicado pela exponente, não se encontra referenciado em nenhum documento do citado processo administrativo".

31 - Correu termos no … Juízo Local Cível do Tribunal da Comarca …. procedimento cautelar de embargo de obra nova, com o n° 789/16…, no âmbito do qual foi proferida pelo Tribunal da Relação de Évora decisão, transitada em julgado em 20.12.2016, na qual se decidiu: "Concede-se provimento ao recurso, decretando-se a providencia requerida por BB, com ratificação do embargo de obra nova por esta efetuada em 21.03.2016 e condenação dos Requeridos Radical Red Holdings LLC e AA a suspender de imediato a obra e a proceder a reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontrava-o antes do inicio dos trabalhos de demolição.

Mais se condenam os mesmos Requeridos a reconhecê-la como dona e legitima proprietária do prédio urbano sito em ... (próximo da Rua ... freguesia ..., concelho ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo … (anteriormente inscrito sob o artigo …67 da antiga freguesia …..11) e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº….22, com a área total de 517m2 correspondendo a 126.10m2 de área coberta e 390.90m2 de área descoberta, composto de moradia de um pavimento com três divisões assoalhadas, cozinha e casa de banho e logradouro, confrontando do norte com lote 4, do sul com lotes 1 e 2, do nascente com CC e do poente com rua, estando os respetivos limites assinalados a amarelo no levantamento topográfico junto a fs. 36 dos autos.

Mais se decreta a inversão do contencioso".

32 - Apesar da decisão decretada, os autores continuaram a construção da obra embargada, não suspenderam os trabalhos referentes à mesma, nem procederam à reconstrução das paredes e do telhado do prédio nos precisos termos em que se encontravam antes do início dos trabalhos de demolição.

33 - Por escritura pública de compra e venda outorgada em 24.04.2017, outorgada no Cartório Notarial ..., a autora Radical Red Holdings, l.lc declarou vender a DD, que declarou aceitar, o prédio urbano composto por lote de terreno para construção urbana, freguesia ..., concelho ..., designando por "lote ...", descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº….94, inscrito na matriz sob o art°….18.

34 - Por escritura pública de compra e venda outorgada em 02.03.2017, outorgada no Cartório Notarial ..., a autora Radical Red Holdings, l.lc declarou vender a EE, que declarou aceitar, o prédio urbano composto por lote de terreno para construção urbana, freguesia ..., concelho ..., designando por "lote …", descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº…93, inscrito na matriz sob o art°….17.


Factos não provados

Não se deixaram de provar quaisquer factos com relevo para a decisão.


*



3.2. Fundamentação de direito


Conforme já se deixou dito, o objeto do presente recurso prende-se com as questões de saber se:

1ª- os tribunais judiciais são incompetentes, em razão da matéria, para julgar a presente ação;

2ª- o Tribunal da Relação, ao não tomar conhecimento dos segmentos da decisão de facto impugnados, com fundamento na inobservância do requisito formal do ónus impugnativo previsto na alínea a) do nº 2 do art. 640º, do CPC, violou o disposto neste artigo e nos arts. 2º, 18º, nº 2 e 20 da CRP, enfermando também, por isso, da nulidade prevista no artº 615º, nº1, al. d), do CPC,

3ª- existe fundamento para a procedência dos pedidos formulados pelos autores.


*



3.2.1. Da competência dos tribunais judiciais em razão da matéria


Sustentam os recorrentes que, resultando da perícia realizada nos presentes autos que o prédio da ré está inserido nos Lotes … e … do Alvará de Loteamento 5..., emitido pela Câmara Municipal....., em 30 de agosto de 2020, impõe-se concluir que o ato que põe em causa o direito de propriedade da ré é um ato administrativo e, como tal, deveria ter sido impugnado judicialmente, dentro do prazo legal, no Tribunal Administrativo competente, nos termos do disposto no art.º 4.º, al. b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, pelo que os  tribunais judiciais são incompetentes, em razão de matéria, para julgar a presente ação.

Cremos, porém, que sem razão.

Senão vejamos.

A competência é um pressuposto processual, isto é, uma condição necessária para que o Tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou improcedência.

O art. 211º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa estabelece o princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais, na medida em que ela estende-se a todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

Este princípio da competência residual dos tribunais judiciais no confronto com as outras ordens de tribunais está consagrado ainda no art. 64º do Código de Processo Civil e art. 40º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário). 

Por sua vez, estabelece o art. 212º, n.º 3 da C.R.P. que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções (…) que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas  e fiscais».

