Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19096/19.5T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
OMISSÃO DE ASSISTÊNCIA
LEGES ARTIS
DEVER DE VIGILÂNCIA
CULPA IN VIGILANDO
NEXO DE CAUSALIDADE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
ATIVIDADES PERIGOSAS
PERDA DE CHANCE
SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
I. Tendo-se verificado uma obstrução das vias respiratórias de um menor de 20 meses de idade, quando na creche que aquele frequentava lhe deram um pedaço de banana para comer, incidia sobre as funcionárias dessa creche que na altura se encontrassem presentes, o dever de prestar assistência ao menor de acordo com as regras técnicas recomendadas para este tipo de situações, designadamente o recurso urgente a uma intervenção médica.

II. As Rés, perante a gravidade da ocorrência e a urgência de uma intervenção médica, desde o início que não souberam e tinham obrigação de saber, pelas funções que desempenhavam, articular-se, de modo a que, sem prejuízo de procederem às manobras físicas recomendadas, enquanto o menor esteve consciente, acionarem de imediato o contacto com o INEM e com o Centro de Saúde que se encontrava muito próximo da creche, de modo a tentarem obter, no mais curto período de tempo possível, uma intervenção médica.

III. Estamos perante uma situação em que, apesar de se verificar uma probabilidade significativa da hipótese do cumprimento do dever omitido não evitar o dano ocorrido, o incumprimento das leges artis pelas Rés agravou o risco de verificação do resultado ocorrido, não sendo por isso legítimo concluir pela total inexistência de um nexo de causalidade entre o ato ilícito e o dano.

IV. Ocorre antes um caso em que o risco que a exigência do dever inobservado pretendia prevenir é agravado pelo incumprimento desse dever, pelo que não deixa de existir um nexo causal, embora atenuado, entre o ilícito e o dano constituído por esse agravamento, o qual diminuiu as possibilidades de o dano em causa ser evitado.

V. Nestas situações, em que o nexo causal assume esta peculiar configuração, o princípio constitucional da reparação dos danos injustificados, por um lado, e a ideia de uma justiça comutativa, por outro, devem-nos impedir de obter uma conclusão sobre o dever de indemnizar que resulte num “tudo ou nada”, sendo antes desejável uma solução que concilie aqueles dois princípios, optando-se por uma indemnização que procure obter uma reparação na medida do agravamento do risco de dano resultante do incumprimento do dever inobservado, aceitando-se uma “causalidade possível”, com a correspondente responsabilidade proporcional, num direito da responsabilidade civil perspetivado como um sistema móvel, em que, no caso, o insustentável peso da gravidade do dano exige menor exigência na consistência da textura do nexo causal.

VI. Neste caso, justifica-se a atribuição de uma indemnização, a cargo dos inadimplentes desse dever, em valor correspondente ao agravamento do risco causado, reduzindo-se o valor indemnizatório, nos termos permitidos pelo artigo 494.º do Código Civil.

Decisão Texto Integral:
Autores: AA

                 BB

Rés: Associação Humanidades

         CC

         DD

         EE

         FF

Interveniente principal: Seguradoras Unidas, S.A.

                                             

                                               *

I – Relatório

Os Autores propuseram uma ação declarativa, sob a forma comum, pedindo a condenação solidária das Rés a pagarem-lhes, após ampliação deduzida e admitida na audiência de julgamento, as seguintes quantias:

- € 30.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelo filho dos AA., GG;

- € 80.000,00, a título de indemnização pelo dano morte sofrido pelo mesmo GG;

- € 30.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos e futuros da Autora, AA;

- € 30.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos e futuros do Autor BB;

- juros legais, desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Alegam, para tanto e, em síntese, o seguinte:

- que são os progenitores de GG, nascido em .../.../2015, o qual em 26.09.2016 frequentava o estabelecimento de creche dirigido pela 1.ª Ré, sito no Parque da Saúde em ..., destinado a crianças entre os 4 meses e os três anos de idade;

-  que em 26.9.2016 e na referida creche, a 2.ª Ré, CC, era educadora daquele filho dos Autores, e a 3.ª Ré, DD, era auxiliar de educadora de infância na mesma sala, exercendo a 4.ª Ré, EE, as funções de coordenadora e responsável da indicada creche e a 5.ª Ré, FF, as de vice-presidente do conselho de administração da 1ª Ré, encarregue dos assuntos de administração e gestão do estabelecimento, superior hierárquica das 2.ª, 3.ª e 4.ª Rés.

- que na referida data de 26.9.2016, e não mais tarde que as 10h10m, o referido GG engasgou-se com um pedaço de banana que lhe estava a ser dado durante o lanche da manhã, quando se encontrava apenas na companhia de outras cinco crianças da mesma sala e da 3.ª Ré, tendo-lhe esta, e depois a 2.ª Ré, aplicado manobras de socorro insuficientes e sem qualquer sucesso, em lugar de solicitarem auxílio médico, pelo menos ao fim do primeiro minuto daquelas manobras, como seria mister, havendo, aliás, profissionais de saúde nas imediações (a creche situa-se no Parque da Saúde de ..., antes conhecido por Hospital 1), retardando assim a adoção de procedimentos adequados a preservar a sua saúde e a própria vida;

- que a 4.ª Ré apenas pelas 10h22m01s estabeleceu contacto telefónico com o INEM e que só pelas 10h24m começou a praticar manobras de suporte básico de vida, segundo as instruções que lhe eram transmitidas pelo atendedor do INEM, as quais se destinavam a manter a função cardíaca da criança e não a restabelecer a função respiratória, o que só ocorreu com a chegada da equipa do INEM, pelas 10h32m, que procedeu à desobstrução das vias aéreas e, depois, à reanimação do menor GG;

- que o filho dos Autores foi encaminhado para o hospital 2, onde recebeu os tratamentos médicos adequados à sua situação clínica, mas veio a falecer no dia 28.9.2016, sendo a causa da morte encefalopatia hipóxica-isquémica, na sequência de asfixia por obstrução intrínseca das vias aéreas - engasgamento com banana.

- que o processo causal adequado que levou à morte do seu filho é imputável às Rés que não agiram com a diligência devida naquelas circunstâncias, quer porque as crianças foram deixadas, durante a refeição, apenas sob a vigilância de uma pessoa, quer porque prolongaram inutilmente as manobras de socorro, desadequadas, sem recorrer, de forma pronta, ao INEM ou ao apoio médico existente nas imediações.

Contestaram as Rés, impugnando a factualidade alegada e sustentando que tudo fizeram para socorrer o filho dos Autores, de acordo com as capacidades e conhecimentos que lhes eram exigíveis, e que agiram com a prontidão devida, pelo que não existe nexo de causalidade entre a atuação das Rés e a morte do menor GG.

Requereram a intervenção principal provocada de Seguradoras Unidas, S.A., para quem a 1.ª Ré havia transferido a responsabilidade pelos acidentes ocorridos no exercício da respetiva atividade.

Concluíram pela improcedência da causa.

Admitida a intervenção, contestou a chamada, impugnando a factualidade alegada, mais defendendo que, sendo o capital seguro de € 25.000,00, a cobertura do dano morte é de € 1.000,00, por pessoa segura.

Mais alegou que, sendo o evento puramente acidental e não se demonstrando a responsabilidade da 1ª Ré e do seu corpo docente, de empregados e outras pessoas ao seu serviço, na sua produção, nenhuma outra quantia é devida pela Seguradora, além do pagamento dos referidos € 1.000,00.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi, em 06.8.2021, proferida sentença nos seguintes termos: (...) julgo parcialmente procedente a presente ação e, em consequência:

A - absolvo as Rés "Associação Humanidades", CC, DD, EE e FF, do pedido de condenação solidária no pagamento aos Autores das quantias de 30.000,00, 80.000,00, 30.000,00 e 30000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo menor GG e pelos Autores;

B - condeno a interveniente "Generalis Seguros, S.A." no pagamento aos Autores da quantia de 1.000,00, acrescida de juros legais de mora, vencidos e vincendos, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Os Autores interpuseram recurso desta decisão para o Tribunal da Relação, tendo sido proferido acórdão que julgou improcedente a apelação, tendo confirmado a sentença recorrida.

Os Autores interpuseram recurso de revista normal e, subsidiariamente, recurso de revista excecional.

O recurso de revista normal não foi admitido, tendo sido, contudo, admitido o recurso de revista excecional.

Os Autores concluíram as suas alegações do seguinte modo:

(...)

c. quando uma actividade (categoria) implica múltiplas sub-actividades, (espécies) momentos, acções (sub-espécies), como é o caso da actividade de infantário, ou creche ou jardim de infância até aos 3 anos de idade, mesmo entendendo que nem todas as sub-actividades se podem qualificar de perigosas, seguramente que o são, pelos menos, aquelas que consistem em proporcionar refeições ou brincar com objectos pequenos pois que segundo o INEM,  ciência e os dados estatísticos, a maioria das situações de Obstrução de Via Aérea nas crianças ocorre durante a alimentação ou quando as crianças estão a brincar com objectos de pequena dimensão;

d. se uma actividade considerada na sua generalidade implica diversos actos, aportando distintos riscos, a perigosidade deve se determinada na análise atomística das sub-actividades que implica sob pena de se essa qualificação não resultar de uma verdadeira análise concreta, pelo que apenas é possível bem aplicar a lei (artigo 493/2 do CC) “descendo, na árvore taxonómica, à sub-espécie mais cerca da concreta (sub)actividade a que se imputa ou se relaciona, especialmente, com uma perigosidade suscetível de causar dano a outRém;

e. o grau de concretude da actividade a que é necessário descer para aquilatar da sua (não)perigosidade há-de ser, necessariamente, aquele conjunto de sub-actividades ou tarefas levadas a cabo e/ou necessárias levar a cabo nas idênticas circunstâncias em que ocorreu o dano, pois é nesse confronto que se pode avaliar a perigosidade da actividade no decurso da qual esse dano se verificou; por outro lado, essa possível perigosidade há-de coincidir, também, com um maior número de ocorrências danosas, estatisticamente conhecido;

f) as elevadas exigências de vigilância impostas a quem exerce actividade creches de menores de 3 anos e a quem nelas presta actividade com e junto dessas crianças são, precisamente, porque essas actividades encerram um acréscimo de perigo e de perigo grave, ergo, devem ser qualificadas como perigosas;

g. decorrente desta qualificação - que este Venerando Tribunal ad quem deve consagrar in casu - incumbia e incumbe à 1.ª R. e demais R.R. alegar e provar que empregaram todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos causados a outrem - ao GG e seus progenitores ora revidentes - no exercício de uma actividade perigosa, ónus esses que não preencheram, como se determina no art. 493/2 do C.C., pelo que, à míngua da prova de tais factos, determina o direito invocado que as R.R. respondam solidariamente pelos danos decorrentes da sua conduta omissiva do preenchimento de tal ónus e cuja reparação é peticionada;

h. também por via da aplicação do art. 491 do C.C. - que estabelece uma presunção de culpa das pessoas obrigadas, por lei ou negócio jurídico, a vigiar outras e apurando-se que um incapaz sujeito a tal obrigação sofreu danos, cabe à pessoa obrigada à vigilância o ónus de demonstrar que não houve omissão daquele dever ou que, mesmo que cumprido, os danos se teriam igualmente verificado - se alcança a mesma conclusão, a saber, um especialmente elevado grau de exigência do cumprimento do dever de vigilância sobre menor de idade, com cerca de 18 meses, por modo a, em última linha, prevenir as consequências de um engasgamento com um pedaço de banana;

i. em resultado da singela audição cronometrada da gravação da chamada telefónica da 4.ª R. com o INEM (doc. 4 da p.i.) deve ser alterado o julgamento do facto 36 e do facto não provado da alínea i), naquele se consignando que quando o INEM atendeu… o GG …não estava a receber manobras de suporte básico de vida e quanto a este se deve passar a julgar provado que apenas às 10h:24’:18’’ a R. Iniciou manobras de suporte básico de vida ao menor GG;

j. o julgamento dos factos contidos nas sub-epigrafadas alíneas k), l) e n), deve, perante a adequada ponderação e valoração do depoimento da enfermeira HH (a 0:39’’ e de 4’:29’’ a 4’:40’’) ser alterado no sentido de ser julgado provado que entre as 10h e as 10:30h, de 26/9/2016 encontravam-se pelo menos um ou dois médicos e outros tantos enfermeiros, no Parque da Saúde e particularmente, no Centro ..., no Centro de Saúde ...;

k. o facto 63 enuncia as consignas (algoritmos) a observar num caso de obstrução de vias aéreas (v.g. engasgamento) dele decorrendo que a primeira e mais importante instrução consiste pedir o auxílio de profissionais de saúde (médicos e/ou enfermeiros) no local, havendo-os e havia-os como é público e notório, por a creche das R.R. se localizar no denominado Parque da Saúde de ..., no local também se situam diversos equipamentos de saúde, tais como o Centro de Saúde ..., o Centro ... (para toxicodependência);

l. todavia, as R.R. não observaram essa instrução, pois que apenas o fizeram depois das 10:24h (hora a que a 3.ª R. DD, por indicação da 4.ª R. EE e que, por sua vez, recebera a correspondente instrução do INEM) foi procurar profissionais de saúde, precisamente, no local onde era mais provável encontrá-los e no local seguramente mais perto de onde estavam; tão perto, aliás, que até partilhavam o mesmo local e logo aí encontraram uma enfermeira que passou a efectuar as manobras de suporte básico de vida;

