Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
595/22.8T8VFR.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: EMÍDIO FRANCISCO SANTOS
Descritores: CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
VENDA DE COISA SUJEITA A CONTAGEM
PESAGEM OU MEDIÇÃO
REDUÇÃO DO PREÇO
ÓNUS DA PROVA
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
ERRO
REGIME APLICÁVEL
NORMA SUPLETIVA
NULIDADE
CONDENAÇÃO EM OBJETO DIVERSO DO PEDIDO
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I - A aplicação do regime do n.º 2 do artigo 888.º do Código Civil pressupõe que, só depois da celebração da venda, as partes ou a que pretende prevalecer-se de tal regime, tenham conhecimento da divergência entre a quantidade efectiva e a declarada.

II – O n.º 2 do artigo 888.º do Código Civil tem natureza supletiva, podendo, em consequência, o comprador e o vendedor afastar a aplicação de tal regime ou regular em termos diferentes dos nele previstos a diferença entre a quantidade efectiva e a declarada.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça


AA, representada pelo seu acompanhante BB, ambos residentes na Rua Dr.º ..., nº 46, R/C ... ..., propôs acção declarativa com processo comum contra Construções Pessegueiro, Limitada, com sede em ..., pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 300.000,00 ou subsidiariamente a de € 108.909,41 acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

Para o efeito alegou em síntese:

• Que, no dia 13 de Março de 2020, prometeu vender à ré dois imóveis, o primeiro pelo preço de 400 000 euros e o segundo pelo de 600 000 euros;

• Que, no dia 30 de Março de 2020, foi celebrada a escritura de compra e venda do primeiro;

• Que, no dia 25 de Abril de 2020, foi celebrada uma adenda ao contrato-promessa, nos termos da qual as partes acordaram em reduzir para 300 000 euros o preço que a ré tinha a pagar à autora pela venda do segundo prédio;

• A redução foi acordada tendo em conta que, após a venda do primeiro prédio, a ré realizou um levantamento topográfico sobre os dois prédios do qual resultou que a área real deles era inferior à declarada na escritura já realizada e no contrato-promessa de compra e venda;

• Que, no dia 22 de Maio de 2020, foi celebrada a escritura de compra e venda do segundo prédio mediante o preço de 300 000 euros;

• Que, através da consulta às certidões permanentes e certidões dos prédios, a autora detectou que as respectivas áreas eram superiores às que a ré lhe comunicou na adenda de 25 de Abril de 2020;

• Que a redução do preço acordada pela autora na adenda aos contratos que se consubstanciou em receber menos 300 000 resultou de um manifesto erro na sua vontade, determinado por um acto doloso e premeditado da ré;

• Que considerando o erro em que a ré fez incorrer a autora ao fazer crer à mesma que a diminuição da área dos prédios implicava uma redução do respetivo preço, devia a mesma ser condenada a pagar à autora a quantia de € 300.000,00, conforme determinado no contrato-promessa de compra e venda de 13 de Março de 2020 em que o preço determinado dos prédios foi de € 1.000.000,00, sendo que, nas escrituras realizadas em 30 de Março de 2020 e 22 de Maio de 2020, foi liquidado o preço de € 700.000,00;

• Que, para o caso de assim se não entender, sempre deveria a autora ser compensada pelos metros quadrados que vendeu e que não foram considerados na redução do preço constante da adenda celebrada em 25 de Abril, no montante de € 108 909,41 euros.

A ré contestou. Na sua defesa começou por alegar que os pedidos eram manifestamente improcedentes por falta de articulação dos factos essenciais que constituíam a causa de pedir. De seguida, impugnando a versão dos factos apresentada na petição, alegou que a autora não incorreu em erro, nem existiu qualquer indução ao erro, dolosa, negligente ou de qualquer outra espécie, por parte dela, ré, a qual sempre se comportou com total correção nas negociações com a autora. Terminou o seu articulado, pedindo se julgasse totalmente improcedente a acção na fase de saneamento do processo ou, caso assim se não entendessem e o processo avançasse para a fase de audiência de julgamento, se julgasse totalmente improcedente a acção, absolvendo-se, em consequência, a ré de todos os pedidos formulados.

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a ré dos pedidos.

Apelação

A autora não se conformou com a sentença e dela interpôs recurso de apelação para o tribunal da Relação do Porto, pedindo se revogasse a decisão recorrida e se condenasse a ré no pedido formulado na petição inicial.

O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão proferido em 28-09-2023, julgou o recurso parcialmente procedente, condenando a ré a pagar à autora a quantia de e 96 912,54 (noventa e seis mil novecentos e doze euros e cinquenta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora, contados à taxa legal desde a citação até ao integral reembolso.

Revista

A ré não se conformou com o acórdão da Relação e interpôs o presente recurso de revista, pedindo se revogasse a decisão recorrida, mantendo-se a sentença proferida pelo tribunal de 1.ª instância.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:

A. A Autora intentou a presente ação peticionando a condenação da Ré no pagamento da quantia de €300.000,00 ou, subsidiariamente, de €108.909,41 – ação esta que veio a ser julgada totalmente improcedente, tendo a Ré sido absolvida do pedido.

B. Desta decisão veio a Autora interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que julgou o recurso parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar à Autora a quantia de €96.912,54, acrescida de juros de mora contados, à taxa legal, desde a citação e até integral reembolso.

C. A Ré não se conforma, porém, com o referido Acórdão, pelo que vem do mesmo interpor recurso de revista com os seguintes fundamentos: i) nulidade do Acórdão, por condenação em objeto diverso do pedido; ii) violação de lei substantiva.

D. Na Sentença, o Tribunal de 1.ª instância considerou que, “quer o pedido principal – de condenação da Ré no pagamento de 300 000 €, quer o subsidiário – de pagamento de 108.909,41 €, valor que calcula em função da diferença entre a área real dos imóveis e a feita constar na adenda de 25 de Abril de 2020 –, tinham como pressuposto necessário o erro da Autora sobre as referidas áreas” – erro esse que, também no entendimento do Tribunal da Relação, não existiu.

E. Face ao que o Tribunal de 1.ª instância julgou a ação totalmente improcedente porquanto entendeu inexistir “qualquer fundamento legal (pelo menos nesta acção, cuja causa de pedir assim foi limitada pela própria Autora)”.

F. Contrariamente, o Acórdão sob recurso entendeu que o suposto estado de erro da Autora foi alegado como fundamento apenas da anulação da adenda contratual assinada a 25 de Abril de 2020 – como meio para a repristinação do originariamente acordado quanto ao preço a pagar –, tendo sido, quanto ao pedido subsidiário, invocado o regime consagrado no artigo 887º do Código Civil, mormente face ao conteúdo das alegações de recurso.

