Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3920/18.2T8VIS.C1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
REJEIÇÃO DE RECURSO
EXTEMPORANEIDADE
COVID-19
CONTAGEM DE PRAZOS
SUSPENSÃO
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DO RECURSO
Data do Acordão: 04/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
A Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, ao revogar o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, terminou com a suspensão generalizada dos prazos processuais, que só veio a ser reintroduzida pelo n.º 1 do artigo 6.ºB aditado à Lei n.º 1-A/2020 pela Lei n.º 4-B/2021, com excepções que incluem a tramitação de processos não urgentes nos tribunais superiores.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:



1. AA veio recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão do Tribunal da Relação ... que, indeferindo a reclamação apresentada contra despacho do relator, deliberou não conhecer do recurso de apelação interposto pelo recorrente, por extemporaneidade, nem tomar conhecimento das contra-alegações apresentadas na apelação interposta por Generali Seguros, S.A., porque “apesar de a situação que o legislador teve em vista ao editar a alínea d) do n.º 5 do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, tendo sido este preceito aditado pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, para produzir efeitos a partir de 22 de Janeiro de 2021 ter sido a de ainda não haver decisão final dos processos, no momento da entrada em vigor da lei, a razão de ser da solução vale igualmente para os casos em que a decisão final tenha sido proferida antes de 22 de Janeiro de 2021. Também em relação a estas decisões os prazos não se suspendem em virtude da alínea d) do n.º 5 do artigo 6.º B.”

Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões:

A. O Tribunal da Relação ..., por Acórdão da Conferência, decidiu que que não se encontrava suspenso o prazo para a interposição de recurso sobre as decisões já proferidas após a entrada em vigor da Lei n.º 4-B/2021 de 01/02 e como tal as alegações de recurso e contra-alegações de recurso apresentadas pela Recorrente são intempestivas.

B. É deste Acórdão que a Recorrente vem recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça pedindo a sua revogação e substituição por uma decisão que admita o recurso e as contra-alegações.

C. O princípio vertido no artigo 2.º do CPC, sob a epígrafe “Garantia de acesso aos tribunais”, surge como corolário do direito constitucional à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º CRP), e dirige-se ao julgador, de forma objetiva, exigindo-lhe que interprete e aplique as normas processuais no sentido de favorecer o acesso aos tribunais e de evitar situações de denegação de justiça, por excesso de formalismo.

D. Ao consagrar que o juiz relator tem competência para indeferir o recurso por entender que a razão de ser de uma lei transitória é não permitir a suspensão de todos os prazos de recursos e dos prazos subsequentes ao recurso, quando não é isso que resulta do texto da lei, será adequado? Será assim garantido efetivamente ao cidadão a justiça, igualdade e legalidade?

E. Vendo o seu direito ao recurso extinto e comprometido por uma interpretação do Tribunal da Relação ... de uma lei temporária que vai muito para além da letra da lei, a Recorrente é confrontada com a violação do seu direito de defesa perante os órgãos jurisdicionais junto dos quais se discutiam questões que lhe diz respeito, violando o seu direito a uma tutela efetiva.

F. A Lei n.º 4-B/2021 de 01/02, foi aprovada para acautelar os constrangimentos em que uma grande parte dos sujeitos processuais tiveram de passar a agir.

G. E se alguma dúvida houvesse, ela teria sempre de ser resolvida a favor do exercício do direito ao recurso, e não em seu detrimento, com vista à garantia constitucional do acesso ao Direito e à Justiça previsto na Constituição.

H. A Lei n.º 4-B/2021 de 01/02, estabelece um regime transitório de suspensão de prazos processuais e procedimentais decorrente das medidas adotadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19 e resulta da letra da lei, de forma clara e expressa, que existem várias soluções para a contagem do prazo de recurso, após a entrada em vigor da Lei n.º 4-B/2021 de 01/02.

I. Nos termos do disposto no artigo 6.º-B, n.º 1, todos os prazos para a prática de atos processuais estão suspensos.

J. No n.º 5 do artigo 6.º-B, são identificadas de forma taxativa as situações em que a regra geral do n.º 1 do mesmo artigo pode ser derrogada.