m. e tão pouco observaram, durante aquele intervalo de tempo, a instrução do procedimento que imediatamente deve também ser observado: contactar e pedir o apoio do INEM, o que, infelizmente, apenas foi feito decorridos cerca de 11 minutos sobre o engasgamento;

n. tivesse o INEM sido logo contactado e, além de poder ter chegado 12 a 13 minutos mais cedo, mais cedo podiam ser iniciadas manobras de desobstrução de vias aéreas do GG e, mais importante, mais cedo serem levadas a cabo, sob directas indicações de pessoa especializada do INEM (o mesmo que, muito mais tarde, orientou as manobras de suporte básico de vida, indicando onde e como pressionar o peito do GG e qual a cadência em que devia ser feito);

o. para tanto, a actuação diligente das R.R. implicaria que estas se coordenassem entre si, distribuindo e executando as tarefas mais importantes e prioritárias, em vez de, como efectivamente fizeram, se agitarem, sucessiva e cumulativamente, à volta do GG, quando era preciso ter começado por procurar, pessoal e/ou telefonicamente, os meios humanos mais eficazes de socorro;

p. o Centro de Saúde situa-se a minuto e meio a pé, e a segundos de um telefonema de pedido de socorro (cfr. depoimento de II, a partir de 31’:14’’ a 39’:58’’) e o Centro ... a cerca de 50 metros, num e noutro havia médicos e enfermeiros que, ainda que não especialistas nesses socorros, são médicos e enfermeiros, o que, por si só, sempre os faz mais qualificados para o caso do que auxiliares, educadoras de infância, psicólogas;

q. no andar por cima da creche funcionava um centro de apoio à toxicodependência, onde, pelas regras da experiência, é certo ou e quando menos, altamente provável haver um médico e/ou um enfermeiro;

r. poRém, apesar de se tratarem de providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos, nenhuma delas foi empregue ou mandada empregar por qualquer das R.R. entre o momento do engasgamento (após as 10h:10’) e as 10h:24’, (decorridos que estavam cerca de 2 minutos desde o início do telefonema com o INEM., perfazendo até cerca de treze minutos, sem que o GG recebesse ajuda especializada e em que essa ajuda não é sequer procurada por nenhuma das cinco R.R.;

s. a primeira providência que devia ter sido empregue (chamar profissional de saúde), foi a última a ser feita pelas R.R. e a segunda a dever ser implementada (chamar o INEM) foi a penúltima a ser feita pelas R.R.;

t. no processo comissivo e omissivo, que conduziu, infeliz mas adequadamente, à morte do GG participaram, pelo menos quatro pessoas (as 2.º, 3.ª, 4.ª e 5.ª R.R. e pelo menos), mais um funcionário da 1.ª R., a pessoa que se dirigiu à entrada do parque pela Rua ..., JJ, sendo que quatro delas, sucessivamente primeiro, simultaneamente depois, fizeram praticamente a mesma coisa: aparentes manobras de Heimlich, pancadas nas costas do GG, enfiar dedos pela garganta do GG, o que servia mais para empurrar o objecto asfixiante do que para verificar se esse objecto era visível (o que, naturalmente, se faz com os olhos e não com os dedos, como recomendam as consignas de procedimentos indicadas para este tipo de ocorrências;

u. e nenhuma das R.R., nenhum funcionário da 1.ª R. se lembrou empregar, directamente ou por outra pessoa disponível, as providências exigidas pelas circunstâncias, tais como ir ou telefonar para um dos diversos estabelecimentos sitos no Parque da Saúde, onde seria certo e seguro, ou quando menos, altamente provável, encontrar imediatamente médico e/ou enfermeiro, a 1, 2 ou 3 minutos de distância a pé e a segundos por um telefonema;

v. dest’arte, as quatro R.R. pessoas físicas e a 1.ª R. Associação por acção e omissão dos mais elementares deveres de cuidado, vigilância e acção, destruíram, desprezaram as altas probabilidades de salvar o GG, as chances oferecidas para o mesmo fim, pela localização, pelo número e qualidade e proximidade de profissionais de saúde disponíveis, pelo accionamento, em errada ordem de prioridade, dos diversos procedimento aconselhados na situação, pela não distribuição, entre si, das diversas tarefas adequadas à assistência eficaz e salvamento da vida do filho dos A.A.;

w. e não se venha dizer, como fizeram as instâncias, não ter sido provado que havia profissionais de saúde em diversos estabelecimentos (de saúde) do parque em que se situa a creche; se não há profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, auxiliares etc…), às 10:00h de um dia útil de Setembro, no Parque da Saúde de ..., onde estão instalados e a funcionar, desde o Centro de Saúde ... a uma extensão do Centro ..., então onde é que os haverá ?

x. deve julgar-se como facto público e notório a disponibilidade de profissionais de saúde naquele Parque da Saúde de ..., no dia e hora do infeliz acontecimento que vitimou o GG;

y. estamos perante uma situação em que se impõe a aplicação do direito do art. 682/3 do CPC, devendo o Venerando Tribunal ad quem ordenar a baixa dos autos ao tribunal a quo para ampliar a decisão de facto - mediante o julgamento de provados dos factos elencados sob as alíneas k), l) e n), em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito

z) outro aspecto da decisão de facto também fundamenta o recurso ao direito do art. 682/3, do CPC, agora por ocorrência de contradições nesse julgamento: trata-se do facto julgado provado sob o n.º 36 e ao julgado não provado sob a alínea i) e cuja contradição se revela na circunstância de a decisão a quo julgar provado, no facto 36, que quando o INEM atendeu a chamada da 4.ª Ré, o menor GG encontrava-se … e a receber manobras de suporte básico de vida, mas o facto 30 narra que a 4.ª R. sente o corpo do GG mole e decide colocá-lo no chão, de barriga para baixo;

aa. devendo as manobras de suporte básico devem ser executadas como descrito no facto 37, não será possível levá-las a cabo estando o GG … deitado de barriga para baixo, pelo que só quando o operador do INEM instruiu a 4.ª R. para colocar o GG de barriga para cima e pressionar o peito deste, entre os mamilos, com 2 dedos é que foram iniciadas, verdadeiramente, as manobras de suporte básico de vida;

bb. termos pelos quais igualmente se impõe a aplicação do direito do art. 682/3 do CPC, devendo o Venerando Tribunal ad quem ordenar a baixa dos autos ao tribunal a quo para, em ordem a constituir uma base suficiente para a decisão de direito, superar a contradição na decisão de facto - mediante a alteração do julgamento de provado do facto 36 nele se consignando que: quando o INEM atendeu… o GG …não estava a receber manobras de suporte básico de vida. Do mesmo passo que se deve passar a julgar provado que apenas às 10h:24’:18’’ a R. Iniciou Manobras de Suporte Básico de Vida ao menor GG;

cc. a partir das 10h:11’, o mais tardar, é no espaço de tempo e de “sombras”, de vigilância reduzida e de menor capacidade de reacção e assistência que o GG se engasga, a auxiliar e 3.ª R. tarda em aperceber-se desse engasgamento, reage insuficientemente relativamente às acções adequadas à gravidade da ocorrência, a 2.ª R. Diana se afasta do local onde devia estar, chamada pela 4.ª R., que a não devia ter chamado nessa ocasião, que se inicia a contagem final da vida do GG, dos cerca de 6 a 10 minutos sem respirar até ficar cianosado, sujeito a manobras ineficazes porque não feitas como o deviam ter sido, sem que nenhuma das R.R. tivesse tido a iniciativa de fazer ou ordenar a alguém que concretizasse a primeira das recomendações do INEM para casos como estes - procurar o auxílio de um profissional de saúde, médico ou enfermeiro e no local onde mais os havia, o Parque da Saúde - nem a segunda dessas recomendações - chamar o INEM - antes se dedicando, sucessivamente, a efectuar manobras que não lograram êxito porque não foram feitas como o deviam, como resulta do método analítico-jurídico designado por prognose póstuma;

dd. a negligência da conduta de cada uma das R.R. é notória e revela uma “culpa” na formação de cada respectiva personalidade e aptidões para o exercício dos cargos e actividades que preenchiam e exerciam na 1.ª R.;

ee. a apólice de seguro subscrita pela 1.ª R., com a mão da 5.ª R. é paradigmática de uma espécie de incapacidade de representar e compreender os riscos próprios das actividades que exerciam na 1.ª R., pois que lidar com crianças até aos 3 anos de idade (cfr. na p.i. os estatutos e regulamento da 1.ª R) é actividade inerentemente perigosa, na medida em que implica vigiar e suprir as incapacidades naturais de crianças até aquela idade;

ff. não obstante, o seguro ao abrigo de cuja apólice, a ....ª R. transferiu para a seguradora interveniente as responsabilidades por morte de cada aluno e por responsabilidade civil exploração excluir expressamente os danos sofridos por menores de … 3 anos de idade e maiores de 70 anos; ora, menores de 3 anos, são todas as crianças frequentadoras da creche e maiores de 70 anos serão alguns dos avós que lá vão deixar e/ou recolher os netos e não se venha dizer ou argumentar que as condições particulares da apólice revogam ou derrogam tal cláusula das condições gerais, posto que nada nas condições particulares refere que a frequência da creche da 1.ª R. é limitada a crianças até 3 anos de idade;

gg. quem, como as 1.ª e 5.ª R.R., assim avalia os riscos das actividades empreendidas, ao fim e ao cabo e para todos os efeitos práticos, afinal, é como que indiferente às possíveis consequências e mais chocante é constatar que, desde que o GG morreu, a 1.ª R. nunca se preocupou em mudar os termos e a cobertura da apólice de seguro legalmente obrigatório para o exercício da actividade que prossegue com crianças até 3 anos;

hh. o direito do art. 493 do C. Civil, maxime o seu n.º 2, dispõe sobre a atribuição de ónus de prova do emprego de todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir a quem, no exercício de uma actividade perigosa por sua própria natureza causar danos a outrem;

ii. a perigosidade particular da actividade é qualificação que, por lei, cabe ao tribunal fazer, em cada caso concreto e, para essa qualificação, naturalmente que a magnitude dos danos pode evidenciar o grau de perigosidade da actividade, ou risco dessa actividade, mas a perigosidade deve ser aferida a priori;

jj. sabendo-se que a maioria das situações de Obstrução de Via Aérea nas crianças ocorre durante a alimentação ou quando as crianças estão a brincar com objetos de pequenas dimensões, este risco, de par com diversos outros são inerentes à actividade de lidar com crianças em idades pré-escolares, muito especialmente nas creches, pois que nelas tomam diversas refeições e determinando a lei a obrigatoriedade de subscrição de um seguro a favor de terceiros a quem queira exercer a actividade de creche, deve esta actividade - da 1.ª R.- ser qualificada de perigosa a actividade da 1.ª R. para os efeitos do art. 493/2 do C. Civil;

kk. pelo que incumbia e incumbe à 1.ª R. alegar e provar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir a quem, no exercício de uma actividade perigosa por sua própria natureza causar danos a outrem, ónus este que as R.R. nos presentes autos, não preencheram, devendo tê-lo feito para escapar à condenação;

ll. as instâncias parece estribar a absolvição das R.R. no juízo segundo o qual, quanto à 5.ª R. não resultou provado que houvesse praticado ou omitido acto passível de responsabilidade e quanto às 2.ª a 4.ª que optaram por executar manobras de socorro … motivo pelo qual não ligaram de imediato para o INEM, de par com considerar provado que mesmo que tivessem feito a chamada de imediato, isso não evitaria a ocorrência de lesões … com probabilidade elevada de morte cerebral;

mm. todavia, o que releva é o (não) preenchimento daquele ónus que impendia sobre as R.R., ex causa o art. 493/2 do C. Civil, i.e., que empregaram todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir os danos, mas neste tocante, as instâncias ficaram aquém da análise exegética e crítica dos factos e do direito aplicável, na medida em que não ponderaram, não julgaram sobre o (não) emprego pelas R.R. e por cada uma delas, das mencionadas todas as providências exigidas pelas circunstâncias, pelo que, não havendo as R.R. preenchido este ónus da prova, não podem ser exoneradas da responsabilidade civil que lhes é assacada sub iudicio;

nn. in casu, a culpa deve ser apreciada in abstracto, ou seja, em atenção à diligência de um bom pai de família e não à diligência normal do causador do dano, poRém, a sentença a quo, ainda que douta, erra, violando o direito dos art. 487 e 493/2 do C. Civil, na medida em que afere a diligência das R.R. e particularmente das 2.ª a 4.ª R.R. medida da própria, pautando-a mais exígua até que a do simples homem médio;

oo. mesmo a medida de diligência do homem médio, não dispensa o emprego de todas as providências exigidas pelas circunstâncias, nestas se incluindo a imediata procura de apoio especializado e praticamente garantido encontrar na localização do Parque da Saúde e o imediato recurso ao INEM, tanto para comparecer à emergência, quanto para instruir e acompanhar o emprego de todas essas providências exigidas pelas circunstâncias;