G. Não obstante, entendeu o Acórdão sob recurso não aplicar as regras fixadas no artigo 887.º do CC, antes aplicando as do artigo 888.º do CC.

H. Neste âmbito, para apurar se a diferença entre as áreas dos imóveis ultrapassava o limiar legal de um vigésimo, o Tribunal a quo estabeleceu que o preço médio unitário por metro quadrado corresponderia a € 65,63 – sendo que apenas o prédio inscrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1626 (correspondente a um terreno para construção, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3930), excedia em mais de um vigésimo a área declarada, existindo uma concreta discrepância de 1.977 m2 .

I. Consequentemente, entendeu o Tribunal da Relação que a Autora teria direito a “um aumento proporcional do preço”, que se concretizaria no valor de € 129.750,51 [1977m x € 65,63].

J. Porém, como o pedido da Autora se tinha cifrado, quanto ao referido prédio, na quantia de € 96.912,54 (ainda que com causa de pedir diversa, como se verá), o Tribunal a quo entendeu que este seria o limite de condenação.

K. Deste modo, o Tribunal da Relação do Porto julgou o recurso parcialmente procedente, condenando a Ré a pagar à Autora “a quantia de € 96.912,54, acrescida de juros de mora contados, à taxa legal, desde a citação e até integral reembolso”.

L. O art.º 615.º, al. e), 2.ª parte, do CPC (aplicável ex vi art.º 666.º, n.º 1) dispõe que a sentença é nula quando o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido – nulidade que resulta da violação à regra do art.º 609.º, n.º 1, do CPC, o qual plasma que “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir”.

M. Como é consabido, o objeto do processo resulta da conjugação de dois elementos: o pedido (petitum) e a causa de pedir (causa petendi) – sendo que, sem causa de pedir, não há individualização da pretensão processual e, sem pedido, não existe requisição de tutela jurisdicional para a pretensão processual individualizada.

N. Acresce que a causa de pedir serve não só para delimitar a matéria de facto a considerar pelo juiz, mas também para possibilitar a correspondência da individualização do objeto do processo com a fundamentação do objeto da sentença.

O. Em face do disposto no art.º 5.º, n.º 1, do CPC, resulta inequívoco o ónus de alegação do autor quanto aos factos essenciais que constituam a causa de pedir em que se sustenta o seu pedido (cfr. art.º 552.º, n.º 1, alínea d), do CPC) – norma que encontra fundamento no princípio (essencial) do dispositivo, que impede o Tribunal de resolver qualquer conflito de interesses que a ação pressupõe sem que essa resolução lhe seja pedida.

P. In casu, na petição inicial, a Autora alegou: i) que estava na convicção errada sobre o objeto do negócio; ii) que essa convicção errónea teria sido essencial à decisão de alteração do preço de venda do segundo imóvel; e iii) que a Ré soube dessa essencialidade – tendo sido nessa base que veio peticionar a condenação da Ré no pagamento da quantia de €300.000,00 ou, subsidiariamente, de €108.909,41.

Q. Foi, precisamente, com base no alegado erro sobre as áreas reais dos respetivos imóveis que a Autora fundamentou, na petição inicial, ambos os pedidos.

R. Acresce que, em sede de despacho saneador, foi definido o seguinte objeto do litígio: “apurar se a ré é devedora da quantia de 300.000,00 € à autora para pagamento de parte do preço de imóvel adquirido a esta”, uma vez que ambos os pedidos tinham como pressuposto necessário o alegado erro da Autora sobre as referidas áreas – sendo certo que nem a Ré, nem a Autora, reclamaram, nos termos disposto no art.º 596.º, n.º 2, do CPC, do referido despacho saneador, que, nessa medida, fez caso julgado sobre o objeto do litígio.

S. Pelo exposto, não resta qualquer dúvida quanto ao facto de a causa de pedir subjacente ao objeto do litígio corresponder, no caso, ao alegado erro sobre o objeto do negócio celebrado entre a Autora e a Ré.

T. Contrariamente, o Tribunal da Relação considerou estar subjacente uma outra causa de pedir, que não a fixada pelo Tribunal de 1ª instância, mediante uma interpretação que, com o devido respeito – que é muito –, se encontra errada, na medida em que não é o que decorre da petição inicial.

U. Com efeito, como se explicou na Douta Sentença, a Autora quis apenas salvaguardar que, no caso de o Tribunal considerar que não eram devidos os €300.000,00 constantes do pedido principal, seria devido o montante correspondente à diferença entre as áreas contratualizadas e as áreas reais, dos respetivos imóveis, mantendo a mesma causa de pedir do pedido principal formulado – o alegado erro sobre o objeto do negócio.

V. No que concerne aos artigos 30.º e 34.º da petição inicial, nos quais a Autora refere que deve a “Ré ser condenada a pagar à Autora a quantia de € 96.912,54”, decorre evidente que, na ótica da Autora, tal valor seria devido em virtude da existência de um alegado erro sobre o objeto do negócio – pedido que apenas deveria ser julgado procedente caso o pedido principal assim não fosse.

W. Neste sentido, como explica Abílio Neto, “não é permitido ao tribunal alterar ou substituir a causa de pedir, isto é, o facto jurídico que o Autor invocara como base da sua pretensão, de modo a decidir a questão submetida ao veredicto judicial, com fundamento numa causa que o autor não pôs à sua consideração”

X. Nesta senda, entendeu-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.09.2022 (supracitado), que o objeto inicial do processo, definido pelo pedido e respetiva causa de pedir, só pode vir a ser modificado, ampliado ou reduzido por iniciativa das partes ou do tribunal, nos termos e modos previstos e definidos na lei processual. Não o tendo sido e não se encontrando o tribunal perante situações que permitem o conhecimento oficioso de determinadas questões, o tribunal só pode ocupar-se das questões suscitadas pelas partes (artigo 608.º e 615.º, n.º 1, d), do Código de Processo Civil), ou seja só pode decidir sobre o mérito do pedido formulado, julgando a causa de pedir que o individualiza, estando-lhe vedada a apreciação de qualquer outra causa de pedir que não tenha resultado das regras que permitem a modificação ou ampliação da causa de pedir original.

Y. Sucede que, nos presentes autos, o objeto do processo não foi modificado, ampliado ou reduzido por iniciativa das partes ou do Tribunal – em face do que, não se encontrando o Tribunal perante uma questão que permitisse o seu conhecimento oficioso, apenas se poderia ocupar das questões suscitadas pelas partes.