E, de harmonia com o disposto no art. 1º do ETAF de 2002[2] (aqui aplicável visto a ação ter sido proposta em 2017[3] e, de harmonia com disposto no art. 5º, nº 1 do mesmo diploma  o momento relevante para determinar a inclusão de um litígio na jurisdição administrativa  é o da propositura da ação), os tribunais de jurisdição administrativa são competentes para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.

Por seu turno, estatui o art. 4º, nº 1 do mesmo diploma que «compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;

b)  Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública».

Resulta assim claro destes artigos que a delimitação do âmbito material da jurisdição administrativa assenta na noção de relação jurídica administrativa (ou fiscal).

Como referem  Gomes Canotilho e Vital Moreira [4], na jurisdição administrativa estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico administrativas (ou fiscais), ou seja, litígios em que um dos sujeitos  é  uma entidade pública ou uma entidade  privada  que  atua como se fosse pública e  em que  os direitos e os deveres que constituem a relação emergem de normas legais de direito administrativo ou referem-se ao âmbito substancial da própria função administrativa.

Ora, basta atentar, quer na decisão que ratificou o  embargo de obra nova levado a cabo pela ora ré BB e que  condenou os ora autores  Radical Red Holdings LLC e AA a suspender de imediato a obra e a proceder a reconstrução das paredes e do telhado nos precisos termos em que se encontravam antes do inicio dos trabalhos de demolição e decretou a inversão do contencioso, quer na petição inicial da presente ação, proposta ao abrigo do disposto no art. 371º, nº 1, do CPC,  para facilmente se concluir  que, no presente  litígio, estamos no  domínio  das relações  jurídicas de direito privado, mais concretamente no âmbito de relações entre particulares,  titulares de direitos reais, regidas pelas normas  do Código Civil, da competência residual dos tribunais judiciais.

Termos em que improcede, nesta parte, o recurso.


*



3.2.2. Do ónus de impugnação da decisão sobre a matéria de facto previsto na alínea a) do nº 2 do  art. 640º, do CPC. 


A este respeito importa sublinhar, como já se afirmou nos Acórdãos deste Supremo Tribunal, de 21.03.2019 ( processo nº 3683/16.6T8CBR.C1.S2) e de 03.10.2019 ( processo 77/06.5TBGVA,C2.S2)[5], que o exercício efetivo pelo Tribunal da Relação  do duplo grau de jurisdição quanto à decisão da matéria de facto, incluindo a eventual reapreciação de depoimentos gravados, prestados oralmente na audiência de discussão e julgamento,  à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, tem como contrapartida a imposição aos recorrentes de um rigoroso  ónus de impugnação por forma a impedir que «a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme  numa mera manifestação de inconsequente inconformismo [6].

Daí dispor o art.º 640.º do C. P. Civil que:

«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

(…)».

Na expressão do Acórdão do STJ, de 29.10.2015 (processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1)[7], consagra este regime processual um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso  e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário, tendente a possibilitar  um acesso mais ou menos  facilitado aos meios de prova gravados relevantes  para a apreciação da impugnação deduzida.

Assim, nesta conformidade, integram um ónus primário, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas als. a), b) e c) do nº 1 do citado art. 640º, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto[8].

Mas, já constituirá um ónus secundário, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na al. a) do nº 2 do mesmo art. 640º, pois tem, sobretudo, por função facilitar  a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contém a gravação da audiência.

E se é certo  cominar a lei o incumprimento do ónus primário e do ónus secundário de igual forma, ou seja,  com a  sanção da rejeição imediata do recurso [ cfr. art 640.º, n.º 1, proémio, e n.º 2, alínea a), do mesmo artigo], não sendo consentida a formulação ao recorrente de  um convite ao aperfeiçoamento de eventuais deficiências, a verdade é que, tal como se afirma no citado Acórdão do STJ, de 29.10.2015, « não poderá deixar de ser avaliada diferentemente a falha da parte consoante ocorra  num  ou noutro âmbito».

  Dito de outro modo e nas palavras do  Acórdão do STJ, de 19.02.2015 ( processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1)[9], enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº 1 do referido art. 640º implica  a imediata rejeição do recurso na parte infirmada,  já, quanto à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, al. a) do mesmo artigo, tal sanção deverá ser aplicada com algum tempero, só se justificando nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício  do contraditório pela parte contrária e/ou o exame  por banda do tribunal  de recurso.