pp. contrariamente ao disposto na sentença e no acórdão a quo, essa responsabilidade é ainda imputável, na mesma exacta medida à 1.ª R., enquanto comitente das demais R.R. e do que resulta a ofensa do art. 500 do C. Civil;

qq. a valoração dos factos e a correcta determinação e aplicação do direito ao caso implica, ainda, à necessidade legal de adopção de distinta decisão condenatória no tocante à Interveniente, a seguradora Generali, por modo a manter a condenação desta no pagamento do máximo do capital garantido para o caso do dano morte (€: 1.000,00), como também na condenação, agora, na totalidade do capital garantido para o evento denominado responsabilidade civil exploração (€: 25.000,00) ambas quantias acrescidas dos legais juros nos termos peticionados;

rr. os valores compensatórios dos danos peticionados, nos montantes ampliados na audiência de julgamento, são razoáveis e adequados aos parâmetros que, actualizadamente, têm vindo a ser adoptados pela melhor jurisprudência. Por isso, impõe-se a revogação do julgamento a quo e a sua substituição por outro que determine a condenação solidária das R.R. no pagamento aos A.A. de tais montantes (€ 30.000,00, € 80.000,00, € 30.0033,00 e € 30.000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo menor GG e pelos A.A. e ora apelantes);

ss. quando se entenda que a censurabilidade (jurídica) da conduta das R.R. é qualificável, segundo o direito do art. 494 do C. Civil como mera culpa - o que apenas se admite por cautela de patrocínio como mera hipótese, mas sem conceder - então devem os montantes indemnizatórios ser fixados ad quem, equitativamente, como ordena aquele direito e para o que os autos evidenciam factos bastantes para a correspondente liquidação dos montantes, designadamente os numerados como 74, no que concerne as capacidade das R.R., sem que, em qualquer caso, pela sua extensão, violência, irreparabilidade in natura, persistência no tempo futuro, os danos sofridos pelos A.A., por si e como progenitores e sucessores do GG, possam ser, nesta sede de equidade, liquidados em montantes inferiores a metade dos peticionados após ampliação;

tt. assim não tendo sido decidido a quo deve o acórdão a quo, ser revogado e substituído por outra que julgue a acção procedente e condene as R.R. como se deixou alegado e concluído.

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II – O objeto do recurso

Além do mais, os Autores, nas alegações do recurso de revista, pretendem que o Supremo Tribunal de Justiça, face à prova produzida, altere a matéria de facto julgada não provada nas alíneas i), k), l), e n) e a matéria provada do n.º 36 do acórdão recorrido.

O Supremo Tribunal de Justiça é um Tribunal de revista, ao qual compete aplicar o regime jurídico que considere adequado aos factos fixados pelas instâncias, sendo a estas e, designadamente à Relação, que cabe apurar a factualidade relevante para a decisão do litígio, não podendo este Tribunal, em regra, alterar a matéria de facto por elas fixada (n.º 1 e 2, do artigo 682.º, do Código de Processo Civil).

O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto do recurso de Revista, a não ser nas duas hipóteses previstas no n.º 3, do artigo 674.º, do Código de Processo Civil, isto é, quando haja ofensa de uma disposição expressa de Lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova.

As objeções formuladas pela Recorrente no que tange à materialidade assente, com exceção da alegação que os factos julgados não provados nas alíneas k) e l) do acórdão recorrido, constituem factos notórios, transcende os poderes deste Supremo Tribunal quanto à possibilidade da sua (re)apreciação, não tendo sido alegado qualquer fundamento que permita a censura dos meios de prova, nos termos permitidos pelo n.º 3, do artigo 674.º, do Código de Processo Civil, porquanto estamos no âmbito da prova livre, já que qualquer dos factos cuja decisão probatória se impugna não estava sujeito a prova taxada.

Por esta razão, tal fundamento do recurso, com exceção da referida argumentação quanto às alíneas k) e l) não pode integrar o objeto de conhecimento.

Assim, tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, são as seguintes as questões a conhecer neste recurso:

- os factos constantes das alíneas k) e l) do acórdão recorrido são factos notórios?

- verifica-se uma contradição entre a alínea i) dos factos não provados e a prova do facto n.º 36?

- sobre as Rés incide a “presunção de culpa” fixada no artigo 491.º do Código Civil?

- sobre os Rés incide a “presunção de culpa” fixada no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil?

- as Rés ao efetuarem incorretamente as manobras físicas de desobstrução das vias respiratórias, são responsáveis pela morte do menor GG?

- as Rés ao não providenciarem pela chamada imediata do INEM e ao não procurarem auxílio imediato nos estabelecimentos de saúde próximos, são responsáveis pela morte do menor GG?

- A Seguradora é responsável pelo pagamento da indemnização dos danos que resultaram da morte do menor GG, com o limite de € 25.000,00?

                                               *

III – Os factos

1. Da notoriedade dos factos constantes das alíneas k) e l) dos factos não provados

Os Autores alegam que os factos que constam das alíneas k)  e l) dos factos não provados são factos notórios, pelo que devem ser considerados provados, nos termos do artigo 412.º do Código de Processo Civil

Neste preceito dispõe-se que não carecem de prova, nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral, ou seja os factos facilmente cognoscíveis pela generalidade das pessoas normalmente informadas num determinado espaço social ou geográfico que abranja as partes e o juiz da causa [1].

Nas referidas alínea k) e l) do acórdão recorrido consta que não se provou:

- que na manhã do dia 26/09/2019 encontravam-se diversos médicos e enfermeiros em atividade no Centro ....

- que na manhã de 26/09/2016 estavam ao serviço, no Centro de Saúde ..., 8 médicos, 10 enfermeiros e 2 internos, o que as Rés sabiam.

Se é possível considerar do conhecimento geral que num Centro de Saúde e num Centro de Atendimento de Toxicodependentes, em horário de expediente, se encontrem profissionais da saúde, já não é possível afirmar que é do conhecimento geral que, num determinado dia útil da semana, no momento em que ocorreu o acidente sob análise, se encontravam presentes médicos e enfermeiros num determinado Centro de Saúde e num determinado Centro de Atendimento de Toxicodependentes, sendo certo que não compete ao Supremo concluir pela prova de determinados factos através de presunções judiciais, as quais estão sujeitas à livre apreciação do julgador (artigo 396.º, ex vi artigo 351.º, ambos do Código Civil).

  Por essa razão não é possível ao Supremo Tribunal de Justiça proceder à pretendida alteração da matéria de facto, nem há razões que justifiquem a aplicação do disposto no artigo 682.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, uma vez que o julgamento da matéria de facto em questão, independentemente da sua correção, já foi feito nas instâncias competentes.

 

2. Da contradição entre o facto não provado da alínea i) e o facto provado n.º 36 e o facto provado n.º 30.

Na matéria de facto não provada consta da alínea i) do acórdão recorrido: apenas às 10h24m a 4.ª Ré iniciou as manobras de suporte básico de vida ao menor GG, e do facto provado n.º 36: quando o INEM atendeu a chamada da 4.ª Ré, o menor GG encontrava-se inanimado, cianosado e a receber daquela manobras de suporte básico de vida.

Já no facto provado n.º 30 consta que após executar essas manobras (as de Heimlich), a 4.ª Ré sente o corpo do menor GG mole e decide colocá-lo no chão, de barriga para baixo.

Os Autores alegam que existe uma contradição que se revela na circunstância de a decisão a quo julgar provado, no facto 36, que quando o INEM atendeu a chamada da 4.ª Ré, o menor GG encontrava-se … e a receber manobras de suporte básico de vida, mas o facto 30 narra que a 4.ª R. sente o corpo do GG mole e decide colocá-lo no chão, de barriga para baixo, devendo as manobras de suporte básico devem ser executadas como descrito no facto 37, não será possível levá-las a cabo estando o GG … deitado de barriga para baixo, pelo que só quando o operador do INEM instruiu a 4.ª R. para colocar o GG de barriga para cima e pressionar o peito deste, entre os mamilos, com 2 dedos é que foram iniciadas, verdadeiramente, as manobras de suporte básico de vida.

Não se verifica, necessariamente, a contradição apontada, uma vez que apesar de se considerar provado que a 4.ª Ré, após ter realizado infrutiferamente as manobras de Heimlich no menor GG, o ter colocado deitado de barriga para baixo e de, em momento posterior, mas que antecedeu a chamada para o INEM, ter iniciado a realização de manobras de suporte básico de vida, não se refere que, quando iniciou a realização destas manobras o menor continuasse deitado de barriga para baixo.

Não existindo a contradição apontada não há lugar ao cumprimento do disposto no artigo 682.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Neste processo encontram-se provados os seguintes factos:

1) GG é filho de AA e BB, aqui Autores, e nasceu no dia .../.../2015.

2) A Ré “Associação Humanidades" dirige, desde a sua fundação e até à presente data, um estabelecimento de creche sito na Av. ..., em ..., concretamente no interior do Parque da Saúde de ... (antigo Hospital 1), pavilhão 27, r/c.

3) A referida creche destina-se a crianças dos 4 meses aos 3 anos de idade e, à data de 26/09/2016, regia-se pelo regulamento interno junto aos autos a fls. 20 a 29 frente (doc. 3 da petição inicial), cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

3.1. Consta do n.º 3, do artigo 8.º deste Regulamento:

A efetivação da admissão é feita através da assinatura de Contrato de prestação de serviços assinado pelas partes...

4) No dia 26.09.2016, as 2.ª, 3.ª, 4.ª e 5.ª Rés exerciam as seguintes funções na creche da 1ª Ré:

4.1. A 2.ª Ré era a educadora de infância da sala do berçário e do 1° ano de idade.

4.2. A 3.ª Ré era auxiliar de educação da sala do 1° ano de idade.

4.3. A 4.ª Ré era coordenadora e responsável da creche, sendo superior hierárquica das 2.ª e 3.ª Rés.

4.4. A 5.ª Ré era vice-presidente do conselho de administração da 1ª Ré, sendo superior hierárquica das 2.ª, 3.ª e 4.ª Rés.

5) Todas essas funções foram atribuídas pela 1ª Ré.

6) O menor GG frequentava a creche identificada em 2) desde setembro de 2015, sendo que em 26/09/2016 integrava a sala do 1° ano de idade.

7) No dia 26/09/2016, cerca das 8h00n, a Autora deixou o filho GG na identificada creche, tendo-o entregado à guarda e cuidados da 3° Ré, para tanto encarregada pela 1ª Ré, tendo esta recebido o menor GG.

8) Cerca das 10h00m desse dia 26/09/2016, a 2.ª Ré, auxiliada pela 3.ª Ré, sentou os 6 meninos da sala do 1º ano - entre os quais o menor GG - à volta de uma mesa redonda para o reforço alimentar da manhã.

9) Nesse dia, o reforço consistia num pedaço de banana, previamente descascada e cortada.

10) A 2.ª Ré deu um pedaço de banana a cada uma das seis crianças, para que estas nele pegassem com a própria mão e o comessem, o que o menor GG fez.

11) Após, a 2.ª Ré perguntou às seis crianças se queriam um segundo pedaço de banana, tendo o menor GG esticado o braço, com a mão aberta.

12) Nessa sequência, a 2.ª Ré deu ao menor GG o segundo pedaço de banana, para que aquele o comesse.

13) Ato contínuo, a 2.ª Ré ausentou-se da sala onde as seis crianças se encontravam e dirigiu-se ao gabinete da 4.ª Ré, que, no início da manhã, lhe havia dito que quereria falar com ela.

14) A 2.ª Ré deixou as seis crianças com a 3.ª Ré, enquanto o menor GG comia o segundo pedaço de banana.

15) Em hora não concretamente determinada, mas posterior às 10h10m, a 3.ª Ré apercebeu-se que o menor GG se havia engasgado com o segundo pedaço da banana.

16) Nesse momento, apenas o menor GG, as restantes cinco crianças e a 3.ª Ré se encontravam na sala do 1° ano.

17) O menor GG não tossia, não gemia ou chorava, e não conseguia respirar.

18) Assim que se apercebeu do engasgamento do menor GG, a 3.ª Ré colocou-o sobre o seu braço esquerdo, de barriga para baixo, e deu-lhe cinco a seis pancadas nas costas.

19) Como o menor GG não reagiu às pancadas, nem expeliu a banana, a 3° Ré efetuou três a quatro manobras de Heimlich.

20) O menor GG permaneceu engasgado, sem tossir, gemer, chorar, emitir qualquer som.

21) Nessa sequência, a 3.ª Ré colocou os seus dedos no interior da boca menor GG para ver se encontrava alguma coisa, não o conseguindo.

22) Neste momento, a 3.ª Ré chamou pela 2.ª Ré, que se encontrava no gabinete da 4.ª Ré.

23) A 2.ª Ré não demorou mais de cinco segundos a acorrer à chamada da 3.ª Ré.

24) Quando a 2.ª Ré compareceu na sala do 1° ano, chamada pela 3.ª Ré, esta contou-lhe o que sucedera e o que já tinha feito para tentar desobstruir as vias aéreas do menor GG.

25) De imediato, a 2.ª Ré efetuou três a quatro manobras de Heimlich ao menor GG, momento em que este expeliu uma substância parecida com saliva.

26) Na presença da 2.ª Ré, o menor GG não tossiu, gemeu, chorou, emitiu qualquer som, nem mesmo após a realização das manobras de Heimlich.

