Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2373/10.8TBVLG.P2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO PIÇARRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
PRESSUPOSTOS
HIPOTECA
ACTO ONEROSO
ATO ONEROSO
MÁ FÉ
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/01/2017
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS PATRIMONIAS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Doutrina:
- António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X, Direito das Obrigações, Garantias, Almedina, 2015, 352 e ss., 362, 377.
- João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª edição, 446, 447 a 451.
- José Carlos Brandão Proença, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra Editora, 2011, 411 a 414.
- José de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª edição, 453, 456.
- Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, Almedina, 2002, 294; Garantia das Obrigações, 2012, 4.ª edição, 58, 59, 63 a 69.
- Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, Almedina, 857, 861 a 867.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, Volume I, 4.ª edição, 626.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 610.º, 611.º, 612.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 607.º, N.º 5, 662.º, N.ºS 1, 2 E 4, 674.º, N.ºS 1 A 3, E 682.º, N.ºS 1 E 2.
LEI DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO – LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO: - ARTIGO 46.º.
Sumário : Sumário elaborado pelo relator (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).

*


I – A impugnação pauliana constitui um instrumento jurídico conferido aos credores, com vista à conservação da garantia geral do cumprimento de obrigações, com ele se tutelando o interesse dos credores contra o desvio do património pelo devedor que implique obstáculo absoluto à satisfação dos seus créditos ou o seu agravamento.

II - A sua procedência depende, segundo os arts. 610.º a 612.º do Cód. Civil, da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:

- Realização pelo devedor de um acto que diminua a garantia patrimonial do crédito (eventus damni) e não seja de natureza pessoal.

- Anterioridade do crédito em relação ao acto ou, sendo ele posterior, prática do acto dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor.

- Natureza gratuita do acto ou, sendo ele oneroso, que alienante e adquirente tenham agido de má fé.

- Impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade.

III – A constituição de hipoteca, embora não aumente o passivo do devedor garante, diminui a garantia patrimonial dos restantes credores, sendo essa diminuição que terá de ser ponderada e contar como critério decisivo para a concessão da pauliana.

IV - Tendo a hipoteca sido constituída para garantir um empréstimo de que os Réus devedores também beneficiaram o acto é oneroso, na medida em que a garantia resultante da hipoteca foi obtida a troco de uma contraprestação (o empréstimo).

V - Tratando-se de um acto oneroso, a impugnação só pode proceder se tiver havido má fé, simultaneamente por parte de todos os Réus, incluindo o credor garantido.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Relatório


I AA, residente em E…, intentou acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra BB, sua mulher, CC, e a filha de ambos DD, residentes em E…, alegando, em síntese, que:

No âmbito da sua actividade comercial, forneceu aos Réus BB e CC carne verde, no valor total de €35 484,57, montante não pago por aqueles.

Instaurou acção para reconhecimento desse crédito, em 2004, altura em que ainda se encontrava livre de ónus ou encargos a fracção autónoma designada pela letra “D”, sita na Rua …, n.º ….º, 3.º, em E…, V…, de que esses Réus são legítimos proprietários.

Posteriormente, a Ré DD, filha dos primeiros Réus, celebrou um contrato de mútuo com a Caixa EE, tendo os seus pais, em garantia do pagamento de tal mútuo, constituído hipoteca voluntária sobre a aludida fracção, até ao montante máximo de €67 400,00 com o claro objectivo de se subtraírem ao cumprimento das obrigações assumidas para com o Autor.

Com tais fundamentos, concluiu por pedir a declaração de ineficácia da constituição dessa hipoteca e cancelamento do respectivo registo, em relação a si, na medida em que tal se mostrar necessário para integral satisfação do seu crédito sobre os réus devedores.

Os Réus contestaram, sustentando, em resumo, que a decisão judicial proferida na aludida acção ainda não havia transitado em julgado, no momento da propositura da presente, e que, com a realização do empréstimo e hipoteca, não tiveram intenção de prejudicar o Autor que até já procedeu ao arresto do estabelecimento comercial, concluindo, por isso, pela improcedência da acção.