K. Sendo uma delas a não suspensão do prazo para recurso, quando “seja proferida decisão final nos processos e procedimentos em relação aos quais o tribunal e demais entidades referidas no n.º 1 entendam não ser necessária a realização de novas diligências”, isto é, quando seja proferida decisão final após a entrada em vigor da Lei n.º 4-B/2021 de 01/02.

L. Este entendimento resulta expresso na alínea d) do n.º 5 do artigo 6.º-B, dado que a indicação "caso em que não se suspendem os prazos para interposição de recurso" se aplica apenas e só às situações a que se refere a primeira parte da alínea d), ou seja, aqueles em que a sentença foi proferida já na vigência desta lei.

M. A Recorrente não concorda com o entendimento do Tribunal que “a razão de ser da solução vale igualmente para os casos em que decisão final tenha sido proferida antes de 22 de Janeiro de 2021.”

N. Se o objectivo da lei fosse não suspender os prazos de recurso, o texto da alínea d) seria mais curto e mais directo, afirmando de forma expressa que os prazos de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da retificação ou reforma da decisão não se encontravam suspensos.

O. Em respeito ao princípio da protecção da confiança, previsto na Constituição da República Portuguesa, que “implica um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas jurídicas que lhe são criadas, não admitindo as afectações arbitrárias ou desproporcionalmente gravosas com as quais, o cidadão comum, minimamente avisado, não pode razoavelmente contar. (Nesta linha, e v.g, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 303/90, 625/98 e 160/00).”

P. Não se pode concordar que o entendimento ora perfilhado não viola o princípio da confiança, uma vez que sendo uma lei transitória e que permite uma contração/modificação do exercício de direitos, não pode também ser interpretada por forma a negar o acesso à justiça.

Q. Exatamente por ser encontrar em vigor o estado de emergência, que limita os direitos dos cidadãos, é que se torna essencial respeitar o que se encontra escrito na lei com vista a garantir que qualquer cidadão que interprete a lei retire as mesmas consequências quanto aos prazos de suspensão do recurso e consequentemente de acesso à Justiça e ao Direito.

R. Em respeito ao princípio da aplicação da lei mais favorável deve ser equacionado com a posição da parte que apresenta recurso ou responde a um recurso, e de forma que esta não seja colocada numa posição de denegação de justiça.

S. Também não colhe o entendimento da desigualdade, uma vez que estamos perante um regime transitório e excecional, totalmente justificado.

T. Acresce que esta realidade não é nova, uma vez que em Portugal já vigorou, devido às várias alterações ao Código Processo Civil, vários prazos e até formas diferentes de interposição de recurso.

U. Ora, para resolver um eventual conflito de Direitos consagrados na Constituição (Princípio da Confiança e Princípio da igualdade) não é lícito ao tribunal resolver este conflito aplicando outro critério de justiça, ainda que o tribunal, entenda que a solução consagrada na lei não é a mais justa. O tribunal deve aplicar o critério definido pelo legislador porque a sua legitimidade para administrar a justiça em nome do povo decorre justamente da sua subordinação à lei conforme decorre do artigo 203.º da Constituição.

V. Aceitar a interpretação extrapolada da alínea d) do n.º 5 do artigo 6.º-B do Tribunal é admitir uma violação do Direito ao Acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva previsto no artigo 20.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

W. Aceitar a interpretação do Acórdão em crise é ir contra o disposto no n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil, que determina “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.”

X. Decorrente da aplicação do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, que perante vários sentidos possíveis de interpretação, o intérprete deve eleger aquele que mais se aproxime do significado natural das palavras usadas no texto da lei.

Y. Face a tudo o exposto, a Ré entende que como a lei foi publicada a 1 de fevereiro, entrou em vigor no dia 02 desse mês (artigo 5.º), mas tendo efeitos retroativos a 22 de janeiro (artigo 4º) e a sentença do caso em apreço foi notificada antes desta data, a 04 de janeiro, a esta sentença aplica-se a regra geral do n.º 1 do artigo 6.º-B que determina que "São suspensos (...) todos os prazos para a prática de atos processuais". A alínea d), do n.º 5, deste artigo 6.º-B seria assim uma norma especial aplicável apenas às sentenças proferidas já durante a vigência desta lei, ou seja, após dia 22 de janeiro.