27) Após efetuar as manobras de Heimlich, a 2.ª Ré constatou que o menor GG tinha o olhar fixo, sem reação.

28) Neste momento, a 2.ª Ré chamou em voz alta a 4.ª Ré, a qual compareceu, no máximo, cinco segundos depois na sala do 1° ano.

29) Ao ser-lhe relatado o sucedido ao menor GG, a 4.ª Ré chamou em voz alta a 5.ª Ré e, vendo o menor GG com o rosto pálido e os lábios cinzentos, pegou nele e executou duas a três manobras de Heimlich.

30) Após executar essas manobras, a 4.ª Ré sente o corpo do menor GG mole e decide colocá-lo no chão, de barriga para baixo.

31) Altura em que entra na sala do 1º ano a 5.ª Ré que ordena que liguem para o INEM, que telefonem aos pais do menor GG e que retirem as restantes cinco crianças da sala.

32) Cumprindo as ordens da 5.ª Ré, a 4.ª Ré telefonou para o INEM, a 2.ª Ré telefonou para a mãe do menor GG e, após este telefonema, as 2.ª e 3.ª Rés ausentaram-se da sala do 1º ano com as restantes cinco crianças.

33) A chamada telefónica para o INEM foi realizada e atendida às 10h22m01s.

34) A mãe do menor GG chegou à sala do 1º ano às 10h24m49.

35) Quando a mãe do menor GG chega à sala do 1° ano, este encontra-se deitado no chão, a receber manobras de suporte básico de vida da 4.ª Ré, a qual seguia as instruções que o INEM lhe dava ao telefone, sendo que o menor permanecia inanimado e cianosado.

36) Quando o INEM atendeu a chamada da 4.ª Ré, o menor GG encontrava-se inanimado, cianosado e a receber daquela manobras de suporte básico de vida.

37) Por telefone, o INEM instruiu a 4.ª Ré para continuar as manobras de suporte básico de vida pressionando, com dois dedos, o peito do GG, entre os mamilos, a uma cadência mais rápida que uma por segundo.

38) Durante dois a três segundos, a 4.ª Ré abrandou o ritmo da manobra, mas mediante novas instruções do INEM, retomou o ritmo necessário e assim o fez até à chegada de uma enfermeira à sala do 1º ano, pelas 10h29m28s.

39) Durante a chamada telefónica estabelecida entre a 4.ª Ré e o INEM, este perguntou duas vezes se havia algum enfermeiro(a) nas imediações, ao que a 4.ª Ré respondeu que não, tendo de imediato solicitado que a 3.ª Ré tentasse encontrar algum enfermeiro nas imediações.

40) Durante a chamada telefónica estabelecida entre a 4.ª Ré e o INEM, aquela solicitou às pessoas que se encontravam presentes que alguém se deslocasse ao portão da entrada traseira do Parque da Saúde para aguardar pela chegada da ambulância do NEM e encaminhar esta até à creche.

41) Ainda durante a chamada telefónica, a 4.ª Ré solicitou que lhe confirmassem se alguém tinha ido até ao referido portão, tendo-lhe sido dito que sim.

42) A 3.ª Ré deslocou-se ao exterior da creche e segundos depois, já no exterior, encontrou uma enfermeira, pediu-lhe auxílio e encaminhou-a de imediato até à sala do 1º ano.

43) Quando a enfermeira chegou à sala do 1° ano substituiu a 4.ª Ré nas manobras de suporte básico de vida ao menor GG, o qual se manteve em paragem cardio-respiratória até chegar a equipa médica do INEM.

44) A equipa médica do INEM chegou à sala do 1º ano às 10h30m43s, procedeu às manobras de desobstrução das vias aéreas do menor GG com equipamento próprio, tendo tido sucesso.

45) Logo após, a equipa médica do INEM procedeu à reanimação cardíaca do menor GG, entubou-o, ventilou-o com saturação de 100% de oxigénio e transportou de ambulância até à urgência de pediatria do hospital 2.

46) À chegada ao hospital 2, o menor GG apresentava-se hemodinamicamente estável, com frequência e pressão arterial adequadas à idade, com pupilas intermédias com pouca reatividade à luz e sem resposta motora à estimulação dolorosa.

47) No hospital 2, para apuramento de lesão neurológica, o menor GG foi submetido a uma TAC craneo-encefálica, que revelou a existência de lesões hipoxico-isquémicas recentes.

48) Foi ainda submetido a uma ressonância magnética craneo-encefálica, que mostrou restrição à difusão dos gânglios da base, pedúnculos cerebrais, diencéfalo, região cortico-subcortical dos lóbulos occipitais, parietais superiores, lesões compatíveis com encefalopatia hipóxico-esquémica extensa, decorrente da falta de oxigenação e de circulação sanguínea, o que levou à lesão das células cerebrais.

49) Cerca de 24h após a entrada no hospital 2, o menor GG inicia hipertermia.

50) Na última hora de vida, foi-lhe observada descida da função circulatória e agravamento da hipotensão, tendo evoluído para bradicardia extrema e assistolia.

51) O menor GG veio a falecer no hospital 2, pelas 16h36m do dia 28/09/2016.

52) A morte do menor GG ocorreu devido a encefalopatia hipóxica-isquémica, decorrente de asfixia causada por obstrução intrínseca das vias aéreas - engasgamento com banana.

53) A menos de 50 metros da creche da 1ª Ré, identificada em 2), funcionava, no dia 26/09/2016, o Centro ... (centro de apoio à toxicodependência).

54) A cerca de 150 metros do local da creche da 1ª Ré, identificada em 2), funcionava, na manhã do dia 26/09/2016, desde as 8h00m, o Centro de Saúde ....

55) Na manhã do dia 26/09/2016, as Rés sabiam da existência do referido Centro de Saúde ....

56) As Rés sabiam que a maioria das situações de obstrução de vias aéreas nas crianças da idade do menor GG ocorre durante a alimentação ou quando estão a brincar com objectos de pequena dimensão.

57) As Rés sabiam ser necessário a vigilância das crianças com a idade do menor GG no momento de qualquer refeição.

58) As Rés sabiam que, em caso de obstrução das vias aéreas, o socorro deve ser imediato.

59) Ao fim de 1 minuto e meio com privação de oxigénio, uma criança da idade do menor GG perda a consciência (fica inanimado; paragem cardio-respitatória).

60) A partir desse minuto e meio, ocorrem lesões cerebrais, de extensão variável e não cientificamente definida.

61) Após seis minutos com privação de oxigénio, o risco de lesões cerebrais, irreversíveis, e até mesmo de morte, é superior a 90%.

62) As manobras de suporte básico de vida efetuadas pela 4.ª Ré e pela enfermeira destinavam-se a manter a função cardíaca do menor GG e não a recuperar a sua função respiratória.

63) As recomendações médico-científicas indicam que, não havendo no local profissionais de saúde que prestem imediato auxílio, deve ser contatado o INEM e, após, tentar extrair o objeto que obstrói as vias aéreas da criança, primeiro recorrendo a 5 pancadas intercostais, depois a 5 manobras de Heimlich, depois verificar com cuidado se existe algo no interior da boca que possa ser removido com os dedos, não o conseguindo, repetir as manobras até à desobstrução ou até à perda de consciência.

64) Com o engasgamento e a privação total de oxigénio, e até perder a consciência, o menor GG sentiu aflição, ansiedade e medo.

65) O menor GG era uma criança saudável e alegre.

66) O menor GG crescia no seio de uma família constituída pelos Autores e três irmãos, respetivamente de 11 (KK), 8 (LL) e 6 (MM) anos.

67) O menor GG usufruía de um contexto familiar equilibrado, em termos emocionais e educacionais.

68) A Autora assistiu às manobras de suporte básico de vida executadas no menor GG pela 4.ª Ré, assistiu à chegada da ambulância médica à sala do 1º ano, e acompanhou o filho no hospital 2 até ao seu falecimento.

69) O Autor foi chamado à creche pela Autora, chegou depois da ambulância do INEM, e acompanhou o filho no hospital 2 até seu falecimento.

70) Desde o momento em que souberam do engasgamento do menor GG até ao falecimento deste, os Autores sentiram-se preocupados, angustiados, ansiosos, desesperados, sentimentos que as lágrimas e os desabafos não eram capazes de aliviar.

71) Com o falecimento do menor GG e desde então, os Autores

71.1. sofrem perturbações do sono (de noites agitadas a insónias persistentes);

71.2.perderam a vontade de socializar com a família e os amigos, só muito ocasionalmente aceitando os convites deste e, nessas ocasiões, apenas conseguem falar do que sucedeu ao menor GG;

71.3. perderam a boa disposição, sorrindo esporadicamente e por cortesia;

71.4. mantêm o uso de vestuário de luto ou escuro, o que não sucedia até então.

71.5. Mantiveram as respetivas atividades profissionais com um esforço físico e psicológico que, até então, desconheciam.

71.6. Mantiveram os cuidados e a assistência aos restantes três filhos, a quem tiveram de explicar o sucedido ao menor GG, com um esforço físico e psicológico que até então, desconheciam.

72) Com o falecimento do menor GG e desde então, o Autor mantém um sentimento de culpa pela escolha da creche da 1ª Ré como instituição a quem entregar a guarda e os cuidados do menor GG.

73) O menor GG foi um filho desejado pelos Autores.

74) A 1ª Ré apresentou as seguintes receitas:

74.1. Em 2016, € 59.885,46 (vendas) e € 358.922,13 (mecenato e subsídios);

74.2. Em 2017, € 56.859,28 (vendas) e € 367.597,06 (mecenato e subsídios);

74.3. Em 2018, € 59.681,62 (vendas) e € 363.969,02 (mecenato e subsídios).

75) Correu termos o NUIPC 3080/16...., na ... secção do DIAP ..., Procuradoria da República da Comarca de Lisboa, destinado a averiguar da existência de responsabilidade criminal pela morte do menor GG e respetivo agente.

76) No dia 11/03/2019, foi proferido despacho de arquivamento do processo crime identificado em 75), nos termos e com os fundamentos da cópia junta aos autos a fls. 73 verso a 80 frente/171 a 184 frente, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

77) Os Autores foram notificados desse despacho de arquivamento por carta expedida em 12/03/2019.

78) A sala do 1º ano e o gabinete da 4.ª Ré situam-se (e situavam-se no dia 26/09/2016) no mesmo piso (r/c), a uma distância de cerca de meia dúzia de metros.

79) Ao sair da sala do 1º ano, a 2.ª Ré deixou a porta desta aberta.

80) A porta do gabinete da 4.ª Ré manteve-se aberta enquanto esta conversou com a 2.ª Ré.

81) Do gabinete da 4.ª Ré era possível ouvir o que se passava na sala do 1° ano.

82) Até ser chamada pela 3.ª Ré, a 2.ª Ré esteve a conversar com a 4.ª Ré cerca de 1 a 2 minutos.

83) Entre 1 e 12 de agosto de 2005, a 2.ª Ré frequentou um curso de primeiros socorros, com a duração de 30 horas, com os seguintes conteúdos: orientação do socorrista, sistema integrado de emergência médica, plano de ação socorrista, noções gerais, socorro à vítima, doenças transmissíveis, incêndios/ calamidades.

84) As seis crianças da sala do 1º ano, incluindo o menor GG, já haviam adquirido autonomia para agarrar o pedaço de banana, levá-lo à boca, mastigá-lo e engoli-lo.

85) Desde o momento em que se engasgou com o pedaço de banana, o menor GG ficou com as vias aéreas totalmente obstruídas (não passava nem saía ar).

86) Em situações de obstrução das vias aéreas não é aconselhável, em substituição das pancadas intercostais e das manobras de Heimlich, o transporte da vítima até à unidade de saúde mais próxima.

87) No dia 26/09/2016, a 1ª Ré havia transferido para a interveniente "Generalis Seguros, S.A." (então “Açoreana Seguros, S.A.) mediante o acordo escrito denominado “seguro de acidentes pessoais-grupo”, titulado pela apólice n.º ...83, a responsabilidade pelos acidentes ocorridos na creche identificada em 2).

88) No âmbito do referido seguro, a 1.ª Ré e a Interveniente acordaram nas seguintes coberturas por pessoa segura:

88.1. Morte: € 1.000,00

88.2. Invalidez Permanente: € 10.000,00

88.3. Despesas de Tratamento e Repatriamento: € 1.000,00

88.4. Responsabilidade Civil Alunos: € 500,00

88.5. Responsabilidade Civil Exploração: € 25.000,00.

89) Eram 35 os alunos abrangidos, em 26/09/2016, pelo referido seguro, um deles o menor GG.

90) A 1ª Ré e a interveniente submeteram o referido seguro às condições gerais e particulares juntas aos autos a fls. 227-232 verso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

91) A interveniente aceitou a responsabilidade de pagamento aos Autores do capital seguro estipulado em caso de morte do segurado: € 1.000,00.

