Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
608/06.OTBPMS.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ÁLVARO RODRIGUES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA
CONCURSO DE CULPAS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
JUROS MORATÓRIOS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/08/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA DO AUTOR CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA DA RÉ
Indicações Eventuais: WWW.DGSI.PT.
Doutrina:
- ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, ed. 1º – 456;
- HANS WELZEL, Das deutsche Strafrecht e os seus Studien zum Systems des Strafrechts e toda a restante obra welzeliana em que o grande Mestre de Bona procurou sustentar o conceito de acção, como supradeterminação final de um processo causal;
- MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., 115;
- KARL ENGISH, Untersuchungen über Vorsatz und Fahrlässigkeit im Strafrecht, datado de 1930, com reimpressão em 1964;
- VAZ SERRA, Revista de Legislação e Jurisprudência, 113º-95.
Legislação Nacional: - ARTIGOS 493.º, N.º 3, 496.º, N.º 1,566.º,N.º 2 506º, Nº 2, ARTIGO 570º, Nº 1, TODOS DO CÓDIGO CIVIL.
Jurisprudência Nacional:
- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR Nº 4/2002, DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA;
- ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 9-12-1993 (CJ/STJ, 1993, 3º-174);
- ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 4-12-2002;
- ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 20-11-03, C.J., S.T.J., 2003, 3º, 149;
- ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 20-11-03 (3);
- ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE 14-12-2006, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT (Pº 06B2380);
- ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 26-06-2008, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT ( Pº 08B1832);
- ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 30-10-2008, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.(Pº 08B2662);
- ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DE COIMBRA, DE 14 DE JUNHO DE 2000 ( C. JUR. 2000, T III, 56);
- ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DE ÉVORA, DE 15.01.1998( BMJ, 473º-581).
Sumário : I-O conceito jurídico civil de Culpa, que se desdobra, no domínio jurídico-civil, nas modalidades ou formas de imputação subjectiva de dolo e negligência (ao contrário do que acontece, desde a concepção normativista, no campo jurídico-penal, onde o dolo e a negligência são considerados maioritariamente como elementos subjectivos do tipo, embora relevando também para a culpa), continua a ser um conceito de base eminentemente psicológica, embora moldado pelo Direito, isto é, normativizado, que é definido como «o nexo de imputação ético-jurídica que liga o facto à vontade do agente e que envolve um complexo juízo de censura ou de reprovação sobre o agente ou devedor» ( A. Varela, Das Obrigações em Geral, ed. 1º– 456).
II- Enquanto a ilicitude é um juízo de desvalor que incide sobre a conduta do agente, qualificando-a como contrária à norma jurídica ( ilicitude formal) ou violadora de bens e interesses tutelados pela ordem jurídica (ilicitude material), a culpa é um juízo de censura que incide sobre o agente que praticou a conduta ilícita ( juízo de reprovação pessoal) e, em Direito Civil, assume as formas de dolo e negligência.

III- Não merece censura a decisão do Tribunal da Relação no caso em que, como resulta do acervo factual fixado definitivamente pelas Instâncias, das considerações em matéria de facto sobre o processo causal do acidente e ainda sobre o juízo de reprovação da conduta dos protagonistas (formulado pela 2ª Instância), é patente que o acidente foi causado pela concorrência das condutas descuidadas de ambos os referidos intervenientes, o que coenvolve a culpa de ambos, em concurso ou concorrência.
IV- Deste modo, haverá, efectivamente, que ter em atenção o disposto no artº 570º, nº 1 do Código Civil que estatui que «quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída».
No caso vertente, constata-se que ambos os condutores concorreram para a produção do evento danoso, sendo que pela gravidade das respectivas condutas não se tornou possível discernir qual delas criou maior risco.
V- Desta sorte, há que lançar mão ao mecanismo legal da repartição de culpas em casos idênticos, que é o previsto no nº 2 do artº 506º do C.Civil, isto é, considerar-se igual a contribuição da culpa de cada um dos condutores, tal como bem andou a Relação ao proceder à repartição das culpas em 50% para cada um dos condutores dos 2 veículos intervenientes no acidente.

VI- Afigura-se-nos mais consentâneo com a realidade, que, sendo a aplicação do critério da equidade operado na sentença condenatória, salvo se a mesma referir expressamente que não procedeu à actualização de tal montante em relação ao peticionado, é de seguir o entendimento plasmado no Acórdão deste STJ de 30-10-2008, segundo o qual « ainda que nada se diga, há que entender que tal montante é fixado de forma actualizada», pelo que os juros moratórios relativos ao montante indemnizatório atribuído pelos danos não patrimoniais, seriam computados a partir da sentença, por nessa se presumir efectuado o cálculo actualizado nos termos do nº 2 do artº 566º do C. Civil.
VII- Todavia, sendo absolutória do pedido a sentença da 1ª Instância e só havendo condenação em compensação por danos não patrimoniais na 2ª Instância (pois apenas no acórdão proferido pela Relação foi arbitrada tal indemnização e efectuada, com base na equidade, a fixação do respectivo montante), é evidente que terá de ser a partir da data de tal acórdão da Relação, que se vencerão juros moratórios sobre os montantes fixados relativamente aos danos não patrimoniais.
Decisão Texto Integral: Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


RELATÓRIO


AA intentou, no Tribunal Judicial da Comarca de Porto de Mós, a presente acção com processo ordinário contra:
- Companhia de Seguros A…, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 117.400,00, acrescida de juros legais.
Alegou, para tanto, em resumo, que, no dia 4/8/2004, ocorreu um acidente de viação entre o veículo de matrícula 96-86-MJ e um velocípede em que seguia BB, filho do Autor; que o acidente se ficou a dever a culpa da condutora do veículo MJ, segurado na Ré, e dele veio a resultar a morte do BB, que era solteiro, sendo o Autor o seu universal herdeiro.
Contestou a Ré, alegando, também em resumo, que a condutora do MJ circulava com todo o cuidado e atenção ao trânsito, sendo certo que não seguia a mais de 45/50 km/hora; que o condutor do velocípede se atravessou inopinadamente à frente do MJ e a condutora deste nada pode fazer para evitar o embate; termina, por isso, pedindo a improcedência da acção.
O Hospital de Santo André, E.P.E., deduziu o incidente de intervenção principal espontânea, admitido por despacho de fls. 158 a 160, peticionando da Ré o pagamento da quantia de € 1.206,34, referente aos encargos com a assistência que prestou à vítima.
Após a legal tramitação, realizou-se a audiência de discussão e julgamento, sendo proferida sentença que, julgando a acção totalmente improcedente, absolveu a Ré dos pedidos.