Z. No que respeita ao indeferimento das contra-alegações de recurso, não se pode entender que a não suspensão dos prazos se aplica ao caso em concreto, desde logo porque o disposto na alínea d) do n.º 5 do artigo 6.º-B, é taxativo na identificação dos prazos que não estão suspensos e só faz referência à interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da retificação ou reforma da decisão.

AA. Com efeito, o objectivo do legislador com a introdução do n.º 5 foi identificar as exceções à regra geral de suspensão dos prazos.

BB. Para o efeito, nas primeiras alíneas utilizou expressões mais genéricas onde podem estar incluídos um número significativo de práticas processuais.

CC. A opção de redação na alínea d) foi outra e diferente e procurou identificar quais os processos em que podia ser proferida decisão final, em que momentos e ainda quais as formas de reação sobre a mesma.

DD. Motivo pelo qual se deve entender que o prazo das contra-alegações não se encontra contemplado na alínea d).

EE. Devendo por isso, ser proferido Acórdão que admita o Recurso de Apelação, bem como as contra-alegações de recurso.»


    O autor contra-alegou, concluindo desta forma:

«1º O direito ao recurso não é absoluto (como pretende a Recorrente), sendo admissível a sua restrição ou limitação, desde que se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade.

2º A tese da Recorrente viola, essa sim, o princípio da igualdade (na dimensão do princípio da proibição do arbítrio), na medida em que implica uma situação de profunda desigualdade, sem razão justificada para tal, entre os destinatários de decisões finais proferidas antes de 22 de Janeiro de 2021 e os destinatários de decisões tomadas depois de tal data.

3º Esta foi a diferença mais importante entre o regime de suspensão dos prazos que vigorou no primeiro semestre de 2020 e o regime introduzido pela Lei n.º 4-B/2021: proferida sentença (antes ou na vigência desta Lei) em processos não urgentes pelos tribunais de 1.ª instância, os prazos para a prática dos actos subsequentes não se suspendem, pelo que os recursos devem ser interpostos nos prazos legalmente fixados (de 15 ou 30 dias consoante os casos) e a arguição de nulidades, os requerimentos de rectificação de erros materiais e a reforma da sentença devem ser apresentados no prazo supletivo legal de 10 dias.

4º O fim visado pelo legislador ao editar a norma contida na al. d) do n.º 5 do artigo 6-B foi o de impedir que operasse a suspensão nos prazos de recurso, quando se esteja perante decisão final proferida no processo, independentemente do momento em que se dê a prolação da sentença (neste sentido, v. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13/05/2021, processo n.º 2161/19.6T8PTM.E1).

5º Estamos perante uma norma excepcional, adoptada no seio de uma situação pandémica, mas que verdadeiramente não chega sequer a suspender ou modificar o exercício de direitos. E isto porque às partes continua a ser possível interpor recurso das decisões proferidas, tendo de o fazer, como até aqui, nos prazos e condições que sempre foram consagrados pelo legislador.

6º A medida em apreço não é, desta forma, desadequada, desnecessária, sendo que as vantagens decorrentes da mesma superam largamente eventuais inconvenientes (que nem sequer se vislumbram, uma vez que as partes no regime normal sempre teriam que respeitar os prazos, sofrendo as consequências caso não o fizessem).

7º O que se pretendeu evitar com a suspensão dos prazos foi a deslocação de pessoas, a aglomeração de pessoas em espaços fechados, mas sempre salvaguardando, dentro do possível, o funcionamento da justiça.

8º O acto de recorrer não apresenta um maior risco para a saúde pública se for praticado em relação a sentença já proferida em comparação com a prática do ato em sentenças a proferir em data posterior à entrada em vigor da Lei (e, neste caso, à retroacção de efeitos).

9º Outra solução não parece poder resultar da norma inscrita no artigo 9.º do Código Civil, não podendo o intérprete bastar-se com o elemento gramatical, devendo procurar, igualmente, os elementos sistemático, histórico e actualista.»