Julgaram-se não provados os seguintes factos:

i) A 2.ª Ré chegou à sala do 1° ano às 10h15m.

ii) Antes de executar as manobras de Heimlich, a 2.ª Ré verificou que o interior da boca do menor GG não continha nada e deu-lhe pancadas nas costas.

iii) Com a chegada da 2.ª Ré à sala do 1º ano, a 3.ª Ré ausentou-se para chamar as 4.ª e 5.ª Rés.

iv) As 4.ª e 5.ª Rés chegaram à sala do 1° ano cerca das 10h18m.

v) A 2.ª Ré, após executar as manobras de Heimlich, colocou o menor GG no chão, em cima do tapete.

vi) O telefonema para a mãe do menor GG foi realizado pelas 10h19m.

vii) Quando a mãe do menor GG chega à creche, a 3.ª Ré encontrava-se ajoelhada, com as mãos unidas como se rezasse, num pequeno compartimento contíguo à sala do 1º ano, onde se encontrava o GG.

viii) Quando a mãe do menor GG chega à creche, a 4.ª Ré saiu de uma outra sala no mesmo r/c, com um telefone na mão, dirigindo-se à sala onde estava o GG deitado no chão, sala do 1° ano, no que foi acompanhada pela 5.ª Ré.

ix) Apenas às 10h24m a 4.ª Ré iniciou as manobras de suporte básico de vida ao menor GG.

x) A equipa médica do INEM chegou à sala do 1º ano às 10h32.

xi) Na manhã do dia 26/09/2019, encontravam-se diversos médicos e enfermeiros em atividade no Centro ....

xii) Na manhã de 26/09/2016 estavam ao serviço, no Centro de Saúde ..., 8 médicos, 10 enfermeiros e 2 internos, o que as Rés sabiam.

xiii) O transporte, por qualquer uma das Rés, do menor GG ao Centro de Saúde ..., ou ao Centro ..., teria prevenido a ocorrência da encefalopatia hipóxica-isquémica decorrente de asfixia por obstrução das vias aéreas e salvado a vida do menor.

xiv) A procura de auxílio médico ou de enfermagem nas proximidades da creche, designadamente no Centro ... ou no Centro de Saúde ..., por qualquer uma das Rés, teria prevenido a ocorrência da encefalopatia hipóxica-isquémica decorrente de asfixia por obstrução das vias aéreas e salvado a vida do menor.

xv) O auxílio prestado ao menor GG pelas 2.ª, 3.ª e 4.ª Rés não era adequado à desobstrução das vias aéreas.

xvi) As 2.ª, 3.ª e 4.ª Rés retardaram em 10-12 minutos a adopção dos procedimentos adequados a preservar a saúde e a própria vida do menor GG.

xvii) A conduta das 2.ª, 3.ª e 4.ª Rés fez com que o menor GG ficasse mais de seis minutos sem respirar.

xviii) A desobstrução das vias aéreas do menor GG pela equipa do INEM ocorreu 25 a 30 minutos após o seu engasgamento com banana.

xix) As 2.ª, 3.ª, 4.ª e 5.ª Rés não observaram os seus deveres de cuidado, vigilância e auxílio do e ao menor GG, a que se achavam adstritas, por a tal cometidas pela 1ª Ré.

xx) A 5.ª Ré ordenou à 3.ª Ré para ir procurar auxílio no exterior da creche.

xxi) A 5.ª Ré ordenou ao responsável de recursos, II, que verificasse a presença de alguma ambulância do INEM no exterior da creche e encaminhasse esta até à creche.

xxii) No âmbito da licenciatura de educadora de infância, a 2.ª Ré frequentou uma cadeira de primeiros socorros.

xxiii) Antes de 26/09/2016, e além do curso referido em 83), a 2.ª Ré frequentou várias ações de formação em primeiros socorros, por sua iniciativa.

                                               *

IV – O direito aplicável

1. Do regime de responsabilidade aplicável

Na presente ação, os Autores pretendem que as Rés sejam condenadas a indemnizá-los pelos danos que resultaram do acidente mortal que vitimou o seu filho menor GG, designadamente, pelo dano da perda de vida deste, pelos danos morais que sofreram com a morte do seu filho e pelo sofrimento sofrido por este nos momentos que antecederam a sua morte.

O menor GG faleceu com cerca de 20 meses de idade, no dia 26.09.2016, devido a encefalopatia hipóxica-isquémica, decorrente de asfixia causada por obstrução intrínseca das vias aéreas, provocada por engasgamento com um pedaço de uma banana que lhe foi dada para comer nesse dia, na creche que frequentava, dirigida pela 1.ª Ré e onde as restantes Rés prestavam funções.

Apesar da frequência de uma creche por um menor, em regra, resultar da celebração de um contrato de prestação de serviços entre a entidade que explora o respetivo estabelecimento escolar e os titulares do poder paternal do menor (contrato com eficácia de proteção para terceiros) e de, neste caso, existirem indícios da celebração desse tipo de contrato, relativamente à admissão do menor GG na creche da 1.ª Ré (consta do n.º 3, do artigo 8.º, do Regulamento da 1.ª Ré que a efetivação da admissão dos menores é feita através da assinatura de Contrato de prestação de serviços assinado pelas partes e foi junto aos autos pelos Autores um exemplar de um contrato-modelo intitulado “contrato de prestação de serviços – creche” em que figuram como partes a 1.ª Ré e a Autora, relativo à admissão na creche do menor GG, assinado apenas pela 1.ª Ré), em momento algum foi processualmente alegada a existência desse contrato, as instâncias não fundamentaram juridicamente as suas decisões num incumprimento contratual, assim como nas alegações de recurso não foi colocada a questão de aplicação do regime da responsabilidade contratual, pelo que, apesar de na petição inicial, a lacónica fundamentação jurídica da pretensão dos Autores indicar, a par dos artigos 483.º, 486.º, 490.º, 493.º, n.º 2, e 500.º, inseridos no capítulo da responsabilidade extracontratual, os artigos 798.º, 799.º e 800.º, relativos à responsabilidade contratual, está este Tribunal de revista impedido de ponderar a aplicação de tal regime, devendo cingir a sua análise à subsunção do caso em apreço ao regime da responsabilidade extracontratual, tal como foi tratado pelas instâncias e pelas partes.

2. Da aplicação do disposto no artigo 491.º do Código Civil

Defendem os Autores que, estando nós perante a violação do direito à vida do menor GG e, portanto, perante uma situação de responsabilidade extracontratual, a presente situação é subsumível ao disposto no artigo 491.º do Código Civil, uma vez que sobre as Rés incidia um dever de vigilância resultante do menor frequentar a creche pertencente à 1.ª Ré e onde as restantes Rés prestavam funções.

Efetivamente, tendo o menor falecido devido a encefalopatia hipóxica-isquémica, decorrente de asfixia causada por obstrução intrínseca das vias aéreas, provocada por engasgamento com um pedaço de uma banana que lhe foi dada para comer no dia 26.09.2016, na creche que frequentava, tendo sido lesado um direito absoluto, como é o direito à vida, poderemos estar perante uma situação de responsabilidade civil extracontratual, nos termos do artigo 483.º do Código Civil.

Dispõe o artigo 491.º do Código Civil [2]:

As pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras, por virtude da incapacidade natural destas, são responsáveis pelos danos que elas causem a terceiro, salvo se mostrarem que cumpriram o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido.

A fonte próxima deste preceito foi o § 832 do B.G.B. [3], que estabelecia uma culpa in vigilando pelos danos causados a terceiros pelos naturalmente incapazes, baseado nos dados estatísticos, segundo os quais grande parte dos atos praticados pelos incapazes procede de uma falta de vigilância adequada, na necessidade de acautelar o direito de indemnização dos terceiros lesados face ao risco de irresponsabilidade ou de insolvabilidade dos incapazes e visando fomentar o cumprimento dos deveres que incidem sobre aqueles a quem cumpre a guarda dos incapazes [4].

O legislador de 1966, ao exemplo do que sucedia no direito alemão [5], não estendeu esta “presunção de culpa” aos danos sofridos pelos próprios vigiados, não se justificando tal extensão face ao intuito daquela norma proteger apenas os interesses dos terceiros lesados pelos atos dos incapazes [6].

Daí que, contrariamente ao defendido pelos Autores, não é aplicável à presente situação em que não estão em causa danos provocados por um incapaz, mas sim a morte acidental de um menor na creche que frequentava, o regime da culpa in vigilando, estabelecido no artigo 491.º do Código Civil.

2. Da aplicação do disposto no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil

Sustentam, com mais veemência, os Autores que a sub-atividade das creches de proporcionar refeições a crianças de tenra idade é uma atividade perigosa, uma vez que os dados estatísticos demonstrariam que a maioria das situações de obstrução das vias respiratórias das crianças ocorre durante a alimentação ou  com o manuseamento de peças de pequena dimensão, pelo que a este caso era aplicável o regime previsto no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil.

Dispõe este preceito legal:

Quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de as prevenir.

Seguiu-se a iniciativa pioneira do artigo 2050.º do Código Civil Italiano de 1942 [7], de adotar uma cláusula geral de previsão delitual autónoma de responsabilidade por danos causados no exercício de atividades perigosas, típicas das sociedades industrializadas contemporâneas.

Apesar do casuísmo desempenhar um papel relevante no preenchimento desta cláusula geral, devem ser consideradas atividades perigosas aquelas que têm uma alta probabilidade de verificação, certificada pela ciência ou pela experiência, de um determinado resultado danoso, atento o seu potencial lesivo, quer sua natureza quer pela perigosidade dos meios que utiliza, o que exige uma bitola agravada de cuidado.

Se é verdade que a alimentação das crianças de tenra idade exige procedimentos e cuidados próprios, não tem um potencial lesivo que a caraterize como uma atividade de constante perigo para as crianças, designadamente o de se verificar uma obstrução das vias respiratórias com risco para a vida. Se esse é um evento possível, como este caso demonstra, é um evento raro, de ocorrência muito improvável, numa atividade que ocorre várias vezes ao dia, a qual é necessária à sobrevivência e desenvolvimento das crianças.

O facto de estatisticamente os casos de obstrução das vias respiratórias de uma criança ocorrer maioritariamente durante a alimentação, não significa que esse seja um risco inerente à alimentação das crianças, atenta a raridade dessas situações numa atividade rotineira.  

Por estas razões, não oferece dúvidas que o dano em análise não decorreu do exercício de uma atividade perigosa cujos efeitos lesivos estejam sujeitos ao regime da responsabilidade extracontratual específico do artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil.

3. Do incumprimento do dever de assistência

3.1. Da realização incorreta das manobras físicas de desobstrução das vias respiratórias

Os Autores, ao longo das suas alegações de recurso, sugerem que as manobras físicas realizadas pelas 2.ª. 3.ª e 4.ª Rés de tentativa de desobstrução das vias respiratórias do menor GG foram efetuadas incorretamente.

Provou-se que a 3.ª Ré, quando se apercebeu do engasgamento do menor GG, inicialmente colocou-o sobre o seu braço esquerdo, de barriga para baixo, e deu-lhe cinco a seis pancadas nas costas; seguidamente efetuou três a quatro manobras de Heimlich e, finalmente colocou os seus dedos no interior da boca do menor GG; a 2.ª Ré efetuou três a quatro manobras de Heimlich ao menor GG; e a 4.ª Ré realizou duas ou três manobras de Heimlich.

Sem que conste da matéria de facto provado o modo que foram realizadas estas ações, não resulta dos factos provados que elas tenham sido realizadas incorretamente do ponto de vista técnico, pelo que não tem suporte fáctico este fundamento do recurso.

3.2. Da demora no recurso a assistência médica

Os Autores alegam que as 2.ª, 3.ª, 4.ª e 5.ª Rés incumpriram o dever de assistência ao menor GG quando este se “engasgou” ao comer um pedaço de banana, uma vez que, perante uma situação de obstrução das vias respiratórias não contataram de imediato o INEM, nem procuraram obter auxílio médico nas instituições de saúde que se encontravam próximas da creche, só o tendo feito tardiamente, tendo a não realização atempada dessas diligências de assistência determinado a morte do menor.

A sentença proferida na 1.ª instância considerou que não existia um dever de indemnizar por parte das Rés por ausência de um nexo de causalidade entre o alegado incumprimento e a morte do menor GG.

Lê-se naquela peça processual:

(...) nem todos os danos sobrevindos ao facto ilícito são incluídos na responsabilidade do agente – apenas o são os resultantes do facto ou causados por ele. E daí exigir-se, também, um nexo de causalidade entre o facto e o dano.

No caso concreto, no que respeita à 5.ª Ré não resultou provado que tivesse praticado ou omitido um qualquer ato passível de responsabilidade. Com efeito, a Ré compareceu na sala do 1º ano, segundos depois de ter sido chamada, e de imediato ordenou que ligassem para o INEM, que telefonassem para os pais do menor e que retirassem as restantes crianças da sala. Uma vez que o filho dos Autores estava a ser socorrido pela 4.ª Ré, nada mais a 5.ª Ré poderia ter feito, segundo o critério de um bom pai de família e em face das circunstâncias do caso concreto (artigo 493º, n.º 2, do Código Civil).

No que respeita às 2.ª, 3.ª e 4.ª Rés, resultou provado que as mesmas não ligaram de imediato para o INEM, tendo optado por executar as manobras de socorro ao menor GG. A realização da chamada telefónica era exigível às Rés, dada a situação de extremo risco para a saúde e vida do menor GG e a pouca experiência que detinham na prestação de primeiros socorros a crianças (apenas a 2.ª Ré tinha feito um curso de 30 horas em primeiros socorros; todavia, o curso tinha mais de dez anos, a 2.ª Ré não pôs em prática os conhecimentos adquiridos e, desde então, não procurou reciclá-los, sendo recomendável que o tivesse feito de dois em dois anos como referiram as testemunhas NN e OO, pediatras intensivistas).