Inconformado, o Autor interpôs recurso de Apelação daquela sentença para o Tribunal da Relação de Coimbra, tendo o mesmo sido julgado parcialmente procedente e, em consequência, revogada a sentença proferida e condenada a Ré a pagar ao Autor a quantia total de € 46.005,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Em face de tal decisão, tanto o Autor como a Ré Seguradora interpuseram recursos de Revista para este Supremo Tribunal, rematando as suas alegações com as seguintes:

CONCLUSÕES

Das alegações do Autor

1ª Atendendo aos factos provados referidos em 4 a 9, que se dão como reproduzidos, a condutora contribuiu para o acidente em razão do seu comportamento contravencional.

2ª Antes do local onde ocorreu o sinistro, e atento o sentido de marcha do veículo com a matrícula … existe, a 400 metros, o sinal com a placa de localidade de "Cabeceiras"; a 380 metros, o sinal de limite de velocidade de 50 km/h; a 164 metros, o sinal de cruzamento com via sem prioridade e a 70 metros, o sinal de proibição de ultrapassar, conforme consta dos factos provados do Douto Acórdão.

3ª Porém, apesar de existir inúmera sinalização que obrigava à redução de velocidade e ao facto da condutora conhecer o local, a mesma circulava a velocidade nunca inferior a 70 km/h, conforme consta no facto provado nº 23 do Douto Acórdão, ou seja, a velocidade objectivamente violadora do limite máximo previsto no art° 27º do CE, pelo que adoptou uma condução violadora das regras estradais, a qual foi causal do acidente.

4.a Aliás, se a condutora seguisse com atenção, atendendo à largura da via de 5,96 metros e ao facto de ser uma recta, com pelo menos 100 metros de visibilidade, teria visto a vítima, travado ou desviado para esquerda, que estava livre, ou, com toda a certeza, dominá-lo-ia mais rápida e facilmente, podendo evitar o acidente, ou. pelo menos, este teria tido muito menores repercussões do que aquelas que vieram a ocorrer, com uma vitima mortal.

5ª Com o devido respeito pelo Douto Acórdão recorrido, não se pode fundamentar, que a responsabilidade pelo sinistro também foi da vitima por não ter dado passagem ao MJ, porque quando a mesma inicia a travessia o MJ não era visto ao longo da sua faixa de rodagem, tendo aparecido repentinamente atendendo ao excesso de velocidade a que seguia, pelo que, a vítima não violou as regras estradais, nem qualquer outra regra.

6ª Aliás, a Recorrida não conseguiu provar que, mesmo que a condutora do MJ não seguisse com excesso de velocidade atropelava a vítima, pelo que não tendo sido feita essa prova dispensa-se a demonstração em concreto da culpa da vítima.

7ª Assim, tendo-se dado como provado os factos 4 a 9 do Douto Acórdão, os Venerandos Juízes Desembargadores deveriam julgar a condutora do MJ como única culpada no sinistro, a título de culpa efectiva, conforme tem sido entendido pela Doutrina e Jurisprudência Dominantes, como se exemplificou em 23.1 a 23.5 c se dá como reproduzido.

8ª Mas, se assim não fosse entendido, sempre se deveria concluir por uma repartição de culpas, pois, a entender-se que a vítima não tomou as devidas providências no atravessamento da via. o trágico acidente não se teria dado se não fosse a desatenção da condutora do MJ e o excesso de velocidade a que seguia a viatura, uma vez que poderia travar ou desviar-se para a esquerda, o que não fez e certamente o embate não teria pelo menos as consequências gravosas que teve.

9.aAssim, a entender-se que a condutora do veículo MJ não foi a única culpada pelo sinistro, deveria condenar-se em concorrência de culpas de 75% para a condutora do MJ e 25% para a vítima.

l0ª Dos factos provados do Douto Acórdão Recorrido consta que o Recorrente ficou chocado e psicologicamente afectado, sofrendo um grande desgosto, com a morte da vítima, já que eram muito amigos e nutriam amor e carinho mútuos.

11ª.Por outro lado, a vítima era uma pessoa saudável, alegre e bem disposta e tinha à data do óbito 17 anos de idade, pelo que tinha a vida pela frente.

12.a Para além disso, a vítima sofreu o acidente em 4/8/2004 às 18.15 horas e veio a falecer em 6/8/2004, pelas 6 horas, pelo que sobreviveu 36 horas ao acidente e teve muitas dores, o que causou muita angústia e sofrimento ao Recorrente.

13.a Com efeito, todo este circunstancialismo, dado como provado, é denunciador do profundo desgosto e tragédia que se abateu sobre o Recorrente e de que os seus danos morais são elevadíssimos.

14.a Por isso, com o devido respeito pela opinião em contrário, o montante fixado no Douto Acórdão Recorrido para os danos morais do Autor é irrisório e foi fixado em manifesta dissonância com as regras e princípios que subjazem ao critério de equidade e distante dos padrões normalmente aplicados.

15ª Assim, devem os danos morais sofridos pelo Recorrente ser fixados em 35000 euros.