3. Convidadas a pronunciarem-se sobre “a eventualidade de aplicação ao presente recurso da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, interpretada no sentido de ter levantado a suspensão dos prazos judiciais, ao revogar o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março”, as partes vieram dizer o seguinte:

– O autor pronunciou-se no sentido de dever “ser mantida a decisão doutamente proferida pelo Tribunal da Relação ...”, uma vez que “a suspensão dos prazos veio a ser levantada pela Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, com a revogação do artigo 7.º, voltando os prazos a correr no quinto dia seguinte ao da publicação da lei (artigo 10.º da Lei 16/2020, de 29 de Maio), ou seja, 3 de Junho de 2020. 4. Significa isto que, a partir daquela lei, apenas continuaram suspensos os prazos previstos nos termos do artigo 6.º-A, n.º 6, da Lei 1-A/2020. (…) 6. Ora, mesmo que o argumento da RÉ fosse válido, o que não se aceita, e a Lei n.º 4-B/2021 apenas se aplicasse às decisões finais proferidas após a entrada em vigor da mesma, a solução que sempre se chegaria para o que se discute no presente recurso era a mesma: o recurso interposto pela Ré Generali e as suas contra- alegações são intempestivas, visto que a Lei n.º 16/2020 de 29 de Maio já tinha determinado o levantamento da suspensão do prazo de recurso”;

– A ré veio sustentar “que no caso em apreço, e para o que este recurso diz respeito, a Lei que importa ser analisar e interpretada corretamente é a Lei n.º 4-B/2021 de 01/02; 6. Sendo uma Lei que foi publicada em 2021 e que entrou em vigor em 2021, não poder ser revogada por um diploma anterior, como é o caso da Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio.7. Assim, no entender da Ré, a Lei n.º 16/2020, de 29 de Maio, nunca pode ter aplicação ao caso em apreço, pois a questão da correcta interpretação da norma, está relacionada com uma Lei subsequente. 8. Face ao exposto, a Ré reitera o seu entendimento sobre a interpretação que se deve dar à Lei n.º 4-B/2021 de 01/02 e requer que o tribunal dê provimento ao seu recurso e consequentemente que o recurso e as contra-alegações apresentadas sejam considerados tempestivos e apreciados pelo Tribunal da Relação.”


4. Os factos que relevam para a decisão, que se retiram do acórdão recorrido, são estes:

– a sentença da 1ª instância foi notificada às partes a 4 de Janeiro de 2021;

– ambas interpuseram recurso: o recurso da ré foi interposto em 9 de Março de 2021; as contra-alegações ao recurso interposto pelo autor deram entrada em 11 de Março de 2021;

– segundo o tribunal recorrido, o recurso da ré deveria ter sido interposto até 11 de Fevereiro de 2021; as suas contra-alegações ao recurso do autor deveriam ter sido apresentadas até 4 de Março de 2021, uma vez que foi notificada da interposição do recurso do autor no dia 26 de Janeiro.


O objecto do presente recurso consiste na questão da tempestividade da interposição do recurso da ré e da apresentação das suas contra-alegações ao recurso do autor.


5. Não há divergência quanto à duração de ambos os prazos: 30 dias (artigo 638.º, n.ºs 1 e 5).

A discordância da recorrente relativamente ao acórdão recorrido e à parte contrária consiste em saber se a al d) do n.º 1 do artigo 6.º B da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, aditado pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de Fevereiro, que exclui da regra da suspensão de prazos (n.º 1) o prazo para a interposição de recurso, se aplica ou não a decisões anteriores a 22 de Janeiro, tendo em conta que, segundo o artigo 4.º da Lei 4-B/2021, “O disposto nos artigos 6.º-B a 6.º-D da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, produz efeitos a 22 de janeiro de 2021, sem prejuízo das diligências judiciais e atos processuais entretanto realizados e praticados”, não obstante a Lei apenas entrar em vigor no dia 2 de Fevereiro de 2021 (artigo 5.º).