Não obstante, como resultou demonstrado, mesmo que a chamada tivesse sido efetuada de imediato por qualquer uma das Rés, estas não teriam conseguido evitar ocorrência de lesões cerebrais superiores a 90% e, com probabilidade elevada, a morte cerebral do menor GG.

Assim, nos termos do disposto no artigo 493º, n.º 2, do Código Civil, não é de exigir das referidas Rés a reparação de danos não patrimoniais causados ao menor GG e aos pais deste, aqui Autores.

Consequentemente, não é de imputar qualquer responsabilidade à 1ª Ré, na qualidade de comitente (artigo 500º do Código Civil).

O acórdão recorrido seguiu raciocínio idêntico, após expressamente ter afastado a aplicação do disposto no artigo 493.º, n.º 2, do Código Civil, divergindo, apenas neste aspeto, da sentença da 1.ª instância. Aí se explicou:

Ainda assim, e muito embora se tenha concluído que, designadamente as 2.ª, 3.ª e 4.ª RR., não atuaram telefonando, em primeiro lugar, para o INEM, como seria recomendável (de acordo com o ponto 63 supra), certo é que, tendo em conta os factos apurados, as mesmas prestaram, nas circunstâncias, ao menor GG o socorro possível de acordo com a sua formação conhecimentos, realizando as manobras prescritas em caso de obstrução das vias aéreas superiores em crianças daquela idade, não se tendo apurado que o auxílio que prestaram não fosse adequado a essa desobstrução ou que não tenham observado os deveres de cuidado, vigilância e auxílio a que estavam adstritas (ver pontos não provados o) e s) supra).

Do mesmo modo, nenhuma prova se fez de que o contacto com o INEM apenas se concretizou cerca de 12 minutos após o engasgamento, como sustentam os apelantes.

Veja-se, ainda, que foi procurado socorro no exterior da creche (ponto 43 supra), não podendo simplesmente assumir-se que este tenha sido tardio ou inadequado nas condições de grande aflição verificadas, como se sugere no recurso.

No que respeita à 5.ª Ré, FF, vice-presidente do conselho de administração da 1ª Ré e então superior hierárquica das 2.ª, 3.ª e 4.ª RR., não se identifica sequer, em face dos factos apurados, qualquer conduta contrária às indicadas recomendações médico-científicas.

Cremos, todavia, que não terá sido a circunstância do telefonema para o INEM ter sucedido cronologicamente às manobras realizadas pelas 2.ª, 3.ª e 4.ª RR. para a desobstrução das vias aéreas do GG que veio a determinar a respetiva morte.

Na verdade, ainda que tal telefonema tivesse sido feito em primeiro lugar não teria, com toda a probabilidade, evitado tal infeliz desfecho visto que as manobras levadas a cabo não tiveram sucesso e a obstrução das vias aéreas do GG era total, não passando nem saindo ar (ponto 85 supra).

Como vimos, ao fim de 1 minuto e meio com privação de oxigénio, uma criança daquela idade perde a consciência, fica inanimada, em paragem cardio-respitatória, a partir desse minuto e meio, ocorrem lesões cerebrais, de extensão variável e não cientificamente definida e após seis minutos com privação de oxigénio, o risco de lesões cerebrais, irreversíveis, e até mesmo de morte, é superior a 90% (pontos 59 a 61 supra).

Se tivermos em conta que as manobras de suporte básico de vida efetuadas pela 4.ª Ré e pela enfermeira se destinavam a manter a função cardíaca do GG e não a recuperar a sua função respiratória (ponto 62 supra), que o telefonema para o INEM foi realizado e atendido às 10h22m01s e que a respetiva equipa médica chegou à sala onde se encontrava o GG 10h30m43s, após o que procedeu à desobstrução das vias aéreas da criança com equipamento próprio (pontos 33 e 44 supra), forçoso será concluir que sempre seria superior àquele período temporal (mais de 8 minutos) a privação de oxigénio à criança, por conseguinte, com as inevitáveis consequências daí decorrentes.

Entende-se, em geral, como causa jurídica do prejuízo a condição que, pela sua natureza e em face das circunstâncias do caso, se mostre apropriada para o produzir, ou seja, que a causa será a condição adequada ao efeito correspondente. É o que se define por teoria da causalidade adequada.

(...)

Não se afigura, pois, que, nas circunstâncias do caso e em face da factualidade apurada, o telefonema para o INEM antes da execução, pelas 2.ª, 3.ª e 4.ª RR., de quaisquer manobras para desobstrução das vias aéreas do GG tivesse evitado o resultado que veio a produzir-se ou que a conduta destas tivesse, por qualquer forma, por ação ou omissão, provocado o infeliz desenlace do sinistro.

Não se encontram, deste modo, reunidos os pressupostos da responsabilidade civil que constituam as RR. na obrigação de indemnizar os AA..

Apesar de, como já acima se referiu, não se encontrar provada nos autos a celebração de um contrato de prestação de serviços de uma creche, relativamente ao menor GG, o simples facto deste frequentar a creche da 1.ª Ré, onde as 2.ª, 3.ª, 4.ª e 5.ª Rés exerciam funções (a 2.ª Ré era a educadora de infância da sala do berçário e do 1.° ano de idade, a 3.ª Ré era auxiliar de educação da sala do 1.° ano de idade, a 4.ª Ré era coordenadora e responsável da creche, sendo superior hierárquica das 2.ª e 3.ª Rés, e a 5.ª Ré era vice-presidente do conselho de administração da 1ª Ré, sendo superior hierárquica das 2.ª, 3.ª e 4.ª Rés), é suficiente para que exista um dever de assistência que incide sobre os funcionários da creche. Não é necessária uma relação contratual válida para que se constituam esses deveres, sendo bastante a assunção fáctica de uma atividade de guarda, proteção e cuidado das crianças que frequentam a creche.

Tendo-se verificado uma obstrução das vias respiratórias do menor GG, quando na creche da 1.º Ré que aquele frequentava lhe deram um pedaço de banana para comer, incidia sobre as funcionárias dessa creche que na altura se encontrassem presentes, o dever de prestar assistência ao menor de acordo com as regras técnicas recomendadas para este tipo de situações.

Está provado que as recomendações médico-científicas (leges artis) indicam que, não havendo no local profissionais de saúde que prestem imediato auxílio, deve ser contatado o INEM e, após, tentar extrair o objeto que obstrói as vias aéreas da criança, primeiro recorrendo a 5 pancadas intercostais, depois a 5 manobras de Heimlich, depois verificar com cuidado se existe algo no interior da boca que possa ser removido com os dedos, não o conseguindo, repetir as manobras até à desobstrução ou até à perda de consciência.

Para verificar o alegado incumprimento pelas 2.ª, 3.ª, 4.ª e 5.ª Rés do dever de assistência ao menor GG, há que ter em consideração os seguintes factos provados:

53) A menos de 50 metros da creche da 1ª Ré, identificada em 2), funcionava, no dia 26/09/2016, o Centro ... (centro de apoio à toxicodependência).

54) A cerca de 150 metros do local da creche da 1ª Ré, identificada em 2), funcionava, na manhã do dia 26/09/2016, desde as 8h00m, o Centro de Saúde ....

55) Na manhã do dia 26/09/2016, as Rés sabiam da existência do referido Centro de Saúde ....

Segundo a factualidade provada, foi o seguinte o desenrolar dos acontecimentos que se conseguiu apurar:

15) Em hora não concretamente determinada, mas posterior às 10h10m (do dia 26/09/2016, na creche da 1.ª Ré) a 3.ª Ré apercebeu-se que o menor GG se havia engasgado com o segundo pedaço da banana.

16) Nesse momento, apenas o menor GG, as restantes cinco crianças e a 3.ª Ré se encontravam na sala do 1° ano.

17) O menor GG não tossia, não gemia ou chorava, e não conseguia respirar.

18) Assim que se apercebeu do engasgamento do menor GG, a 3.ª Ré colocou-o sobre o seu braço esquerdo, de barriga para baixo, e deu-lhe cinco a seis pancadas nas costas.

19) Como o menor GG não reagiu às pancadas, nem expeliu a banana, a 3° Ré efetuou três a quatro manobras de Heimlich.

20) O menor GG permaneceu engasgado, sem tossir, gemer, chorar, emitir qualquer som.

21) Nessa sequência, a 3.ª Ré colocou os seus dedos no interior da boca menor GG para ver se encontrava alguma coisa, não o conseguindo.

22) Neste momento, a 3.ª Ré chamou pela 2.ª Ré, que se encontrava no gabinete da 4.ª Ré.

23) A 2.ª Ré não demorou mais de cinco segundos a acorrer à chamada da 3.ª Ré.

24) Quando a 2.ª Ré compareceu na sala do 1° ano, chamada pela 3.ª Ré, esta contou-lhe o que sucedera e o que já tinha feito para tentar desobstruir as vias aéreas do menor GG.

25) De imediato, a 2.ª Ré efetuou três a quatro manobras de Heimlich ao menor GG, momento em que este expeliu uma substância parecida com saliva.

26) Na presença da 2.ª Ré, o menor GG não tossiu, gemeu, chorou, emitiu qualquer som, nem mesmo após a realização das manobras de Heimlich.

27) Após efetuar as manobras de Heimlich, a 2.ª Ré constatou que o menor GG tinha o olhar fixo, sem reação.

28) Neste momento, a 2.ª Ré chamou em voz alta a 4.ª Ré, a qual compareceu, no máximo, cinco segundos depois na sala do 1° ano.

29) Ao ser-lhe relatado o sucedido ao menor GG, a 4.ª Ré chamou em voz alta a 5.ª Ré e, vendo o menor GG com o rosto pálido e os lábios cinzentos, pegou nele e executou duas a três manobras de Heimlich.

30) Após executar essas manobras, a 4.ª Ré sente o corpo do menor GG mole e decide colocá-lo no chão, de barriga para baixo.

31) Altura em que entra na sala do 1º ano a 5.ª Ré que ordena que liguem para o INEM, que telefonem aos pais do menor GG e que retirem as restantes cinco crianças da sala.

32) Cumprindo as ordens da 5.ª Ré, a 4.ª Ré telefonou para o INEM, a 2.ª Ré telefonou para a mãe do menor GG e, após este telefonema, as 2.ª e 3.ª Rés ausentaram-se da sala do 1º ano com as restantes cinco crianças.

33) A chamada telefónica para o INEM foi realizada e atendida às 10h22m01s.

36) Quando o INEM atendeu a chamada da 4.ª Ré, o menor GG encontrava-se inanimado, cianosado e a receber daquela manobras de suporte básico de vida.

37) Por telefone, o INEM instruiu a 4.ª Ré para continuar as manobras de suporte básico de vida pressionando, com dois dedos, o peito do GG, entre os mamilos, a uma cadência mais rápida que uma por segundo.

38) Durante dois a três segundos, a 4.ª Ré abrandou o ritmo da manobra, mas mediante novas instruções do INEM, retomou o ritmo necessário e assim o fez até à chegada de uma enfermeira à sala do 1º ano, pelas 10h29m28s.

39) Durante a chamada telefónica estabelecida entre a 4.ª Ré e o INEM, este perguntou duas vezes se havia algum enfermeiro(a) nas imediações, ao que a 4.ª Ré respondeu que não, tendo de imediato solicitado que a 3.ª Ré tentasse encontrar algum enfermeiro nas imediações.

42) A 3.ª Ré deslocou-se ao exterior da creche e segundos depois, já no exterior, encontrou uma enfermeira, pediu-lhe auxílio e encaminhou-a de imediato até à sala do 1º ano.

43) Quando a enfermeira chegou à sala do 1° ano substituiu a 4.ª Ré nas manobras de suporte básico de vida ao menor GG, o qual se manteve em paragem cardio-respiratória até chegar a equipa médica do INEM.

62) As manobras de suporte básico de vida efetuadas pela 4.ª Ré e pela enfermeira destinavam-se a manter a função cardíaca do menor GG e não a recuperar a sua função respiratória.

44) A equipa médica do INEM chegou à sala do 1º ano às 10h30m43s, procedeu às manobras de desobstrução das vias aéreas do menor GG com equipamento próprio, tendo tido sucesso.

45) Logo após, a equipa médica do INEM procedeu à reanimação cardíaca do menor GG, entubou-o, ventilou-o com saturação de 100% de oxigénio e transportou de ambulância até à urgência de pediatria do hospital 2.

51) O menor GG veio a falecer no hospital 2, pelas 16h36m do dia 28/09/2016.

52) A morte do menor GG ocorreu devido a encefalopatia hipóxica-isquémica, decorrente de asfixia causada por obstrução intrínseca das vias aéreas - engasgamento com banana.