16ª No Douto Acórdão Recorrido violou-se por erro de interpretação e de aplicação o disposto nos art°s 25.° als. c) e f), 27.°, 30.ü e 32.° nº 4 do CE, 21.° B2 do Regulamento de Sinalização de Trânsito (Dec. Reg. 22-A/98, de 1/10), 511.° nº 2 do CPC, 342.°, 349.°, 350.° 487.° n.° l, 496.° n.° l, 503." n." 3 e 570 n.° l do CC.

Das alegações da Ré

1. A matéria factual sub-judice não só revela que a condutora do veículo seguro na R. não foi a responsável pelo acidente descrito nos autos, como ainda que o acidente ficou a dever-se à condução imprudente e ilícita praticada pelo infeliz BB.
.
2. Da dinâmica que resultou provada nos autos resulta evidente que foi o infeliz BB que atravessou a via sem cuidado, sem verificar se, na via que pretendia atravessar, circulava algum veículo a que devesse prioridade, assim violando as mais elementares regras estradais, supra referidas.

3. Resulta também da matéria de facto dada como provada, que foi a infracção cometida pelo infeliz BB que deu origem ao acidente dos autos, já que, atenta a forma como se atravessou à frente do veículo seguro, quando este estava muito próximo, nada podia fazer a respectiva condutora para evitar o embate.

4. Assim sendo, como concluiu o Tribunal de l.a Instância "não se podendo concluir por um comportamento negligente da condutora do veículo seguro que tenha sido causa ou concausa do acidente ocorrido, o qual deve ser antes totalmente assacado ou imputado à conduta do BB, afastando-se assim a supra mencionada presunção de causalidade, a conclusão só pode ser a de não verificação da totalidade dos pressupostos da imputada responsabilidade relativamente à condutora do veículo MJ ",

5. Não obstante ser considerado que a violação das regras estradais faz presumir a negligência do seu autor, torna-se, porém, necessário que se prefigure a relação de causalidade adequada entre o facto contra-ordenacional e a ocorrência lesiva, para que se possa presumir que o acidente foi motivado por essa causalidade e de modo a daí se extrair a presunção de imputação de culpa ao agente, permitindo o funcionamento das normas dos art°s. 349.° a 351.° e 483.° do CC

6. Ao contrário do considerado Aresto em crise, a velocidade imprimida ao veículo seguro não contribuiu nem determinou, em termos de causalidade adequada, a ocorrência do acidente, que teria ocorrido na mesma, considerando que o veículo seguro estava muito próximo quando o infeliz BB se atravessou à sua frente.

7. O que da prova resulta é, repete-se, que foi o infeliz BB que violou manifestamente as regras estradais, acedendo e invadindo a Estrada Nacional nº 243, que pretendia atravessar, sem previamente verificar e certificar-se, como estava obrigada, que o podia fazer de forma segura, quer para si quer para os demais utentes da mesma. Deste modo, acabou por atravessar-se à frente do veículo MJ, cortando-lhe a sua natural trajectória, o que implica efectiva e concreta responsabilidade da vítima no embate ocorrido e nas gravosas consequências decorrentes deste.

8. Foi esta conduta contra-ordenacional do infeliz BB, e não outra, que deu origem ao acidente dos autos, já que, se o infeliz BB não tivesse atravessado a via, quando não tinha visibilidade, cortando a trajectória do veículo seguro, quando este estava muito próximo e, também, com a visibilidade reduzida, atenta a carrinha que na altura saia do cruzamento, nunca o acidente dos autos teria ocorrido.

9. A assim não se entender, o que por ora não se concede, sempre se dirá que, considerando a dinâmica do acidente, a parcela de responsabilidade imputada à condutora do veículo seguro terá que ser necessariamente inferior à atribuída ao infeliz BB, não se justificando a repartição da responsabilidade em parcelas iguais.

10. Note-se, designadamente, que foi a conduta do infeliz BB que desencadeou o processo causal conducente ao acidente, que violou um maior número de regras estradais e que tornou inevitável a sua ocorrência.

11. O dano morte, a lesão de um bem superior a todos os outros, pela sua natureza e extensão, é obviamente de muito difícil a quantificação dos danos dela decorrentes - quer para a própria vítima quer para os seus familiares -, não invejando o subscritor o trabalho de expressar em moeda tal perda.

12. Mas atendendo aos contornos do caso concreto, em especial, às circunstâncias em que aconteceu o acidente dos autos, e às decisões jurisprudenciais em casos semelhantes, considera a Recorrente que a quantia arbitrada deve ser reduzida.

13. Por último, sempre se dirá que o quantum indemnizatório atribuído a título de danos não patrimoniais deve ser, e foi, calculado equitativamente, nos termos do n.° 2 do art. 566.° do Código Civil.

14. Por se tratar de uma compensação alcançada pela via da equidade no momento mais recente que pode ser considerado pelo Tribunal, a indemnização atribuída a título de danos não patrimoniais foi, logicamente, actualizada.

15. Pelo que os juros moratórios sobre elas incidentes apenas são devidos a partir da data da sentença, como, aliás, esclareceu o Acórdão de uniformização de jurisprudência n° 4/2002, de 9 de Maio, publicado no D.R. de 27 de Junho: «Em matéria de cálculo da indemnização em dinheiro, o n.° 2 do art. 566° consagra da teoria da diferença, que define como a medida da "diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida peio tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos".

16. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou, entre outros, o disposto nos art°s 483.°, 496.°, 506.° e 566.° do Código Civil.

Foram apresentadas contra-alegações da Recorrida seguradora, pugnando pela manutenção do decidido mas, posteriormente, não pagou a taxa de justiça subsequente devida pelas referidas contra-alegações, informando de que, não pretende, afinal, contra-alegar, pelo que tal peça foi desentranhada e devolvida por ordem do Relator do processo, nos temos do nº 2 do artº 690º- B do CPC.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.