Em resposta, o Autor juntou o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que condenou os primeiros Réus a pagar ao Autor a quantia de €35 484,57, acrescida dos respectivos juros moratórios, à taxa comercial.

Acedendo ao convite que lhe foi dirigido, o Autor aperfeiçoou o seu articulado e requereu a intervenção provocada da Caixa EE que, uma vez citada, ofereceu contestação, alegando, em resumo, que o mútuo celebrado teve como objectivo a regularização de dívidas decorrentes da actividade comercial dos primeiros Réus, sendo por isso um acto oneroso e que nunca pretendeu prejudicar qualquer credor dos mesmos, tendo sempre actuado de boa fé.

Foi elaborado despacho saneador, seguido de selecção da matéria de facto já assente e organização da base instrutória.

Através de incidente de habilitação de cessionário que correu termos por apenso, foi a posição do Autor transmitida a FF.

Após a audiência final, foi proferida sentença a julgar a acção procedente e a declarar a pretendida ineficácia da hipoteca sobre a aludida fracção autónoma.

Apelou a Caixa EE, tendo a Relação do Porto anulado a decisão referente à matéria de facto, por violação do princípio do contraditório quanto ao facto provado n.º 10, determinando a sua ampliação, o que foi feito, com realização de nova audiência e prolação de nova sentença, datada de 14/03/2016, que, na total procedência da acção, “declarou ineficaz em relação ao Autor a hipoteca concedida por parte dos primeiros Réus à terceira Ré sobre o imóvel correspondente à fracção designada pela letra “D”, sita na Rua …, n.º …, 3.º, freguesia de E…, concelho de V…, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 44…-D e descrito na Conservatória do Registo Predial de V… sob o número 037…/26…-D, podendo este executá-lo no património dos primeiros Réus, BB e CC, sem que a terceira Ré, Caixa EE, possa reclamar créditos sobre tal imóvel”.

Apelou, de novo, a Caixa EE, tendo a Relação do Porto alterado o ponto nº 1o da matéria de facto e, na sequência, revogado a sentença da 1ª instância, determinando a absolvição dos Réus do pedido e manutenção da eficácia da hipoteca, perante o Autor, por considerar que não se verificam os requisitos da impugnação pauliana.

Agora, inconformado, interpôs o cessionário habilitado recurso de revista, finalizando a sua alegação, com as seguintes conclusões:

A. Dispõe o art. 610.º do Código Civil que «os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor se concorrerem as circunstâncias seguintes: a) ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; b) resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade.»

B. O art. 612.º, nº 1, do Código Civil que «o acto oneroso só está sujeito à impugnação pauliana se o devedor e o terceiro tiverem agido de má fé.»

C. A má-fé que se exige e há-de verificar-se é a má-fé psicológica ou subjectiva que se traduz na actuação com conhecimento da verificação de prejuízo resultante do contrato sujeito a impugnação, isto é, com a representação pelo agente do resultado danoso, no momento da celebração do acto.

D. Havendo consciência do prejuízo que o acto poderá causar é indiferente que o agente esteja convencido de que ele se produza, que apenas o admita como possível ou mesmo que confie que o mesmo não venha a verificar-se.

E. 0 facto dado como provado no ponto 10 dos factos julgados provados é, desde logo, uma decorrência da lei, i. e., art. 686.º, n.º 1, do Código Civil.

F. A recorrida "Caixa EE" tinha conhecimento de que a constituição de uma hipoteca sobre o único bem dos Réus conferia-lhe o benefício de ser paga antes dos demais credores.

G. Tal situação, objectivamente, configura uma diminuição das garantias de recebimento dos credores.

H. A recorrida "Caixa EE" sabia que, em caso de incumprimento por parte dos mutuários, o seu crédito estaria sempre garantido, independentemente dos créditos os demais credores serem anteriores aos dela, como é o caso do recorrente, sendo certo que conhecia a existência de créditos anteriores ao dela.