Z. De facto, o Tribunal não pode pronunciar-se sobre mais do que o que foi pedido ou sobre coisa diversa daquela que foi pedida, não podendo (na sentença ou no acórdão) extravasar os pedidos formulados pelas partes, encontrando-se limitado por eles – o que não sucedeu no Acórdão de que agora se recorre.

AA. A este respeito, o Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 06.06.2019, supracitado, explicou que, salvo quando se verificar acordo das partes – que no caso inexiste –, a causa de pedir apenas pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor. E, quanto ao pedido, podendo ser reduzido em qualquer altura, na falta desse acordo, apenas pode ser ampliado, mas não alterado, até ao encerramento da discussão em 1ª instância.

BB. Sendo pacífico que os obstáculos à livre atuação das partes no âmbito do processo civil ocorrem também em sede de recurso de apelação ou de recurso de revista. Em qualquer dos casos, é vedado ao recorrente confrontar o tribunal ad quem com questões novas, a não ser que se trate de matéria que seja de conhecimento oficioso.

CC. Os recursos constituem, por isso, mecanismos processuais que visam a impugnação de decisões proferidas por tribunais hierarquicamente inferiores, tendo como objeto a reapreciação dessas decisões e das questões nele abordadas ou que sejam de conhecimento oficioso, e não a apreciação de questões novas.

DD. A Autora estava, portanto, impedida de, em sede de alegações, modificar, ampliar ou reduzir o objeto do litígio, definido pelo pedido e causa de pedir, configurando-se esta hipótese como processualmente inadmissível.

EE. Com efeito, o que vincula a decisão do Tribunal é o objeto do processo, fixado em sede de despacho saneador, e não (como se pretendeu invocar) nas alegações de recurso.

FF. Como esclarece Lebre de Freitas, tendo em conta que o objeto da sentença coincide com o objeto do processo, não pode o juiz ficar aquém nem ir além do que lhe foi pedido – sendo, por isso, nula a sentença que, violando o princípio dispositivo na vertente relativa à conformação objetiva da instância, não observe os limites impostos, condenando em objeto diverso do pedido.

GG. Em face do exposto, tendo o Tribunal da Relação condenado a Ré em objeto diverso do pedido, o Acórdão recorrido padece da nulidade plasmada no artigo 615.º, n.º 1, al. e), aplicável ex vi artigo 666.º, n.º 1, ambos do CPC, – nulidade esta que se argui para os devidos e legais efeitos.

HH. Sem prescindir, para o caso de assim não se entender – o que não se concebe, mas somente se equaciona. O artigo 888.º do CC contempla o regime da venda de coisas determinadas, de acordo com o qual, se o preço não for estabelecido à razão de tanto por unidade, o comprador deve o preço declarado, mesmo que a indicação no contrato não corresponda à realidade

II. Já o n.º 2 daquela norma vem atenuar os efeitos da aplicação da regra geral nele estabelecida, prevendo o ajustamento proporcional do preço no caso de a quantia efetiva diferir em mais de um vigésimo da quantia declarada – sendo que, como ensina Antunes Varela, esta disposição não reveste caráter imperativo, visto não assentar em razões de interesse público.

JJ. Trata-se, por isso, de uma norma com natureza supletiva – isto é, de uma norma que se destina a suprir a falta de manifestação de vontade das partes sobre determinados pontos do negócio.

KK. Assim, ao abrigo do princípio da autonomia privada ou da autonomia da vontade – princípio subjacente a todo o direito privado – a Autora e a Ré celebraram um negócio jurídico, nomeadamente, um contrato de promessa de compra e venda.

LL. Ora, com a presente ação, a Autora pretendia obter a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 300.000,00 ou, subsidiariamente, de € 108.909,41, tendo como fundamento o erro em que teria sido induzida pela Ré, quando acordou com esta a redução do preço fixado para a venda do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3930.

MM. Porém, em sede julgamento, a Autora confessou que estava convicta de que as áreas feitas constar na adenda não eram as reais, mas que, ainda assim, aceitou realizar o negócio – cfr. decorre da respetiva assentada e da motivação de facto da Sentença (supratranscrita).

NN. Deste modo, na celebração da referida adenda de 25 de Abril de 2020, a Autora acordou de livre e espontânea vontade o conteúdo do negócio jurídico, sabendo perfeitamente que as áreas declaradas eram inferiores às áreas reais – quer isto dizer que a Autora, independentemente de saber que a áreas declaradas eram inferiores às áreas reais, quis celebrar o contrato nos termos que consta da adenda e não em quaisquer outros termos.

OO. De facto, a declaração negocial expressa na adenda de 25 de Abril de 2020 corresponde à vontade real da Autora – pelo que o Acórdão, ao aplicar o preceito do art.º 888.º do CC, violou a lei substantiva, na medida em que esta norma não prevalece perante um negócio jurídico válido e eficaz celebrado entre a Autora e a Ré.

PP. Pese embora seja a primeira vez que este regime é invocado nos presentes autos, importa referir que, nos termos do estipulado pelo art.º 890.º, n.º 1 do CC, o direito plasmado no art.º 888.º caduca dentro do prazo de 1 (um) ano após a entrega da coisa imóvel.

QQ. Encontra-se, assim, fixado um prazo de caducidade para o exercício do direito ao recebimento do preço, o que implica “que o titular de um direito o exerça dentro de certo prazo, sob pena de extinção desse mesmo direito”.

RR. Ora, resulta do facto provado n.º 8 da sentença (inalterado no Acórdão sob recurso) que, no dia 30.03.2020, a Autora e a Ré celebraram a escritura pública, momento em que foi entregue a coisa à Ré, tornando-se a mesma proprietária do prédio urbano inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3930.º.

SS. Assim, decorrido o prazo de 1 (um) ano, isto é, no dia 30.03.2021, caducou o suposto direito da Autora ao recebimento da diferença de preço entre a área real e a área declarada.

TT. Ora, a petição inicial foi apresentada em 21.02.2022, o que significa que, à data em que a presente ação foi intentada, o eventual direito da Autora ao preço correspondente à diferença entre as áreas reais e as áreas declaradas dos dois imóveis já tinha caducado (pelo menos no dia 30.03.2021).

UU. Acresce que, em ordem a obter o efeito jurídico por si pretendido, a Autora alegou estar em erro quanto às áreas dos imóveis contratualizados entre si e a Ré, mas na verdade confessou o oposto.