Desde que não exista essa dificuldade, apesar da indicação pelo recorrente da localização dos depoimentos não ser totalmente exata e precisa, não se justifica a rejeição do recurso.

E, quanto à problemática de saber se tais requisitos do ónus impugnativo devem constar, formalmente, das conclusões recursórias ou bastará incluí-los no corpo alegatório, refere o Acórdão do STJ, de 19.02.2015 (processo nº 99/05.6TBMGD.P2.S1)[10] que a resposta a dar a esta questão depende da função que está subjacente a  cada um dos referidos ónus.

Deste modo, «constituindo a especificação dos pontos concretos de facto um fator de delimitação do objeto de recurso, nessa parte, pelo menos a sua especificação deverá constar das conclusões recursórias [11], por força do disposto no artigo 635º, nº 4, conjugadamente com o art. 640º, nº 1, alínea a), aplicando-se, subsidiariamente, o preceituado no nº 1 do art. 639º, todos do CPC».

Mas, já assim não acontece com a especificação dos meios concretos de prova nem com a indicação das passagens das gravações visto que «não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, traduzindo-se antes em elementos de apoio à argumentação probatória».  


*


No caso dos autos, verifica-se que os autores interpuseram recurso de apelação da sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância e impugnaram, para além do mais, a decisão sobre a matéria de facto, sustentando, nas conclusões das suas alegações de recurso que:

« XVI.    Não existe compatibilidade entre o teor dos depoimentos das testemunhas, da prova documental e da prova pericial e os factos dados como provados

XVII.   Os depoimentos das testemunhas, arroladas pela ré, revelam-se contraditórios e nenhuma destas testemunhas conseguiu indicar com exatidão o local onde, alegadamente, se situa o prédio de ré.

XVIII.    Relativamente ao estado de conservação do prédio da ré à data dos factos, os depoimentos das várias testemunhas são contraditórios.

XIX. Toda a prova testemunhal foi produzida por confrontação com o levantamento topográfico a fls. 355 dos autos, elaborado com base nas informações prestadas pela filha da ré, parte interessada na causa.

XX. O douto Relatório Pericial é totalmente omisso quanto aos documentos matriciais, registrais e cadastrais de todos os prédios, sem qualquer base científica, baseado unicamente no Levantamento Topográfico, a fls 355 dos autos, realizado pelos topógrafos Jorge M. L. Batista e Rita Batista.

XXI. Conclui-se que face a prova testemunhal, prova documental e prova pericial produzida em sede de audiência de julgamento, impunha-se ao tribunal considerar como não provados os factos constantes dos pontos 3 a 13 e 27 a 29, da fundamentação de facto da douta sentença.

XXII.    Conclui-se que o douto tribunal a quo, atenta a prova produzida, deveria ter considerado provado que os lotes ... e ..., forma legalmente adquiridos pela autora Radical Red Holdings LLC, reconhecendo-se os autores DD e EE como legítimos proprietários dos referidos lotes, na sequência da aquisição dos mesmos por escritura pública de compra e venda à Radical Red Holdings, LLC.

XXIII.    Conclui-se que o tribunal a quo não realizou convenientemente o exame crítico das provas, conforme dispõe o art.º 607º, n.º 5 , do CPC


Pronunciando-se sobre este segmento do recurso, o Tribunal da Relação de Évora, no acórdão ora recorrido, considerou que os apelantes não respeitaram os requisitos formais do ónus de impugnação da decisão de facto exigidos pelo art. 640º, do CPC, em consequência do que decidiu rejeitar, nesta parte, o recurso interposto, com base na seguinte fundamentação, que se transcreve:

«Os recorrentes propõem-se impugnar a matéria de facto.

Alegam que, face a prova testemunhal, documental e pericial, produzida em sede de audiência de julgamento, impunha-se ao tribunal considerar como não provados os factos constantes dos pontos 3 a 13 e 27 a 29, da fundamentação de facto da douta sentença.

E ainda que, atenta a prova produzida, deveria ter considerado provado que os lotes ... e ..., forma legalmente adquiridos pela autora Radical Red Holdings LLC.

Porém entendemos que não cumpre o ónus respetivo.

Nos termos do art.° 640.° do CPC:

(…)

Esta exigência de especificação dos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, só se satisfaz se essa concretização for feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, (neste sentido, Acórdão do STJ de 19.02.2015, Relatora: Maria dos Prazeres Beleza, processo n.° 405/09.1TMCBR.C1.S1)

Ora, não cumpre este ónus o recorrente que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em blocos ou temas de factos e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna, do que decorre a rejeição do recurso na parte afetada. (neste sentido, vide o Acórdão do STJ de 05.09.2018 proferido no processo n.° 15787/ 15.8T8PRT.P1.S2)

É o que se passa no nosso caso.