FUNDAMENTOS

Das instâncias, vem dada, como provada, a seguinte factualidade:

1° - No dia 4 de Agosto de 2004, pelas 18.15 horas, na Estrada Nacional n° 243, no cruzamento que dá acesso à Igreja 7° Dia, em frente à "Garrafeira …" em Cabeceiras de Cima, concelho de Porto de Mós, ocorreu um sinistro em que intervieram o veículo ligeiro com a matricula … e dois velocípedes;

2° - Um dos velocípedes pertencia a BB e era por este conduzido;

3° - O veículo de matrícula … seguia na Estrada Nacional n° 243 no sentido São Jorge / Porto de Mós;

4° - A largura da faixa de rodagem é de 5,96 metros;

- O sinistro ocorreu dentro da localidade, onde o limite de velocidade é de 50 km/hora;

6° - Como consequência do sinistro, BB sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas graves e vários ferimentos pelo corpo, as quais determinaram, de forma directa e necessária, a sua morte;

7° - Foi transportado ao Hospital Distrital de Leiria e depois transferido para o Centro Hospitalar de Coimbra, Hospital dos Covões, onde veio a falecer, no dia 6 de Agosto de 2004;

8° - BB nasceu em … de Maio de 19… e era filho de AA e CC;

9° - Por escritura de habilitação lavrada no dia 18 de Maio de 2005, no Cartório Notarial de Porto de Mós, exarada a folhas trinta e um verso e folhas trinta e dois do Livro de Notas para escrituras diversas 517-D, desse Cartório, AA, viúvo, declarou que lhe incumbe o cargo de cabeça de casal na herança de seu falecido filho, BB, o qual faleceu no dia …de Agosto de …, na freguesia de São Martinho do Bispo, concelho de Coimbra, no estado de solteiro, sem ter feito testamento ou qualquer disposição de última vontade, tendo deixado como único herdeiro seu pai, AA;

10° - O veículo de matrícula … pertencia à firma "S… Comércio de Bebidas, S.A.", que tinha transferido a responsabilidade civil emergente da sua circulação para a "Companhia de Seguros A..., S.A.", por acordo titulado pela apólice n° 90.00975556, até ao limite de 623.497,37 euros (seiscentos e vinte e três mil quatrocentos e noventa e sete euros e trinta e sete cêntimos);

11° - Por despacho datado de 24 de Maio de 2005, exarado no processo de inquérito n° 299/04.3 GBPMS, que correu os seus termos contra DD, nos Serviços do Ministério Público de Porto de Mós, foi determinado o arquivamento nos autos, ao abrigo do preceituado no artigo 277°, n° 2, do Código de Processo Penal.
Os referidos autos reportavam-se a um acidente de viação, ocorrido no dia 4 de Agosto de 2004, na Estrada Nacional n° 243, concelho de Porto de Mós, em que foi interveniente o veículo de matrícula …;

12° - Os velocípedes referidos em 1° circulavam no sentido Móveis Primavera/Tojal –> Igreja do 7° Dia;

13° - O velocípede conduzido por BB seguia mais à frente e à direita do outro velocípede;

14° - Os velocípedes pararam à entrada do cruzamento referido em 1°;

15° - Os velocípedes, atento o seu sentido de marcha, iniciaram a travessia da Estrada Nacional n° 243, que liga as localidades de São Jorge/Porto de Mós, e que quando o velocípede conduzido por BB Fino tinha já percorrido aproximadamente 3,74 metros da referida via, faltando-lhe percorrer aproximadamente 2,22 metros para completar a travessia, foi embatido pela frente esquerda (lado do condutor) do veículo de matrícula …;

16° - O embate ocorreu na hemi-faixa de rodagem do veículo de matrícula …, atento o seu sentido de marcha;

17° - Com o referido embate o BB, condutor de um dos velocípedes, foi projectado em frente, para o lado direito (atento o sentido de marcha do MJ), pela frente esquerda (lado do condutor) do veículo de matrícula …, a uma distância de aproximadamente 8,83 metros;

18° - O BB ficou imobilizado no local indicado em 17°, junto a um sinal STOP;

19° - Antes do local onde ocorreu o sinistro, e atento o sentido de marcha do veículo com a matrícula … existe, a 400 metros, o sinal com a placa de localidade de "Cabeceiras";

20° - .... a 380 metros, o sinal de limite de velocidade de 50 km/h;

21° -... a 164 metros, o sinal de cruzamento com via sem prioridade;

22° - ... e a 70 metros, o sinal de proibição de ultrapassar;

23° - A condutora do veículo com a matrícula … circulava a velocidade nunca inferior a 70 km/h;

24° - A condutora do MJ parou em frente aos Viveiros São Jorge, a distância não concretamente determinada do local de embate, mas de, pelo menos, 50 metros;

25° - Atento o sentido de marcha do veiculo de matrícula …, a estrada tem uma inclinação descendente;

26° - A condutora do veículo com a matricula … não se desviou para a esquerda, nem travou;

27° - A estrada onde ocorreu o sinistro, atento o sentido de marcha da viatura com a matrícula …, tem uma visibilidade nunca inferior a 100 metros;

28° - Previamente à ocorrência do embate referenciado em 1° a condutora do veículo com a matrícula MJ cumprimentou os ocupantes de um veículo com que se cruzava;

29° - Na data referenciada em 1° o BB encontrava-se matriculado, por referência ao ano lectivo de 2004/05, no 10° ano do Instituto Educativo do Juncal, tendo frequentado o ano lectivo de 2003/04, até ao seu final, sem aproveitamento;

30° - O BB era uma pessoa saudável, alegre e bem disposta;

31° - Com a morte do BB, o Autor ficou chocado e psicologicamente afectado, sofrendo um grande desgosto, já que eram muito amigos e nutriam amor e carinho mútuos;

32° - O BB sofreu muitas dores;