VV. Com efeito, da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância (inalterada nesta parte) resulta que “os factos das alíneas 13 e 14 resultaram da conjugação do depoimento de parte de BB, representante da Autora, que confessou conhecer a real área dos imóveis quando celebrou com a Ré a adenda ao contrato promessa de 25 de Abril de 2020, confissão essa inequívoca, como resulta da assentada e que tem força probatória plena contra o confitente nos termos do previsto no artigos 357º e 358º do Código Civil e que é indivisível, nos termos do artigo 360º do mesmo Diploma. Assim, tendo a confissão do acompanhante da Autora - de que sabia a real área dos imóveis aquando da celebração da referida adenda, estando ciente que era superior às que ali foram feitas constar na medida em que procedera, com colaboração de topógrafo amigo a levantamento dos limites e áreas em causa que estariam próximas dos valores dados por provados (referiu áreas de cerca de 7000 m2) – sido acompanhada da afirmação de que a medição que promoveu resultou em valores superiores aos feitos constar na referida adenda, não pode cindir-se a sua declaração confessória das declarações que também prestou sobre as áreas sob pena de a mesma não aproveitar à Ré.”

WW. Do exposto, resulta claro que a Autora já conhecia a diferença entre as áreas declaradas e as áreas reais mesmo antes da celebração da segunda escritura pública referente ao prédio rústico inscrito, datada de 30 de março de 2020.

XX. Em suma, constatando-se que o direito da Autora – a existir, o que nem se concebe, como se explicou – ao recebimento da diferença entre as áreas reais e as áreas declaradas entre os respetivos imóveis caducou (pelo menos) em março de 2021, extinguiu-se aquele direito.

YY. Nestes termos, nunca poderia o Tribunal ter aplicado o disposto no artigo 888.º do CC, e, consequentemente, ter condenado a Ré ao pagamento de qualquer quantia.

A autora respondeu, sustentando a manutenção da decisão recorrida.

O Tribunal da Relação do Porto apreciou a arguição de nulidade do acórdão, indeferindo tal arguição.


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Síntese das questões suscitadas pelo acórdão recorrido:

• Saber se o acórdão recorrido é nulo, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, por ter condenado em objecto diverso do pedido;

• Saber, em caso de resposta negativa à questão anterior, se, ao condenar a ré no pagamento da quantia de quantia de € 96 912,54, acrescida de juros de mora contados, à taxa legal, desde a citação e até integral reembolso, o acórdão recorrido fez uma incorrecta interpretação e aplicação das normas contidas nos artigos 405.º, 888.º, 890.º, todos do Código Civil.


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O acórdão recorrido considerou provados e não provados os seguintes factos:

Provados:

1. Por sentença proferida em 25 de Fevereiro de 2021 no Processo 3453/20.7... do J4 Juízo Local Cível de ..., a Autora foi submetida à situação de acompanhamento na medida de representação geral com dispensa de constituição do conselho de família, tendo sido designado acompanhante o seu filho BB.

2. A Ré é uma sociedade que se dedica à construção civil e, no âmbito da sua atividade, revende alguns dos imóveis que compra, como sempre foi do conhecimento da Autora.

3. No dia 13 de Março de 2020, a aqui Autora, representada pelo seu filho BB, na qualidade de promitente vendedora, celebrou com a Ré, esta na qualidade de promitente compradora, o contrato denominado de promessa de compra e venda cujo teor é o documento número 2 junto com a petição inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido.

4. Daquele consta, nomeadamente: “A Primeira Outorgante é dona e legitima proprietária de:

a. Prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 1626/......32, com a área de 8160 m2, sito na Rua ..., freguesia e concelho de ..., correspondente a terreno para construção inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3930º e que confronta a Norte e Nascente com a Rua ..., a Sul com CC e Rua ..., a Poente com DD e EE;

b. Prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 2174/......14, com a área total de 12.265 m2, sito na freguesia de ..., concelho de ..., correspondente a terreno de cultivo inscrito na matriz rústica sob os artigos 44º - confrontando a Norte com ... e Limite de ... e Nascente com FF – no que respeita a 750 m2 e artigo 46º - confrontando a Norte com Dr. GG e HH, a Sul Rua ..., Nascente Bairro do ... e Poente Bairro dos ... e EN... – no que respeita a 11.515m2;

c. Sobre o prédio identificado em a) encontram-se registadas as seguintes penhoras: a. Ap. 4507 de 10/03/2010 a favor de II e JJ; b. Ap. 2652 de 16/11/2011 a favor de Fazenda Nacional; c. Ap. 2848 de 22/03/2013 a favor de Fazenda Nacional;

d. Sobre o prédio identificado em b) encontram-se registadas as seguintes penhoras: i. Ap. 7 de 27/02/2008 a favor de KK; ii. Ap. 1096 de 07/07/2014 a favor de Fazenda Nacional; iii. Ap. 1593 de 08/07/2014 a favor de Fazenda Nacional”.

5. Na cláusula segunda do referido contrato promessa constava que o preço contratado para a prometida venda era de € 1.000.000 (Um Milhão de Euros), sendo € 400.000 (Quatrocentos Mil Euros) referentes ao imóvel identificado no considerando a) e € 600.000 (Seiscentos Mil Euros) referentes ao imóvel identificado no considerando b).

6. No dia 26 de Março de 2020 foi celebrado entre Autora, representada pelo seu filho BB, e Ré uma adenda ao contrato-promessa de compra e venda referido em 3, cujo teor é o do documento número 3 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido, em que ficou a constar que foi acordado que a escritura de compra e venda relativa ao imóvel identificado no contrato-promessa de 13 de Março de 2020 no considerando a) seria celebrado no dia 30 de Março de 2020.

7. Ali ficou a constar que “com a realização da escritura pública e pagamento do remanescente do preço de 300.000,00€ (trezentos mil euros), sendo 220.000,00€ (duzentos e vinte mil euros) para o primeiro outorgante e 80.000,00 (oitenta mil euros) para liquidar a dívida descrita em 2º, as partes consideram parcialmente executado o CPCV celebrado, bem como desde já imputam o valor pago a título de sinal ao imóvel cuja escritura está agendada para o dia 30 de Março de 2020.”

8. No dia 30 de Março de 2020 foi outorgada entre Autora, representada pelo seu filho BB, e Ré a escritura pública de compra e venda em que a Ré declarou adquirir pelo preço de € 400.000,00 (quatrocentos mil euros) o prédio urbano, composto por terreno para construção, sito em ..., à Rua ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o número mil seiscentos e vinte e seis, da freguesia de ..., aí registado, a favor da vendedora, conforme inscrição, apresentação, um, de doze de Dezembro de mil novecentos e noventa, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3930, da freguesia de ..., com o valor patrimonial de 715.713,93.