I. Por via da constituição da hipoteca, garantindo o crédito da recorrida "Caixa EE", estaria efectivamente implementada uma forma de impedir que a penhora desse bem a requerimento dos credores, naturalmente subsequente à constituição daquelas garantias, viesse a facultar a sua execução para pagamento a esta, pois sempre haveria de satisfazer primeiramente aquele crédito garantido.

J. Todos os Réus tinham, por isso, consciência que o negócio em causa diminuiria as possibilidades de os demais credores daqueles verem satisfeitos os seus créditos, não obstante serem anteriores, conformando-se com tal situação.

K. Note-se que a recorrida sabia que os débitos dos 1°s Réus eram de pelo menos €70 000,00, justamente o valor inicialmente pedido e que ao emprestar apenas €50 000,00, os remanescentes credores iriam sair prejudicados com o negócio.

L. Tudo o quanto se deixou exposto demonstra o desajuste da decisão recorrida, que julgou procedente o recurso deduzido pela "Caixa EE" e, consequentemente, revogou a sentença proferida em primeira instância e determinou a absolvição dos Réus dos pedidos formulados, mantendo a eficácia perante o Autor da hipoteca em causa nos autos.

M. Foram violados, entre outros, os arts. 610.º e 612.º, ambos do Código Civil.

Pede em consequência a revogação do acórdão recorrido e a subsistência do sentenciado na primeira instância.

Não foi oferecida contra-alegação e, colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II - Fundamentação de facto

A factualidade dada como provada, nas instâncias, é a seguinte:

1. AA dedica-se à actividade de comércio de carne verde, a retalho - alínea A) da matéria de facto assente.

2. No dia 20/11/2003, AA instaurou contra os Réus BB e CC providência cautelar de arresto, que correu seus termos sob o n.º 4591/03.6YBVLG do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de V…, no âmbito da qual foi ordenado o arresto sobre o estabelecimento comercial designado “GG”, sito na Rua …, …, em E…, realizado a 20/11/2003 - alínea B) da matéria de facto assente.

3. No dia 09/01/2004, AA interpôs contra os Réus BB e CC acção declarativa de condenação, com a forma de processo ordinário, que correu seus termos sob o n.º 110/04.5TBVLG do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de V…, peticionando a sua condenação no pagamento da quantia de € 35.484,57, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, no qual foi proferida decisão definitiva, por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, em 16/11/2010, julgando, em síntese, tal pedido procedente - alínea C) da matéria de facto assente.

4. No dia 30/08/2005, por escrito, perante notário, a Ré Caixa EE declarou entregar a título de empréstimo, destinado a ser utilizado em investimentos múltiplos não específicos em bens imóveis, a DD, a quantia de € 50.000,00, da qual a mesma declarou ser devedora, tendo ainda declarado constituir a favor daquela, que declarou aceitá-la, hipoteca voluntária sobre a fracção autónoma designada pela letra “P”, correspondente a uma habitação no 3.º andar direito e lugar de garagem “P-1” na cave, com 12,5 m2, sita na Avenida …, n.ºs … e …, em E…, V…, inscrita na respectiva matriz sob o artigo 87…-P, com o valor patrimonial de € 71.584,48, descrito na Conservatória do Registo Predial de V… sob o número 042…/02…-P, da freguesia de E…, inscrita a favor de DD através da inscrição G-1, Ap. 4..., de 29/04/1997 - alínea D) da matéria de facto assente.

5. Nessa mesma ocasião, por escrito, perante notário, BB e CC declararam, para garantia do aludido empréstimo contraído por DD, constituir hipoteca voluntária a favor de Caixa EE, que declarou aceitá-la, sobre a fracção autónoma designada pela letra “D”, correspondente a um estabelecimento no segundo piso da Rua …, n.º …, da freguesia de E…, concelho de V…, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 44…-D, com o valor patrimonial de € 43.187,00, descrito na Conservatória do Registo Predial de V… sob o número 037…/26…-D, da freguesia de E…, inscrito a seu favor pela inscrição G-1, Ap. 1..., de 18/10/1990 - alínea E) da matéria de facto assente.