33° - Com o funeral do BB despendeu o Autor a quantia de 1610 Euros (mil seiscentos e dez euros);

34° - Em flores para o funeral e no luto despendeu o Autor a quantia de 400 Euros (quatrocentos euros);

35° - O descrito sinistro provocou, pelo menos, estragos na roupa e sapatos que o BB na altura usava;

36° - Tais bens têm valor não concretamente apurado;

37° - Aquando do sinistro a proprietária do veículo MJ, identificada em 10°, mantinha-o às suas ordens, proporcionando a sua utilização à sua funcionária DD, de forma a esta desempenhar eficazmente as suas funções profissionais;

38° - Quando o veículo MJ se aproximava do cruzamento mencionado em 1°, do seu lado esquerdo e da rua que dá acesso aos Móveis Primavera/Tojal, saiu uma carrinha, a qual, virando à sua direita, acedeu à Estrada Nacional n° 243, iniciando a circulação no sentido Porto de Mós/São Jorge, oposto àquele em que circulava o MJ;

39° - A referida carrinha obstruiu por momentos a visão da condutora da viatura com a matrícula … para o lado esquerdo, atento o seu sentido de marcha;

40° - E obstruiu também a visão dos condutores dos velocípedes quanto aos veículos que circulavam na estrada nacional, e que se aproximavam pela sua direita;

41° - Logo de seguida a condutora do MJ é surpreendida pela travessia de dois velocípedes, que provinham da rua dos Móveis Primavera/Tojal, e que a haviam iniciado (a travessia) logo após aquela carrinha ter descrito a manobra referenciada em 38°;

42° - Os condutores dos velocípedes iniciaram a travessia da Estrada Nacional n° 243, circulando no sentido referenciado em 12°, sem antes verificarem, pelo menos, se naquele momento circulavam veículos na via que pretendiam atravessar, no sentido São Jorge/Porto de Mós (apresentando-se à sua direita);

43° - Os velocípedes atravessaram-se à frente do veículo de matrícula …, cortando a trajectória seguida por este, quando se encontrava já muito próximo;

44° - A condutora do veículo com a matrícula … não teve tempo de travar a sua viatura;

45° - No dia 4 de Agosto de 2004, o Hospital de Santo André, EPE, diligenciou pelo transporte de BB, no que gastou o valor de € 99,24;

46° - No dia 04 de Agosto de 2004, o Hospital de Santo André, EPE, prestou assistência a BB, aplicando-lhe:
a) Ventilação mecânica, no que gastou € l .031,90;
b) Algaliação, no que gastou € 38,80;
c) Oxigenoterapia, no que gastou € 25,70;
d) Soroterapia, no que gastou € 10,70.

Recurso do Autor

A 1ª Instância havia atribuído a totalidade da responsabilidade, do acidente de que tratam os autos, à malograda vítima, filho do ora Autor, em face da factualidade provada.
A 2ª Instância, analisando mais detalhadamente a factualidade fixada, decidiu que também a condutora do veículo segurado na ora Ré Cª de Seguros A..., SA, era culpada pelo referido acidente, tecendo as seguintes considerações que, pela sua pertinência, convirá aqui recordar:

«Já vimos que a condutora do MJ circulava a velocidade nunca inferior a 70 km/hora, num local onde a velocidade máxima permitida é de 50 km/hora (vide itens 20º e 23º). E que se aproximava de um cruzamento de onde pouco antes acedeu à Estrada Nacional nº 243 uma carrinha, conduzida pela testemunha EE, pai do FF, também acidentado.
Uma condução prudente aconselhava a que a condutora do MJ reduzisse a velocidade naquele local. Se o fizesse, como, aliás, lhe era legalmente imposto, o acidente podia ter sido evitado ou, ainda que o não pudesse ser, as suas consequências seriam certamente bem menos gravosas.
Atente-se no facto de a condutora do MJ não ter sequer travado aquele veículo antes do embate e de ter projectado o infeliz BB a uma distância aproximada de 8,83 metros (item 17º). Além de que a condutora do MJ tinha espaço à sua direita para tentar uma manobra de recurso, o que nem sequer esboçou.
Se a velocidade a que a condutora do MJ circulava não fosse tão elevada, podia ter alguma reacção perante o surgimento dos ciclistas à sua frente, travando ou tentando desviar-se. O embate poderia ainda assim ter-se dado, mas estamos certos de que com outros resultados.
Dúvidas não restam, pois, de que a conduta da condutora do MJ, segurado na Ré, é causal do acidente.
Aliás, como se reconheceu na sentença recorrida, relativamente à verificação do pressuposto culpa, tem sido entendimento dos nossos tribunais superiores que “a inobservância de leis e regulamentos, designadamente das normas de perigo abstracto, como são as de direito estradal, faz presumir a culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando-se, assim, a prova da falta de diligência” (vide, por todos, o Ac. do S.T.J. de 20/11/03, C.J., S.T.J., 2003, 3º, 149). Tal orientação jurisprudencial tem alargado o âmbito da presunção da culpa também ao nexo de causalidade, restritivamente embora às consequências típicas e normais do facto, ou seja àquelas que respeitam aos fins para cuja protecção a norma foi criada».
De igual sorte, também a desditosa vítima teve responsabilidade no processo causal do acidente que o vitimou, pois como decidiu o aresto em referência, tal como, de resto, já fora decidido pela 1ª Instância «a conduta do BB contribuiu inegavelmente para a eclosão do acidente, como bem considerou a sentença recorrida. Na verdade, ao chegar ao cruzamento a que alude o item 1º dos factos, e pretendendo atravessar a Estrada Nacional nº 243, tinha ele obrigação de cedência de passagem aos veículos que transitavam na Estrada Nacional nº 243, o que acontecia com o veículo ligeiro de matrícula MJ, seguro na Ré, que se apresentava a circular pela sua direita. Ainda que assim não fosse, sempre o BB teria de ceder a passagem ao MJ, atenta a natureza do veículo em que seguia.
E não bastava ao BB ter parado no cruzamento, o que de resto lhe era imposto pelo sinal Stop existente no local. Além de parar, estava obrigado a ceder a passagem aos veículos automóveis que circulassem na referida estrada, designadamente ao MJ.
A culpa do infeliz BB na eclosão do acidente é, pois, incontornável, já que não fora a sua atitude de atravessar a Estrada Nacional nº 243, sem curar de averiguar se nela circulava algum veículo a quem tinha a obrigação de ceder a passagem, o acidente não ocorreria».
Sendo assim, a Relação constatou que, em face da factualidade provada, emerge um concurso de culpas (da condutora do automóvel interveniente no acidente e do malogrado BB Fino) que, não permitindo uma distribuição percentual mais exacta da culpa, por carência de elementos de facto para tanto, foi fixada, de harmonia com o disposto no artº 506º, nº 2 do C.Civil, em 50% para cada um dos intervenientes, isto é, metade para a condutora do veículo e metade para o malogrado BB.
A culpa, no sentido amplo ou lato do conceito, é o juízo de reprovação que a ordem jurídica faz incidir sobre um agente por não se ter pautado de acordo com o Direito, quando podia e devia ter agido ( por acção ou por omissão) de outro modo.
Enquanto a ilicitude é um juízo de desvalor que incide sobre a conduta do agente, qualificando-a como contrária à norma jurídica ( ilicitude formal) ou violadora de bens e interesses tutelados pela ordem jurídica (ilicitude material), a culpa é um juízo de censura que incide sobre o agente que praticou a conduta ilícita ( juízo de reprovação pessoal) e, em Direito Civil, assume as formas de dolo e negligência.
Note-se que actualmente, em Direito Penal, desde os estudos de Hans Welzel, que, como é sabido, foi o mentor da Escola Finalista (1) e, posteriormente, de Karl Engish (2) que foi lídimo representante do normativismo, o dolo e a negligência deixaram de ser considerados, pela maioritária faixa da dogmática penal contemporânea, como elementos ou forma de culpa como eram considerados desde os tempos da concepção psicológica da culpa e mesmo na concepção normativa, para passarem a integrar o tipo de ilícito, como elementos subjectivos do mesmo.
Este giro dogmático do dolo e da negligência, de elementos ou formas da culpa para elementos subjectivos do tipo, não foi acompanhado pela doutrina civilista, que os perspectivam ainda como formas de imputação subjectiva do acto ao agente.
Sendo assim, o conceito jurídico civil de culpa, que se desdobra nas modalidades de dolo e negligência, continua a ser um conceito de base eminentemente psicológica, embora moldado pelo Direito, isto é, normativizado, que é definido como «o nexo de imputação ético-jurídica que liga o facto à vontade do agente e que envolve um complexo juízo de censura ou de reprovação sobre o agente ou devedor» ( A. Varela, Das Obrigações em Geral, ed. 1º– 456).
Retornando ao caso sub-judicio, diremos que não merece censura esta decisão do Tribunal da Relação, pois, como resulta do acervo factual fixado definitivamente pelas Instâncias e das considerações em matéria de facto sobre o processo causal do acidente, atrás transcritas, e ainda sobre o juízo de reprovação da conduta dos protagonistas, formulado pela 2ª Instância, é patente que o acidente a que se referem os autos foi causado pela concorrência das condutas descuidadas de ambos os referidos intervenientes, o que coenvolve a culpa de ambos, em concurso.
Deste modo, haverá que ter em atenção o disposto no artº 570º, nº 1 do Código Civil que estatui que «quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída».
No caso vertente, constata-se que ambos os condutores concorreram para a produção do evento danoso, sendo que pela gravidade das respectivas condutas não se tornou possível discernir qual delas criou maior risco.
Desta sorte, há que lançar mão ao mecanismo legal da repartição de culpas em casos idênticos, que é o previsto no nº 2 do artº 506º do C.Civil, isto é, considerar-se igual a contribuição da culpa de cada um dos condutores, tal como bem andou a Relação ao proceder à repartição das culpas em 50% para cada um dos condutores dos 2 veículos intervenientes no acidente.
Neste sentido, podem indicar-se os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 14-12-2006 (Relator, o Exmº Conselheiro Bettencourt Faria) e de 26-06-2008 (Relator, Exmª Conselheiro Salvador da Costa) ambos disponíveis em www.dgsi.pt ( Pºs 06B2380 e 08B1832, respectivamente).

Relativamente ao montante indemnizatório, por danos não patrimoniais, que foi atribuído pela Relação ao ora Recorrente, pela perda do seu filho BB, no valor de € 17.500, 00, não obstante o ora recorrente ter impetrado a quantia de € 35.000,00 a este título, o único facto que vem provado, relativamente a tais danos, é do seguinte teor:
«31° - Com a morte do BB, o Autor ficou chocado e psicologicamente afectado, sofrendo um grande desgosto, já que eram muito amigos e nutriam amor e carinho mútuos;».