9. Dessa escritura, ficou nomeadamente a constar que “sobre o prédio incidem ainda as seguintes inscrições: - Uma inscrição de hipoteca voluntária, conforme apresentação quatro mil quinhentos e sete, de dez de Março de dois mil e dez, cujo cancelamento se encontra assegurado mediante a entrega do necessário termo de cancelamento que me foi exibido, - Duas inscrições de Penhora, conforme apresentação dois mil seiscentos e cinquenta e dois, de dezasseis de Novembro de dois mil e onze e apresentação dois mil oitocentos e quarenta e oito, de vinte e dois de Fevereiro de dois mil e treze, cujos cancelamentos se encontram assegurados mediante a entrega do necessário termo de cancelamento que me foi exibido.” Ali a aqui Ré declarou aceitar “o presente contrato e que o bem adquirido se destina à imediata prossecução dos fins da sociedade compradora e que o prédio se destina a revenda”.

10. No dia 25 de Abril de 2020 foi celebrada entre a Autora, representada pelo seu filho BB, e a Ré nova adenda a contrato-promessa de compra e venda referido em 4 cujo teor é o do documento número 5 junto com a petição inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido.

11. Ali ficou a constar: “Considerando que:

a. A primeira e segunda outorgante celebraram, em 13 de Março de 2020, um contrato promessa com eficácia real;

b. Tal contrato abrangeu os seguintes imóveis: i) Prédio descrito na Conservatória de Registo Predial de ... sob n.º 1626/......31, com a área de 8160 m2, sito na Rua ..., freguesia e concelho de ..., correspondente a terreno para construção inscrito na matriz predial urbana sob artigo 3930.º e que confronta a Norte e Nascente com a Rua ..., a Sul com CC e Rua ..., a Poente com DD e EE, e, ii) Prédio descrito na Conservatória de Registo Predial de ... sob n.º 2174/......14, com a área total de 12.265 m2, sito na freguesia de ..., concelho de ..., correspondente a terreno de cultivo inscrito na matriz rústica sob artigos 44.º - confrontando a Norte com ... e Limite de ... e a Nascente com FF - no que respeita a 750 m2 e artigo 46.º - confrontando a Norte com Dr. GG e HH, a Sul Rua ..., Nascente Bairro do ... e Poente Bairro dos ... e EN ...- no que respeita a 11.515m2.

c. Com a celebração do contrato descrito em a), a segunda outorgante pagou à primeira a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de cem mil euros (100.000,00€) da qual foi dada a respectiva quitação;

d. Após a realização da escritura pública, a segunda outorgante realizou um levantamento topográfico sobre o prédio adquirido e sobre o prédio prometido, do qual resultou:

• i) O prédio descrito na Conservatória de Registo Predial de ... sob nº 1626/......31, sito na Rua ..., freguesia e concelho de ..., correspondente a terreno para construção inscrito na matriz predial urbana sob artigo 3930º e que confronta a Norte e Nascente com a Rua ..., a Sul com CC e Rua ..., a Poente com DD e EE, tem a área de 4.063 m2 e não de 8.160m2 como considerando no CPCV e na escritura;

• ii) O prédio descrito na Conservatória de Registo Predial de ... sob n.º 2174/......14, com a área total de 12.265 m2, sito na freguesia de ..., concelho de ..., correspondente a terreno de cultivo inscrito na matriz rústica sob artigos 44.º - confrontando a Norte com ... e Limite de ... e a Nascente com FF - no que respeita a 750 m2 e artigo 46.º - confrontando a Norte com Dr. GG e HH, a Sul Rua ..., Nascente Bairro do ... e Poente Bairro dos ... e EN ..., tem a área de 6.603 m2 e não de 12.265m2 como considerado no CPCV. Acordam as partes de livre e espontânea vontade celebrar a presente adenda, a qual passa desde já a fazer parte integrante do contrato referido no considerando a):

• 1.º A primeira outorgante e segunda outorgante celebraram no dia 30 de Março de 2020 escritura pública de compra e venda relativamente ao imóvel descrito e identificado no considerando a) do CPCV acima identificado.

• 2º Acordam as partes que face à alteração da área do prédio já comprado, bem como do prédio prometido, reduzir o preço a pagar pela segunda outorgante à primeira outorgante para a aquisição deste para o valor de 300.000,00€ (trezentos mil euros).

• 3.ª O preço será pago da seguinte forma: - 50.000,00€ (cinquenta mil euros) através de cheque bancário a emitir pela segunda outorgante na presente data, com a assinatura da presente adenda e cuja quitação é dada com a boa cobrança do mesmo; - 250.000,00€ (duzentos e cinquenta mil euros) através de cheque bancário a emitir pela segunda outorgante na data da realização da escritura pública.

• 4.ª A escritura pública de compra e venda realizar-se-á no máximo até ao dia 30 de Junho de 2020, e nos trinta dias subsequentes à primeira outorgante cumprir o disposto na cláusula terceira do CPCV celebrado, cabendo a Segunda Outorgante, a sua marcação e informar o Primeiro Outorgante do dia, hora e local onde ela se irá realizar, com uma antecedência mínima de 10 (dez) dias úteis em relação à data da escritura, comprometendo-se o Primeiro Outorgante a fornecer todos os elementos necessários para o efeito relativos à sua pessoa e ao imóvel prometido vender.

12. No dia 22 de Maio de 2020 foi outorgada escritura pública de compra e venda - cujo teor é o do documento número 6 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido -, em que a Ré declarou adquirir e a Autora vender, pelo preço de € 300.000,00 (trezentos mil euros) o prédio rústico, composto de terreno de cultivo, com a área de sete mil seiscentos e trinta metros quadrados, sito na Rua ..., na freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número mil seiscentos e vinte e três barra dois mil zero sete catorze da freguesia de ..., e sob o número dois mil cento e setenta e quatro barra dois mil zero sete catorze da freguesia de ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo 44, que tem a área de setecentos e cinquenta metros quadrados e inscrito na matriz sob o artigo 46 que tem a área de seis mil oitocentos e oitenta metros quadrados.

13. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 1626/20000732, sito na Rua 32, freguesia e concelho de ..., correspondente a terreno para construção inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3930 e que confronta a Norte e Nascente com a Rua ..., a Sul com CC e Rua ..., a Poente com DD e EE tem a área de 6040 m2.

14. O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 2174/......14, sito na freguesia de ..., concelho de ..., correspondente a terreno de cultivo inscrito na matriz rústica sob artigo 46º, confrontando a Norte com Dr. GG e HH, a Sul Rua ..., Nascente Bairro do ... e Poente Bairro dos ... e EN... – tem a área de 6.880 m2.

15. No dia 26 de Outubro de 2021 o mandatário da Autora enviou carta registada para a Ré - cujo teor é o do documento número 11 junto com a petição inicial que aqui se dá por integralmente reproduzido -, em que lhe comunicava a diferença de áreas nos prédios que foram aceites por si de boa fé com base no levantamento topográfico pretensamente realizado pela Ré, solicitando por isso um ressarcimento derivado do erro provocado na vontade da sua constituinte dado que os prédios foram vendidos com base num pressuposto errado.