6. Tal hipoteca encontra-se inscrita através da Ap. 7…/20… - alínea F) da matéria de facto assente.

7. Tal hipoteca foi exigida pela Ré Caixa EE como reforço das demais garantias propostas - facto constante dos art.ºs 10.º e 11.º da contestação apresentada pela Ré Caixa EE, acrescentado nos termos do art.º 5.º, alínea a), do Cód. Proc. Civil.

8. O empréstimo em causa teve como objectivo, na realidade “(…)a regularização de algumas dívidas decorrentes da actividade comercial dos seus pais [aqui primeiros Réus], nomeadamente segurança social e fornecedores.(…)” - facto constante do art.º 4 da contestação apresentada pela Ré Caixa EE, acrescentado nos termos do art.º 5.º, alínea a), do Cód. Proc. Civil.

9. A segunda Ré é filha dos primeiros Réus - facto constante do art.º 24.º da petição inicial, acrescentado nos termos do art.º 5.º, alínea a), do Cód. Proc. Civil.

10. Os primeiros Réus, BB e CC, bem como a segunda Ré DD declararam constituir e aceitar a hipoteca em causa, com conhecimento das dificuldades económicas dos primeiros Réus, bem como com consciência que o negócio em causa diminuiria as possibilidades de os demais credores daqueles verem satisfeitos os seus créditos, conformando-se com tal situação - facto 2.º da base instrutória (alterado pela Relação)[1].


III – Fundamentação de direito

A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente (art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil[2]), passam pela análise e resolução da única questão jurídica por ele colocada a este tribunal e que consiste em determinar se existem fundamentos para a procedência da impugnação pauliana em relação à hipoteca constituída a favor da Ré Caixa EE sobre a fracção autónoma pertencente aos Réus BB e CC.

A impugnação pauliana (azione revocatória, acción revocatória, action paulienne, gläubigeranfechtung), referida nos art.ºs 610º e ss. do Cód. Civil, permite aos credores, mesmo de direitos ainda não exigíveis, reagir contra actuações jurídicas do devedor que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito[3]. Constitui, portanto, um instrumento jurídico conferido aos credores, com vista à conservação da garantia geral do cumprimento de obrigações, com ele se tutelando o interesse dos credores contra o desvio do património pelo devedor que implique obstáculo absoluto à satisfação dos seus créditos ou o seu agravamento[4].

A sua procedência depende, segundo os arts. 610.º a 612.º do Cód. Civil, da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos[5]:

1 - Realização pelo devedor de um acto que diminua a garantia patrimonial do crédito (eventus damni) e não seja de natureza pessoal. Estão aqui em causa actos que se repercutem em termos negativos no património do devedor, quer em virtude do aumento do seu passivo, quer da diminuição do seu activo.

Nesses actos está incluída, como é pacificamente reconhecido, a concessão de garantias[6], encontrando-se, assim, abrangida a hipoteca constituída pelos Réus BB e CC.

2 - Anterioridade do crédito em relação ao acto ou, sendo ele posterior, prática do acto dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor. Compreende-se que assim seja: no momento da constituição do crédito, o credor toma normalmente em consideração a situação patrimonial do devedor, pelo que é com essa situação que deve poder contar para efeitos da garantia geral.

No caso, como se alcança dos factos provados, em especial dos pontos 2. a 5., o crédito do Autor é anterior à constituição da hipoteca, pelo que também este pressuposto se verifica.

3 - Natureza gratuita do acto ou, sendo ele oneroso, que alienante e adquirente tenham agido de má fé. Se o acto for gratuito não se exige que o alienante e o adquirente estejam conluiados porque os interesses subjacentes a um acto gratuito cedem perante os direitos do credor.