O filme do sucedido revela-nos que a 3.ª Ré, quando se apercebeu da obstrução das vias respiratórias do menor GG, inicialmente colocou-o sobre o seu braço esquerdo, de barriga para baixo, e deu-lhe cinco a seis pancadas nas costas; seguidamente efetuou três a quatro manobras de Heimlich, sem que o menor tossisse, gemesse, chorasse ou emitisse qualquer som, o que revelava uma situação de obstrução total das vias respiratórias, e, finalmente, colocou os seus dedos no interior da boca do menor GG para ver se encontrava alguma coisa, o que não detetou. Durante todo este período de tempo em que efetuou tais procedimentos, a 3.ª Ré não efetuou qualquer diligência no sentido de ser imediatamente efetuado um contacto com o INEM e o Centro de Saúde ... que distava cerca de 150 metros da creche, no sentido de ser prestado socorro médico especializado, tal como é recomendado. Só após ter efetuado todos os referidos procedimentos, sem qualquer sucesso, a 3.ª Ré pediu auxílio à 2.ª Ré, que se encontrava no gabinete da 4.ª Ré.

A atuação da 3.ª Ré, perante a situação de emergência que se verificou, não respeitou, pois, os procedimentos que se encontram recomendados neste tipo de situações, em que, independentemente de se realizarem as manobras físicas de tentativa de desobstrução que ela efetuou, se deve, de imediato, solicitar socorro médico especializado, pelo que a 3.ª Ré deveria ter chamado a 2.ª Ré, logo após ter verificado a situação de obstrução, como veio a fazer mais tarde, para que, dividindo tarefas, fossem realizadas as referidas manobras de desobstrução e, simultaneamente, os devidos contactos com o INEM e com o Centro de Saúde próximo [8].

A 2.ª Ré, após ter acudido ao chamamento da 3.ª Ré, efetuou três a quatro manobras de Heimlich ao menor GG, momento em que este expeliu uma substância parecida com saliva, sem que tenha emitido qualquer som e com o olhar fixo, sem reação.

Só após a realização, sem qualquer sucesso, destas manobras, a 2.ª Ré decidiu chamar em voz alta a 4.ª Ré, a qual compareceu, no máximo, cinco segundos depois, na referida sala, não tendo também a 2.ª Ré diligenciado no sentido de ser contatado o INEM e o Centro de Saúde próximo, incorrendo, pois, no mesmo tipo de incumprimento dos procedimentos recomendados para este tipo de situações que a 3.ª Ré.

 A 4.ª Ré, ao ser-lhe relatado o sucedido ao menor GG, chamou em voz alta a 5.ª Ré e, vendo o menor GG com o rosto pálido e os lábios cinzentos, pegou nele e executou duas a três manobras de Heimlich. Após executar essas manobras, e ao sentir o corpo do menor GG mole, o que revelava que ele estaria já inconsciente, decidiu colocá-lo no chão, de barriga para baixo.

Também a 4.ª Ré não teve a iniciativa de diligenciar no sentido de serem efetuados contatos com o INEM e com o Centro de Saúde ..., solicitando auxílio médico, prolongando mais uma vez o tempo de demora de intervenção de profissionais de saúde, incumprindo, assim, igualmente os procedimentos recomendados para este tipo de situações.

A 5.ª Ré quando chegou à sala onde estava o menor GG deu ordens no sentido de ser efetuado uma chamada telefónica para o INEM, e cumprindo as ordens da 5.ª Ré, a 4.ª Ré telefonou finalmente para o INEM, tendo a chamada telefónica sido realizada e atendida às 10h22m01s.

Seria apenas, nesse telefonema que, por sugestão do INEM, a 4.ª Ré solicitou que a 3.ª Ré tentasse encontrar algum enfermeiro nas imediações, tendo esta última se deslocado ao exterior da creche, onde, segundos depois, já no exterior, encontrou uma enfermeira, tendo-lhe pedido auxílio e encaminhado de imediato até à sala do 1º ano. Atento o estado de inconsciência do menor, esta enfermeira limitou-se a efetuar as manobras de suporte básico de vida, substituindo a 4.ª Ré que se encontrava a efetuar essas manobras, seguindo orientação telefónica dos serviços do INEM.

Apesar da 5.ª Ré ter ordenado que se telefonasse para o INEM, não determinou que se procurasse auxílio médico no Centro de Saúde próximo.

Embora o menor GG, na altura, já se encontrasse inconsciente, não sendo já viáveis as manobras de desobstrução meramente físicas, e sendo provável que no Centro de Saúde próximo não existisse, no momento, pessoal especializado e aparelhos próprios para efetuar a desobstrução através de métodos mecânicos (introdução de uma cânula na garganta do menor e recurso a um aparelho de aspiração), deveria essa via de socorro ter sido tentada, em simultâneo com a chamada para o INEM, uma vez que, embora não existindo certezas, nem mesmo fortes probabilidades, havia a possibilidade de se obter uma intervenção de pessoal médico mais atempada do que a do INEM, atenta a proximidade das instalações.

Daí que, também a 5.ª Ré, embora em menor grau, não tenha deixado de incumprir o dever de assistência que sobre ela também incidia, enquanto superior hierárquica das 2.ª, 3.ª e 4.ª Rés.

No desenrolar da atuação destas quatro Rés, perante a gravidade da ocorrência e a urgência de uma intervenção médica, desde o início que não souberam e tinham obrigação de saber, pelas funções que desempenhavam, articular-se, de modo a que, sem prejuízo de procederem às manobras físicas recomendadas, enquanto o menor esteve consciente, acionarem de imediato o contacto com o INEM e com o Centro de Saúde ... de modo a tentarem obter, no mais curto período de tempo possível, uma intervenção médica. Tenha-se presente que desde os primeiros momentos em que foi detetada a obstrução das vias respiratórias do menor GG, os sinais deste, denunciavam a gravidade da situação - o menor GG não tossia, não gemia ou chorava, e não conseguia respirar (ponto 17 da matéria de facto provada).

A circunstância de constar da lista da factualidade não provada, elaborada pela sentença da 1.ª instância e validada pelo Tribunal da Relação, sob a alínea s), (não se provou) que as 2.ª, 3.ª, 4.ª e 5.ª Rés não observaram os seus deveres de cuidado, vigilância e auxílio do e ao menor GG, a que se achavam adstritas, por a tal cometidas pela 1ª Ré, não obsta à conclusão contrária à acima retirada, uma vez que aquela menção na lista dos factos não provados não tem qualquer eficácia processual, uma vez que não estamos perante um facto sujeito a prova, mas sim perante uma conclusão jurídica, pelo que a sua menção na lista dos factos não provados é processualmente incorreta, não impedindo que o tribunal de revista retire conclusão jurídica oposta, sem alteração da matéria de facto provada e não provada.

O acórdão recorrido embora tenha detetado o incumprimento do dever de assistência por parte das 2.ª, 3.ª e 4.ª Rés (afastou qualquer incumprimento por parte da 5.ª Ré), no entanto, não concluiu, pela responsabilidade daquelas, tal como já havia sucedido com a sentença proferida na 1.ª instância, por não se lhe afigurar, que, nas circunstâncias do caso e em face da factualidade apurada, o telefonema para o INEM antes da execução, pelas 2.ª, 3.ª e 4.ª RR., de quaisquer manobras para desobstrução das vias aéreas do GG tivesse evitado o resultado que veio a produzir-se ou que a conduta destas tivesse, por qualquer forma, por ação ou omissão, provocado o infeliz desenlace do sinistro, tendo excluído, por esse motivo, o direito de indemnização invocado pelos Autores.

Ambas as decisões afastaram, pois, a existência de um nexo de causalidade entre o incumprimento do dever de assistência e a morte do menor GG, com fundamento na verificação do mesmo resultado danoso, perante um hipotético comportamento lícito alternativo.

O raciocínio que conduziu a esta conclusão encontra-se pormenorizadamente explicitado na motivação da matéria de facto da sentença da 1.ª instância, cuja conclusão foi acolhida pelo acórdão recorrido, onde se lê

Quanto à tentativa de procurar ajuda médica/enfermagem no Centro de Saúde ..., a mesma seria expetável/razoável (quer mediante um telefonema, quer mediante a deslocação de uma das Rés ao edifício). É importante, contudo, ter presente que o menor GG não conseguia respirar desde o momento em que se engasgou. A obstrução das vias aéreas era total, pelo que lhe restava um minuto e meio até consumir o oxigénio que ainda continha e perder a consciência. Num minuto e meio as Rés teriam conseguido estabelecer a ligação para o Centro de Saúde, mas não pode o tribunal concluir, sem margem para dúvidas, que a chamada telefónica seria imediatamente atendida e que o socorro médico/enfermeiro fosse acionado e chegasse ao local antes de decorrido 1 minuto e meio. Atendendo à distância entre a creche e o Centro de Saúde ... – 200 metros e à alta probabilidade de não se encontrar um profissional imediatamente disponível (estaria a realizar consulta, pensos, vacinas, etc, aos utentes da unidade de saúde), este auxílio demoraria, pelo menos, um minuto e meio a chegar, altura que coincidiria com a perda de consciência do menor GG, restando ao médico/enfermeiro que aí comparecesse proceder à massagem cardíaca até chegar a ambulância do INEM – VMER. Acresce que, no caso concreto, a desobstrução das vias aéreas só foi possível pela equipa do INEM, mediante métodos mecânicos/artificiais (introdução de uma cânula na garganta do menor e recurso a um aparelho de alta pressão que aspirou o pedaço de banana). Estes métodos, além de requererem aparelhos próprios, exigem o domínio da manobra de suporte avançado de vida, que só um médico/enfermeiro intensivista se encontra habilitado para o fazer com sucesso (e não um médico/enfermeiro de um centro de saúde), conforme declarou a testemunha PP. Daí que o tribunal não tenha considerado provado que a procura de auxílio no Centro de Saúde tivesse prevenido o sucedido ao menor GG.

É verdade que as 2.ª, 3.ª e 4.ª Rés não chamaram de imediato o INEM, antes tendo optado por socorrer o menor. É verdade também que, desde o engasgamento até à chamada telefónica para o INEM podem ter decorrido 1 minuto e meio (tempo máximo até ocorrer a perda de consciência por obstrução total das vias aéreas, sendo que no início da chamada já o menor estava inconsciente) e, no máximo, 12 minutos (tempo decorrido entre o fim do reforço alimentar – 10h10m – e o início da chamada telefónica). Contudo, o tribunal não pôde concluir que se deveu a conduta das Rés a falta de adopção dos procedimentos adequados à preservação da saúde e da própria vida do menor.

(...)

Esta ambulância demorou 8m e 42 s a chegar ao local.

Assim, o dito auxílio (vindo do Centro de Saúde) teria ainda de esperar sete minutos pela ambulância e, até lá, manter a função cardíaca do menor.

Ora, mesmo que o engasgamento tivesse ocorrido logo às 10h10m, e tivesse comparecido um médico/enfermeiro no local no tempo record de 1m e 30s (o que não resultou demonstrado que fosse possível), sempre a ambulância teria chegado às 10h18m42s. Neste momento, já havia ocorrido perda de consciência do menor GG (o que aconteceu ao minuto e meio de privação total de oxigénio, ou seja, segundo a tese dos Autores, às 10h11m30s), bem como tinham decorrido 8m e 42s de privação de oxigénio, tempo este que causou lesões cerebrais irreversíveis no menor GG, superiores a 90% (curva de drinker) e, muito provavelmente a sua morte cerebral.

Retirou-se da alta probabilidade do socorro médico que era possível obter no Centro de Saúde não chegar a tempo de encontrar o menor GG consciente e desse socorro não se encontrar apetrechado para proceder à desobstrução das vias respiratórias deste, assim como da elevada probabilidade do tempo que o INEM demoraria a comparecer na creche não ser suficiente para evitar o desfecho fatal que se veio a verificar, a conclusão de que mesmo que o comportamento devido tivesse sido observado a morte do menor GG não teria deixado de ocorrer.

Efetivamente provou-se o seguinte:

59) Ao fim de 1 minuto e meio com privação de oxigénio, uma criança da idade do menor GG perde a consciência (fica inanimado; paragem cardio-respitatória).

60) A partir desse minuto e meio, ocorrem lesões cerebrais, de extensão variável e não cientificamente definida.

61) Após seis minutos com privação de oxigénio, o risco de lesões cerebrais, irreversíveis, e até mesmo de morte, é superior a 90%.

Se o reconhecimento de que um comportamento alternativo lícito do agente seria irrelevante, relativamente à verificação do dano, permite excluir a existência de um nexo de causalidade entre o incumprimento do dever e o dano, uma vez que este deixa de estar compreendido na esfera de risco inerente ao incumprimento [9], exige-se para que ocorra essa exclusão que haja um grau de probabilidade muito elevado, próximo da certeza, de que o dano se teria verificado independentemente da inobservância do dever de conduta [10], pois, só esse elevado grau de probabilidade conseguiria excluir totalmente o contributo do incumprimento do dever para o risco de verificação do dano ocorrido.