16. A Ré, em 27 de Novembro de 2020, declarou vender e a sociedade H... unipessoal, Lda.. comprar o prédio correspondente a terreno para construção urbana, com a área de 6040 m2 sito na Avenida ... – Rua ... da freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 1626 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3930º pelo preço de € 1.850.000.00 (Um milhão e oitocentos e cinquenta mil euros) conforme documento particular de compra e venda cujo teor é o do documento número 12 junto com a petição inicial.

17. Após a aquisição do referido imóvel à Autora, como descrita em 8, a Ré procedeu à apresentação de um projeto de arquitetura e de um pedido de licenciamento de edificação de um prédio para habitação multidisciplinar (em 2 fases), junto da Câmara Municipal de ..., ao qual foi atribuído o n.º LE – ARUNCC 18/20 cujo deferimento lhe foi comunicado por carta de 18-11-2020 cujo teor é o documento número 2 junto com a contestação que aqui se dá por integralmente reproduzido.

18. Paralelamente, a Ré promoveu junto de terceiros a venda do referido imóvel, com a premissa de obter previamente a aprovação do projeto de arquitetura e do pedido de licenciamento de edificação para habitação multidisciplinar.

19. A redução do preço acordada na adenda ao contrato promessa que foi outorgada a 25 de Abril de 2020 teve por base uma negociação entre as partes e foi antecedida por medições feitos por ambas ao imóvel em questão que foram partilhados entre si e conduziram ao acordo escrito sobre áreas que ficou na mesma.

20. Fez também parte dessa negociação o acordo nos termos do qual seria desanexado do prédio inscrito sob o artigo 44 um terreno a ser revendido ao filho da Autora, e seu procurador, BB, tal como veio a acontecer em 17/06/2020.

Não provados:

a. Que a Ré bem sabia que não era exacta a redução da área dos prédios nos termos referidos na adenda de 25 de Abril de 2020;

b. Que à aqui Autora nunca foi dado conhecimento dos efectivos levantamentos topográficos que estiveram na origem da adenda ao contrato promessa datada de 25 de Abril de 2020;

c. Que a Autora, através do seu procurador BB, deu por boa a informação que lhe foi fornecida pela aqui Ré quanto às áreas que teriam resultado do levantamento topográfico que esta efectuara;

d. Que aquando da celebração da adenda de 25 de Abril de 2020 Autora e Ré estabeleceram o preço de compra e venda do imóvel inscrito sob o artigo 3930 com base num valor de 49,02 € por metro quadrado;

e. Que quando da celebração do contrato promessa referido em 2 Autora e Ré estabeleceram o preço de compra e venda do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 2174/..., com base num valor de 43,31 € por metro quadrado.


*


Descritos os factos passemos à resolução das questões enunciadas.

Antes de mais importa precisar que o presente recurso de revista tem por objecto apenas a parte do acórdão da Relação que julgou procedente o pedido deduzido pela autora, a título subsidiário. Fora do objecto da revista está, pois, o segmento que julgou improcedente o pedido principal. A autora, que dispunha de legitimidade para o impugnar, não o fez, pelo que tal segmento transitou em julgado.

O acórdão sob recurso julgou procedente o pedido subsidiário com a seguinte fundamentação:

• O pedido subsidiário assentava na discrepância entre as áreas dos prédios vertidas na adenda contratual e as áreas reais desses mesmos prédios;

• Os artigos 887.º e 888.º do Código Civil regulam, no caso da venda de coisas determinadas sujeitas a contagem, pesagem ou medição, as regras a observar no caso de discrepância entre a contagem, peso ou medida declaradas e as reais, independentemente de qualquer erro;

• O artigo 887.º não era aplicável porque este pressupõe a determinação do preço à razão de tanto por unidade e não estava demonstrado que o preço da venda dos terrenos tenha sido fixado à razão de tanto por unidade, pelo que era aplicável o regime do artigo 888.º, – ou seja, apenas se a medida efectiva diferisse da declarada em mais de 1/20 haveria lugar a um acerto proporcional;

• A diferença entre as áreas quanto ao prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo matricial 4482º [6603m2 para 6880m2] não ultrapassava o limiar da relevância legal (como se disse, 1/20, ou seja, no caso, 330,15 m2), pelo que era de aplicar a regra enunciada no nº 1 do artigo 888º do Código Civil – a autora não tinha direito a qualquer compensação;

• O mesmo já não sucedia quanto ao prédio inscrito na matriz predial urbana sob artigo 3930º. É que, correspondendo 203,15m2 a 1/20 da área declarada, a concreta discrepância em presença era de [6040-4063=] 1977 m2;

• Quanto a este imóvel a autora teria direito a um aumento proporcional do preço, ou seja [1977 x 65,63 =] € 129 750,51;

• Mas, como a autora a este título pediu apenas o pagamento de € 96 912,54 [conclusão nº 57], este seria o limite da condenação – artigo 609.º e n.º 4 do artigo 635º, ambos do Código de Processo Civil.

A recorrente começa por censurar o acórdão recorrido com a alegação de que ele condenara em objecto diverso do pedido, incorrendo, assim, na causa de nulidade prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC – aplicável à 2.ª instância por remissão do n.º 1 do artigo 666.º do CPC.

Este fundamento do recurso é de julgar improcedente, apesar de serem exactas alguma das alegações da recorrente. Assim, consideram-se exactas:

• A alegação de que a causa de nulidade em questão está directamente relacionada com o n.º 1 do artigo 609.º do CPC, nos termos do qual a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir;

• A alegação de que o objecto do litígio é determinado pelas pretensões das partes e pela causa de pedir;

• A alegação de que decorre da 1.ª parte do n.º 1 do artigo 5.º do CPC que cabe ao autor alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir;

• A alegação de que não é permitido ao tribunal alterar ou substituir a causa de pedir.

Já não consideramos exacta a alegação de que o acórdão recorrido condenou a ré, ora recorrente, com base em causa de pedir diferente da que foi alegada pelo autor.

Decorre do n.º 4 do artigo 581.º do CPC que a causa de pedir consiste no facto jurídico concreto de onde emerge a pretensão do autor. É a este que compete a alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir, como resulta da 1.ª parte do n.º 1 do artigo 5.º e da alínea d) do n.º 1 do artigo 552.º do mesmo diploma.

Alegada na petição, a causa de pedir apenas pode ser alterada nas hipóteses previstas nos artigos 264.º (alteração mediante acordo das partes) e 265.º, ambos do CPC (alteração na falta de acordo). Nenhuma delas compreende a hipótese de a causa de pedir ser alterada oficiosamente pelo tribunal.