Porém, se a alienação é a título oneroso, a impugnação pauliana só procede se o devedor e o terceiro adquirente tiverem agido de má fé (o chamado consilium fraudis), como tal se entendendo a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.

Esta orientação reportada à alienação de bens do devedor vale, como é justo e lógico, para a constituição de garantia. Esta, embora não aumente o passivo do devedor garante, diminui a garantia patrimonial dos restantes credores, sendo, pois, essa diminuição que terá de ser ponderada e contar como critério decisivo para a concessão da pauliana.

4 - Impossibilidade de o credor obter a satisfação integral do seu crédito ou agravamento dessa impossibilidade. Estão aqui abrangidos não apenas os casos em que o acto implique a colocação do devedor numa situação de insolvência ou agrave essa situação, se ela já se verificava, mas também os casos em que, embora não ocorrendo essa insolvência, o acto produza ou agrave a impossibilidade fáctica de o credor obter a execução judicial do crédito. Por outro lado, o juízo sobre a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito deve reportar-se à data do acto impugnado.

No que concerne ao ónus de prova, em desvio ao regime geral sobre a sua distribuição, cabe ao credor a prova do montante do crédito que tem contra o devedor, da anterioridade dele em relação ao acto impugnado, e ao devedor e ou ao terceiro adquirente existência de bens penhoráveis de valor igual ou superior na titularidade do obrigado lato sensu (art.º 611º do Cód. Civil).

Decorre da factualidade provada (pontos 2. a 5. do elenco factual provado) que o Autor era credor dos Réus BB e CC (agora credor destes é o cessionário) e que essa dívida é anterior à do acto impugnado, a constituição da hipoteca. Inquestionável é ainda o agravamento das possibilidades de os demais credores daqueles Réus verem satisfeitos os seus créditos (cfr. ponto 10. do elenco factual provado).

Têm-se, assim, por verificados estes três requisitos, restando apenas o relativo à má fé, cujo conceito tem aqui um sentido subjectivo ou psicológico, abrangendo as actuações dolosas e igualmente as negligentes, posto que a negligência seja consciente.

No tocante a essa temática, há que aferir, atento o regime diferenciado estabelecido pelo art.º 612º, n.º 1, do Cód. Civil, se a constituição da hipoteca foi um acto gratuito ou oneroso e tendo em consideração que, como se alcança dos pontos 7. e 8. do elenco factual provado, a hipoteca foi constituída para garantir um empréstimo de que os Réus devedores (BB e CC), também beneficiaram o acto é oneroso, pois a garantia resultante da hipoteca foi obtida pela Ré Caixa EE a troco de uma contraprestação (o empréstimo)[7]. E, tratando-se de um acto oneroso, a impugnação só podia proceder se tivesse havido má fé, simultaneamente por parte de todos os Réus, sejam os devedores seja o credor garantido[8], o que, como equacionou o acórdão recorrido, não se provou que tivesse ocorrido com a Ré Caixa EE.

A alteração levada a cabo pela Relação, no ponto 10. da matéria de facto, na sequência da apelação desta Ré, não deixa margem para dúvidas quanto à inexistência, relativamente a ela, do necessário consilium fraudis, o que afasta o pretendido êxito da impetrada impugnação pauliana.

Aliás, cabe sublinhar que as considerações tecidas pelo Recorrente, a este propósito, incidem, na sua essência, sobre o juízo factual da Relação, área em que, como se sabe, esta tem a derradeira palavra, através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 662.º do Cód. de Proc. Civil, e a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça é residual, restringindo-se a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes (cfr. art.º 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - e art.ºs 662º, n.º 4, 674º, n.ºs 1 a 3, e 682º, n.ºs 1 e 2, do Cód. de Proc. Civil).