A recorrente entende que esta al. d) não se aplica a decisões anteriores, como é o caso; e entende ainda que o prazo para interpor recurso e para contra-alegar, que se encontrava suspenso, continuou suspenso e que ambos os actos foram praticados em tempo.


6. Seguindo a interpretação exposta por Menezes Leitão em “Os prazos em tempos de pandemia Covid-19”, texto “actualizado a 5 de Junho de 2020”, e-book Estado de Emergência – Covid-19 Implicações na Justiça, 2.ª ed., Centro de Estudos Judiciários, Junho 2020, pág. 51 e segs., pág. 73 e segs., a Lei n.º 16/2020, de 19 de Maio, veio terminar com o regime genérico da suspensão de prazos judiciais:

“A suspensão dos prazos veio finalmente a ser levantada pela Lei 16/2020, de 29 de Maio, mais uma vez um diploma de redacção muito deficiente e que por isso levanta justificadas dúvidas.

4.2. A revogação do artigo 7.º da Lei 1-A/2020, de 19 de Março. Salienta-se que o artigo 7.º, da Lei 1-A/2020, estabelecia que a suspensão vigoraria até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 (artigo 7.º, n.º 1, da Lei 1-A/2020), a qual teria que ser decretada por Decreto-Lei, no qual se declara o termo da situação excepcional (artigo 7.º, n.º 2, da Lei 1-A/2020). Uma vez que a situação excepcional de mitigação e tratamento desta infecção epidemiológica está ainda longe do fim, seria extremamente polémico o Governo proferir um diploma a declarar o seu termo, requisito necessário para levantar a suspensão dos prazos. Optou-se, por isso, por revogar pura e simplesmente o artigo 7.º da Lei 1-A/2020, o que causou surpresa em alguns que aguardavam pela emissão desse decreto-lei apenas no fim do período de pandemia. Em qualquer caso, parece evidente que a revogação do artigo 7.º permite o levantamento da suspensão dos prazos sem necessidade de ser emitido esse decreto-lei, voltando os prazos a correr no quinto dia seguinte ao da publicação da lei (artigo 10.º da Lei 16/2020, de 29 de Maio), ou seja 3 de Junho de 2020.

4.3. O novo regime processual transitório e excepcional. Em consequência da revogação do artigo 7.º da Lei 1-A/2020, de 19 de Março, a Lei 16/2020, de 29 de Maio, aditou àquele diploma um artigo 6º-A que estabelece um regime processual transitório e excepcional, aplicável "no decurso da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19" (artigo 6.º-A, n. º 1), já não estando previsto o seu levantamento através de diploma posterior ou qualquer outra declaração. Não se sabe quanto tempo durará este regime transitório, sendo que, no entanto, o mesmo não implica a suspensão generalizada dos prazos processuais. O regime caracteriza-se, nos termos do artigo 6.º-A, n.ºs 2 a 5, pelo estabelecimento das seguintes regras (…)”.

No mesmo sentido, fazendo aliás a história legislativa pertinente, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 1 de Julho de 2021, www.,dgsi.pt, proc.n.º 90/21.2T8OER.L1-2: “O regime legal do referido artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 vigorou até 03-06-2020, data da entrada em vigor da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, que revogou o referido artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 (artigos 8.º e 10.º), colocando termo à suspensão generalizada dos prazos processuais, retomando-se a contagem dos prazos judiciais a partir de 03-06-2020 (inclusive), considerando-se, em cada prazo, o tempo decorrido até à declaração da sua suspensão.(…)”

A regra genérica da suspensão dos prazos judiciais apenas veio a ser reintroduzida pelo n.º 1 do artigo 6.ºB aditado à Lei n.º 1-A/2020 pela Lei n.º 4-B/2021, nos seguintes termos:

“Artigo 6.º-B

Prazos e diligências

1 - São suspensas todas as diligências e todos os prazos para a prática de atos processuais, procedimentais e administrativos que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional e entidades que junto dele funcionem, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, sem prejuízo do disposto nos números seguintes:

(…) 5 - O disposto no n.º 1 não obsta:

a) À tramitação nos tribunais superiores de processos não urgentes, sem prejuízo do cumprimento do disposto na alínea c) quando estiver em causa a realização de atos presenciais;

b) À tramitação de processos não urgentes, nomeadamente pelas secretarias judiciais;

c) À prática de atos e à realização de diligências não urgentes quando todas as partes o aceitem e declarem expressamente ter condições para assegurar a sua prática através das plataformas informáticas que possibilitam a sua realização por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, designadamente teleconferência, videochamada ou outro equivalente;

d) A que seja proferida decisão final nos processos e procedimentos em relação aos quais o tribunal e demais entidades referidas no n.º 1 entendam não ser necessária a realização de novas diligências, caso em que não se suspendem os prazos para interposição de recurso, arguição de nulidades ou requerimento da retificação ou reforma da decisão.

(…)”


7. Quando a sentença foi notificada às partes, em 4 de Janeiro de 2021, não estava ainda em vigor a Lei n.º 4-B/2021; mas tinha já cessado a regra da suspensão genérica dos prazos, por virtude da entrada em vigor da citada Lei n.º 16/20.

Assim sendo, o prazo para recorrer e para contra-alegar encontravam-se já decorridos quando entrou em vigor a Lei n.º 4-B/2021.


7. Esta questão, todavia, foi colocada pelo tribunal recorrido aplicando a Lei n.º 4-B/2021 a uma decisão anterior a 22 de Janeiro (cfr. artigo 5.º), como é o caso.

Ora, saber se a al. d) do n.º 5 se aplica à decisão em causa pressupõe que, quando foi notificada, em 4 de Janeiro de 2021, os prazos para interpor recurso se encontravam suspensos. Se assim fosse, entende-se que o prazo para recorrer só deveria contar-se desde a entrada em vigor da nova lei, à semelhança da regra que vale para as leis que vêm encurtar prazos peremptórios, como é o caso do prazo para a interposição de recurso.

Com efeito, do n.º 1 do artigo 297.º do Código Civil resulta que a lei nova que venha encurtar um prazo se aplica aos prazos em curso (porque, após a entrada em vigor da lei nova, não devem dispor de prazos diferentes aqueles que se encontrem nas mesmas situações), mas o novo prazo “só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei” (porque a aplicação retroactiva, isto é, desde que o prazo começou a contar, poderia ter como efeito, ou a extinção do direito cujo exercício se encontra sujeito ao prazo, ou o encurtamento do prazo retroactivamente, efeito que o legislador não quis), “a não ser que, segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo se completar” (porque da aplicação da lei nova, que vem encurtar um prazo, não pode resultar o respectivo alongamento; continua, portanto, a aplicar-se a lei antiga) – Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra, 1985, págs. 64 e 65.  

Não se discorda da afirmação de que valem em relação às decisões anteriores ou posteriores a 22 de Janeiro de 2021 as mesmas razões que determinaram a suspensão dos prazos, e que estão claramente explanadas no acórdão recorrido, mas entende-se que não é conforme com o efeito extintivo de um prazo peremptório que ainda não teria começado a correr o seu encurtamento em resultado da entrada em vigor de uma lei nova. Considera-se, assim, que a lei nova (seria aqui a al. d) do n.º 5 do artigo 6º-B da Lei n.º 1-A/2020, aditado pela Lei n.º 4-B/2021) se aplica às decisões posteriores ou anteriores à sua entrada em vigor, mas começando a contar o prazo neste último momento (2 de Fevereiro de 2021).

Não é, todavia, o caso dos autos.


8. Tendo em conta que a alegação de violação dos princípios constitucionais do acesso ao Direito e da confiança assenta na aplicação da alteração introduzida pela Lei n.º 4-B/2021 com referência ao dia 22 de Janeiro de 2021 e que o fundamento da intempestividade da apresentação das alegações e das contra-alegações ao recurso do autor é o de não se encontrarem suspensos os correspondentes prazos quando a sentença impugnada foi notificada ao recorrente, não se aprecia a invocação da violação de tais princípios.

Nestes termos, nega-se provimento à revista.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 21 de Abril de 2022


Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora)

Fátima Gomes

António Oliveira Abreu