Visto que a causa de pedir da acção respeita aos factos de onde procede a pretensão do autor, a condenação com base em causa de pedir não alegada pressupõe a condenação com fundameno em factos não alegados pelo autor.

Deste modo, seria pertinente acusar o acórdão recorrido de violar o n.º 1 do artigo 609.º do CPC, na parte em que proíbe a condenação em objecto diverso do que se pedir, e de incorrer na causa de nulidade prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC se os factos que o levaram a julgar procedente o pedido subsidiário, condenando a ré no pagamento da quantia de € 96 912,54, não tivessem sido alegados pela autora na petição, condição que não se verifica. Com efeito, o que determinou a procedência de tal pedido foi o facto de existir, em relação ao terreno para construção inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho de ... sob o n.º 3930, uma divergência entre a área declarada pelas partes no acordo que elas celebraram em 25-04-2020 e a área real desse prédio. Sucede que esse facto foi alegado pela autora para fundamentar o pedido subsidiário, como o atestam os artigos 26.º a 34.º da petição inicial.

É certo, como bem alega a recorrente, que a autora também invocou, para fundamentar tal pedido, que quando celebrou em 25-04-2020 o acordo de redução do preço da venda estava em erro quanto à área real dos dois terrenos, erro determinado por um acto doloso e premeditado da aqui ré e que só depois de tal data é que teve conhecimento da área real dos prédios. Daí que não se acompanhe o acórdão recorrido, sem prejuízo do respeito que ele nos merece, quando afirma que o estado de erro da autora foi alegado apenas para fundamentar o pedido principal.

Sucede que, apesar de o acórdão ter desconsiderado a questão do erro, a condenação por ele proferida continuou a assentar em factos alegados pela autora.

A procedência do pedido subsidiário, apesar da falta de prova de um dos factos que o fundamentava, não se explica por o tribunal da Relação ter condenado com base em factos diversos dos alegados na acção. Explica-se por razões de direito. A autora pedia a procedência da sua pretensão com base no regime jurídico do erro, como o atesta a parte da petição subordinada à epígrafe “do Direito”. O tribunal da Relação entendeu que à situação se aplicava o regime do artigo 888.º do Código Civil e que este aplicava-se independentemente de qualquer erro da autora, como o atesta o seguinte trecho do acórdão: “Ora, precisamente os artigos 887º e 888º do Código Civil regulam, no caso de venda de coisas determinadas sujeitas a contagem, pesagem ou medição, as regras a observar no caso de discrepância entre a contagem, peso ou medida declaradas e as reais – independentemente de qualquer erro”.

É certo que, apesar de o juiz não estar sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3 do CPC), a circunstância de as razões de direito da decisão serem diversas das expostas pelo autor para fundamentar a sua pretensão não é irrelevante do ponto de vista processual. O poder do juiz de julgar a causa de acordo com as regras de direito que, no seu entender, lhe são aplicáveis, é um poder que está sujeito à observância do princípio do contraditório (artigo 3.º n.º 3 do CPC). Decorre deste princípio que o juiz não pode fundar a decisão da causa em razões jurídicas suscitadas oficiosamente por ele sem previamente dar às partes a possibilidade de elas se pronunciarem. E no caso não há prova nos autos de tal comunicação às partes.

Sucede que a circunstância de o tribunal da Relação julgar procedente o pedido subsidiário com base em razões de direito diferentes das que foram alegadas pela parte sem dar à parte a possibilidade de sobre elas se pronunciar não configura alteração da causa de pedir, visto que esta, como resulta do exposto acima, diz respeito aos factos essenciais de onde procede a pretensão do autor e não às razões jurídicas essenciais da procedência dessa pretensão. Caso aplique à resolução do litígio razões de direito suscitadas oficiosamente por ele sem dar previamente às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, o juiz omite uma formalidade que a lei prescreve, sendo esta omissão geradora de nulidade processual prevista no n.º 1 do artigo 195.º do CPC.

Não cabe, no entanto, a este tribunal pronunciar-se sobre esta questão visto que ela não foi suscitada no recurso nem é de conhecimento.

Por todo o exposto conclui-se que, ao julgar procedente o pedido subsidiário, o acórdão sob recurso não condenou em objecto diverso do que havia sido pedido pela autora.

O segundo fundamento do recurso visa o acórdão na parte em que aplicou o artigo 888.º do Código Civil à resolução do litígio.

A recorrente alega que o acórdão violou o citado preceito com a seguinte linha argumentativa:

• O artigo 888.º, n.º 2, do Código Civil tem natureza supletiva;

• Quando celebrou a adenda em 25-04-2020, a autora acordou de livre e espontânea vontade o conteúdo do negócio jurídico, sabendo perfeitamente que as áreas declaradas eram inferiores às áreas reais - quer isto dizer que a autora, independentemente de saber que as áreas declaradas eram inferiores às áreas reais quis celebrar o contrato nos termos que constam da adenda e não em quaisquer outros termos;

• Que esta norma não prevalece perante um negócio jurídico válido e eficaz celebrado entre a autora e a ré;

• Que apesar de ser a primeira vez que o regime do artigo 888.º é invocado nos presentes autos, o direito da autora ao recebimento da diferença entre a área real e a área declarada já havia caducado á data em que a acção foi intentada.

O fundamento do recurso é de julgar procedente. Vejamos.

A alegação da recorrente remete-nos para a interpretação do artigo 888.º, do Código Civil.

Este preceito dispõe sobre a venda de coisas determinadas quando o preço da venda não for estabelecido à razão de tanto por unidade.

O n.º 1 contém a seguinte regra: o comprador deve o preço declarado, mesmo que no contrato se indique o número, peso ou medida das coisas vendidas e a indicação não corresponda à realidade.

Como escreve Raul Ventura, “o artigo 888.º, n.º 1, quando aplicável, torna o preço indicado independente da quantidade da coisa, mesma que esteja seja declarada no contrato. Não se pode dizer que o artigo faça prevalecer a quantidade declarada sobre a quantidade real, pois a quantidade declarada pode ter servido para a determinação do preço declarado, mas com isso esgotou a sua função, ao contrário do que sucede no artigo 887.º, em que a quantidade real prevalece sobre a declarada, para ser efectuada a multiplicação pelo preço ou importância unitária” [disponível em www.oa.pt]

A regra do n.º 1 comporta, no entanto, a seguinte excepção, enunciada no número 2: se a quantidade efectiva diferir da declarada em mais de um vigésimo desta, o preço sofrerá redução ou aumento proporcional.