Acresce que, focando-nos na alteração da matéria de facto realizada pela Relação ao ponto 10. (correspondente precisamente à exclusão da Ré Caixa EE do conluio), não vemos qualquer inobservância dessas regras probatórias. Pelo contrário, como se alcança do teor do acórdão recorrido, as provas indicadas pela Apelante, para sustentar a parte impugnada da decisão da matéria de facto, foram examinadas pela Relação, que motivou a sua decisão de forma coerente e transparente, de acordo com o princípio da convicção racional, consagrado pelo art.º 607º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil, sendo certo que nesse domínio (da livre convicção do julgador) está vedado ao Supremo exercer censura e sindicar a respectiva substância (art.º 662º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil).

Deste modo, soçobra tudo o que o Recorrente alegou e concluiu, a tal respeito, mantendo-se intocável, por isso, a materialidade fáctica dada por assente pela Relação, em face da qual não restam dúvidas de que não se verificam, ao contrário do que sustenta, todos os pressupostos legais para a procedência do pedido de impugnação pauliana, não podendo reconhecer-se, com tal fundamento, que a aludida hipoteca não lhe é oponível.

Nesta conformidade, improcedem ou mostram-se deslocadas todas as conclusões do Recorrente, a quem não assiste razão para se insurgir contra o decidido pela Relação, que não merece os reparos que lhe aponta, nem viola as disposições legais que indica.


IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se negar a revista e confirmar consequentemente o acórdão recorrido.

 Custas pelo Recorrente.


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Anexa-se sumário do acórdão (art.ºs 663º, n.º 7, e 679º, ambos do CPC).

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Lisboa, 01 de Junho de 2017


António Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

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[1] A 1ª instância considerara provado que “Os primeiros Réus, Carlos Alberto Pereira Felício e Clara de Oliveira Rocha Felício, bem como a segunda Ré Sandra Cristina da Rocha Pereira Felício e a Caixa Económica Montepio Geral, declararam constituir e aceitar a hipoteca em causa, com conhecimento das dificuldades económicas dos primeiros Réus, bem como com consciência que o negócio em causa diminuiria as possibilidades de os demais credores daqueles verem satisfeitos os seus créditos, conformando-se com tal situação - facto 2.º da base instrutória”.
[2] Na versão aprovada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, uma vez que o recurso tem por objecto decisão proferida já depois de 01 de Setembro de 2013 e o processo é posterior a 01 de Janeiro de 2008 (cfr. os seus art.ºs 5º, n.º 1, 7º, n.º 1, e 8º).
[3] Cfr. José Carlos Brandão Proença, in Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra Editora, 2011, pág. 411, e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, Vol. II, Almedina, 2002, pág. 294.
[4] Cfr., neste sentido, João de Matos Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª edição, pág. 446, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Garantia das Obrigações, 2012, 4ª edição, págs. 58 e 59, e Mário Júlio de Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, pág. 857.
[5] Cfr., para maior desenvolvimento, João de Matos Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª edição, págs. 447 a 451, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Garantia das Obrigações, 2012, 4ª edição, págs. 63 a 69, José Carlos Brandão Proença, in Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra Editora, 2011, págs. 411 a 414,António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X, Direito das Obrigações, Garantias, Almedina, 2015, págs. 352 e ss, e Mário Júlio de Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, págs. 861 a 867.
[6] Cfr., neste sentido, João de Matos Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª edição, pág. 453, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Garantia das Obrigações, 2012, 4ª edição, pág. 64, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X, Direito das Obrigações, Garantias, Almedina, 2015, pág. 362, e Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, pág. 626.
[7] Cfr. neste sentido, José de Matos Antunes Varela, In Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª edição, pág. 456, e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Garantia das Obrigações, 2012, 4ª edição, pág. 68.
[8] Cfr., neste sentido, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X, Direito das Obrigações, Garantias, Almedina, 2015, pág. 377, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, in Garantia das Obrigações, 2012, 4ª edição, pág. 64, e José de Matos Antunes Varela, In Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª edição, pág. 456.