Neste caso, a matéria de facto provada não permite que se extraia com esse grau seguro de probabilidade a conclusão que foi retirada pelas instâncias, segundo a qual, mesmo que se tivesse entrado em contato imediatamente com o INEM e com o Centro de Saúde ..., a morte do menor GG não teria sido evitada, pelo que o incumprimento pelas Rés do respetivo dever de ação foi irrelevante para o desfecho trágico ocorrido. Na verdade, embora fosse uma hipótese muito provável, nada nos garante que o Centro de Saúde ..., naquele momento, não pudesse fornecer os meios humanos e técnicos necessários para desobstruir atempadamente as vias respiratórias do menor GG, assim como, a elevada percentagem do risco de morte 6 minutos após se iniciar a privação de oxigénio e o tempo que demorou o INEM a comparecer nas instalações da 1.ª Re - 8 minutos e 42 segundos – indiciem como muito provável que o contacto se efetuado imediatamente não permitiria uma intervenção desses serviços que impedisse a morte do menor GG, não deixa de se encontrar no domínio de uma mera probabilidade, ainda distante da certeza.

Estamos, pois, perante uma situação em que, apesar de se verificar uma probabilidade significativa da hipótese do cumprimento do dever omitido não evitar o dano ocorrido, não deixa de ser apenas um juízo probabilístico, constatando-se que o incumprimento das leges artis pelas 2.ª, 3.ª, 4.ª e 5.ª Rés agravou o risco de verificação do resultado ocorrido, não sendo por isso legítimo concluir pela total inexistência de um nexo de causalidade entre o ato ilícito (o incumprimento do dever) e o dano. Ocorre antes um caso em que o risco que a exigência do dever inobservado pretendia prevenir é agravado pelo incumprimento desse dever, pelo que não deixa de existir um nexo causal, embora atenuado, entre o ilícito e o dano constituído por esse agravamento, o qual diminuiu as possibilidades de o dano em causa ser evitado.

Nestas situações, em que o nexo causal assume esta peculiar configuração, o princípio constitucional da reparação dos danos injustificados, por um lado, e a ideia de uma justiça comutativa, por outro, devem-nos impedir de obter uma conclusão sobre o dever de indemnizar que resulte num “tudo ou nada”, sendo antes desejável uma solução que concilie estes dois princípios, optando-se por uma indemnização que procure obter uma reparação na medida do agravamento do risco de dano resultante do incumprimento do dever inobservado [11], aceitando-se uma “causalidade possível”, com a correspondente responsabilidade proporcional, num direito da responsabilidade civil perspetivado como um sistema móvel, em que, no caso, o insustentável peso da gravidade do dano exige menor exigência na consistência da textura do nexo causal [12],

Estando nós perante uma situação em que é aplicável o disposto no artigo 494.º do Código Civil, uma vez que estamos perante um pedido de indemnização por danos exclusivamente não patrimoniais (artigo 496.º, n.º 4, do Código Civil), permite-nos aquele dispositivo [13], fixar, equitativamente, um valor indemnizatório, em montante inferior ao que corresponda aos danos sofridos, desde que as circunstâncias do caso o justifiquem. Ora, tendo sido inobservado um específico dever de assistência que procura que o socorro médico a uma situação de obstrução total das vias respiratórias seja acionado imediatamente, o que agravou o risco dessa obstrução provocar a morte da vítima por falta de intervenção médica especializada atempada, pelas razões acima explicitadas, justifica-se a atribuição de uma indemnização, a cargo dos inadimplentes desse dever, em valor correspondente ao agravamento do risco causado [14].

Tendo em consideração a elevada probabilidade, pelas razões acima transcritas, adiantadas na sentença da 1.ª instância e acolhidas pelo acórdão recorrido, do cumprimento hipotético do dever inobservado não ter logrado salvar a vida ao menor GG, atenta a urgência da adoção de medidas especializadas face à situação de obstrução total das vias respiratórias e do insucesso das manobras físicas recomendadas, recorrendo a um juízo de equidade, atento o grau elevado dessa probabilidade, deve a redução do valor indemnizatório, num juízo equitativo, ser fixada em 75% do valor reparador dos danos sofridos,

4. Dos valores indemnizatórios

Os Autores pediram que lhes fossem pagos os seguintes valores indemnizatórios:

- € 30.000,00, a título de indemnização pelo sofrimento sofrido pelo menor GG no período que antecedeu a sua morte;

- € 80.000,00, a título de indemnização pelo dano morte;

- € 30.000,00, a título de indemnização pelos danos morais sofridos e futuros da Autora, com a morte do seu filho.

- € 30.000,00, a título de indemnização pelos danos morais sofridos e futuros do Autor, com a morte do seu filho.

Os Autores são os legítimos titulares destes direitos de indemnização, nos termos do artigo 496.º do Código Civil.

Tendo em atenção todas as circunstâncias do caso e os padrões indemnizatórios adotados, nos tempos mais próximos, pela jurisprudência, neste tipo de danos, os valores peticionados afiguram-se adequados enquanto valores compensatórios para os danos a que respeitam, tendo em atenção o valor da moeda à data do termo da audiência de julgamento em 1.ª instância (artigo 611.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) – 14.07.2021,

Pelas razões acima explicitadas no ponto 3.2., estes valores devem ser reduzidos numa percentagem de 75%.

A obrigação do pagamento dos valores reduzidos recai, solidariamente, sobre as 2.ª, 3.ª, 4.ª e 5.ª Rés, que incumpriram o dever de assistência que sobre elas recaía, assim como sobre a 1.ª Ré, nos termos do artigo 500.º, n.º 1, do Código Civil.

Sendo esta última outorgante de um contrato de seguro celebrado com a Interveniente, através do qual foi transferida para esta a responsabilidade pelos danos sofridos por terceiros na creche, cuja responsabilidade seja imputável a funcionários desta, no exercício das suas funções, a Interveniente também é solidariamente devedora do valor das indemnizações até ao limite do capital seguro para este tipo de danos – € 25.000,00 -, o qual é cumulável com o limite para a indemnização pelo dano de morte - € 1.000,00 - que a Interveniente já foi condenada a pagar aos Autores, por decisão que já transitou em julgado.

Acrescem aos valores indemnizatórios, juros de mora, desde 14.07.2021, até integral pagamento desses valores, calculados sobre eles, à taxa definida por lei.

5. Conclusão

Face ao exposto devem as Rés serem, solidariamente, condenadas a pagar:

- aos Autores – € 27.5000,00 = 25% de € 30.000,00 + € 80.000,00.

- à Autora AA: € 7.500,00 = 25% de € 30.000,00.

- ao Autor BB: € 7.500,00 = 25% de € 30.000,00.

A Interveniente deve também ser condenada, solidariamente com as Rés, a pagar estas mesmas quantias, mas apenas até ao limite global de € 25.000,00, para além do valor de € 1.000,00 que já foi condenada a pagar aos Autores.

A estes valores acresce o pagamento de juros de mora, calculados sobre eles, desde 14.07.2021 até ao seu integral pagamento.

                                               *

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso interposto e decide-se:

a) revogar o acórdão recorrido;

b) julgar parcialmente procedente a presente ação;

c) condenar as Rés a, solidariamente, pagarem aos Autores € 27.500,00;

d) condenar as Rés a, solidariamente, pagarem à Autora AA a quantia de € 7.500,00;

e) condenar as Rés a, solidariamente, pagarem ao Autor BB a quantia de € 7.500,00;

f) condenar a Interveniente a, solidariamente com as Rés, pagar € 25.0000,00 do valor global das quantias acima mencionadas, para além do valor de € 1.000,00 que já foi condenada a pagar aos Autores;

g) condenar as Rés a, solidariamente, pagarem juros de mora sobre as quantias referidas em c), d) e e), desde 14.07.2021, até ao seu integral pagamento.

h) condenar a Interveniente a, solidariamente com as Rés, pagar juros de mora sobre a quantia de € 25.000,00, desde 14.07.2021, até ao seu integral pagamento.

                                               *

Custas da ação e dos recursos, na proporção de ¾ pelos Autores e ¼, solidariamente, pelas Rés e pela Interveniente, esta apenas no que respeita a 60% das custas devidas pelas Rés.

                                               *

Notifique.

                                               *

Lisboa, 27 de abril de 2023

João Cura Mariano (Relator)

Fernando Baptista

Vieira e Cunha

____

[1] LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALAXANDRE, Código de Processo Civil, vol. 2º, 3.ª ed., Almedina, 2017, p. 209.
[2] Dispunham anteriormente nesta matéria os artigos 2377º a 2379º do Código de Seabra.
[3] Preceitos idênticos encontram-se noutros ordenamentos jurídicos que nos são próximos, como nos artigos 1384.º do Código Civil Francês, 2407.º, do Código Civil Italiano, 333º do Código Civil Suíço, e 1903.º do Código Civil Espanhol.
[4] VAZ SERRA, Responsabilidade de Pessoas Obrigadas à Vigilância, B.M.J. n.º 85, p. 396.
  Sobre as razões sociológicas do favorecimento de uma responsabilidade in vigilando, JEAN CARBONNIER, Droit Civil, Tomo 4, 20ª ed., Puf, 1966, p. 402.
[5] Ludwig Ennecerus, Derecho de Obligaciones, trad, espanhola, Tomo II, 2.ª parte, 3.ª ed., Bosch, 1966, p. 1126.
[6] VAZ SERRA, ob. cit., p. 424, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1987, p. 493. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil Português, Vol. II, tomo III, Almedina, 2010, p.576, e Código Civil Comentado, vol. II, Almedina, 2021, p. 430, ANA PRATA, Código Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2017, p.638, MARIA CLARA SOTTOMAYOR, A Responsabilidade Civil dos Pais pelos Factos Ilícitos Praticados pelos Filhos Menores, B.F.D.UC., vol. LXXI, p. 411, e RUI ATAÍDE, Direito das Obrigações, vol. I, Gestlegal, 2022, p. 391, nota 350, embora este último Autor, em Responsabilidade Civil por Violação de Deveres de Tráfego, Almedina, 2015, p. 983, aparente, admitir uma interpretação extensiva do disposto no artigo 491º às situações em que o lesado é o próprio incapaz.
[7] VAZ SERRA, Responsabilidade pelos Danos Causados por Coisas ou Atividades, B.M.J. nº 85, p. 375.
[8] Já não se afigura como exigível o contacto com o Centro de Atendimento a Toxicodependentes, atenta a altíssima improbabilidade de nesse estabelecimento, atentas as suas funções, se encontrar apoio médico adequado à situação.
[9] SINDE MONTEIRO, Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Almedina, 1989, p. 286-291, RUI ATAÍDE, Responsabilidade Civil por Violação de Deveres de Tráfego, cit., p. 929-943, e Direito das Obrigações, cit., p. 433, HENRIQUE ANTUNES, Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, p. 557, MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Responsabilidade Civil Extracontratual. Novas Perspetivas em Matéria de Nexo de Causalidade, Principia, 2014, p. 78 e seguintes.
[10] MAFALDA MIRANDA BARBOSA, ob. cit., p. 91.
[11] Nesse sentido, numa perspetiva de iure condendo, SINDE MONTEIRO, ob. cit., p. 291-300.
[12] Sobre a necessidade de, neste tipo de casos, dever prevalecer uma “causalidade ética”, em que se devem procurar alcançar decisões de bom senso, MENEZES CORDEIRO, Código Civil Comentado, vol. II, cit., p. 569-570.
[13] O recurso ao disposto no artigo 494.º para reconhecer um direito de indemnização proporcionado à elevação do risco é sugerido por PAULO MOTA PINTO, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. II, p. 1106, nota 3103. Vide também RUTE TEIXEIRA PEDRO, A Responsabilidade Civil do Médico. Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado, Almedina, 2009, p. 416.
    MAFALDA MIRANDA BARBOSA, Do nexo de causalidade ao nexo de Imputação: contributo para a compreensão da natureza binária e personalística do requisito causal ao nível da responsabilidade civil extracontratual, p. 1111, nota 2327, acessível em http//hdl.handle.net/10316/23223, embora prefira, em regra, uma solução “tudo ou nada”, admite que haja situações, em que por outra via (o artigo 494.º ?), se reduza a indemnização.
[14] Também seria possível alcançar a mesma solução através da figura da indemnização do dano da perda de chance, na perspetiva que o incumprimento do dever de assistência pelas Rés determinou a diminuição das possibilidades de o menor poder ter sido socorrido eficazmente em tempo útil, num juízo semelhante ao que tem vindo a ser seguido no domínio da responsabilidade civil médica, desde que se atenuasse a exigência do limiar mínimo da consistência e seriedade da perda de chance para a mesma ser relevada como dano indemnizável (v.g. RUTE TEIXEIRA PEDRO, A Responsabilidade Civil do Médico. Reflexões Sobre a Noção de Perda de Chance e a Tutela do Doente Lesado, Almedina, 2009, p. 413 e seg. e em A Dificuldade de Demonstração do Nexo de Causalidade nas Ações Relativas á Responsabilidade Civil do Profissional Médico – Dos Mecanismos Jurídicos para uma Intervenção Pro Damnato, Revista do CEJ, n.º 15 (2011), p. 57-60, RUI CARDONA FERREIA, A Perda de Chance na Responsabilidade Civil por Acto Médico, Revista de Direito Civil, Ano 2 (2017), p. 513 e seg., PATRÍCIA CORDEIRO DA COSTA, Causalidade, Dano e Prova. A Incerteza na Responsabilidade Civil, Almedina, 2020, NUNO PINTO DE OLIVEIRA, Ilicitude e Culpa na Responsabilidade Médica, p. 118 e seg., e BRUNA NOGUEIRA DE SOUSA, Da Perda de Chance na Responsabilidade Civil Médica, Almedina, 2022, p. 93 e seg.