Socorrendo-nos de novo das palavras de Raul Ventura, “a estabilidade do preço resultante do n.º 1 do artigo é, pois, limitada nos termos do n.º 2. Pressuposto da aplicação do n.º 2 é haver uma quantidade declarada no contrato; havendo-a, calcula-se a diferença entre a quantidade efectiva ou real e a quantidade declarada e, verificando-se que esta diferença é superior a um vigésimo da quantidade declarada, o preço será reduzido ou aumentado na mesma proporção” [disponível em www.oa.pt].

Contrariamente ao entendimento afirmado no acórdão recorrido, a aplicação do regime previsto no n.º 2 não é independente do erro das partes quanto à discrepância entre a quantidade efectiva e a declarada. Se, aquando da venda ambas as partes, têm conhecimento da discrepância não há lugar à aplicação do regime. Na verdade, se ambas tinham conhecimento da discrepância e se ainda assim aceitaram celebrar a venda pelo preço declarado, tal significa que aceitaram o contrato nas condições dele constantes. O mesmo se diga se o conhecimento for da parte que depois da venda pretende prevalecer-se dele. A solução é semelhante à que ocorre quando o comprador conhece o vício da coisa quando a comprou. Também nesta hipótese não está em condições de se prevalecer do regime da venda das coisas defeituosas. Socorrendo-nos das palavras de Calvão da Silva, “… o vício (…) conhecido do comprador na conclusão do contrato exclui a garantia e responsabildiade do vendedor: convenientemente elucidado, o comprador aceita a coisa defeituosa, não se vendo como poderia depois alegar um vício ou falta de qualidade da coisa entregue em conformidade com o contrato” [Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Conformidade e Segurança, Almedina, página 48.

É, assim, de afirmar que a aplicação do regime do n.º 2 do artigo 888.º do Código Civil pressupõe que, só depois da celebração da venda, as partes ou a que pretende prevalecer-se de tal regime tenham conhecimento da divergência entre a quantidade efectiva e a declarada.

Em matéria de ónus da prova, cabe àquele que pretende prevalecer-se do n.º 2 do artigo 888.º a alegação e a prova da diferença entre a quantidade efectiva e a declarada cabe àquele contra quem é invocado o mencionado regime a alegação e a prova de que a outra parte sabia, aquando da venda, da divergência entre a quantidade efectiva e a quantidade declarada (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil).

O regime do n.º 2 do preceito tem natureza supletiva. Assim é afirmado por autores como Pires de Lima e Antunes Varela [Código Civil Anotado, Volume II, 4.ª Edição Revista e Actualizada, Reimpressão Coimbra Editora, página 180] e Jacinto por Rodrigues Bastos [Notas ao Código Civil, Volume IV, Rei dos Livros, página 82] e foi afirmado no acórdão do STJ proferido em 26-01-1978, publicado no BMJ n.º 273 páginas 272 a 278.

A natureza supletiva do n.º 2 significa que o comprador e o vendedor podem regular em termos diferentes dos nele previstos a diferença entre a quantidade efectiva e a declarada. Deste modo, não só podem acordar que não haja lugar a redução ou aumento do preço, qualquer que seja a divergência entre a quantidade efectiva e a declarada, como podem acordar uma redução ou aumento de preço em proporção diferente da nele prevista.

Interpretado o artigo 888.º do Código Civil com o sentido e o alcance expostos, é de reconhecer razão à recorrente quando alega que autora não estava em condições de se prevalecer do n.º 2 do citado preceito. Com efeito, provou-se que a redução do preço acordada na adenda ao contrato promessa que foi outorgada a 25 de Abril de 2020 teve por base uma negociação entre as partes e foi antecedida por medições feitas por ambas ao imóvel em questão que foram partilhados entre si e conduziram ao acordo escrito sobre áreas que ficou na mesma. E provou-se que fez também parte dessa negociação o acordo nos termos do qual seria desanexado do prédio inscrito sob o artigo 44 um terreno a ser revendido ao filho da Autora, e seu procurador, BB, tal como veio a acontecer em 17/06/2020.

Os factos acabados de descrever significam o seguinte:

Em primeiro lugar que o representante da autora sabia, aquando do acordo celebrado em 25-04-2020, qual era a área real do prédio inscrito na matriz sob o artigo 3930 e sabia que esta divergia da declarada em tal acordo. Observe-se que o conhecimento da área real do prédio, na altura em que foi celebrado tal acordo, é destacado pelo Meritíssimo juiz da 1.ª instância na fundamentação da decisão relativa à matéria de facto, remetendo para a acta da audiência realizada em 26-09-2022 onde o representante da autora confessou esse conhecimento.

O conhecimento da discrepância das áreas exclui a aplicação do regime do n.º 2 do artigo 888.º do Código Civil.

Em segundo lugar, a matéria de facto acima descrita significa que a divergência entre áreas que as partes consideraram relevante para efeitos de alteração do preço acordado inicialmente era a que se verificava entre a área dos prédios declarada no contrato-promessa de compra e venda e na escritura de venda e as áreas reais dos dois terrenos, mas que tal divergência foi regulada pelas partes ao abrigo da sua autonomia contratual (n.º 1 do artigo 405.º do Código Civil). Essa regulação não implicou apenas a alteração do preço. Compreendeu também um acordo no sentido de que seria desanexado do prédio inscrito sob o artigo 44 um terreno a ser revendido ao filho da Autora, e seu procurador, BB, o que veio a acontecer em 17/06/2020.

Por todo o exposto conclui-se que não estavam reunidos todos os pressupostos para aplicação do regime do n.º 2 do artigo 888.º do Código Civil à divergência entre a área efectiva do prédio inscrito na matriz sob o artigo 3930 e a área desse mesmo prédio declarada no acordo celebrado em 25 de Abril de 2020.

Daí que, ao condenar a ré com base no mencionado regime, o acórdão aplicou-o sem que estivessem reunidas as condições para tanto. Impõe-se, pois, a sua revogação.

Concluindo-se que não estavam reunidas as condições para a aplicação, ao caso, do regime do artigo 888.º, n.º 2 do Código Civil, fica prejudicado o conhecimento da questão de saber se o direito à alteração do preço nele previsto já havia caducado aquando da instauração da acção.


*


Decisão:

Concede-se a revista e, em consequência, revoga-se o acórdão recorrido, substituindo-se o mesmo por decisão a julgar improcedente a acção e a absolver a ré do pedido subsidiário.

Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de a recorrida ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas respectivas custas.

Lisboa, 29 de Fevereiro de 2024

Emídio Francisco Santos (relator)

Afonso Henrique (1º adjunto)

Fernando Baptista de Oliveira (2º adjunto)