Tão escassa factualidade não autoriza qualquer alteração do que foi decidido, uma vez que é insuficiente para caracterizar com maior precisão os danos não patrimoniais que possam ter surgido como consequência da morte do filho do Autor/Recorrente, para além do que já se mostra decidido pela 2ª Instância.
Como é consabido, a indemnização por danos não patrimoniais, que assume um carácter compensatório e não ressarcitório, visa, de certa maneira, compensar o dano sofrido, mediante satisfações derivadas da utilização da massa pecuniária atribuída, «em virtude da aptidão do dinheiro para propiciar a realização de uma ampla gama de interesses, até mesmo interesses de ordem ideal» ( Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., 115).
Para tanto, porém, cabe ao autor o ónus de alegação e de prova da factualidade integradora dos danos concretos verificados, de forma tão precisa quanto possível, que permitam ao julgador apreciar, «em cada caso concreto, se tais danos são merecedores da tutela do direito, isto é, de ser indemnizados, reparados ou compensados» (Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, 113º-95).
Com efeito, manda o nº 1 do artº 496º do CCivil que na fixação da indemnização deva atender-se aos danos patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Ora tal apreciação só é possível, desde que assente em factualidade pertinente!
A Relação considerou o único facto provado quanto ao dano não patrimonial sofrido pelo Autor, ora Recorrente, tal como analisou com o merecido detalhe e judiciosas considerações toda a dinâmica do acidente, antes de se pronunciar sobre o quantum indemnizatório!
Não se verifica, no presente caso, em face da matéria de facto provada, razão que aponte no sentido de ser fixada quantia superior àquela que foi fixada pela 2ª Instância.
Assim sendo, claudicam as conclusões da alegação do Recorrente no que concerne às questões acabadas de tratar (culpa da condutora do veículo automóvel, concorrência de culpas e danos não patrimoniais do ora recorrente pela morte do seu filho, com o consequente montante compensatório) , pelo que improcede o recurso interposto.

Recurso da Ré

O Recurso da Ré seguradora, versa basicamente sobre três questões que se equacionam da seguinte forma:

a) Responsabilidade exclusiva da vítima, BB (condutor do velocípede).
b) Excesso da quantia que a Recorrente foi condenada a pagar a título de danos não patrimoniais ( dano morte).
c) Discordância quanto ao pagamento dos juros de mora a partir da data da citação.

No que tange à primeira questão, tudo o que acima ficou plasmado sobre a concorrência de culpas no falado acidente em que perdeu a vida o malogrado BB, é inteiramente aplicável à apreciação do presente recurso, com as devidas adaptações.
Ficou devidamente recortada, em face da factualidade provada, a responsabilidade da condutora do veículo, responsabilidade que havia sido transferida para a ora Ré mediante o contrato de seguro identificado nos autos, pelo que basta a simples leitura da transcrita passagem do Acórdão recorrido para, mediante o cotejo com a factualidade provada, se aquilatar da bondade do decidido.
Por outro lado, apesar de a Recorrente tecer longas considerações sobre a dinâmica do acidente ocorrido, a verdade é que não logra infirmar o quanto decidiu a Relação em face da matéria factual provada, mas também as conclusões e ilações de facto extraídas pela 2ª Instância e que são, como é consabido, insindicáveis por este Tribunal de Revista.
Quanto a esta questão, não tem razão a Recorrente!

Relativamente ao pretenso excesso do montante pecuniário arbitrado pela Relação no que concerne aos danos de natureza não patrimonial, designadamente pela perda da Vida, nenhum excesso se nos antolha, como atrás se deixou lautamente considerado, não logrando a recorrente demonstrar tal excesso, quedando-se na afirmação indemonstrada de que as decisões jurisprudenciais em casos semelhantes têm fixado quantias na ordem dos € 50 000,00 ( cinquenta mil euros).
Ora a Recorrente não logra demonstrar a alegada semelhança dos casos, pois nem sequer indica a que arestos se arrima para fundamentar tal asserção.
A Relação, depois de referir que a jurisprudência mais recente tem vindo a aproximar-se dos € 50 000,00, para a indemnização pela supressão da Vida, o mais precioso dos bens do Homem, e de considerar que também aquele Tribunal, em várias decisões, tem vindo a aproximar-se de tal valor, entendeu que sendo a vítima ainda jovem ( contava somente 17 anos de idade), era saudável, alegre e bem disposto, arbitrou a quantia de € 65 000,00 para a compensação por tal dano, o que não merece censura, até porque, como tem decidido este Supremo Tribunal, não se pode permanecer cristalizado em matéria de quantum indemnizatório, limitando-se aos montantes fixados por decisões anteriores, quando é certo que nos países da União Europeia tais montantes são claramente superiores aos tradicionalmente fixados entre nós.
Como se decidiu, já há quase 10 anos, no Acórdão da Relação de Coimbra de 14 de Junho de 2000, « a compensação indemnizatória dos danos (não patrimoniais) maxime a perda da vida deve ser significativa e aproximar-se dos padrões europeus em que estamos inseridos, como já acontece, aliás, com os prémios exigidos pelas seguradoras» ( C. Jur. 2000, T III, 56).
Este entendimento mereceu o acolhimento do Supremo Tribunal de Justiça, no seu Acórdão de 4-12-2002 ( Relator, o Exmº Conselheiro Franco de Sá).
Convém também, aqui e agora, recordar também o que se escreveu no muito mais recente Acórdão deste Supremo Tribunal, de 20.11. 03 (3) de que foi Relator o Exmº Conselheiro Santos Bernardino, que no presente caso intervem como 1º Adjunto.
No referido aresto, ponderou-se que «sendo certo que nestes casos a indemnização não visa propriamente ressarcir, tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido, não é menos verdade que tal compensação deve ser significativa e não meramente simbólica. A prática deste Supremo Tribunal acentua cada vez mais a ideia de que está ultrapassada a época das indemnizações miserabilistas para compensar danos não patrimoniais», acrescentando, porém, que «importa sublinhar que indemnização significativa não quer dizer indemnização arbitrária».
O acórdão recorrido debruçou-se, de forma bem fundamentada, sobre todos os factores que devem relevar na apreciação e decisão desta questão, pontificando a grande juventude da vítima, o seu feitio e devendo ter-se em conta também que era estudante do 10º ano do Instituto Educativo do Juncal, como claramente resultou provado, de acordo com o facto 29º:
29° - Na data referenciada em 1° o BB encontrava-se matriculado, por referência ao ano lectivo de 2004/05, no 10° ano do Instituto Educativo do Juncal, tendo frequentado o ano lectivo de 2003/04, até ao seu final, sem aproveitamento;

Não se vislumbram, assim, razões válidas para se reduzir o montante fixado nos termos referidos.