Com efeito, os recorrentes limitam-se a descrever a sua posição sobre a apreciação das provas por referência a temas da matéria de facto.

E mesmo quando criticam a natureza e o teor de alguns depoimentos e o alcance da prova pericial e documental não fazem qualquer ligação com os factos concretos que entendem incorretamente julgados, ou seja, fazem uma análise em termos genéricos.

Esta forma de impugnação da matéria de facto sendo, sem dúvida, mais fácil e expedita, não é a legalmente imposta.

A ideia legal da impugnação implica a confrontação específica e concreta das provas, com as alegadas "patologias" de cada facto impugnado.

E estas omissões não são apenas omissões relativas às conclusões do recurso, mas sim de todo o texto do mesmo, pelo que, ainda que se considere que não é de exigir nas conclusões, a reprodução do que alegou anteriormente, ainda assim, há incumprimento de tal ónus, porque nem no texto encontramos os pontos referidos.

(…)

O não cumprimento dos ónus impostos à recorrente implica a rejeição do recurso, sem possibilidade de despacho de aperfeiçoamento, (…)

Pelo exposto, decide-se rejeitar, nesta parte, o recurso interposto».


Contra este entendimento, insurgem-se os recorrentes, persistindo na defesa de que  cumpriram  o ónus de impugnação imposto pelo art. 640º, do CPC, pois, na impugnação da matéria de facto realizada no âmbito do recurso de apelação  não só indicaram os pontos de facto impugnados, a resposta a dar aos mesmos, os meios de prova e passagens de gravações dos depoimentos que no seu entender impõem decisão diversa da proferida, procedendo à transcrição dos excertos considerados importantes, como fizeram uma análise crítica do sentido das respostas dadas e indicaram o motivo pelo qual as respostas deveriam ser negativas.

Mais argumentam que a interpretação feita no acórdão do citado art. 640º, é inconstitucional pois viola o direito de acesso aos tribunais, consagrado no art. 20º da CRP, bem como o princípio da proporcionalidade consagrado nos arts. 2º, 18º, nº 2, 2ª parte da CRP.

E sustentam ainda que ao rejeitar o recurso com base neste fundamento, o Tribunal da Relação deixou de apreciar questão que se lhe impunha conhecer, enfermando, por isso, o acórdão recorrido da nulidade prevista no art. 615° alínea d ), ex vi, art.  e 666°, ambos do CPC.


*



Começando por este último aspeto, diremos ser manifesta a falta de razão dos recorrentes, pois não se verifica qualquer omissão de pronúncia, por parte do Tribunal da Relação.

Com efeito, tendo rejeitado o recurso da impugnação da decisão de facto, com fundamento na falta de observância do ónus impugnativo previsto no citado art. 640º, vedado ficou ao Tribunal da Relação o conhecimento dos fundamentos de tal impugnação.

Mas, já quanto à questão do cumprimento do referido ónus, julgamos assistir razão aos recorrentes.

Senão vejamos.

Lendo os pontos  52 a 143 das alegações de recurso de apelação dos autores, verifica-se que, em sede de impugnação da matéria de facto, discordam  os mesmos  dos factos dados como provados pelo  tribunal de 1ª instância e supra  descritos nos nºs 3 a 13 ( todos eles respeitantes à  composição, área, configuração, localização do prédio da ré  e respetiva utilização) e nos nºs 27 a 29 ( atinentes à área e confrontações dos lotes ... e ... dos autores), sustentando que as provas testemunhal, documental e pericial que  serviram de base à formação da convicção do Tribunal de 1ª Instância  revelam-se inconsistentes e enfermam de várias contradições, pelo que  impunha-se ao tribunal considerar, por um lado,  como não provados os factos constantes dos pontos 3 a 13 e 27 a 29 , da fundamentação de facto da douta sentença.

  E, por outro lado, devia ter considerado provado que os lotes ... e ..., foram legalmente adquiridos pela autora Radical Red Holdings LLC.

Assim, com vista a rebater a apreciação crítica da prova feita pelo tribunal de 1ª instância e a demonstrar que tal prova inculca conclusão distinta da retirada por aquele tribunal, dividiram a matéria de facto de acordo com os seguintes temas:

«A – Limites, área e composição do prédio da ré consoante impugnada em blocos ou temas de factos e indica os meios de prova»;

«B – Do estado de conservação do prédio da ré»;

«C - Da prova documental»;

«D – Da prova pericial».