Finalmente, relativamente à questão do cômputo dos juros moratórios, que a Recorrente colocou no presente recurso, a questão já não é tão linear!
Com efeito, a Relação havia considerado que os juros moratórios são devidos, sobre a quantia pela qual é responsável a Ré seguradora ( que é de 50% do montante global de € 92.010,00, ou seja, de € 46.005,00, dado que tal foi a repartição efectuada na concorrência das responsabilidades, como se viu), desde a citação até integral pagamento.
A Recorrente esgrime, inter alia, o argumento de que « por se tratar de uma compensação alcançada pela via da equidade no momento mais recente que pode ser considerado pelo Tribunal, a indemnização atribuída a título de danos não patrimoniais foi, logicamente, actualizada.
Pelo que os juros moratórios sobre elas incidentes são devidos a partir da data do acórdão do Tribunal da Relação».
Observa o Recorrido na dita peça recursória, que não há, in casu, que lançar mão do Acórdão Uniformizador nº 4/2002, deste Supremo Tribunal, porquanto tal aresto definiu que a doutrina nele fixada tem lugar «sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº 2 do artº 566º do C. Civil...», o que não foi o caso, como se acabou de dizer.
Finalmente, importa ter em consideração que, segundo parte da jurisprudência, como também mereceu o devido enfoque do Recorrido, os juros legais se contam desde a citação, como se pode ver, entre outros, no Acórdão da Relação de Évora de 15.01.1998, onde se sentenciou:
« Mesmo na indemnização por danos não patrimoniais, são devidos juros de mora desde a citação, a menos que resulte expressamente da sentença a actualização com referência à data da mesma, da quantia arbitrada a título daqueles danos» ( BMJ, 473º-581).
Também no acórdão deste Supremo Tribunal de 9-12-1993 se sentenciou que os juros moratórios são devidos a partir da sentença da 1ª Instância, quando nesta se procedeu a correcção monetária (CJ/STJ, 1993, 3º-174), sendo nosso o sublinhado.
Por último, é verdade que o próprio Acórdão Uniformizador 4/2002, como se disse atrás, estabeleceu jurisprudência no sentido de que os juros moratórios são contados a partir da decisão actualizadora e não da citação, sempre que tal indemnização pecuniária tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº 2 do artº 566º do C. Civil.
Todavia, não se pode olvidar que este mesmo Supremo Tribunal, no Acórdão de 30-10-2008, relatado pelo Exmº Juiz Conselheiro Bettencourt de Faria, que neste recurso intervem como Adjunto, sentenciou no sentido de que «se o montante de uma indemnização for determinado através da equidade tem de se entender que esse quantitativo está actualizado» (Pº 08B2662, disponível em www.dgsi.pt).
No referido aresto ponderou-se que «Um quantia fixada segundo a equidade, é-o atendendo aos padrões actuais de justiça do julgador. Deste modo, ainda que nada se diga, há que entender que tal montante é fixado de forma actualizada».
Na verdade, a aplicação do critério da equidade é efectuada no momento da prolação da sentença, o que vale dizer que as operações mentais que traduzem a aplicação de tal critério se estribam na mundividência (Weltanschauung, da doutrina germânica) do julgador naquele momento concreto, perante o quadro de valores e referências que se lhe depara para sentenciar «ex aequo et bono», norteado pelos vectores referidos no nº 3 do artº 493º do Código Civil.
Deste modo, afigura-se-nos mais consentâneo com a realidade, que, sendo a aplicação do critério da equidade operado na sentença condenatória, salvo se a mesma referir expressamente que não procedeu à actualização de tal montante em relação ao peticionado, é de seguir o entendimento plasmado no Acórdão deste STJ de 30-10-2008, segundo o qual « ainda que nada se diga, há que entender que tal montante é fixado de forma actualizada», pelo que os juros moratórios relativos ao montante indemnizatório atribuído pelos danos não patrimoniais, seriam computados a partir da sentença, por nessa se presumir efectuado o cálculo actualizado nos termos do nº 2 do artº 566º do C. Civil.
Simplesmente, a sentença da 1ª Instância foi absolutória, só havendo condenação em compensação por danos não patrimoniais na 2ª Instância, pois apenas no acórdão proferido pela Relação foi arbitrada tal indemnização e efectuada, com base na equidade, a fixação do respectivo montante.
Assim sendo, terá de ser a partir da prolação de tal acórdão da Relação, que se vencerão juros moratórios sobre os montantes fixados relativamente aos danos não patrimoniais.

DECISÃO

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em negar a Revista, relativamente ao recurso do Autor e conceder parcialmente a Revista relativamente ao recurso da Ré seguradora, alterando o decidido pela Relação no acórdão recorrido, apenas no sentido de que os juros de mora pela indemnização por danos não patrimoniais, serão computados a partir da data do Acórdão da Relação e não da citação, mantendo-se em tudo o mais, a decisão recorrida.

Custas do Recurso do Autor, pelo Recorrente, por força da sua sucumbência.
As Custas do Recurso da Ré serão pagas na proporção de 2/3 pela Ré/Recorrente e 1/3 pelo Autor.

Processado e revisto pelo Relator.

Lisboa, 8 de Abril de 2010

Cons. Álvaro Rodrigues (Relator)
Cons. Santos Bernardino
Cons. Bettencourt de Faria

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1- HANS WELZEL, Das deutsche Strafrecht e os seus Studien zum Systems des Strafrechts e toda a restante obra welzeliana em que o grande Mestre de Bona procurou sustentar o conceito de acção, como supradeterminação final de um processo causal.
2- KARL ENGISH, Untersuchungen über Vorsatz und Fahrlässigkeit im Strafrecht, datado de 1930, com reimpressão em 1964.
3- Disponível em www.dgsi.pt.