E, relativamente a cada um destes temas denunciaram as contradições e inconsistências dos referidos meios de prova, indicando, relativamente à prova testemunhal, os tempos de gravação dos excertos dos depoimentos das testemunhas que, no seu entender, infirmam a convicção formada pelo Tribunal de 1ª Instância e complementaram essa indicação com a  respetiva transcrição, em escrito datilografado. 

Mas sendo assim, não se vê que se possa afirmar, tal como o fez o Tribunal da Relação, que «esta forma de impugnação não é a legalmente imposta».

É que o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de  facto proferida, atua também nesta vertente, sendo lícito ao impugnante, tal como referem Abrantes Geraldes e outros[12], « rebater, de forma suficiente  e explícita, a apreciação crítica da prova feita no tribunal a quo e tentar demonstrar que tal prova inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente», situação em que « deve o recorrente aduzir argumentos no sentido de infirmar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilidade dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente».

E se é certo não terem os recorrentes indicado, nas conclusões recursórias, os meios concretos de prova nem das passagens das gravações, certo é também que, de acordo com a jurisprudência firmada deste Supremo Tribunal, bastará incluí-las no corpo alegatório, visto estarmos perante um ónus que «não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, traduzindo-se antes em elementos de apoio à argumentação probatória».  

Daí que, nestas circunstâncias e em conformidade com o entendimento acima perfilhado se considere que os recorrentes cumpriram o núcleo essencial do ónus de impugnação prescrito no art. 640º, do CPC, nada obstando a que o Tribunal da Relação tome conhecimento dos fundamentos do recurso.

Vale tudo isto por dizer que o acórdão ora recorrido interpretou e aplicou erradamente os parâmetros processuais que disciplinam o seu poder de cognição da decisão de facto impugnada, mormente os constantes do artigo 640.º, n.º 1, als. a) e c)  e nº 2, alínea a), do CPC, o que importa a sua anulação, ficando, deste modo, prejudicado o conhecimento da terceira questão suscitada  no âmbito do recurso de revista interposto pelos autores e supra enunciada no ponto 3.2.2,  uma vez que a mesma tem subjacente matéria de facto que foi objeto de impugnação por parte dos autores.


***


III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em:

a) - Julgar improcedente a invocada exceção de incompetência dos Tribunais portugueses, confirmando-se, nesta parte, o acórdão recorrido;  

b) Anular o acórdão recorrido na parte em que não conheceu da impugnação da decisão de facto sobre deduzida pela ré apelante e pelo autor apelante;

b) - Consequentemente, ordenar a baixa do processo ao Tribunal da Relação para que tome conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto deduzida pelos recorrentes, bem como, se for o caso, do subsequente alcance em sede da solução de direito;

Custas da revista a cargo dos recorrentes na proporção de 1/8, ficando as demais a cargo da parte vencida a final.

Notifique.


***



Supremo Tribunal de Justiça, 14 de outubro de 2021

Maria Rosa Oliveira Tching (relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira


________

[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19/2, com as sucessivas alterações introduzidas, inclusivamente, pelo DL nº 214-G/2015, de 02.10.
[4] Em anotação ao artigo 212.º, n.º 3, da CRP (Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, págs. 566 e 567.
[5] Ambos relatados pela ora relatora e subscrito pelas Exmªs Senhoras Conselheiras Adjuntas Rosa Maria Ribeiro Coelho e Catarina Serra.
[6] Neste sentido, cfr. Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed. , pág. 169.
[7] Acessível in wwwdgsi.pt.
[8] Esclarecendo, porém, o Acórdão do STJ, de 19.02.2015 (processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1), que a insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente  não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação.
[9] Acessível in wwwdgsi.pt.
[10] Acessível in wwwdgsi.pt.
[11] Salienta, contudo, este acórdão que “perante a pouca clareza da lei e a decorrente divergência jurisprudencial, quando o recorrente tenha especificado os pontos concretos de facto apenas no corpo das alegações, caso se entenda que o devia fazer nas conclusões, será porventura mais curial providenciar pelo aperfeiçoamento destas, nos termos do disposto no n.º 3 do art.º 639.º do CPC, em vez de rejeitar logo a impugnação assim deduzida, só se justificando essa rejeição imediata quando tenha sido omitida de todo tal especificação”.
[12] In “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, 2018, págs. 770 e 771.